Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
03B019
Nº Convencional: JSTJ000
Relator: LUCAS COELHO
Descritores: EMPREITADA
EFEITOS
EMPREITEIRO
DONO DA OBRA
AUTONOMIA
ACTO JURÍDICO
CONTRATO DE MANDATO
CUMPRIMENTO IMPERFEITO
INCUMPRIMENTO DO CONTRATO
LICENÇA DE UTILIZAÇÃO
VISTORIA
Nº do Documento: SJ200309180000192
Data do Acordão: 09/18/2003
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: T REL GUIMARÃES
Processo no Tribunal Recurso: 388/02
Data: 10/02/2002
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA.
Sumário : I - Na tipicidade legal definida nuclearmente no artigo 1207º do Código Civil, a empreitada é um contrato obrigacional quoad effectum - conquanto lhe possam andar associados efeitos reais - pelo qual uma das partes, designada «empreiteiro», se obriga a realizar uma obra em relação a outra parte, denominada «dono da obra», mediante um preço que constitui obrigação desta;
II - Em contraponto, a tipicidade do mandato referenciada no artigo 1157º configura-o como contrato pelo qual uma das partes se obriga, presuntivamente de forma gratuita, a praticar um ou mais actos jurídicos por conta de outra;
III - A obra que constitui elemento constitutivo prototípico da empreitada, e objecto desta, tanto pode consistir na realização de uma coisa (corpórea) nova, como na modificação de uma coisa existente, e, mesmo, na fabricação de qualquer outro produto, mediante prestação de trabalho ou de serviços,
IV - Todavia, o trabalho exigível na empreitada não é devido enquanto tal mas apenas como meio de realização da obra ou de produção do resultado que constitui o objecto nuclear da prestação obrigacional.
Por isso se compreende que esse trabalho não tenha de ser prestado pelo próprio empreiteiro a título pessoal - salvo tratando-se de obra caracterizada à partida infungivelmente pela personalidade do obrigado -, intervindo ele em regra no contrato na veste de agente económico autónomo, inconfundível com a de um trabalhador subordinado, numa posição de independência de ordens e instruções da contraparte inassimilável à posição do mandatário;
V - Assumindo a obrigação de realizar a obra, mas não tendo de a executar por si pessoalmente - tal como na complexa construção de edifícios - deve então o empreiteiro recrutar a mão-de-obra, assegurar o concurso de técnicos das especialidades e a disponibilidade das matérias-primas, máquinas e instrumentos necessários à boa consecução do empreendimento;
VI - E celebrando o empreiteiro neste sentido, v. g., contratos de trabalho, de compra e venda ou de aluguer, instrumental e teleologicamente orientados para o cumprimento da obrigação de realização da obra, nem por isso se descaracteriza o contrato, transfigurando-se o empreiteiro em mandatário do dono da obra na prática desses actos jurídicos por conta própria, e transmudando-se a empreitada em contrato de mandato;
VII - Justamente classificado como espécimen do contrato de empreitada se configura o denominado «contrato de arquitectura» - ou de «engenharia» -, mediante o qual o arquitecto assume, quer o projecto da obra, quer a direcção da construção e a superintendência da fiscalização - e mesmo que apenas se obrigue à direcção da construção da obra por outrem projectada -, actividades que transcendem o nível dos meros serviços implicados para se qualificarem conjugadamente pela sua referência ao unitário objectivo da correcta edificação da obra;
VIII - Pela falta ou o defeituoso cumprimento da obrigação de realização da obra responde em abstracto exclusivamente o empreiteiro perante o dono da obra, ainda o inadimplemento se deva a facto do pessoal e dos técnicos por aquele contratados nos termos aludidos no anterior ponto VII;
IX - No regime dos artigos 26º e 27º do Decreto-Lei nº. 445/91, de 20 de Novembro - alterado por ratificação pela Lei nº. 29/92, de 25 de Setembro -, na redacção do artigo 1º do Decreto-Lei nº. 250/94, de 15 de Outubro, a emissão da licença de utilização de edifício construído não era necessariamente precedida de vistoria municipal.
Não o era, em princípio, se o requerimento dessa licença fosse acompanhado de declaração do técnico responsável pela direcção de obra, comprovativa, além do mais, da conformidade da obra com o projecto aprovado e o uso previsto na licença de construção [artigo 27º, nº. 1, alínea a)].
Decisão Texto Integral: Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:

I
D. A, farmacêutica, propôs em 16 de Março de 2000, no 1º juízo do tribunal de Vila Verde, contra B, arquitecto, acção ordinária tendente ao cumprimento e indemnização por incumprimento de contrato de prestação de serviço, na modalidade de empreitada, entre ambos celebrado a 5 de Maio de 1997.
Pede correspondentemente (1): a condenação do réu a concluir nos termos contratuais a habitação, composta de cave, rés-do-chão e andar, objecto do negócio; em alternativa a condenação do mesmo a entregar-lhe a quantia, não inferior a 7.000.000$00, necessária a essa ultimação, ou o montante que a exceda, a liquidar em execução de sentença; e, cumulativamente, ainda a sua condenação a indemnizá-la pelos prejuízos emergentes do não cumprimento pontual do contrato, também a liquidar em execução.
Contestando, deduziu o réu reconvenção pelo preço global dos seus serviços - retribuição e despesas indispensáveis -, nos termos do contrato, suas alterações e incumprimento, a liquidar em execução.
O processo prosseguiu a normal tramitação, vindo a ser proferida sentença final, em 26 de Fevereiro de 2002, que julgou parcialmente procedente a acção - improcedendo a reconvenção -, com a consequente condenação do réu a concluir a obra contratual e a pagar à autora uma indemnização, «a título do que se refere na resposta ao quesito 14.º» - lê-se na decisão -, no montante que se vier a liquidar em execução.
O réu apelou da sentença, mas sem sucesso posto que a Relação de Guimarães a confirmou, com diversa fundamentação.
Do respectivo acórdão, proferido em 10 de Julho de 2002, vem interposta a presente revista, cujo objecto se restringe à qualificação jurídica do contrato na perspectiva do seu incumprimento.
II
1. A Relação considerou assente a matéria de facto já apurada na 1ª instância, para a qual, não alterada nem impugnada, desde já se remete nos termos do nº. 6 do artigo 713º do Código de Processo Civil, sem prejuízo das pertinentes alusões, maxime ao teor da contrato.
1.1. Com esses fundamentos factuais, à luz do direito aplicável, a sentença do tribunal de Vila Verde, divergindo da qualificação apresentada pela autora na petição, veio a caracterizar o negócio ajuizado como contrato de mandato, «um puro contrato de mandato, ainda que complexo, compreendendo diversas obrigações, designadamente por banda do mandatário».
E «todas essas obrigações podendo reconduzir-se à noção de 'actos jurídicos por conta de outrem'» emergente do artigo 1157º do Código Civil, não se suscitaram dúvidas ao julgador em 1.ª instância de que «o Réu agia 'por conta' da Autora, sua co-contratante, isto é, na gestão de um interesse desta, prefigurando actos que a mandante lhe havia cometido, a ele, Réu».
Ora, nos termos de um semelhante negócio jurídico, «o mandatário ora Réu - pondera a sentença - encontrava-se sujeito às obrigações a que alude o artº. 1161º C. Civ., designadamente a praticar todos os actos que o mandato englobava».
Provou-se, todavia, a propósito, «que se encontram por efectuar diversas obras no imóvel a que alude o contrato», traduzindo incumprimento parcial do mesmo, aliás imputável ao réu que, onerado neste ponto com uma presunção de culpa (artigo 799º, nº. 1), não a logrou ilidir.
Daí que tenha sido condenado «a concluir sem vícios a obra referida na acção, designadamente fazendo todos os trabalhos em falta de execução ainda possível», e ademais a pagar à autora - que solvera, por seu turno, integralmente o preço contratado, observe-se em aparte (cfr. as respostas aos quesitos 6º, 10º e 63º) - «uma indemnização no montante que se vier a liquidar em execução de sentença» pelos danos resultantes do incumprimento.
1.2. Declaradamente com fundamento diverso, e desenvolvendo nesse conspecto uma certa elaboração em torno da figura do mandato sem representação, a Relação de Guimarães confirmou como se disse a sentença.

2. E o réu vem a este Supremo Tribunal dissentir do decidido, sintetizando a alegação da revista nas conclusões que literalmente se reproduzem:
2.1. «A A., que é farmacêutica e proprietária de um terreno situado em Vila Verde, demanda o Réu, que é arquitecto, alegando que celebrou com ele um contrato de empreitada tendente à construção de uma habitação que o R., alegadamente não cumpriu, e pede a condenação deste a completar a obra e indemnizá-la»;
2.2. «Demonstrou-se contudo que A. e R. celebraram antes um contrato de mandato - na modalidade de mandato sem representação, por escrito, de 9/5/1997, através do qual, em consequência, o Réu se obrigou a praticar actos jurídicos por conta da A. tal como prescrito pelo artº. 1157º do Código Civil (a saber: 'fiscalizar a construção' (cláusula 1.a); garantir que ela seria entregue concluída no prazo de 16 meses (cláusula 2.a); garantir a boa execução e a qualidade dos materiais, bem como o cumprimento do projecto (cláusula 4.a); fazer um seguro de vida, por morte ou invalidez cujos beneficiários seriam indicados pela proprietária (cláusula 14.a); obrigar os empreiteiros e sub-empreiteiros a um seguro de obra (cláusula 15.ª)»;
2.3. «Não obstante o exposto, julgou-se possível condenar o Réu a 'ultimar a construção da obra nos termos acordados', e a indemnizar a Autora 'pelos prejuízos que essa omissão efectivamente lhe vier a causar', o que seria - como se decidiu - consequência de 'prestar contas do incumprimento (do mandato)...';
2.4. «Do probatório resulta que a obra está inacabada, que a Autora já pagou ao Réu até 1999, 14.800.000$00 (resposta aos quesitos 6º e 10º) e foi informada por este que era 'impossível cumprir os prazos estipulados e o orçamento inicial' (alínea C) da especificação) pelo que 'o Réu afirmou ser necessário que a Autora entregasse mais dinheiro' (resposta ao quesito 9º); que a Autora entregou ao ... um orçamento para a obra no valor de 30.600.000$00 (resposta ao quesito 25.º) tendo a obra sido vistoriada por esse Banco 'achando esse valor correcto e adequado e a A. aceitou-o" (resposta ao quesito 28º), que a obra tinha um técnico responsável - o Engº. C - e um empreiteiro responsável - D - (alínea B da especificação) e que aquele Engº. C, em 5/5/1998, considerou a obra concluída, após o que a A., em 6/5/1998 requereu a respectiva licença de utilização que a Câmara lhe passou (respostas aos quesitos 41º e 42º)»;
2.5. «A decisão condensada no douto acórdão sob censura não é aceitável, pois:
«a) Tendo o R. agido como mandatário da Autora ao celebrar contratos de empreitada, por conta e em nome da Autora, parece claro que esses contratos de empreitada eram celebrados entre a A. (representada pelo R.) e os empreiteiros com quem o R., mandatário da A., contratava»;
«b) O Réu - que se obrigou a, em nome da A., fiscalizar a obra, garantir a sua execução e obrigar os empreiteiros e sub-empreiteiros a fazerem seguro de obra, em suma, a dirigir os trabalhos - jamais pode ser condenado a cumprir as obrigações assumidas por quem perante ele contratou, mas vinculando-se à A., porque ele não era sujeito dos contratos»;
«Sem prescindir,
«c) Tendo-se provado que a Autora 'concluída a obra' (resp. ao quesito 41º) no dia 6/5/1998 requereu a licença de utilização que a Câmara lhe passou (resp. ao quesito 42º) isso prova que se a A. aceitou 'a conformidade da obra concluída com o projecto aprovado e condicionamentos do licenciamento e com o uso previsto no alvará de licença de construção' (artº. 26º do Decreto-Lei nº. 445/91 de 20/11), 'facta concludentia' de onde necessariamente resulta que a obra foi aceite sem qualquer reserva (cfr. o artº. 1219º do Código Civil e o Ac. Rel. Lisboa de 13/3/97 in BMJ 465, 626)»;
«d) Por último, tendo a A. (através do R.) contratado para a obra um técnico responsável, e um empreiteiro responsável só a estes a A. podia pedir contas pela inexecução da empreitada, já que a responsabilidade do R. só podia decorrer do eventual (mau) critério que ele usasse para seleccionar essas pessoas ou da sua eventual incúria em fiscalizar os seus trabalhos, uma vez que é inerente ao mandato a 'inserção directa, e imediata do acto na esfera jurídica do representado' (Ac. Rel. Porto de 30/3/1992 in Col. Jurisp. 1992, 2º, 223)».
O recorrente aduz a finalizar que o acórdão sub iudicio violou, assim, os artigos 1157º, 1161º, 1178º, 1207º, 1219º, 799º, 802º do Código Civil.
III
De harmonia com o exposto, coligidos os indispensáveis elementos de apreciação, cumpre decidir.
1. A controvérsia principal que polarizou intervenções ao longo do processo até ao último grau de recurso centrou-se na natureza do contrato que integra a causa de pedir da acção.
Sabemos que a autora o classificou como empreitada, optando as instâncias pela qualificação de mandato, com as especificidades da aproximação aos contornos do mandato sem representação ensaiada pela Relação.
O réu recorrente, por seu lado, não é desta caracterização que propriamente dissente, mas das consequências que na óptica da 2.ª instância lhe vão implicadas, considerando-se em resumo irresponsável pelo incumprimento do contrato qualquer que seja a qualificação.
Quid iuris?

2. Não estando o tribunal sujeito às construções jurídicas das partes, adiante-se desde já que propendemos para a qualificação perfilhada na petição inicial.
Evidentemente que a natureza jurídica do negócio sub iudicio depende da valoração do seu conteúdo à luz do direito aplicável.
Interessará por isso conhecer desde já o quadro normativo em que se inscreve o clausulado contratual a examinar dentro em pouco.
2.1. Segundo a definição do artigo 1207º do Código Civil, a empreitada é o contrato pelo qual «uma das partes se obriga em relação à outra a realizar certa obra, mediante um preço».
Trata-se, pois, de um contrato bilateral, posto que dele emergem justamente obrigações para ambas as partes, a saber: a obrigação de realizar a obra contratada, impendendo sobre o contraente que a lei designa como «empreiteiro» (2); e a obrigação de pagar o preço convencionado, que incumbe à contraparte, legalmente denominada o «dono da obra».
O contrato assume, por conseguinte, natureza tipicamente obrigacional quoad effectum, conquanto igualmente lhe possam andar associados efeitos reais (cfr., v. g., o artigo 1212º do Código Civil).
Tais, do mesmo passo, os nucleares elementos prototípicos do contrato de empreitada no desenho do artigo 1207º: a realização de uma obra, mediante um preço.
Assaz diversa, em contraponto, a tipicidade do mandato na configuração do artigo 1157º, como contrato «pelo qual uma das partes se obriga a praticar um ou mais actos jurídicos por conta da outra».
É verdade que o mandato e a empreitada constituem ambos - e ademais o depósito - modalidades do contrato de prestação de serviço especialmente reguladas no Código Civil (artigo 1155º).
A despeito, porém, desse traço comum, quanto ao mais distinguem-se tipicamente as duas figuras contratuais com nitidez, na medida em que o mandato se caracteriza pela prática de actos jurídicos por contra da outra parte, e a empreitada pela realização de uma obra, mediante o pagamento do preço.
Observe-se, aliás, que se o preço é elemento típico imprescindível da empreitada, a tipicização legal do mandato nem sequer integra uma contrapartida, estando-se, bem ao invés, perante contrato que em princípio se presume gratuito (artigo 1158º).
Não se trata em todo o caso de elemento concretamente problemático no presente processo.

2.2. Menos despiciendo no conspecto da temática submetida a este Supremo Tribunal e da opção por uma das qualificações se apresenta decerto o conceito de obra, sendo por isso oportuna breve explicitação.
A obra que constitui Tatbestandsmerkmal e objecto da empreitada tanto pode consistir na realização de uma coisa (corpórea) nova como na modificação de uma coisa existente, e, mesmo, na fabricação de qualquer outro produto, mediante prestação de trabalho ou de serviços (3).
Com efeito, a lei não restringe o tipo contratual à produção ou transformação de uma coisa de algum modo corporizada, seja material ou ideal - desde, por exemplo, a produção ou reparação de um armário ou de um fato, até à pintura de um retrato, a modelação de um busto, a preparação do guião de um filme e semelhantes -, antes considera preencher já a previsão normativa qualquer resultado ou produto tão incorpóreo como a apresentação de uma peça musical ou de teatro (4).
Todavia, na empreitada o trabalho ou os serviços não são devidos enquanto tais, mas apenas como meios de produção do resultado, constituindo este na realidade o objecto nuclear da prestação obrigacional (5).
Na prática pode tornar-se duvidoso se o objecto de determinado contrato é o trabalho ou actividade qua tale, ou antes o respectivo resultado ou produto, posto que só neste caso haverá empreitada.
Advoga-se a propósito um critério prático-jurídico de distinção consoante a forma de determinação da remuneração: ou em função da duração do trabalho (v. g., pagamento à hora, ao dia, ao mês), ou em função do produto deste (v. g., da sua qualidade e originalidade). A segunda forma de cálculo é típica da empreitada, sendo a primeira própria de outras espécies de contratos de prestação de serviço e do contrato de trabalho (6). Mas o critério tem valor meramente indiciário, dependendo da incidência de uma multiplicidade de factores consoante os casos concretos (7).
Assente em todo o caso que o trabalho exigível na empreitada não é devido como tal , mas como meio de realização da obra, bem se compreende que o mesmo não tenha que ser prestado pelo próprio empreiteiro a título pessoal - a menos, é evidente, que se trate de obra caracterizada à partida infungivelmente pela personalidade do obrigado, tal como uma obra de arte, um parecer científico, a tradução de um romance (8).
Tanto mais que o tipo contratual em apreço, pressupondo decerto uma confiança do dono da obra na mestria e diligência do empreiteiro, não chega a assumir o carácter jurídico-pessoal que assiste por exemplo ao mandato (9).
Não tendo, por conseguinte, o empreiteiro que realizar a obra pessoalmente - cogite-se apenas de obras de maior dimensão que as exemplificadas, envolvendo especialidades e técnicas multidisciplinares e mobilizando meios materiais, bem como recursos humanos e financeiros assaz diversificados, tal com na construção de edifícios -, salienta-se a propósito que ele intervém em regra no contrato na veste de agente económico autónomo, inconfundível com a de um trabalhador dependente.
E nessa posição, independente por via de regra de ordens da contraparte, providenciará o empreiteiro pela realização da obra valendo-se geralmente das suas peculiares capacidades e know how, subministrando quiçá materiais e utensílios (artigos 1210º e 1212º do Código Civil), sob responsabilidade própria, em contraste com o relacionamento característico das partes no contrato de mandato, ilustrado pela vinculação do mandatário, por norma, à observância de instruções do mandante [artigos 1161º, alínea a), 1 1162º] (10).
Assumindo, em suma, a obrigação de providenciar pela realização da obra, mas não tendo que a executar só por si pessoalmente, deve o empreiteiro recrutar a força de trabalho, assegurar o concurso de técnicos das especialidades, a disponibilidade das matérias-primas, máquinas e instrumentos necessários à boa consecução do empreendimento.
Pois bem. Celebrando o empreiteiro neste sentido contratos de trabalho, de compra e venda ou de aluguer, instrumental e teleologicamente orientados para o cumprimento ponto por ponto da obrigação de realização da obra que sobre si impende mercê do contrato de empreitada, nem por isso, assim pensamos, se descaracteriza o contrato, transfigurando-se o empreiteiro em mandatário do dono da obra na prática dos aludidos actos jurídicos por conta própria, e transmudando-se a empreitada em contrato de mandato.

2.3. Tendo isto como certo, aproveite-se apenas o ensejo, antes de finalizar nesta parte, para uma aproximação mais estreita ao negócio jurídico concretamente discutido no processo, recordando a elaboração desenvolvida na 1.ª instância a propósito da sua natureza.
Alude a determinado passo a sentença, citando a literatura espanhola, ao chamado «contrato de engenharia», cujos rasgos fundamentais evocam impressivamente o contrato sub iudicio.
Segundo o tribunal de Vila Verde, o contrato de engenharia tem por objecto «um estudo ou projecto de engenheiro ou arquitecto (resultado de um trabalho intelectual), compreendendo também a colaboração para a colocação em prática do projecto, tendo por finalidade, v. g., a construção de imóveis». A «execução da obra pode ser levada a cabo quer por quem elaborou o projecto, quer por um terceiro, seleccionado pelo autor do projecto e actuando debaixo da direcção deste». O espécimen em causa «é considerado, se bem que atípico, modalidade do contrato de 'obra' (...), este equivalente ao contrato de empreitada do nosso ordenamento».
O esboço extractado sugere tratar-se do modelo que a dogmática alemã desde longe isolou e construiu sob a denominação do Architektenvertrag.
Alguma doutrina fala a propósito de «tipo especial» que não se deixa apreender nas malhas de um esquema conceitual, mas a jurisprudência pacífica do Tribunal Supremo qualifica-o unitariamente como empreitada (Werkvertrag). Ainda que o arquitecto assuma apenas a direcção da construção da obra por outrem projectada, mesmo nesse caso considera a mais alta instância federal configurar-se um contrato de empreitada (11).
E isto porque a actividade a que se obriga o arquitecto visa no seu conjunto um único objectivo: a edificação da obra.
Não esquece o bgh que o arquitecto não se obriga especificamente a erigir a construção como coisa corpórea, mas a desenvolver o necessário labor de planeamento e direcção, as actividades de coordenação e controlo das prestações dos empreiteiros participantes.
Semelhantes actividades são, todavia, projectadas em plano superior ao de um mero «contrato de serviço», e o Supremo Tribunal Federal valora-as nesse nível como actividades, precisamente, qualificadas pela sua referência a um resultado (erfolgsbezogen), visando conjugadamente que a obra de construção correctamente planeada chegue a bom termo isenta de defeitos.

3. A superestrutura do contrato de empreitada que vem de se esboçar, desde aspectos nucleares de tipicidade em aproximação dialéctica ao tipo contratual do mandato, até às especificidades da figuração decantada no «contrato de arquitectura», ou «de engenharia» - uma sugestão da 1.ª instância fértil de implicações, cedo abandonada -, vai-nos permite testar a natureza jurídica, inicialmente adiantada, do contrato que integra a causa de pedir da acção.
3.1. É por isso oportuno neste momento perscrutar o seu conteúdo na medida indispensável a essa qualificação, pese a extensão do respectivo clausulado.
O contrato consta de documento junto com a petição inicial, mais tarde reproduzido na alínea A) da especificação, sob a epígrafe «Contrato de prestação de serviços. Contrato de fiscalização de obra», datado de 5 de Maio de 1997 e assinado por autora e réu.
Compreende uma parte introdutória, seguida dos 18 «artigos do contrato», 2 anexos - «Descrição sumária dos acabamentos previstos para a obra» e «Projecto de arquitectura contendo plantas, cortes e alçados» - e um «Sumário», a finalizar, dos elementos nele contidos.
Na parte introdutória desenha-se um sistema quiçá rebuscado de denominação dos contratantes, consignando-se que o contrato é celebrado entre o «primeiro outorgante», ou «o proprietário», e o «segundo outorgante», denominado «a fiscalização», os quais vêm em todo o caso identificados de forma expressa com as pessoas da autora e do réu, respectivamente
Como autora e réu, por conseguinte, em razão de simplicidade e facilidade de compreensão, designaremos as partes doravante (12).
Estipulam, pois, os «artigos do contrato», em quanto aqui importa, o seguinte.
O réu compromete-se «a fiscalizar a construção», nos termos do contrato, de uma habitação com cave, rés-do-chão e andar, conforme o projecto anexo (1º).
O réu «garante como prazo de entrega da obra concluída, o período de dezasseis meses, a contar do dia do levantamento da licença camarária», excepto:
a) no caso de incumprimento por parte da autora;
b) se houver impedimentos legais ou camarários ao bom andamento da obra;
c) se houver atrasos ou dificuldades nos pagamentos (2º).
O réu «garante que a habitação será concluída pelo preço global de 14.800.000$00 [vinte milhões e novecentos mil escudos (sic)» (13), acrescido de IVA e do valor de alterações e trabalhos não previstos (3º).
O réu «garante a boa execução da obra, e a qualidade dos materiais aplicados, bem como o cumprimento do projecto»; «todas as alterações julgadas necessárias» pelo réu «serão executadas sem consulta prévia» da autora, «excepto se as mesmas forem alterações na estrutura do edifício, ou na distribuição dos compartimentos», para a execução das quais precisará o réu da «autorização por escrito» da autora; em quaisquer circunstâncias, o réu «compromete-se a enviar relatórios mensais com indicação do andamento da obra e de todas as alterações que tenham sido efectuadas» (4º).
«Todas as alterações julgadas necessárias» pelo réu «que impliquem alteração do preço global, não poderão ser executadas sem consulta prévia» da autora (5º).
Sempre que o réu solicitar à autora «quaisquer informações ou directrizes, e as mesmas não forem enviadas por escrito no prazo de quinze dias», o réu «tomará as decisões que entender necessárias, mesmo que isso implique uma alteração do preço global» (6º).
A autora «compromete-se a pagar todas as alterações que tenham sido executadas com o seu consentimento escrito, ou ao abrigo do artigo sexto» (7º).
A autora «compromete-se a pagar» ao réu «os seguintes valores de acordo com o plano de pagamentos abaixo discriminado:
«1.º pagamento: 600.000$00 (seiscentos mil escudos), no acto de assinatura do contrato»;
«2.º pagamento: 2.200.000$00 (dois milhões e duzentos mil escudos), no início da obra, para construção das fundações»;
«3.º pagamento: 2.200.000$00 (...), no enchimento da placa de piso do andar»;
«4.º pagamento: 2.200.000$00 (...), no enchimento da placa de cobertura»;
«5.º pagamento: 2.200.000$00 (...), no fecho em tosco da estrutura da obra»;
«6.º pagamento: 2.200.000$00 (...), na instalação de picharia e electricidade»;
«7.º pagamento: 2.200.000$00 (...), na montagem das carpintarias e caixilharias»;
«8.º: 1.000.000$00 (um milhão de escudos)», mais valor das alterações nos termos dos artigos 4º, 5º, 6º e 7º, «no acto da entrega da chave» (8º).
«Não estão incluídos neste plano de pagamentos:
«1) Quaisquer tipos de instalações de sistemas de segurança eléctricos, electrónicos, ou mecânicos (...);
«2) Quaisquer tipos de instalações de ar condicionado (...);
«3) Quaisquer tipos de móveis fixos de quarto, cozinha (...) (9º).
O réu «compromete-se a notificar» a autora «por escrito, com a antecedência de quinze dias, sobre a data prevista para o pagamento da quantia em questão, de acordo com o plano de pagamentos referido» (10º).
A autora «compromete-se a pagar a quantia de 10.000$00» «por cada dia de atraso nos pagamentos», e o réu «reserva-se o direito de alterar a data de execução da obra, para efeitos do artigo segundo deste contrato», notificando-a, «por escrito, da sua decisão» (11º).
O réu «compromete-se a devolver» à autora «a quantia de 10.000$00» «por cada dia completo que ultrapassar no prazo estipulado para a execução da obra, excepto se o atraso estiver no âmbito das alíneas a), b), c) do artigo segundo, ou no âmbito do artigo sexto, deste contrato» (12º).
A autora «compromete-se a fazer um seguro de vida, por morte ou invalidez, no valor do montante global da obra, pelo prazo de execução da mesma, no âmbito deste contrato, em que serão beneficiários» quem o réu indicar; «o custo desse seguro não está incluído no montante global da obra» (13º).
O réu «compromete-se a fazer um seguro de vida, por morte ou invalidez, no valor do montante global da obra, pelo prazo de execução da mesma, no âmbito deste contrato, em que serão beneficiários» quem a autora indicar; «o custo desse seguro está incluído no montante global da obra, excepto se, pelas razões indicadas no artigo segundo deste contracto, o prazo de execução for prorrogado»; «nesse caso a renovação do seguro será feita a expensas» da autora, «no montante do valor global estimado (em função dos atrasos, ou de trabalhos não previstos) menos a soma total dos pagamentos já efectuados» ao réu (14º).
O réu «compromete-se a obrigar todos os empreiteiros e sub-empreiteiros a um seguro de obra, que cubra todos os danos de responsabilidade civil e acidentes de trabalho, incluindo invalidez e morte» (15º).
O réu «não se responsabilizará por todos os danos que não lhe sejam imputáveis, a si ou aos seus empreiteiros, e não estejam cobertos pelo seguro de obra, sejam eles de origem natural, animal ou humana (16º).
A autora «compromete-se a avisar» o réu «sempre que desejar efectuar visitas à obra, com pelo menos oito dias de antecedência, e não efectuará visitas sem o prévio acordo» com o réu (17º).
A autora «só efectuará visitas à obra na presença» do réu, só a este «dará ordens de execução ou de demolição», e só a ele «pedirá esclarecimentos» (18º).

3.2. O exame das cláusulas extractadas, à luz dos subsídios teórico-normativos oportunamente seleccionados, confirma inteiramente a natureza do negócio jurídico atrás avançada: o instrumento presente a nossos olhos deixa transparecer um contrato que deve ser qualificado como empreitada e não como mandato.
Se não, vejamos.
Em primeiro lugar, é irrecusável que o convénio tem por objecto a realização de uma obra - a construção de um edifício de habitação de três pisos, cave, rés-do-chão e primeiro andar - mediante um preço, fixado em escudos - 14.800.000$00 - em sintonia com a tipificação centrada no artigo 1207º do Código Civil.
Assim resulta exuberantemente de todo o contexto do contrato, em especial dos artigos 1º, 2º, 3º, 4º, 8º, 10º, 11º, 12º, 17º e 18º, referindo-se ao preço global da obra, v. g., os artigos 3º, 8º, 10º e 11º.
A obra objecto do contrato traduz-se, por conseguinte, na realização de uma coisa corpórea porventura nova, na construção de um novo edifício - não na transformação de uma construção pré-existente - mediante prestação de trabalho ou de serviços, actividades explicitadas em vários passos do contrato.
Neste sentido depõem, v. g., os artigos 1º (fiscalização da construção), 2º e 3º (conclusão da construção da habitação), 4º, 5º 6º e 7º (boa execução da obra; aplicação de materiais de qualidade; cumprimento do projecto; execução de alterações na estrutura do edifício, na distribuição dos compartimentos; pedidos de autorização, informações ou directrizes, e consultas à autora; execução de alterações com o seu consentimento escrito; relatórios mensais sobre o andamento da obra e das alterações), 8º (construção das fundações; enchimento da placa de piso do andar; enchimento da placa de cobertura; fecho em tosco da estrutura da obra; instalação de pichelaria e electricidadade; montagem das carpintarias e caixilharias), 9º (trabalhos e serviços não incluídos, uma enunciação negativa).
Considere-se, aliás, que os trabalhos referidos não são contratualmente visados enquanto tais, mas como meios de realização da obra. Basta notar que o contrato não os contempla autonomamente, como actividades que sejam específico objecto de direitos ou obrigações independentes da construção da habitação. E o preço contratado é inclusive determinado em função da obra a realizar - as prestações do plano de pagamentos faseados previsto no artigo 8º estão por isso em conexão com as etapas de progressão da edificação, coincidindo a última muito significativamente com o «acto de entrega da chave» - e não pelo critério da duração do trabalho.
Em segundo lugar, as partes no contrato, mais precisamente os sujeitos que assumem as obrigações dele emergentes, tipicizadas no citado artigo 1207º - e, bem assim, a titularidade dos correlativos direitos -, aos quais a terminologia dos normativos do mesmo capítulo reserva como se sabe as denominações «dono da obra» e «empreiteiro», são respectivamente a autora e o réu.
Consequentemente, a autora assumiu pelo contrato sub iudicio a obrigação de pagar o preço ao réu, enquanto o réu contraía, por seu turno, em relação à autora a obrigação de realizar a obra.

3.3. Trata-se igualmente de asserções que fluem com naturalidade das cláusulas contratuais.
No tocante à primeira dessas obrigações, citem-se apenas os artigos 3º e 8º, quando estipulam expressamente que a autora se obriga a solver ao réu - segundo o plano de prestações em ligação com a progressão da obra, já evidenciado, e mediante notificação por parte do réu (artigo 10º) - a importância de 14.800.000$00, o preço global, justamente, da construção da habitação.
Quanto à segunda, as mesmas cláusulas são por sua vez significativas de que a realização da obra é obrigação contratual do réu, como credor, exactamente, da sinalagmática prestação do preço.
Por isso também que o réu se tenha obrigado, nos termos dos artigos 4º a 7º, à boa execução da obra, com aplicação de materiais de qualidade, bem como ao cumprimento em geral do projecto anexo ao contrato e à efectivação das alterações necessárias, incluindo os trabalhos e acabamentos capitais da edificação especificados no artigo 8º, que vão desde a construção das fundações até à montagem das carpintarias e caixilharias.
Assumindo por fim a obrigação de entregar a obra concluída no prazo fixado no artigo 2º, sob pena de multa (artigo 12º).

3.4. Isto não significa, porém, que o réu estivesse obrigado a construir a habitação pessoalmente.
A obra que constitui objecto do contrato de empreitada, oportunamente se observou, não tem na verdade que ser executada, como coisa corpórea, pela própria parte que se obriga a realizá-la, a menos que a marca da personalidade do obrigado seja a respeito dela determinante. Ora, no caso em apreciação tratava-se da construção, dir-se-ia fungível, de um edifício, envolvendo ademais a implantação dos seus três pisos actividades e técnicas diversificadas de certa dimensão.
Obrigado, no entanto, a realizar a obra, mas não a executá-la por si pessoalmente, deve então o empreiteiro, para cumprir ponto por ponto a obrigação, recrutar a força de trabalho, assegurar o concurso de técnicos das especialidades, a disponibilidade das matérias-primas, máquinas e instrumentos, tudo o necessário à boa consecução do empreendimento, celebrando contratos de trabalho, de seguro, de compra e venda e outros.
Aceite-se, em primeiro lugar, que em tal sentido se configura justamente a vontade negocial do réu, considerando nomeadamente a referência aos «seus empreiteiros» e «sub-empreiteiros» constante dos artigos 15º e 16º do contrato - confirmando, aliás, a resposta ao quesito 59.º que o réu assumiu perante a autora a obrigação de adquirir materiais e contratar pessoal técnico e operários necessários à conclusão da obra.
Nesse contexto se compreendendo, diga-se de passagem, a obrigação de fiscalização da obra que o réu assume no artigo 1º.
Mas nem por isso, em segundo lugar, a prática dos referidos actos jurídicos descaracteriza a empreitada, como há momentos se sublinhava, uma vez que os mesmos são meramente instrumentais relativamente à obrigação de realização da obra, orientando-se teleologicamente para o cumprimento desta.

3.5. Por último, até o tópico de liberdade funcional do empreiteiro face ao dono da obra encontra de algum modo afloração na economia do contrato.
Aludiu-se acima à sua actuação como agente económico tendencialmente autónomo, em posição qualitativamente distinta do trabalhador dependente, com independência por regra das instruções da contraparte, ausente em princípio no negócio de mandato.
Ora, desde logo é de notar que nenhum condicionamento flui do clausulado quanto a formas de trabalho do réu e sua duração.
E, bem ao invés, logo o artigo 4º é expresso em lhe conferir o poder de execução de todas as alterações que julgue necessárias sem consulta prévia do dono da obra, excepto - em consonância com o regime do artigo 1214º, nº. 1, do Código Civil - quanto a modificações de vulto, implicando porventura desvios do projecto, como aquelas que incidem na estrutura do edifício ou na distribuição dos compartimentos.
O réu aceitou ainda submeter-se à consulta prévia do dono da obra quando estejam em causa alterações necessárias com repercussão no preço (cfr. propósito o nº. 3 do citado artigo 1214º). Mas até nesse caso poderá tomar as decisões que entender adequadas, conquanto impliquem alteração do preço global, se aquele lhe não transmitir por escrito, dentro de determinado prazo, as informações ou directrizes solicitadas.
O próprio regime de visitas da autora à obra convencionado nos artigo 17º e 18º concorre no sentido da afirmação da autonomia do réu.

3.6. Em suma. Os elementos de análise disponíveis conjugam-se em apreciável sintonia no sentido de que o negócio jurídico consubstanciado no documento sub iudicio tem a natureza de um contrato de empreitada.
Não se objecte, por todo o exposto, que o mesmo instrumento deve antes ser entendido no sentido de o réu se ter obrigado tão-somente à prática de actos jurídicos por conta da autora, merecendo por isso a qualificação de mandato.
Assim argumenta o réu na alegação da revista, enunciando entre esses actos jurídicos os aspectos do contrato há instantes analisados como integradores da obrigação típica de realização da obra por ele contraída (supra, 3.3. e 3.4.): garantir a boa execução da obra, a aplicação de materiais de qualidade, o cumprimento do projecto (artigo 4º); fiscalizar a construção (artigo 1º); garantir a entrega da obra concluída no prazo estipulado no artigo 2º; fazer e obrigar os empreiteiros aos seguros aludidos nos artigos 14º e 15º; a contratação de técnicos e construtores que assumiam em relação à autora a obrigação de construção da habitação, a saber, os empreiteiros e sub-empreiteiros mencionados nos artigos 14º, 15º e 16º, maxime o técnico responsável pela obra, Engº. C, e o empreiteiro responsável pela obra, D, únicos sujeitos que a autora pode responsabilizar nos termos desta acção, posto haverem sido por ela contratados através do réu, alega este [cfr. o ponto 3.3.2. da alegação e as conclusões 4ª e 5ª, alínea d) (supra, III, 2.4. e 2.5., alínea d)].
Todavia, a expressão contratual garantir, e também comprometer-se, só pode ter o sentido de que o réu se obriga directamente para com a autora a realizar - pessoalmente ou através de outrem, nos termos anteriormente expostos - os actos respectivos, e não apenas que se obriga apenas a praticar actos jurídicos com terceiros mercê dos quais se obriguem estes a realizá-los em relação à autora.
Um tal entendimento careceria de outros suporte gramatical, explicitações que o contrato realmente não contém.
Quando o réu garante, por conseguinte, nos termos do artigo 4º, o cumprimento do projecto, ele obriga-se efectivamente para com a autora a cumprir o projecto e não somente a celebrar actos jurídicos com outrem que se obrigue a cumpri-lo em relação a ela.
Quanto, por seu turno, aos contratos de seguro, já se trata na verdade de obrigação visando a prática de actos jurídicos, mas actos acessórios na economia integrada do contrato - tanto quanto é possível valorar, posto que o seu conteúdo não consta da matéria de facto dada como provada pelas instâncias -, despiciendos na determinação da sua natureza jurídica.
Tão-pouco se vislumbra fundamento para considerar que o técnico e o empreiteiro responsáveis da obra foram contratados pela autora através do réu. O contrato não lhes faz a menor menção, resultando da alínea A) da especificação - em conformidade, aliás, com a alegação do artigo 50º da contestação - a mera existência destes intervenientes.
Se estes estivessem contratualmente ligados à autora, como se compreende que a autora, perante o teor do artigo 18º do contrato, nem sequer pudesse pedir-lhes esclarecimentos acerca da obra?
Provavelmente contratou-os o réu, à semelhança de outro pessoal, por conta própria - se é que não se encontravam já associados à sua organização -, na prática daqueles actos específicos da posição contratual de empreiteiro, qualificados pela sua referência à obrigação de realização da obra, de que fala o BGH a propósito do «contrato de arquitectura» (supra, III, 2.3.).
Em resumo. Nenhuma cláusula contratual consente, pois, qualquer leitura, pelo menos imperfeita, que autorize a qualificação do negócio como contrato de mandato, e não seria essa, se bem se pensa, a interpretação que um declaratário normal na posição da autora deduziria da declaração, ou conducente a um maior equilíbrio das prestações, em consonância com os tópicos normativos que fluem dos artigos 236º e segs. do Código Civil.

4. Definida a natureza do negócio jurídico que integra a causa de pedir como contrato de empreitada, resta o aspecto do incumprimento focado na revista.
Como se aduziu introdutoriamente, concluíram neste plano as instâncias não terem sido efectuadas diversas obras no imóvel a que alude o contrato - qualificado, não obstante, como mandato -, traduzindo incumprimento parcial do mesmo imputável ao réu, que por conseguinte foi condenando a concluir sem vícios a obra referida, designadamente fazendo todos os trabalhos em falta de execução ainda possível, e ademais a indemnizar a autora pelos danos resultantes do incumprimento, de montante a liquidar em execução de sentença.
Pois bem. A posição a este respeito sustentada pelo réu na revista sintetiza-se nas duas seguintes vertentes.
4.1. Em primeiro lugar, na base da qualificação do contrato como mandato pretende o réu ter agido como mandatário, contratando empreiteiros em nome da autora que perante esta se vincularam, não podendo consequentemente resultar condenado a cumprir as obrigações por aqueles assumidas, visto não ser sujeito desses contratos.
A fundamentação do recurso é, porém, nesta parte improcedente, como antes se mostrou.
O contrato tem a natureza de empreitada. E na posição contratual de empreiteiro que assumiu, haverá o réu contratado, com vista ao adimplemento da típica obrigação de realização da obra - que não tinha que executar por si só pessoalmente, bem o sabemos -, técnicos e construtores, porventura empreiteiros de profissão, actos estes estreitamente relacionados com o cumprimento, praticados por conta e no interesse imediato do próprio réu.
Mal se compreenderia, por conseguinte, que pelo incumprimento da aludida obrigação e pela indemnização dos danos daí emergentes pudesse - e até devesse - a autora responsabilizar os aludidos profissionais, em lugar do réu exclusivamente.
4.2. Improcedendo as conclusões da revista na primeira vertente, aduz, todavia, o réu noutro pendor, perspectivando agora subsidiariamente a natureza do contrato como empreitada, dois níveis de argumentação.
Por um lado, observando que a autora contratou através do réu para a obra um técnico responsável e um empreiteiro responsável e só estes pode responsabilizar pela inexecução da empreitada - o réu apenas responderia neste conspecto por culpa in eligendo ou in vigilando, tónicas da responsabilidade contratual todavia excluídas do objecto da acção.
Trata-se de mera reedição nesta sede, manifestamente, do raciocínio que vem de se reprovar (supra, 4.1.) e que, como lógico corolário, pelas mesmas razões concita rejeição.
No tocante à segunda sorte de argumentos, a inteligência da alegação de recurso desenvolve uma construção centrada na licença de utilização do edifício, que pode descrever-se como segue.
Resultou provado que em 5 de Maio de 1998 o técnico responsável da obra, Engº. C, considerou a obra concluída, e que a autora requereu no dia imediato a respectiva licença de utilização (resposta ao quesito 41º).
Essa licença de utilização foi-lhe passada pela câmara (resposta ao quesito 42º).
Ora, observa o réu, nos termos do nº. 2 do artigo 26º do Decreto-Lei nº. 445/91, de 20 de Novembro (14), a licença de utilização «destina-se a comprovar a conformidade da obra concluída com o projecto aprovado e condicionamentos do licenciamento e com o uso previsto no alvará de licença de construção».
Por outro lado, o nº. 1 do artigo 1219º do Código Civil dispõe que «o empreiteiro não responde pelos defeitos da obra, se o dono a aceitou sem reserva, com conhecimento deles».
Requerendo, por conseguinte, a autora neste conspecto a licença de utilização - argumenta o réu -, isso significa concludentemente que ela considerou a obra concluída em conformidade com o projecto e com o uso previsto no alvará de licença de construção, aceitando-a, portanto, sem qualquer reserva [cfr. a conclusão extractada supra, II, 2.5., alínea c)].
E daí a irresponsabilidade do réu pelos pedidos da presente acção.
Tudo ponderado, propendemos a não sufragar a argumentação expendida.
Não pelo mero facto de o raciocínio assentar numa extrapolação remota entre pedido e emissão de licença de utilização, por um lado, e aceitação sem reserva, por outro, mas substancialmente pelas duas razões seguintes.
Em primeiro lugar, o pedido (e a emissão) da licença de utilização só seriam concludentes no sentido de que a autora aceitou a obra concluída sem reservas, verificado o pressuposto da conclusão da obra em conformidade com o projecto e com o uso previsto, que a licença justamente se destina a comprovar segundo o artigo 26º, nº. 2, do Decreto-Lei nº. 445/91 - tanto mais que a mera convicção e vontade psicológicas seriam só por si irrelevantes, podendo, por exemplo, derivar de erro.
Provou-se, no entanto, que a obra estava inacabada, falhando consequentemente o pressuposto dos factos ditos concludentes (15).
É por isso de considerar, em segundo lugar, que a emissão da licença de utilização se compatibilizara de algum modo com as provadas incompletudes do obra, carecendo o argumento de valor também nesta tónica.
Não nos perderemos em conjecturas procurando racionalizar a singularidade - que à própria autora causou a estranheza alegada nos artigos 62º a 65º da réplica.
Recordar-se-á apenas, sem mais pormenores, que no regime dos artigos 26º e 27º do Decreto-Lei nº. 445/91 - alterado por ratificação pela Lei nº. 29/92, de 25 de Setembro -, segundo a redacção do artigo 1º do Decreto-Lei nº. 250/94, de 15 de Outubro, a emissão da licença de utilização não era necessariamente precedida de vistoria municipal (16).
Não o era, em princípio, se o requerimento fosse acompanhado de declaração do técnico responsável pela direcção técnica da obra, comprovativa, além do mais, da conformidade da obra com o projecto aprovado e o uso previsto na licença de construção [artigo 27º, nº. 1, alínea a)].
E, mesmo quando em abstracto havia legalmente lugar a vistoria prévia, podia verificar-se deferimento tácito do pedido conducente à emissão da licença de utilização, sem vistoria (artigo 27º, nº. 8).
É, pois legítima a dúvida sobre se no caso sub iudicio se procedeu a vistoria antes da emissão da licença de utilização, ensejo em que seguramente se detectaria a falta de ultimação da habitação da autora.
Decerto. O réu alegou a realização da vistoria no artigo 52º da contestação, citando o «doc. nº. 12», junto com este articulado a fls. 48. Trata-se, porém, de cópia do alvará, do qual não consta qualquer menção à vistoria. O que consta, muito pelo contrário, é, exactamente, menção da declaração de conformidade do técnico responsável, por sua vez citada no despacho autorizativo de fls. 47, declaração, aliás, junta a fls. 45.
Conclui-se pela equivocidade e inconcludência da licença de utilização no sentido preconizado pelo réu, em prejuízo das conclusões formuladas também na segunda vertente apontada.

5. Improcedendo pelo exposto todas as conclusões da alegação, nega-se a revista, confirmando-se o acórdão recorrido quanto à condenação do réu a ultimar a obra e a indemnizar a autora dos prejuízos resultantes do incumprimento do contrato, com as diferenças de fundamentação que transparecem da exposição antecedente.
Custas pelo réu recorrente.

Lisboa, 18 de Setembro de 2003
Lucas Coelho
Ferreira Girão
Luís Fonseca
________________
(1) E isto já conforme a ampliação do pedido, nos termos do artigo 273º, nº. 2, do Código de Processo Civil, oportunamente deduzida (fls. 155).
(2) Não tem, contudo, esta designação técnico-legal que consubstanciar, para efeitos do tipo normativo em apreço, o exercício profissional da respectiva actividade ou uma equivalente titulação jurídica. Tal como em contraponto se poderia observar - com Pires de Lima/Antunes Varela, Código Civil Anotado, vol. II, 4ª edição revista e actualizada, Coimbra Editora, Coimbra, 1997, pág. 867 - que o «dono da obra» pode não ser o proprietário da coisa.
(3) Karl Larenz, Lehrbuch des Schuldrechts, B. II, Besonderer Teil, Halbb. 1, 13. völl. neubearb. Auf., C. H. Beck'sche Verlagsbuchhandlung, München, 1986, págs. 341/342, que por momentos se segue.
(4) Larenz, op. cit., pág. 344; cfr. também sobre este ponto, Pires de Lima/Antunes Varela, op. cit., págs. 864/865.
(5) Larenz, op. cit., pág. 342.
(6) Larenz, ibidem e pág. 310.
(7) Cfr. sobre o tema, ilustrativamente, Pires de Lima/Antunes Varela, op. cit., pág. 864.
(8) Larenz, op. cit., pág. 342.
(9) Larenz, op. cit., págs. 372 e 414.
(10) Larenz, op. cit., págs. 342 e 415, especificando que o empreiteiro não está sujeito a instruções concernentes ao tempo do trabalho e sua duração; no tocante a aspectos relacionados com os acabamentos da obra, tudo dependerá do contrato e das circunstâncias envolventes. Pires de Lima/Antunes Varela, ibidem, sublinham, no ponto em exame, que «o empreiteiro age sob sua própria direcção, com autonomia, não sob as ordens ou instruções do comitente».
(11) Larenz, op. cit., págs. 311 e 343, que continuamos a acompanhar de perto, lugares onde podem ver-se recenseados pertinentes arestos do Bundesgerichtshof. Preteritamente, o Reichsgericht qualificava como contrato de serviço (Dienstvertrag), antes que de empreitada, o contrato mediante o qual o arquitecto assume, quer o projecto da obra, quer a direcção da construção e a superintendência da fiscalização. A mutação jurisprudencial acerca da natureza deste contrato verificou-se - informa o mestre de Munique - com a decisão do BGH publicada no BGHZ 31, 224, concepção que desde então se manteve constante.
(12) No clausulado propriamente dito empregam-se normalmente as expressões - quiçá normalizadas para toda uma série de casos de espécie, quais designações contratuais gerais - «o proprietário» e «a fiscalização». Todavia, tal como «o proprietário» é assim feito equivaler no contrato à pessoa da autora, também «a fiscalização» é aí identificada com o réu. E, conquanto se possa admitir a existência de recursos materiais e humanos mais ou menos organizados empresarialmente em torno do réu - sem falar já da sua capacidade de mobilização externa -, não se vislumbra de facto entidade alguma diferente deste, e muito menos personalizada, susceptível de ser identificada com «a fiscalizção» nos planos jurídico-contratual e jurídico-processual.
(13) Trata-se por certo de lapsus calami. As verbas do plano de pagamentos discriminadas no artigo 8º somam exactamente 14.800.000$00, sendo este, aliás, o preço global dado como provado em resposta ao quesito 63º.
(14) Que aprovou um regime de licenciamento de obras particulares, hoje revogado - e substituído pelo Decreto-Lei n.º 555/99, de 16 de Dezembro, na redacção, por último, do Decreto-Lei n.º 177/2001, de 4 de Junho, com o novo «Regime jurídico da urbanização e da edificação» -, que o réu cita, não obstante, quiçá por se tratar do diploma em vigor na época da licença. Refira-se ainda, a título de elucidação e actualização, a autorização legislativa ao Governo concedida pela Lei nº. 28/2002, de 22 de Novembro, ao abrigo da qual foi entretanto editado o Decreto-Lei nº. 65/2003, de 3 de Abril, diplomas sem influência no caso decidendo.
(15) À face, por exemplo, das respostas aos quesitos 7º, 8º, 9º e 10º, é seguro que a obra se encontrava inacabada na data do pedido da licença de utilização - 6 de Maio de 1998, resposta ao quesito 41º, como sabemos - e também na própria data da sua emissão, que aliás não consta da matéria de facto dada como provada, mas se conclui dos documentos de fls. 47 e 48 ter sido no mesmo dia 6 - sendo desta data, quer o despacho autorizativo, quer a emissão do alvará. De resto, em Maio de 1999 ainda a obra se encontrava «atrasada», como resulta da resposta ao quesito 10º. E das alíneas a) a g) da resposta ao quesito 12º consta precisamente uma lista do que faltava completar: acabar a parede traseira exterior; pintar paredes exteriores e interiores; levantar todo o chão e colocar um novo; encher todas as paredes; impermeabilizar toda a parte do rés-do-chão; no exterior, revestir a cornija da frente em madeira; concluir as chaminés e respectivas coberturas.
(16) E na disciplina desde há pouco em vigor, introduzida pelos diplomas citados supra, nota 14 (cfr. os artigos 63º e 64º do «Regime jurídico da urbanização e da edificação»), pode dizer-se que a vistoria só em casos singularíssimos se tornará imperiosa.