Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
07B2372
Nº Convencional: JSTJ000
Relator: OLIVEIRA ROCHA
Descritores: INTERPRETAÇÃO DA DECLARAÇÃO NEGOCIAL
PACTO DE PREFERÊNCIA
PACTO DE OPÇÃO
Nº do Documento: SJ20070927023722
Data do Acordão: 09/27/2007
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA
Sumário :
1. Constitui matéria de direito, sindicável pelo Supremo, determinar se na interpretação das declarações foram observados os critérios legais impostos pelos arts. 236º e 238º, para efeito da definição do sentido que há-de vincular as partes, face aos factos concretamente averiguados pelas instâncias.
2. O pacto de preferência não se confunde com o pacto de opção: aquele prevê a celebração de um novo contrato (eventual), e é em relação a este novo contrato (eventual) que a preferência funciona, enquanto que no pacto de opção há já a declaração contratual de uma das partes num contrato em formação.
3. A oposição não configura uma verdadeira acção declarativa enxertada no procedimento cautelar, obedecendo estritamente ao estatuído acerca do formalismo da oposição, que teria sido pertinente deduzir, no momento próprio, se tivesse havido audição prévia do requerido.
4. O nº 2 do art. 388º do CPC, ao permitir que o juiz mantenha, reduza ou revogue a providência anteriormente decretada, consagra uma excepção ao princípio de que, proferida a sentença, fica esgotado o poder jurisdicional, quanto à matéria da causa (art. 666º, nº1, do CPC).
5. Nestes casos, a decisão inicial não faz caso julgado. É uma decisão provisória e, sendo a segunda seu “complemento ou parte integrante”, o procedimento cautelar, proferida esta, passa a ter uma decisão unitária.
Decisão Texto Integral: Acordam no Supremo Tribunal de Justiça


1.
AA- Indústria de Confecções, SA., propôs acção declarativa contra BB e esposa CC, pedindo que, em face do arresto e penhora que incidiram e incidem sobre 15.000 acções nominativas de que o réu BB é titular no capital social da autora, seja reconhecido a esta o direito de adquirir tais acções pelo valor de 5,34 euros cada e, por via disso, os réus condenados a reconhecer esse direito de aquisição e, em consequência, ordenar-se a transmissão das referidas acções através de declaração de transmissão escrita nos títulos.
Alega, para tanto, que o réu BB é titular de 15.000 acções nominativas no valor de 5 euros cada. Por via do arresto dessas acções, decretado nos autos de arresto no 427/01, deliberou adquirir tais acções, o que comunicou ao executado, com a informação de que o seu valor global seria pago em 4 prestações trimestrais, iguais e sucessivas.
Em 20 de Junho de 2002, o réu comunicou que vendera as acções a DD, Lda, acções que foram também penhoradas nas execuções 179/02, 138/02 e 180/02.

Os réus contestaram, alegando que a decisão de arresto não tinha transitado em julgado. Foi na audiência de julgamento da oposição ao arresto que, como incidente, requereu a prestação de caução, o que veio a ser feito através de garantia bancária. Por via disso, foi ordenado o levantamento do arresto. A deliberação tem em vista obstar a que exerça o seu direito de venda das acções pelo preço de 224.459,05 euros, venda que já concretizou, porque, tendo notificado a autora, ela não exerceu a preferência. Assim, é a compradora DD, Lda, a legítima titular das acções.

A autora, na réplica, mantém que, tendo sido decretado o arresto das acções, assiste-lhe direito à sua aquisição. A venda das acções à DD, Lda, corresponde a um plano congeminado pelo réu BB, sendo certo que eles não fizeram entre si qualquer negócio que tivesse por objecto as acções. Tratou-se de um mero artificio para obrigar a autora a adquirir as acções por um preço especulativo. Para além disso, não prestou o seu consentimento à venda das acções.
Requer a intervenção provocada da DD, Lda, para intervir como ré e, com os demais réus, ser condenada no pedido por si formulado.

Admitido o incidente de intervenção principal provocada da chamada, esta contesta, dizendo que, em meados de 2001, acordou com os réus BB e esposa comprar-lhes as 15.000 acções por 3.000$00 cada. Não tendo havido a manifestação de intenção de exercer preferência por parte da sociedade ou de qualquer accionista, adquiriu as acções. Invoca o abuso de direito da autora no exercício da aquisição das acções pelo valor nominal em prejuízo do réu. Alega que, nos processos executivos mencionados pela autora foram deduzidos embargos de terceiro, que foram julgados improcedentes, por as acções não estarem penhoradas.
Deduziu reconvenção, que foi admitida, pedindo que a autora seja condenada a reconhecer que é legítima possuidora das 15.000 acções nominativas.

Teve lugar a audiência de julgamento, após o que foi proferida sentença, que julgou improcedente a acção e procedente a reconvenção.

Inconformada, a autora recorreu para o Tribunal da Relação de Coimbra, tendo feito acompanhar as alegações de um parecer jurídico, mas aquele Tribunal, por acórdão de 30 de Janeiro de 2007, manteve a decisão.

Ainda irresignada, pede revista.

Concluiu a alegação do recurso pela seguinte forma:
Em caso de arresto ou penhora de acções da autora, esta tem o direito de as adquirir, nos termos do art. 4°, n° 7, dos estatutos;
Efectivamente, através daquela cláusula estatutária, cada um dos sócios da AA vinculou-se, perante a sociedade, à declaração de venda das acções, se estas fossem arrestadas ou penhoradas, tendo a AA a faculdade de aceitar ou não aquela proposta negocial irrevogável;
Uma cláusula como a do art. 4°, n° 7, dos estatutos da AA, acautela interesses legítimos e atendíveis dos sócios, bem como da própria sociedade, e não se destina a evitar ou controlar a entrada de estranhos na sociedade;
Nos termos do contrato de opção incluído no contrato de sociedade da AA, o direito potestativo da sociedade à aquisição das acções pode ser exercido logo que as acções se encontrem arrestadas ou penhoradas, não dependendo o exercício deste direito da efectiva venda judicial;
Só assim se compreende a 2ª parte do mesmo dispositivo ligada pela conjunção “e” o advérbio “ainda”;
Tendo a AA exercido, em Dezembro de 2001, o seu direito de opção de compra das acções arrestadas, concluiu-se, nessa data, o contrato de compra e venda das acções arrestadas: a proposta (irrevogável) de venda fora efectuada no próprio contrato de sociedade por cada um dos sócios, entre os quais se contava BB; a aceitação deu-se com o exercício, pela AA, do seu direito potestativo de aquisição, em 6 de Dezembro de 2001;
Atenta a existência de um arresto, o negócio de compra e venda das acções, celebrado entre a AA e BB, era, naquela data, inoponível ao credor arrestante (art. 622° Código Civil);
A venda das acções à AA, em Dezembro de 2001, tomou nula a venda posterior das mesmas acções, efectuada pelo réu BB à DD, LDA., por esta segunda venda ser a non domino (art. 892° Código Civil);
Mesmo que se entendesse que o negócio de compra e venda, celebrado, em Dezembro de 2001, entre a AA e o réu BB, não teria produzido efeitos reais, pelo facto de o vendedor não ter aposto nos títulos a declaração de transmissão (art. 102° CVM), nem por isso a solução do caso dos autos deixaria de ser favorável à autora;
Com efeito, mesmo que se entendesse que a AA ainda não seria proprietária das acções - por BB não ter aposto nos títulos a declaração de transmissão -, aquela sociedade é credora do accionista: ao vender à sociedade as suas acções, BB assumiu, entre outros, o dever de declarar nos títulos a transmissão que efectuou;
Ainda que se admitisse esta hipótese – em que a AA seria apenas titular de um direito de crédito contra BB – nem por isso deveria deixar de ser dado provimento à acção intentada, pois o direito daquela sociedade sempre deverá prevalecer sobre o eventual direito da reconvinte DD, Ldª;
A AA adquiriu validamente as acções, sendo nula a venda posterior à sociedade DD, Ldª;
Aliás, no último parágrafo da carta de 6.12.01, a AA refere que existe matéria de facto suficiente para não autorizar a venda das acções;
O acórdão violou as normas do art. 7º, nº4, da AA, o art. 195º, nº3, do CVM, o art. 490º, nº3, do CSC e o art. 892º do C.Civil.

Nas contra-alegações, a reconvinte pronuncia-se pela manutenção da decisão impugnada.

Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.

2. Estão provados os seguintes factos:
A autora é uma sociedade anónima, matriculada na C.R.Comercial de Arganil, sob o n° 193, e com o capital social, integralmente realizado, de 1.650.000,00 euros.
O capital está dividido em 325.000 acções, com o valor nominal de 5,00 euros, cada uma.
O réu marido é titular de 15.000 acções nominativas.
Por decisão proferida nos autos de providência cautelar de arresto, registados sob o n° 427/2001, em que era requerente EE, foi decretado o arresto de 15.000 acções de que o requerido, aqui réu marido, era titular.
Por notificação emanada do Tribunal Judicial de Arganil, foi a autora notificada de que ficaram arrestadas, à ordem daquele Tribunal, as 15.000 acções nominativas, ficando depositário das mesmas o Sr. EC.
O réu BB, ali requerido, deduziu oposição ao arresto, tendo sido agendada audiência de julgamento.
Nesse seguimento, por decisão judicial proferida a 27.11.2002, no âmbito dos autos de arresto, após ter sido validamente prestada a caução, foi determinado o levantamento do arresto.
A 5 de Dezembro de 2001, por reunião do Conselho de Administração da autora, foi deliberado, por unanimidade de todos os seus membros, adquirir as 15.000 acções, objecto de arresto, pelo preço correspondente ao seu valor nominal, acrescido do valor correspondente às reservas legais constituídas à data da reunião, ao abrigo do disposto nos art. 319°, n° 3, do CSC, e art. 4°, n° 7, dos Estatutos da AA.
O art. 4º, nºs 3 a 7, dos Estatutos da autora, estipula o seguinte:
3 - A transmissão das acções nominativas, salvo entre accionistas, seus cônjuges, descendentes e ascendentes, fica subordinada ao consentimento da sociedade, prestado por deliberação do Conselho de Administração, nos quarenta e cinco dias após a recepção da carta a solicitar o consentimento, gozando, em qualquer caso, os accionistas do direito de preferência na transmissão a favor de não accionistas e na proporção das acções que possuem. Não sendo exercido o direito de preferência por qualquer accionista, serão as acções, relativamente às quais este tenha preferência, oferecidas aos restantes accionistas na mesma proporção atrás mencionada.
4 - Se a sociedade recusar licitamente o consentimento, obriga-se a fazer adquirir as acções por outra pessoa nas condições de preço e pagamento do negócio para que foi solicitado o consentimento.
5 - Os prazos para o exercício do direito de preferência serão fixados pelo Conselho de Administração, entre trinta e quarenta e cinco dias.
6 - Findos os prazos referidos sem que a preferência seja exercida ou os prazos fixados não tenham sido cumpridos, tornar-se-á livre a transmissão das acções.
7 - No caso das acções serem penhoradas, arrestadas ou sujeitas a qualquer procedimento judicial e, ainda, se as mesmas forem apresentadas à sociedade para averbamento, tendo sido alienadas com infracção do disposto no presente artigo, a sociedade poderá adquirir essas acções, devendo apenas pagar o preço correspondente ao seu valor nominal, acrescido das reservas legais constituídas, que poderá ser feito em prestações mensais ou trimestrais iguais e dentro de um período máximo de um ano.
8 – O número três deste artigo terá obrigatoriamente de ser transcrito nos títulos das acções.
9 – A presente estipulação de preferência tem eficácia real.
Por carta registada com aviso de recepção, datada de 6 de Dezembro de 2001, a autora comunicou ao aqui réu marido a decisão referida em h).
Na supra referida missiva, a autora informou o accionista BB que o pagamento do valor global das acções se processaria em 4 trimestrais prestações iguais e sucessivas.
Em 21 de Março de 2002, também por carta registada com aviso de recepção, endereçada ao réu BB, a autora colocou à disposição deste o valor correspondente à primeira prestação, o mesmo fazendo em relação à segunda e terceira, emitindo os correspondentes cheques para serem entregues contra a emissão do respectivo recibo.
O réu não respondeu a nenhuma das cartas acima referidas e não procedeu ao levantamento dos valores citados.
Por carta de 20 de Junho de 2002, o réu marido veio comunicar à autora que vendeu as acções a "DD, Lda.
Através de carta registada, datada de 20 de Junho de 2002, a "DD" informou a autora de que havia adquirido ao anterior accionista, ora réu, as 15.000 acções de que este era titular, pelo preço global de 224.459,05 euros.
A 25 de Junho de 2002, a autora respondeu ao réu, recordando-lhe o teor das cartas, ao mesmo endereçadas, a 6 de Dezembro de 2001 e a 21 de Março de 2002, bem como respondeu à sociedade "DD", na mesma data, enviando-lhe cópia da carta endereçada nessa mesma data ao réu BB.
Por carta registada, em 28 de Agosto de 2001, o réu marido comunicou à autora que pretendia alienar as suas acções, pelo preço de esc. 3.000$00 cada, num total de 224.459,05 euros.
A 25 de Outubro de 2001, em cumprimento do disposto no art. 40º, nº 8, dos Estatutos da autora, o réu marido remeteu à autora uma comunicação em que lhe solicitava o consentimento para a venda.
Com vista à transmissão das acções, o réu marido outorgou, a 16.08.2001, no Cartório Notarial de Tábua, uma procuração a favor do gerente da "DD".
Os produtos da autora são comercializados em todo o país e na Europa, primando pela qualidade.
O arresto e a penhora de acções do capital social da autora dá uma imagem negativa da empresa perante a banca e fornecedores.
Os sócios fundadores da autora, incluindo o réu BB, incluíram nos estatutos da empresa a cláusula referida em i).
A autora é uma empresa credível, tanto no plano regional, como no plano nacional, e até internacional, tendo uma imagem positiva junto do público e clientes, em geral, como também junto dos fornecedores, instituições financeiras, organismos públicos.
A autora deliberou nos termos exarados em h).
A autora e o réu BB são notificados do arresto das acções em 23 de Novembro de 2001.
Em 28 de Agosto de 2001, o réu BB comunica à autora que coloca à disposição da empresa e dos accionistas as acções de que é titular pelo valor de 3.000$00 cada e, em 25 de Outubro de 2001, através de carta registada com aviso de recepção, comunica -lhe que pretende vender as acções de que é titular (15.000) a DD, Lda, pelo valor de 3.000$00 cada e solicita o consentimento da sociedade.
O arresto das acções do réu BB foi requerido por EE, presidente do conselho de administração da AA, em 6 de Novembro de 2001.

3. O Direito.
Conhecendo do objecto do recurso da autora, no acórdão da Relação, fazendo-se apelo à regra segundo a qual o objecto dos recursos tem como limite as conclusões, formularam-se e foram apreciadas e decididas as seguintes questões, cujo conteúdo se transcreve:
- O clausulado sob o nº 7 do art. 4º dos estatutos da autora traduz-se num pacto de opção, por via do qual lhe é atribuído o direito de opção na compra de acções arrestadas ou penhoradas e que não depende da sua efectiva venda em processo executivo, mas apenas da efectivação de qualquer daquelas diligências judiciais, assistindo-lhe o direito de adquirir as acções logo penhoradas ou arrestadas a algum dos sócios.
- Tendo a autora, no exercício desse direito potestativo, adquirido as acções em Dezembro de 2001, a posterior venda delas, pelo réu, à co-ré DD, Lda, é nula, por se tratar de venda a non domino.

Do exame das alegações apresentadas no recurso de apelação e, agora, no de revista, pela recorrente, constata-se que quer a motivação de ambas as peças quer a respectiva síntese conclusiva têm, em ambos os casos, igual conteúdo.
Se, nas primeiras, a recorrente manifestou a sua discordância em relação da 1ª instância, que então impugnava, agora, perante uma outra decisão e uma outra instância, limita-se a repetir a argumentação.
Como se vê do acórdão recorrido, a Relação apreciou as questões que lhe foram suscitadas, invocando os respectivos fundamentos de facto e de direito, de forma a demonstrar a improcedência das razões e das conclusões em que a ora recorrente apoiou a sua pretensão.
Sendo o recurso o meio de obter o reexame da decisão que através dele se impugna (art. 676º, nº1, do CPC), não pode deixar de entender-se que o recorrente cumpre o ónus de alegar exigido pelo mencionado nº 1 do art. 690º quando e na medida em que submeta à apreciação do tribunal superior as razões por que discorda da decisão que impugna e exponha os fundamentos pelos quais pretende a sua revogação ou anulação.
Na essência das alegações de recurso está, necessariamente, a “expressão e desenvolvimento das razões de discordância e de impugnação” da decisão recorrida – Ac. TC., de 4/7/2000, DR, II, de 12/12/00, pag. 19 887 (cfr. A. dos Reis, CPC “Anotado”, V, 357).
A decisão recorrida é, obviamente, o acórdão da Relação e não a decisão da 1ª instância sobre a qual ele recaiu, sendo certo, insiste-se, que, naquele, se tomou clara posição sobre as questões colocadas.
Todavia, no recurso de revista, a recorrente não faz mais que reiterar o ataque que fizera à decisão da 1ª instância, reproduzindo as razões da sua discordância em relação a ela, mas deixando intocado o decidido, e os termos em que o foi, no acórdão de que interpôs recurso.
Tal actuação apenas poderá merecer aceitação – e tem-se entendido que merece – quando a Relação use da faculdade de remissão para os fundamentos da decisão recorrida, limitando-se a negar provimento ao recurso, ao abrigo do n.º 5 do art. 713º CPC, mas já não quando, como sucede no caso presente, o acórdão carreia fundamentos que contrariam e destroem aqueles por que a recorrente achava que a decisão devia ser alterada.
Contudo, no intuito de oferecer mais um contributo no sentido da afirmação da posição jurisprudencial que se adopta, dir-se-á o seguinte sobre o objecto do recurso:

Autora e réus colocam na interpretação do nº7 do art. 4º dos Estatutos a questão nuclear do recurso.

E, no âmbito interpretativo, haverá que ter em conta os seguintes princípios:
- a declaração negocial valerá de acordo com a vontade real do declarante, se ela for conhecida do declaratário - art. 236º, nº 2, do Cód. Civil;
- não o sendo, valerá com o sentido que possa ser deduzido por um declaratário normal, colocado na posição do declaratário real, salvo se este não puder razoavelmente contar com ele - art. 236º, nº1;
- nos negócios formais, a declaração não pode valer com um sentido que não tenha um mínimo de correspondência no texto - art. 238º, nº1;
- esse sentido pode, todavia, valer, se corresponder à vontade real das partes e as razões determinantes da forma do negócio se não opuserem e essa validade - art. 238º, nº2.

"A interpretação de um contrato consiste em determinar o conteúdo das declarações de vontade e, consequentemente, os efeitos que o negócio visa produzir, em conformidade com essas declarações" (Mota Pinto, Teoria Geral do Direito Civil, 3ª ed., pag. 444).
Ora, o sentido das declarações negociais das partes, nos termos do art. 236º, nº s 1 e 2, será aquele que possa ser deduzido por um declaratário normal colocado na posição do declaratário real, salvo se este não puder razoavelmente contar com ele, sem embargo de, conhecendo o declaratário a vontade real do declarante, ser de acordo com ela que vale a declaração emitida. Consagrou-se, assim, a denominada teoria da impressão do destinatário, teoria que sofre adaptação objectiva no caso dos negócios formais, em que a declaração não pode valer com um sentido que não tenha um mínimo de correspondência no texto do documento, ainda que imperfeitamente expresso, salvo se tal sentido corresponder à vontade real das partes e as razões determinantes da forma do negócio se não opuserem a essa validade (art. 238º, nº s 1 e 2).
Sendo certo que, nesse domínio da interpretação, surgem como elementos essenciais - a que deve recorrer-se para a fixação do sentido das declarações - "a letra do negócio, as circunstâncias de tempo, lugar e outras, que precederam a sua celebração ou são contemporâneas desta, bem como as negociações respectivas, a finalidade prática visada pelas partes, o próprio tipo negocial, a lei e os usos e os costumes por ela recebidos" (Luís Carvalho Fernandes, Teoria Geral do Direito Civil, vol. II, pag. 344). Ou, como exemplifica Manuel de Andrade (Teoria Geral da Relação Jurídica, II, pag 213), “os termos do negócio; os interesses que nele estão em jogo (e a consideração de qual seja o seu mais razoável tratamento); a finalidade prosseguida pelo declarante; as negociações prévias; os hábitos do declarante (de linguagem ou outros); os usos da prática, em matéria terminológica, ou de outra natureza que possa interessar, devendo prevalecer sobre os usos gerais ou especiais (próprios de outros meios ou profissões), etc.".

A interpretação das declarações ou cláusulas contratuais constitui matéria de facto, da exclusiva competência das instâncias.
Ao Supremo, como tribunal de revista, só cabe exercer censura sobre o resultado interpretativo sempre que, tratando-se da situação prevista no nº1 do art. 236º do C.C., tal resultado não coincida com o sentido que um declaratário normal, colocado na posição do real declaratário, pudesse deduzir do comportamento do declarante ou, tratando-se de situação contemplada no art. 238º, nº1, do mesmo diploma, não tenha um mínimo de correspondência no texto do documento, ainda que imperfeitamente expresso.
Quer dizer, constitui matéria de direito, sindicável pelo Supremo, determinar se na interpretação das declarações foram observados os critérios legais impostos pelos citados arts. 236º e 238º, para efeito da definição do sentido que há-de vincular as partes, face aos factos concretamente averiguados pelas instâncias.

Vejamos, então, como qualificar o contrato celebrado entre autora e réu e que se acha plasmado no art. 4º dos Estatutos da autora.

O nº 7 do art. 4º dos Estatutos da autora dispõe:
“No caso das acções serem penhoradas, arrestadas ou sujeitas a qualquer procedimento judicial e, ainda, se as mesmas forem apresentadas à sociedade para averbamento, tendo sido alienadas com infracção do disposto no presente artigo, a sociedade poderá adquirir essas acções, devendo apenas pagar o preço correspondente ao seu valor nominal, acrescido das reservas legais constituídas, que poderá ser feito em prestações mensais ou trimestrais iguais e dentro de um período máximo de um ano”.

Encerra este nº 7 um pacto de preferência, que atribui à autora o direito de preferência na futura e eventual alienação, em processo executivo, de acções arrestadas ou penhoradas aos sócios, ou um pacto de opção, que lhe confere um direito de opção de compra das acções?

O pacto de preferência consiste na convenção pela qual alguém assume a obrigação de dar preferência a outrem na venda de determinada coisa (art. 414º do C.Civil).
Trata-se (cfr. Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, vol. I, 4ª ed., pags. 238 e 239 e Antunes Varela, Das Obrigações Em Geral, I vol., pags. 246, 265 e 266) de contratos pelos quais alguém assume a obrigação de, em igualdade de condições, escolher determinada pessoa (a outra parte ou terceiro) como seu contratante, no caso de se decidir a celebrar determinado negócio, sendo admitidos em relação à compra e venda – pactos de prelação (pacta paelationis) ou preempção – e relativamente a todos os contratos onerosos em que tenha sentido a opção por certa pessoa sobre quaisquer outros concorrentes.
Do pacto de preferência nasce uma obrigação típica: para uns, a de o devedor não contratar com terceiro (non facere) se o outro contraente se dispuser a contratar em iguais condições; para outros, a de, querendo contratar, o obrigado escolher a contraparte, de preferência a qualquer outra pessoa (facere). Em face dessa obrigação, fica a plena liberdade de o titular da preferência aceitar ou não a celebração do contrato, nos termos em que o obrigado se propõe realizá-lo.
O pacto de preferência não se confunde com o pacto de opção: aquele prevê a celebração de um novo contrato (eventual), e é em relação a este novo contrato (eventual) que a preferência funciona, enquanto que no pacto de opção há já a declaração contratual de uma das partes num contrato em formação. Nos pactos de opção, uma das partes emite logo a declaração correspondente ao contrato que pretende celebrar, enquanto a outra se reserva a faculdade de aceitar ou declinar o contrato dentro de certo prazo: aceitando, o contrato aperfeiçoa-se sem necessidade de qualquer nova declaração da contraparte.
Ou, como refere Calvão da Silva, a propósito da distinção do contrato-promessa de figuras afins (Sinal e Contrato Promessa, 11ª ed., pag. 26), “ O pacto de preferência faz nascer a obrigação de escolher outrem como contraente, no caso de o obrigado à preferência se decidir livremente a contratar (art. 414º e segs.); a pessoa não se obriga, portanto, a contratar, diferentemente do que sucede no contrato-promessa, apenas se obriga a dar preferência em condições de igualdade.
O pacto de opção - continua o mesmo Autor – é um contrato – e nisto se distingue da proposta irrevogável -, tal como a promessa unilateral, sendo, todavia, diverso o mecanismo de realização do direito ao contrato emergente de ambos: na segunda, fonte de uma obrigação de contratar, tem de haver nova declaração contratual de ambas as partes para que o contrato definitivo se conclua – direito de crédito, portanto, o do promissário, já que exige a cooperação ou colaboração do promitente; no primeiro, para a conclusão do contrato é suficiente a declaração de vontade do beneficiário: se este aceita, exercendo o seu direito potestativo, o contrato, aperfeiçoa-se, inelutavelmente, sem necessidade de nova declaração da contraparte”.

Pois bem.
Refere a Relação que o referido art. 4º, nº 7º encerra um pacto de preferência, pois é isso o que “claramente se extrai da letra dos seus nºs 3, 5 e 9, onde, explicitamente, se faz alusão ao “direito de preferência na transmissão” das acções nominativas, aos “prazos para o exercício do direito de preferência” e à sua eficácia em relação a terceiros: “A presente estipulação de preferência tem eficácia real”».

Que dizer?
O uso sistemático da palavra “preferência” não nos deve impressionar.
Se atentarmos nos conceitos de pacto de preferência e pacto de opção supra expostos, o que decorre do referido artigo dos Estatutos é um verdadeiro pacto de opção, incluído no contrato de sociedade, que atribui à autora um direito de opção de compra das acções, cujo preço se mostra já fixado e que corresponde ao seu valor nominal, acrescido das reservas legais constituídas, que poderá ser feito em prestações mensais ou trimestrais iguais e dentro de um período máximo de um ano.
Recorde-se que, no pacto de preferência, se prevê a celebração de um novo contrato (eventual), ainda que se não imponha a obrigação de o celebrar, sendo em relação a este novo contrato (eventual) que a preferência funciona. A vinculação assumida pelo obrigado à preferência é condicional: se contratar, ele promete preferir certa pessoa (tanto por tanto; em igualdade de condições) a qualquer outro interessado.
No caso ajuizado, para a conclusão do contrato é suficiente a declaração de vontade da autora: se esta exercer o seu direito potestativo, o contrato, aperfeiçoa-se, sem necessidade de nova declaração do réu, o que apenas é compatível, como se disse, com o pacto de opção.

Acompanhamos, pois, nesta parte, o douto “Parecer” junto aos autos pela autora, o que vale por dizer que a interpretação dada ao nº 7 do art. 4º dos Estatutos pela Relação não está de acordo com a teoria da interpretação do destinatário, ou seja, com o sentido que um declaratário normal, colocado na posição do real declaratário, podia deduzir do comportamento do declarante, à luz dos ditames da boa fé e das circunstâncias atendíveis no caso concreto.

A produção dos efeitos jurídicos do contrato de opção ficou, porém, sujeita a uma condição: a penhora ou o arresto das acções.

E, aqui, com o devido respeito, não podemos sufragar a posição da autora.

Com efeito, ao nosso sistema processual repugnam todas as decisões judiciais tomadas à revelia de um dos interessados.
Por isso, se consagrou, logo no art. 3º, o princípio do contraditório.
Tão grande relevo se quis imprimir a este princípio que a mesma lei determinou a excepcionalidade dos casos em que se “podem tomar providências contra determinada pessoa sem que esta seja previamente ouvida” – art. 3º, nº 2.
Tais excepções, praticamente, só são admitidas no âmbito de alguns procedimentos cautelares, isto é, naqueles em que o legislador, ponderados os vários interesses, concluiu que deveria prevalecer o factor da eficácia como forma de prevenir os prejuízos sérios, como é o caso do arresto.
Ainda assim, facultou ao requerido a possibilidade de, a posteriori, repor a situação inicial, através do incidente de oposição ou da interposição do recurso de agravo (art. 388º do CPC).
A oposição, ao contrário dos embargos, antes da actual reforma do Código do Processo Civil, já não configura uma verdadeira acção declarativa enxertada no procedimento cautelar, obedecendo estritamente ao estatuído acerca do formalismo da oposição, que teria sido pertinente deduzir, no momento próprio, se tivesse havido audição prévia do requerido. Cumpre, assim, ao juiz analisar a prova nela produzida, juntamente e em conexão com a do requerente, gravada ou registada nos termos do art. 386º, nº 4, e proferir decisão, mantendo, revogando ou reduzindo a providência inicialmente decretada (Lopes do Rego, Comentários ao Código do Processo Civil, pag. 284).
Como nota este Autor, «o sistema instituído visa evitar que a parte tenha o ónus de lançar mão, simultaneamente, do recurso de agravo e da oposição subsequente, sempre que entenda que ocorrem os pressupostos das als. a) e b), do nº1 do art. 388º, com o inconveniente manifesto de questões, muitas vezes conexas, estarem, simultaneamente, a ser apreciadas na 1ª instância e na Relação».
«Daí que – acrescenta -, verificando-se os fundamentos da oposição, traduzidos na invocação de matéria nova, deva a parte começar por deduzi-la, aguardando a prolação da decisão que a aprecie, que se considera “complemento e parte integrante” da sentença inicialmente proferida e abrindo-se, só neste momento, a via de recurso, relativamente a todas as questões suscitadas, quer pela decisão originária, quer pela que a completa ou altera».
O nº 2 deste normativo, ao permitir que o juiz mantenha, reduza ou revogue a providência anteriormente decretada, consagra uma excepção ao princípio de que, proferida a sentença, fica esgotado o poder jurisdicional, quanto à matéria da causa (art. 666º, nº1, do CPC).
Vale isto por dizer que, nestes casos, a decisão inicial não faz caso julgado. É uma decisão provisória e que, sendo a segunda seu “complemento ou parte integrante”, o procedimento cautelar, proferida esta, passa a ter uma decisão unitária. Passa-se aqui o mesmo que com a decisão que defira o pedido de rectificação, esclarecimento ou reforma da sentença, também ela considerada “complemento ou parte integrante desta” (art. 670º, nº 2).
Daqui já se vê que a decisão que decretou o arresto não podia conduzir aos efeitos pretendidos pela recorrente; havia que aguardar pela oposição do requerido.
Tendo este deduzido oposição e, na audiência, requerido a prestação de caução (art. 387º, nº 3), pretensão que foi deferida, foi ordenado o levantamento do arresto, nos termos do art. 389º, nº 3, do CPC, por decisão judicial proferida a 27.11.2002, deixando de existir a apreensão judicial das acções.
Deste modo, a decisão que decretou o arresto não chegou a consolidar-se, de forma a permitir à autora exercer o direito de opção.
O que significa que, após a decisão do levantamento do arresto, transitada em julgado, a providência cautelar não mais subsiste, passando, a partir de então, o requerido a manter a livre disponibilidade das suas acções.

Por outro lado, tendo o réu, em obediência ao clausulado nos nºs 3 a 6 do art. 4º dos Estatutos da autora, dado cumprimento a todas as exigências estabelecidas para a transmissão válida e eficaz das acções a favor da co-ré DD, Lda, como decorre dos factos provados, a reconvenção teria também, necessariamente, de proceder.

4.
Face ao exposto, ainda que com fundamentos não coincidentes, decide-se negar a revista.
Custas pela recorrente.

Lisboa, 27 de Setembro de 2007

Oliveira Rocha (relator)
Gil Roque
Oliveira Vasconcelos