Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
802/05.TBPTL.G1.S1
Nº Convencional: 7ª SECÇÃO
Relator: MARIA DOS PRAZERES PIZARRO BELEZA
Descritores: FARMÁCIA
FARMACÊUTICO
PROPRIEDADE
ALVARÁ
PARTILHA
SUCESSÃO
TRESPASSE
NULIDADE POR FALTA DE FORMA LEGAL
NULIDADE ATÍPICA
CONVALIDAÇÃO
INTERPRETAÇÃO DA LEI
PRESCRIÇÃO
Data do Acordão: 12/09/2010
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA
Legislação Nacional: CÓDIGO CIVIL, ARTIGOS 286º
LEI Nº 2125, DE 20 DE MARÇO DE 1965
DL Nº 48.547, DE 27 DE AGOSTO DE 1967
DL Nº 303/2007, DE 31 DE AGOSTO
Jurisprudência Nacional: – ACÓRDÃOS DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA EM WWW.DGSI.PT, DE
- 17 DE JUNHO DE 1999, WWW.DGSI.PT, PROC. Nº 99B470
- DE 17 DE FEVEREIRO DE 2005, WWW.DGSI.PT, PROC. Nº 04B4579

– ACÓRDÃO Nº 187/2001 DO TRIBUNAL CONSTITUCIONAL, WWW.TRIBUNALCONSTITUCIONAL.PT
Sumário :

1. Até à entrada em vigor do Decreto-Lei nº 307/2007, de 31 de Agosto, a lei reservava aos farmacêuticos a possibilidade de serem proprietários de farmácias, consagrando o princípio da indivisibilidade entre a propriedade e a direcção técnica das farmácias.
2. O Decreto-Lei nº 303/2007 não regulou a sua aplicação no tempo a não ser para as situações previstas nos artigos 55º e 56º.
3. Tendo em conta o regime da nulidade cominada pelo nº 2 da Base IX da Lei nº 2125 e pelo nº 2 do artigo 76º do Decreto-Lei nº 48547, trata-se de uma nulidade atípica, desde logo porque, em determinadas situações, a lei reconhece expressamente relevância à aquisição da qualidade de farmacêutico em momento posterior àquele em que se coloca o problema da transmissão da propriedade de um farmacêutico para um não farmacêutico.
4. A aquisição, em 1989, da qualidade de farmacêutica pela ré convalidou retroactivamente o contrato celebrado em 1982, mediante o qual o autor, em execução de um acordo (de facto) sobre a partilha dos bens do pai de ambos, lhe transmitiu a propriedade de metade indivisa da farmácia, da qual ficara proprietário por sucessão.
Decisão Texto Integral:




Acordam, no Supremo Tribunal de Justiça:


1. Em 23 de Maio de 2005, AA e mulher, BB, instauraram uma acção contra CC e marido, DD, pedindo que fosse declarado nulo “o contrato de trespasse”, feito “por escritura pública outorgada a 8 de Outubro de 1982 (…)” na qual “o 1º A., com o consentimento da 2ª A., sua mulher, declarou trespassar à 1ª R. metade indivisa da ‘Farmácia C...’ (…)” e que os réus fossem condenados, solidariamente, a:
«1.1 restituir aos AA. metade indivisa do estabelecimento de farmácia denominado “Farmácia C...” (…);
1. 2. subsidiariamente, mas sem conceder, se a restituição em espécie não for possível, pagar aos AA. a quantia correspondente a metade indivisa do valor comercial da (…) farmácia (…) a ser liquidada nos termos do artigo 378º do Código de Processo Civil;
e, em qualquer dos casos,
2.1 a restituir aos AA os resultados que a primeira R. obteve, no exercício da sua profissão, com a exploração da farmácia, proporcionais a metade indivisa da mesma, desde 25 de Novembro de 1996, ou, subsidiariamente, desde a data da citação da primeira R., e, em qualquer dos casos, até à data da restituição efectiva da referida farmácia ou do pagamento integral e efectivo do valor referido em 1.2, em quantia que vier a ser liquidada (…).
No caso de o pedido deduzido (…) sob o nº 1.1. ser julgado procedente, deverá ainda:
a) ordenar-se o cancelamento do registo da transmissão (…) averbado ao alvará (…).
b) reconhecer-se que o 1º A. dispõe de um prazo de dois anos para trespassar a sua metade indivisa (…) ou um prazo de dez anos para ceder a mesma à exploração a favor de farmacêutico, a contar do trânsito em julgado da sentença que declarar a nulidade (…)

Em síntese, os autores sustentaram que a ré não tinha legitimidade para celebrar tal contrato, por não ser (então) licenciada em Farmácia.
Os réus contestaram, por excepção (invocando a inconstitucionalidade das normas das bases II, II, IV e IX da Lei nº 2125, de 20 de Março de 1965 e dos artigos 71º, 75º, nº 1 e 76º, nº 2 do Decreto-Lei nº 48547, de 27 de Agosto de 1968, a ilegitimidade dos autores, a convalidação e a renovação do negócio, a usucapião e o abuso de direito) e por impugnação.
Houve réplica.
Nas alegações de direito, de fls. 699, os autores vieram desistir do pedido a que se referia a al. b) acima transcrita, invocando a revogação da Lei nº 2125 pelo Decreto-Lei nº 307/2007, de 31 de Agosto.
Pela sentença de fls. 740, de 13 de Março de 2009, a acção foi julgada improcedente. O tribunal entendeu que “De acordo com a factualidade apurada nesta acção resulta claramente que o negócio celebrado entre as partes é válido, e foi feito entre as partes acordo complementar traduzido na entrega por parte do autor à sua mãe, enquanto viveu, dos lucros da farmácia (resposta positiva aos quesitos 14 e 17) e foi também por acordo que o autor trespassou a sua irmã a metade indivisa da farmácia, após o falecimento da mãe de ambos. Mesmo que assim se não entendesse, também poderíamos concluir pela compropriedade adquirida por via de usucapião (…).”
E considerou ainda que “face à materialidade apurada (…), a ter estado ferido de nulidade”, o negócio “veio a ser convalidado em 1989, ano em que a ré adquiriu o grau de licenciatura no curso de Ciências Farmacêuticas”.
A sentença foi confirmada pelo acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 4 de Março de 2010, de fls. 946. A Relação, apesar de afirmar a nulidade do trespasse, reiterou a aquisição “do direito de propriedade sobre metade indivisa” da farmácia e considerou ser abusivo o exercício do direito de invocar a nulidade, nestes termos:
“Ora, no caso deste processo, a escritura pública em que se concretiza o contrato anulando foi celebrada no dia 8 de Outubro de 1982, no seguimento de um denominado “acordo complementar de partilha”, que visou concretizar.
A partir daí, tudo se passou como se o contrato celebrado não enfermasse de qualquer nulidade, designadamente quando, já a Ré adquirira o grau de licenciatura no curso de Ciências Farmacêuticas no ano de 1989 e, assim, reunia as condições exigidas por lei para adquirir a propriedade da farmácia, no dia 13 de Janeiro de 1997, entre os Autores e a Ré foi celebrado o designado por “Contrato Promessa de Trespasse”, no dia 15 de Janeiro de 1997, no primeiro Cartório Notarial de Barcelos, foram outorgadas duas escrituras de trespasse, entre os Autores e a Ré, cada uma delas compreendendo metade indivisa da farmácia, sendo certo que a Ré assumiu a direcção técnica da Farmácia C... em 05/12/1989 e, a partir desse momento, juntamente com o Autor, efectuava as compras dos medicamentos e outros produtos, fazia os pagamentos a fornecedores, repartia, por igual, com o Autor os lucros e as perdas da exploração da farmácia, sacava os cheques sobre as contas bancárias da farmácia para pagar a funcionários, fornecedores e a eles próprios, trazia consigo as chaves da farmácia, acedendo a esta sempre que pretendia.
Tudo isto se tendo passado ao longo de 23 anos, cremos que qualquer pessoa normal colocada na posição de qualquer deles com razoabilidade poderia esperar que o outro não se apresentaria a arguir a nulidade do contrato, pelo que se concluirá que fazendo-o, os Autores actuaram com abuso do direito.
Deste modo, resulta de tudo o que ficou dito que, reconhecendo-se embora a nulidade de que enferma o contrato celebrado através da escritura outorgada no dia 8 de Outubro de 1982, a pretensão dos Apelantes de restituição da metade indivisa da farmácia transaccionada não pode proceder, quer porque a Ré a adquiriu por usucapião, quer porque o exercício do direito de arguir tal nulidade configura abuso do direito.”

2. Os autores recorreram para o Supremo Tribunal da Justiça, sustentando que o acórdão recorrido devia ser revogado; o recurso, ao qual não são aplicáveis as alterações introduzidas pelo Decreto-Lei nº 303/2007, de 24 de Agosto, foi admitido como revista, com efeito meramente devolutivo.
Nas alegações que apresentaram, os recorrentes formularam as seguintes conclusões:
l.ª O tribunal a quo incorreu em erro de julgamento quanto ao Direito aplicável ao julgar procedentes as excepções atinentes à [1] repetição ou renovação do contrato de trespasse de 08.10.1982, à [2] aquisição por usucapião por parte da 1.ª Recorrida de metade indivisa da "Farmácia C..." e, ainda, ao [3] abuso do direito.
2.ª O tribunal a quo admitiu ainda a excepção da repetição ou renovação do negócio nulo, alegada pelos Recorridos, por entender que aquela repetição ou renovação do negócio ocorreu entre os Recorrentes e os Recorridos através das duas escrituras outorgadas no dia 15 de Janeiro de 1997.
3.ª A renovação ou repetição do negócio pressupõe necessariamente a celebração de um novo negócio, com o mesmo objecto do primeiro (não se confunde pois com a confirmação e, quanto muito, aquilo tratar-se-ia de confirmação que não é sindicável em sede de nulidade do contrato). Todavia, da factualidade provada nos presentes autos decorre, inequivocamente, que as duas escrituras de trespasse de 15.01.1997 tiveram o mesmo objecto negocial, ou seja, a mesma metade indivisa da "Farmácia C..." (e não duas metades indivisas da referida farmácia) (...)
4.ª Ao admitir a repetição ou renovação do negócio, o tribunal recorrido violou os art.ºs 286.° e 288.° a contrario do Código Civil.
5.ª Por outro lado, o tribunal a quo considerou que 1.ª Recorrida adquiriu por usucapião o direito de propriedade sobre metade indivisa da "Farmácia C..." no dia 05.12.1999, violando assim frontalmente o disposto nos artigos 1302.°, 1251.°, 1287.° e 1294.°, todos do Código Civil.
6.ª Atendendo à matéria de facto que o tribunal deu como provada, designadamente os art.s 17.° a 20.°, 21.° a 33.° e 34.° a 40.° que integram a base instrutória, a Recorrida terá actuado com efeito por forma correspondente ao exercício do direito de propriedade da "Farmácia C...", o que, não fossem as particularidades da situação sub judice, poderia consubstanciar-se no exercício da posse — cfr. 1251.° do Código Civil.
(…) 8.ª O estabelecimento comercial consiste numa universalidade jurídica que aglutina bens corpóreos e bens incorpóreos afectos ao exercício da actividade mercantil.
9.ª Apenas os objectos corpóreos são susceptíveis de posse e, como tal, ser adquiridos por usucapião, o mesmo não sucedendo com os elementos incorpóreos.
10.ª Assim, os elementos incorpóreos da "Farmácia C...", maxime, o respectivo alvará, nunca poderiam ser adquiridos pela 1.ª Recorrida por usucapião.
11.ª E, não sendo plausível a aquisição por usucapião dos elementos incorpóreos do estabelecimento comercial, a mesma não será igualmente de admitir-se quanto aos elementos corpóreos do mesmo, na medida em que tal implicaria inevitavelmente a sua completa desintegração. (…)
12.ª Mesmo para aqueles que sustentam que a tutela possessória poderá ser, eventualmente, aplicável ao estabelecimento comercial de acordo com o princípio da predominância (isto é, conforme o estabelecimento seja constituído essencialmente por bens corpóreos ou incorpóreos), ainda assim, forçosamente se concluirá pela impossibilidade de tutela possessória relativamente a uma farmácia já que o bem que mais a caracteriza (e que maior valor comercial tem) é o alvará, justamente um bem incorpóreo.
(…) 18.ª Ao invocarem a nulidade do contrato de trespasse 08.10.1982 (cfr. doc. n.° 4 da petição iniciai) por falta de legitimidade substancial da 1.ª Recorrida para a outorga do mesmo os Autores não incorrem em abuso do direito.
19.ª Em primeiro lugar porque, revestindo a nulidade em causa natureza substantiva, ela é insindicável em termos de abuso do direito.
20.ª Com efeito, sendo a nulidade em causa típica e, por isso, cognoscível de ofício pelo tribunal (cfr. art. 286.° do Código Civil) carece de sentido admitir-se que os Recorridos bloqueiem a alegação da nulidade pelos Recorrentes, invocando-se para tanto uma situação de pretenso abuso de direito, quando afinal o tribunal tem imperativamente, por dever de função, de declarar a referida nulidade. (…)
(…) 22.ª Ademais, sendo a nulidade típica igualmente invocável por qualquer interessado (cfr. art. 286.° do Código Civil), seria também incongruente impedir-se, através da figura do abuso do direito, a alegação de uma nulidade pela contraparte (in casu, os Recorrentes), para se permitir o mesmo efeito através da sua invocação por qualquer terceiro interessado.
(…) 24.ª Ainda que se entenda que o abuso do direito pode bloquear a declaração da nulidade (substantiva) por parte de quem a argui — o que desde logo se repudia e apenas por mera cautela e dever de patrocínio se concede –, sempre se concluirá que na situação sub judice não ocorrem os pressupostos de que dependem a confirmação do abuso do direito por parte dos Recorrentes. Em nenhuma das suas vertentes.
(…) 38.ª Declarada que está a nulidade do contrato de trespasse de 08.10.1982 e considerando que as excepções invocadas pelos Recorridos e acolhidas pelo tribunal a quo improcedem pelos motivos supra expostos, cumpre determinar os efeitos da declaração da nulidade do contrato de trespasse de 08.10.1982:
39.ª A declaração da nulidade tem os efeitos previstos no o art. 289.°, n.° 1, do Código Civil, operando ex tunc (…)
40.ª Os Recorridos ficam assim obrigados a restituir aos Recorrentes metade indivisa da "Farmácia C..." objecto do contrato de trespasse de 08.10.1982, que é nulo.
41.ª Acresce que, por força do disposto no art. 1270.°, n,° 1, ex vi art. 289.°, os Recorridos ficam também obrigados a restituir aos Recorrentes metade dos lucros obtidos pela Recorrida com a exploração da "Farmácia C...", pelo menos desde 25.11.1996 (data do averbamento ao alvará da "Farmácia C..." da escritura de trespasse de 08.10.1982), até à restituição efectiva da metade indivisa daquela farmácia, conforme decorre dos art.s 1271.° e 1272.° do Código Civil - cft. certidão do INFARMED de 09.05.2006, junta aos autos na sessão de audiência de discussão e julgamento de 21.02.2007.
42.ª A 1.ª Recorrida sempre esteve de má fé, na acepção do art. 1260.° a contrario., sabendo que lesava o direito do 1.° Recorrente (…)
(…) 45.ª Ainda que se entenda que a 1.ª Recorrida não esteve desde sempre de má fé — o que se rejeita e apenas por mera cautela e dever de patrocínio se admite — os Recorridos teriam, de qualquer modo, de restituir aos Recorrentes metade dos lucros obtidos com a exploração da "Farmácia C..." pelo menos a partir da data da sua citação para a presente acção ate a data da restituição efectiva da metade indivisa da farmácia aos Recorrentes — cfr. art. 1270.°, n.° 1 ex vi art. 289.°, ambos do Código Civil.
46.ª Por último, diga-se que passa a carecer de qualquer sentido no caso vertente o pedido deduzido pelos Recorrentes na petição inicial sob a alínea b) acima transcrito, na medida em que, julgando-se procedente o pedido formulado sob o n° 1.1., poderão agora os Recorrentes assumir plenamente e sem quaisquer limitações temporais a qualidade de proprietários da metade indivisa da "Farmácia C..." em causa — art. 14.°, n.° 1, do Decreto-Lei n.° 307/2007, de 31 de Agosto.”.

Os réus contra-alegaram, defendendo a manutenção do decidido, e requereram, “ao abrigo do disposto art. 684-A do CPC, que o tribunal de recurso, caso o julgue necessário, aprecie todas as questões em que não obteve vencimento, incluindo a da aplicação do actual regime da propriedade da farmácia”, concluindo as alegações, por entre o mais, nestes termos:
(…) 17. O acórdão recorrido, embora não expressamente, na realidade apreciou as questões que lhe foram levadas em recurso à luz da Lei 2.125, de 20 de Março de 1965, e do Dec-Lei 48.547 de 27 de Agosto de 1968, considerando portanto inaplicável o regime da propriedade farmacêutica constante do recente Dec-Lei 307/07 de 31 de Agosto.
18. Mas não é essa, salvo o devido respeito, a solução de direito transitório normativamente válida.
(…) 23. Assim aplicando a Lei Nova, o problema trazido a juízo pelos autores deixou de ser problema, uma vez que a Lei Nova veio validar o negócio em causa.
Logo por esta via deve pois ser confirmado o acórdão recorrido.
24. Mas este não é o único ponto em que os recorridos divergem do acórdão recorrido. Também em relação à invocada convalidação do trespasse anulando pela superveniente aquisição pela recorrida da qualidade de farmacêutica o acórdão recorrido também não fez uma correcta aplicação do art. 286 do C.C. e do art. 76, n° 2, do Dec-Lei 48547.
(…) 27. Por outro lado é igualmente consensual que a insanabilidade da nulidade não é algo que se deduza conceitualmente ou da natureza das coisas. Saber se em concreto a nulidade é ou não sanável é um problema normativo, interpretativo, e só normativamente pensado pode encontrar uma solução válida.
28. que exige, primeiro, descobrir o interesse público específico que está na origem da nulidade, e depois, verificar se esse interesse público pode ser superveniente mente salvaguardado e por que modo pode ser satisfeito.
(…) 34.Ora chegados a este ponto, salta à vista que o interesse público subjacente ao aludido princípio da exclusividade a partir do momento em que a Ré se tornou farmacêutica ficou inteiramente salvaguardado
35. a aplicação da sanção da nulidade neste momento, após mais de vinte anos de legitimo exercício do direito de propriedade da farmácia carece, de qualquer fundamento jurídico-material, ético e lógico.
36. E se esta conclusão, já na vigência do anterior regime da propriedade farmacêutica não podia suscitar qualquer dúvida, a partir do momento em que o Dec-Lei 307/07 veio liberalizar a propriedade da farmácia tornou-se uma imposição do interesse público.
37. Aplicar neste momento a sanção da nulidade, em nome e na defesa do princípio da exclusividade da farmácia para os farmacêuticos, quando esse princípio, além de segundo a lei anterior já se encontrar salvaguardado, se mostra deposto pela Lei Nova, e, em nome do interesse público, substituído pelo princípio da liberdade de acesso à propriedade da farmácia seria a elevação do "absurdo" a princípio de direito.
38. Aliás qualquer interpretação do art. 286 do Código Civil e do art. 76, n° 2, do Dec-Lei 48547 ao abrigo da qual o tribunal aplicasse a sanção da nulidade quando esta se mostra não só desnecessária mas contrária ao interesse público tornaria esses preceitos inconstitucionais por manifesto desrespeito pelo princípio constitucional da proporcionalidade consagrado no art. 18 da Constituição da República
39. (…) O acórdão recorrido ao decidir contra a convalidação violou portanto o disposto no art. 286 do C.C e no art. 76, n° 2, do Dec-Lei 48547 de 28 Agosto de 1968.
40. Mas a convalidação do negócio não se deu apenas por obra da superveniente legitimidade da Ré. Ocorreu também por via da reiteração da vontade negocial constante do contrato de trespasse que os Autores querem ver declarado nulo, primeiro através do contrato promessa de trespasse de Janeiro de 1997 e depois através de uma da duas escrituras de trespasse da mesma altura, 15 de Janeiro de 1997.
41. Mas independentemente disso a pretensão anulatória doa Autores nunca podia proceder porque o exercício da faculdade de requererem a declaração de nulidade constitui abuso do direito
(…) 46. Assim ao pretenderem a restituição da metade da farmácia objecto desse contrato na sequência da sua nulidade os Autores não só abusam do seu direito como estão a usar uma faculdade legal para obterem para eles a metade da farmácia que à data do contrato que pretendem nulo não era deles mas da Ré (conforme o provado acordo de partilha e a reiterada confissão dos recorridos)
(…) 49. Para terminar, resta referir que o acórdão recorrido ao não aplicar o Dec-Lei 307/07 de 31 de Agosto e ao desatender o subsidiário fundamento da convalidação da invocada nulidade pela superveniente legitimidade da recorrida violou, além do art. 12 do Código Civil, o art. 14 do citado Dec- Lei 307/07, bem como o art. 286 do Código Civil e o art. 76, n° 2 , do Dec-Lei 48 547 de 28 de Agosto de 1968.

Os recorrentes responderam ao requerimento de ampliação do objecto do recurso, sustentando a insusceptibilidade de aplicação do Decreto-Lei nº 307/2007 nos termos pretendidos pelos recorridos, a impossibilidade de convalidação do trespasse de 1982 e a invalidade do acordo “complemento” da partilha judicial.

3. Vem provada a seguinte matéria de facto:
“1. no dia 14 de Janeiro de 1976 faleceu EE;
2. o EE deixou como únicos herdeiros a sua mulher, FF, com quem casara no regime da comunhão geral de bens e os seus dois filhos, AA e CC;
3. o Autor AA inscreveu-se no curso de licenciatura em Ciências Farmacêuticas da Faculdade de Farmácia da Universidade do Porto, no ano lectivo de 1975/1976;
4. por óbito do EE, correu o processo de inventário nº 4/1976, no 2º juízo do Tribunal Judicial de Ponte de Lima, no âmbito do qual foi proferida, em 12.05.1976, sentença que homologou o mapa da partilha aí efectuado;
5. à data – 26.02.1976 – em que a cabeça de casal, FF, prestou as legais declarações, a Ré CC tinha a idade de 15 anos;
6. no processo de inventário indicado em 4., foram relacionados os seguintes bens: Um estabelecimento comercial de farmácia, sito na Rua ..., Ponte de Lima, instalado no r/c do prédio inscrito na matriz predial urbana desta vila sob o artigo 251, cujo activo, incluindo os respectivos móveis, se atribui o valor de 98.607$20, um automóvel, marca Ford Escort, com a matrícula IC-...-..., ao qual foi atribuído o valor de 22.500$00, uma casa de habitação, de rés-do-chão, 1º e 2º andares, inscrita na matriz sob o artigo 523 urbano, com o valor matricial de 58.320$00, uma leira sita no Lugar de Monte, freguesia Vila Frescaínha, Barcelos, inscrita sob o artigo 598 rústico e descrita no Registo Predial sob o nº 81.925, com o valor matricial de 2.160$00, metade indivisa da Bouça da Feiteira, sita no Lugar do Monte, freguesia de Vila Frescaínha – S. Pedro, Barcelos, inscrita na matriz sob o artigo 739 rústico, fazendo parte do prédio descrito no Registo Predial sob o nº 81925, com o valor matricial correspondente de 1.340$00;
7. o estabelecimento comercial de farmácia e o veículo automóvel identificados em 6. foram adjudicados, por acordo, no âmbito do processo de inventário, ao Autor AA, pelo valor global de 186.000$00, a casa, a leira e a bouça identificadas em 6. foram adjudicados à Ré, pelo valor global de 62.000$00; o quinhão pertencente à cabeça de casal foi composto pelas tornas pagas pelo Autor AA;
8. ao estabelecimento de farmácia indicado em 6., com a denominação “C...”, tinha sido atribuído o alvará nº 241, pela Direcção de Serviços de Farmácia e Medicamentos – Direcção Geral de Saúde – Ministério da Saúde e Assistência, datado de 18 de Outubro de 1938;
9. em 19 de Julho de 1977, pela Direcção de Serviços de Farmácia e Medicamentos foi efectuado o seguinte averbamento no alvará nº 241: “Conforme certidão passada pelo Tribunal Judicial de Ponte de Lima, em 2 de Junho de 1976, a propriedade da farmácia a que este alvará se refere passou a ser do Senhor AA, segundo a Base III da Lei nº 2125, de 20 de Março de 1965...”;
10. por escritura pública, outorgada a 8 de Outubro de 1982, no Cartório Notarial de Ponte de Lima, o Autor, na qualidade de primeiro outorgante, declarou: “Que é dono e possuidor dum estabelecimento de farmácia denominado “Farmácia C...”, instalado no rés-do-chão dum prédio urbano situado na rua Cardeal Saraiva, desta vila de Ponte de Lima (...) que, pela presente escritura, trespassa metade do referido estabelecimento à segunda outorgante, sua irmã CC, abrangendo o trespasse a cedência de metade da respectiva chave, alvarás, licenças, utensílios e demais coisas móveis pertencentes ao estabelecimento e nele existentes nesta data. Que o preço do trespasse é de cem mil escudos, que neste acto recebeu”; pela segunda outorgante CC foi dito que: “Aceita o presente trespasse”; pela primeira outorgante esposa BB foi dito que “Presta consentimento ao primeiro outorgante seu marido, para o presente trespasse em virtude de serem casados sob o regime de comunhão de adquiridos”;
11. a Ré adquiriu o grau de licenciatura no curso de Ciências Farmacêuticas no ano de 1989;
12. por ofício do INFARMED de 17 de Dezembro de 1996, foi dado conhecimento ao Autor que o pedido de prorrogação do prazo para concluir o Curso de Ciências Farmacêuticas, por si solicitado, fora indeferido e, consequentemente, foi o Autor intimado a trespassar a farmacêutico, no prazo máximo de 30 dias improrrogáveis, a parte da referida farmácia de que era detentor, sob pena de caducidade do alvará;
13. no dia 13 de Janeiro de 1997, entre os Autores, como primeiros outorgantes e a Ré, como segunda outorgante, foi celebrado um acordo, designado por “Contrato Promessa de Trespasse”, cujo teor da Cláusula Primeira é: “Os primeiros outorgantes prometem trespassar à segunda, a qual por sua vez promete adquirir-lhes, metade indivisa, que é tudo quanto lhes pertence, de um estabelecimento de farmácia, denominado “Farmácia C...”, instalado no rés-do-chão do prédio urbano sito na Rua ..., em Ponte de Lima, inscrito na matriz predial urbana sob o art. 251”; e o teor da Cláusula Sexta é: “Dado que o estabelecimento, do ponto de vista fiscal, tem girado só em nome do primeiro outorgante – marido, serão celebradas duas escrituras, declarando-se em cada uma delas que é vendida uma metade indivisa do mesmo estabelecimento: assim será enviada para o INFARMED (que já tem conhecimento da escritura celebrada em 8 de Outubro de 1982) apenas uma das escrituras e na Repartição de Finanças serão entregues as duas escrituras”; e o teor da Cláusula Sétima é: “Os primeiros e a segunda outorgantes reconhecem e declaram que estão feitas, saldadas e pagas entre si as contas respeitantes ao exercício da actividade comercial da farmácia até à data de hoje, nada devendo um ao outro a esse título”.
14. no dia 15 de Janeiro de 1997, no primeiro Cartório Notarial de Barcelos, foram outorgadas duas escrituras de trespasse, entre os Autores, como primeiros outorgantes e a Ré, como segunda outorgante, nas quais, o Autor declarou: “Que, pela presente escritura, trespassa à segunda outorgante metade indivisa, do estabelecimento comercial de Farmácia, denominada “Farmácia C...”, (...) de que ele outorgante é proprietário. Que o presente trespasse abrange a cedência de metade da respectiva chave e de todas as mercadorias em existência, móveis, máquinas, utensílios, alvarás, licenças e todos os demais elementos que o integral e nele existentes nesta data. Que o preço é de vinte e cinco mil contos, que já recebeu e de que dá quitação”; tendo declarado a segunda outorgante: “Que aceita o presente trespasse a ela feito, nas condições exaradas”; e tendo declarado a primeira outorgante esposa: “Que dá o seu consentimento a seu marido para a outorga do trespasse”;
15. os Réus só entregaram aos Autores o preço relativo a uma metade indivisa da Farmácia C...;
16. o Autor inscreveu-se no curso de licenciatura em Ciências Farmacêuticas da Faculdade de Farmácia, da Universidade do Porto, no ano lectivo de 2004/2005;
17. os Réus casaram no dia 12 de Abril de 1982, sob o regime de comunhão geral de bens;
18. por escritura pública, datada de 15 de Janeiro de 1997, outorgada no Primeiro Cartório Notarial de Barcelos, entre os Autores, como primeiros outorgantes e a Ré, como segunda outorgante, aqueles declararam: “Que, pela presente escritura, dão de arrendamento à segunda outorgante o rés do chão, com entrada pelos nºs 21 e 23 de polícia, com três divisões em sobreloja, do seu prédio urbano situado na Rua ..., nºs ..., de polícia, da freguesia e concelho de Ponte de Lima, inscrito na matriz urbana sob o art. 748 ... O local arrendado destina-se ao exercício da actividade de Farmácia, tal como tem vindo a ser utilizado até este momento”, tendo declarado a segunda outorgante “Que aceita este contrato de arrendamento nas condições exaradas”;
19. apesar do declarado na escritura indicada em J), os Autores e a Ré não acordaram o pagamento de qualquer preço pelo trespasse;
20. e os Autores nunca receberam da Ré ou do Réu qualquer quantia a esse título;
21. o Autor encontra-se inscrito no 3.º ano do Curso de Ciências Farmacêuticas ministrado pela Faculdade de Farmácia da Universidade do Porto;
22. à data da partilha, o lucro proveniente da Farmácia C... era a única fonte de rendimento da Ré e da sua mãe;
23. em complemento da partilha efectuada no âmbito do processo identificado em 4., o Autor, a Ré e a mãe de ambos, acordaram que a Farmácia C... e os imóveis ali relacionados continuassem a pertencer-lhes, nas seguintes proporções: metade para a mãe, um quatro para o Autor e um quarto para a Ré;
24. e acordaram que o Autor entregaria à mãe e à Ré os lucros provenientes da farmácia correspondentes àquelas proporções;
25. e acordaram que, mais tarde, o Autor transferiria para a Ré metade da Farmácia C..., ficando ele com a outra metade;
26. e acordaram que a Ré transferiria para o Autor metade dos imóveis que lhe foram adjudicados no processo de inventário;
27. em cumprimento do acordado, o Autor entregou à mãe, enquanto foi viva, os lucros da Farmácia C..., nas proporções que eram devidas, a ela e à Ré;
28. durante o período que residiu no Porto, onde frequentava a Faculdade de Farmácia, a Ré retirava dinheiro da Farmácia C..., por conta dos lucros a que tinha direito;
29. e contraiu, juntamente com o Autor, empréstimos particulares para pagar financiamentos contraídos pela Farmácia, tendo-se responsabilizado por eles;
30. depois de 1986, o Réu passou a trabalhar diariamente na farmácia, a partir das 17 horas e ao sábado de manhã;
31. concluído o curso e feito o estágio, a Ré assumiu a direcção técnica da farmácia;
32. e, juntamente com o Autor, efectuava as compras dos medicamentos e outros produtos;
33. e fazia os pagamentos a fornecedores;
34. e repartia, por igual, com o Autor os lucros e as perdas da exploração da farmácia;
35. e sacava os cheques sobre as contas bancárias da farmácia para pagar a funcionários, fornecedores e a eles próprios;
36. à vista de toda a gente;
37. sem qualquer oposição;
38. sem qualquer interrupção temporal;
39. convicta de que era comproprietária da farmácia C...;
40. a Ré trazia consigo as chaves da farmácia, acedendo a esta sempre que pretendia;
41. a partir da data da celebração do acordo indicado em 13., a Ré passou a praticar os factos vertidos em 30, 31 e 33 sem qualquer participação do Autor;
42. e a utilizar sozinha todos os bens que integram a Farmácia C...;
43. e a retirar todos os lucros dela provenientes;
44. e a pagar todos os impostos relacionados com a exploração da Farmácia C...;
45. e a pagar aos Autores a renda pelo uso do local onde está instalada;
46. e a dirigir sozinha os seus funcionários;
47. sempre à vista de toda a gente;
48. sem qualquer oposição;
49. sem interrupções temporais;
50. na convicção de que é única proprietária;
51. a Farmácia C... tem actualmente, no mínimo, o valor de euros 4.516.861,48.

4. Os recorrentes colocam as seguintes questões, neste recurso:
– Inexistência de convalidação, repetição ou renovação do contrato de trespasse;
– Insusceptibilidade de aquisição, por usucapião, da propriedade do estabelecimento “Farmácia C...”, e, subsidiariamente, não verificação dos requisitos respectivos;
– Inexistência de abuso do direito de invocar a nulidade;
– Efeitos da nulidade do trespasse impugnado.

Quanto aos recorridos, colocam expressamente as questões
– da aplicabilidade da lei nova,
– da convalidação do trespasse de 1982,
– da inconstitucionalidade de “qualquer interpretação do art. 286 do Código Civil e do art. 76, n° 2, do Dec-Lei 48547 ao abrigo da qual o tribunal aplicasse a sanção da nulidade quando esta se mostra não só desnecessária mas contrária ao interesse público”.

5. Vem provado:
– que, na sequência do inventário aberto por morte de EE, ocorrida em 14 de Janeiro de 1976, foi adjudicado ao autor, seu filho e então aluno do curso de Ciências Farmacêuticas da Faculdade de Farmácia da Universidade do Porto, o estabelecimento comercial de farmácia (Farmácia C...) a que respeita o presente processo, tendo sido averbado ao correspondente alvará a transmissão da propriedade assim verificada;
– que, “em complemento da partilha”, ficou acordado que a Farmácia C... continuasse a pertencer “metade para a mãe, um quarto para o A. e um quarto para a Ré”, ficando o autor de entregar à mãe e à irmã “os lucros provenientes da farmácia correspondentes àquelas proporções”, acordo que o autor cumpriu enquanto a mãe foi viva, e que, “mais tarde o A. transferiria para a Ré metade da Farmácia C..., ficando ele com a outra metade”, e a Ré transferiria “para o A. metade dos imóveis que lhe foram adjudicados no processo de inventário”;
– que, por escritura de 8 de Outubro de 1982, o autor trespassou “metade do referido estabelecimento” à ré, sua irmã, pelo preço “de cem mil escudos, que neste acto recebeu”; no entanto, ficou igualmente provado que, na realidade, não foi acordado “o pagamento de qualquer preço pelo trespasse”, nunca tendo o autor recebido “qualquer quantia a esse título”; que a autora, que à data do falecimento de seu pai tinha 15 anos de idade, se licenciou em Farmácia em 1989, assumindo então a direcção técnica da farmácia, da qual retirou dinheiro durante o curso e em cuja gestão desde então participou, publicamente;
– que, por ofício do INFARMED de 17 de Dezembro de 1996 o autor foi notificado de que fora indeferido o seu requerimento de prorrogação do prazo para terminar o curso de Ciências Farmacêuticas e de que dispunha de 30 dias para “trespassar a farmacêutico (…) a parte da referida farmácia de que era detentor, sob pena de caducidade do alvará”; que, dias depois – a 13 de Janeiro de 1997 – foi celebrado entre os autores e a ré um “contrato-promessa de trespasse”, mediante o qual os primeiros prometeram “trespassar à segunda, a qual por sua vez promete adquirir-lhes, metade indivisa, que é tudo quanto lhes pertence, de um estabelecimento de farmácia, denominado ‘Farmácia C...’ (…)”; que nesse mesmo contrato as partes combinaram realizar “duas escrituras, declarando-se em cada uma delas que é vendida uma metade indivisa do mesmo estabelecimento: assim será enviada para o INFARMED (que já tem conhecimento da escritura celebrada em 8 de Outubro de 1982) apenas uma das escrituras e na Repartição de Finanças serão entregues as duas escrituras”, esclarecendo-se ainda que era por razões fiscais que se faziam as duas escrituras – “dado que o estabelecimento, do ponto de vista fiscal, tem girado só em nome” do autor;
– que, dois dias depois, foram exaradas as duas escrituras de trespasse, tendo os réus procedido ao pagamento do preço “relativo a uma metade indivisa da Farmácia C...”.

6. Os recorrentes pediram que fosse declarado nulo o trespasse realizado pela escritura de 8 de Outubro de 1982, com o fundamento de que “à luz da legislação sobre a propriedade de farmácia, a 1ª R., relativamente à escritura de trespasse de metade indivisa da ‘Farmácia C...’ (…), na qualidade de trespassária, carecia de ‘legitimidade’ para celebrar a mesma, na medida em que, na data, a 1ª demandada não era ainda farmacêutica” (artigo 43º da petição inicial) – nºs 1 e 2 da Base II e nº 2 da Base IX da Lei nº 2125, de 20 de Março de 1965, nº 2 do artigo 76º do Decreto-Lei nº 48.547, de 27 de Agosto de 1967 e artigos 286º e 294º do Código Civil.
Como se sabe, à data da abertura da sucessão de EE, 14 de Janeiro de 1976, e do trespasse cuja declaração de nulidade os autores pretendem, 8 de Outubro de 1982, a lei reservava aos farmacêuticos (não interessa agora a hipótese das sociedades compostas por farmacêuticos) a possibilidade de serem proprietários de farmácias, consagrando o princípio da indivisibilidade entre a propriedade e a direcção técnica das farmácias (cfr., entre outros, os acórdãos deste Supremo Tribunal de 17 de Junho de 1999, www.dgsi.pt, proc. nº 99B470 ou de 17 de Fevereiro de 2005, www.dgsi.pt, proc. nº 04B4579 e acórdão nº 187/2001 do Tribunal Constitucional, www.tribunalconstitucional.pt). Assim resultava em particular do disposto na Base II, nºs 1 e 2, da Lei nº 2125 e de outras disposições relativas à transmissão por vida ou por morte, em conformidade com as quais se estabelecia, na base IX, no seu nº 2, que “são nulos os contratos de transferência e de cessão da exploração celebrados fora dos casos em que a lei os permite” e, no nº 2 do artigo 76º do Decreto-Lei nº 48.457, a nulidade “dos negócios jurídicos celebrados contra o expressamente disposto na lei sobre a propriedade da farmácia”.
Sabe-se ainda que este regime se manteve até à entrada em vigor do Decreto-Lei nº 307/2007, que revogou a Lei nº 2125 e o Decreto-Lei nº 48.547, e que aquele diploma, esclarecendo no preâmbulo que vinha afastar “as regras que (…) restringiam exclusivamente a farmacêuticos” o acesso à propriedade de farmácias, tidas por desadequadas e injustificadamente limitadoras e que “com a alteração do regime jurídico da propriedade” se “permitir(...)á a regularização” de “situações fictícias em relação à propriedade” fomentadas pelo regime anterior, não regulou a sua aplicação no tempo a não ser para as situações (que agora não relevam) previstas nos artigos 55º e 56º.

7. Entendeu-se em 1ª Instância que “o negócio [o contrato de 1982], a ter estado ferido de nulidade, veio a ser convalidado em 1989, ano em que a Ré adquiriu o grau de licenciatura no Curso de Ciências Farmacêuticas”; a Relação, todavia, encontrou dificuldades em relação ao período que decorreu entre 1982 e 1989, pois “a nulidade não deixa de existir apenas porque desapareceu o motivo que a determinava” e é insusceptível de confirmação, e além disso porque a Lei de 2007 não determinou a sua aplicação retroactiva.
Os recorrentes sustentam que a nulidade é insanável, e que os já indicados preceitos legais impedem qualquer convalidação do contrato de 1982.
Cumpre então começar por ver se têm razão, esclarecendo desde já que a indagação que se segue, quanto a determinar se releva ou não a aquisição da qualidade de farmacêutica (1989) em momento posterior à celebração do contrato (1982), para o efeito da sua convalidação, toma apenas como referência a lei vigente em ambos os momentos e não o Decreto-Lei nº 307/2007.

8. É desnecessário recordar que o princípio da indivisibilidade entre a propriedade e a direcção técnica das farmácias se fundamentava em considerações de interesse público (desenvolvidamente analisadas no acórdão nº 187/2001 do Tribunal Constitucional, atrás citado), e que a nulidade cominada pelo nº 2 da Base IX da Lei nº 2125 e pelo nº 2 do artigo 76º do Decreto-Lei nº 48547, diplomas anteriores ao Código Civil de 1966, invocável pelo Ministério Público (nº 3 da Base IX e nº 3 do artigo 76º) se deve entender como uma nulidade absoluta ou, simplesmente, nulidade, na terminologia deste Código – artigos 285º e segs.
Mas é igualmente desnecessário observar que, pese embora a lei definir nestes preceitos um regime geral para a nulidade e para a anulabilidade, existem vários casos de invalidades atípicas, ou mistas, que combinam aspectos em regra próprios de cada uma delas, ou que apenas se afastam do regime geral, de acordo com a relevância que o legislador quer conferir aos vícios que, em cada situação, estão em causa. O que significa que, para determinar o regime aplicável a cada caso de nulidade, há que começar pela análise da causa do vício, da razão que a determina e da relevância que resulta da lei que especialmente a prevê, e que naturalmente podem determinar o afastamento ou a adaptação de determinados pontos do regime geral. Igualmente útil para o efeito será a consideração do tratamento expressamente concedido pela lei a casos em que ocorra o mesmo vício, ou vício semelhante, sempre em obediência aos critérios de interpretação da lei, definidos no artigo 9º do Código Civil, nunca esquecendo a directiva de que se há-de presumir que o legislador “consagrou as soluções mais acertadas” (nº 3).

9. Interessa assim saber, no caso presente, se a cessação, em 1989, do motivo de nulidade do contrato de 1982 – a falta da qualidade de farmacêutica, por parte da ré – conduziu ou não à sua convalidação, de tal forma que desde então se tornou impossível a declaração da nulidade com aquele fundamento (seja por iniciativa de qualquer interessado, seja a requerimento do Ministério Público, seja oficiosamente pelo tribunal).
Ora da análise do respectivo texto resulta que a Lei nº 2125, do mesmo passo que consagra o princípio da indivisibilidade, reconhece expressamente relevância à aquisição da qualidade de farmacêutico em momento posterior àquele em que se coloca o problema da transmissão da propriedade de um farmacêutico para um não farmacêutico. É o que sucede no caso de transmissão por morte ou entre vivos, desde que ocorrida na sequência de partilha – resultante de morte, divórcio, separação de pessoas e bens ou ausência judicialmente reconhecida (cfr. 2ª parte do nº 2 da Base IV da Lei nº 2125).
Aliás, é a relevância da aquisição posterior (ao momento da transmissão) da qualidade de farmacêutico que leva à “equiparação” a farmacêutico dos alunos de Farmácia (feita na pressuposição de que concluirão o curso em seis anos a contar da primeira inscrição, salvo não lhes sendo imputável o desrespeito de tal prazo – nº 4 da Base III).
E não é desconhecida na lei civil a hipótese de convalidação de um contrato nulo por aquisição posterior da qualidade (da legitimidade) cuja falta é causa da nulidade. É o que sucede, como todos sabem, com a venda de bens alheios, que é nula (artigo 892º do Código Civil) mas que se consolida retroactivamente “logo que o vendedor adquira por algum modo a propriedade da coisa ou o direito vendido” (artigo 895º).
No caso presente – no qual, note-se, até se trata de uma herdeira legitimária que se poderia ter tornado proprietária da farmácia pela via prevista no nº 2 da Base IV, se a hipótese se tivesse colocado – deve assim entender-se que a aquisição da qualidade de farmacêutica pela ré convalidou retroactivamente o contrato de 1982, mediante o qual adquiriu a propriedade de metade indivisa da Farmácia C..., que lhe foi transmitida pelo autor.
Conclusão diversa não estaria de acordo com a razão de ser da cominação com a sanção de nulidade, nem mesmo à luz da lei vigente em 1982 e em 1989; conduziria à destruição de um negócio celebrado vinte e três anos antes da propositura da acção, por motivos de interesse particular do autor da acção – os mesmos que lhe conferem legitimidade para a propor –, sendo certo que nada no processo revela que não tenha correspondido à vontade dos intervenientes; haveria aliás que determinar até que ponto tal destruição afectaria a estabilidade de inúmeras relações jurídicas constituídas no pressuposto da sua validade.
Tal negócio correspondeu, recorde-se, à execução de um acordo sobre a partilha dos bens de EE, exprimindo o equilíbrio de interesses então entre todos encontrado, como resulta da prova feita. Note-se que esta observação não significa considerar válida uma partilha feita segundo esse acordo; apenas se destina a salientar a razão de facto que justificou o trespasse.
Diga-se ainda, a terminar este ponto, que só não se julga extinto, por prescrição (nº 1 do artigo 298º do Código Civil), o direito de invocar a nulidade, porque a prescrição não foi invocada (artigo 303º do Código Civil). A possibilidade de invocação da nulidade a todo o tempo (artigo 286º) tem o limite da extinção do direito correspondente por prescrição (cfr. artigo 298º do Código Civil).

10. Aqui chegados, torna-se inútil conhecer das demais questões suscitadas pelos recorrentes e pelos recorridos.

Nestes termos, nega-se provimento ao recurso.
Custas pelos recorrentes.

Supremo Tribunal de Justiça, 9 de Dezembro de 2010

Maria dos Prazeres Pizarro Beleza (Relator)
Lopes do Rego
Barreto Nunes