Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
5015/15.1T8CBR.C1.S2.S1
Nº Convencional: 2ª SECÇÃO
Relator: CATARINA SERRA
Descritores: CAUÇÃO
DEPÓSITO BANCÁRIO
GARANTIA DO PAGAMENTO
PENHOR
TEORIA DA IMPRESSÃO DO DESTINATÁRIO
FIM CONTRATUAL
Data do Acordão: 05/02/2019
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA
Área Temática:
DIREITO CIVIL – PARTE GERAL / RELAÇÕES JURÍDICAS / FACTOS JURÍDICOS / NEGÓCIO JURÍDICO / DECLARAÇÃO NEGOCIAL / INTERPRETAÇÃO.
Doutrina:
- Adriano Vaz Serra, Responsabilidade patrimonial, BMJ, 1958, n.º 75, p. 122;
- Almeida Costa, Direito das obrigações, Coimbra, Almedina, 2006, 10.ª edição, p. 884;
- António Menezes Cordeiro, Tratado de Direito Civil, II, Parte Geral, Negócio Jurídico, p. 725 e 726 ; Direito das Obrigações, Tomo IV, Cumprimento e não cumprimento. Transmissão. Modificação e extinção. Garantias, Coimbra, Almedina, 2010, p. 502 e 537;
- Antunes Varela, Das obrigações em geral, Volume II, Coimbra, Almedina, 1997, 7.ª edição, p. 472;
- Brandão Proença, Lições de cumprimento e não cumprimento das obrigações, Coimbra, Coimbra Editora, 2011, p. 422;
- Carlos da Mota Pinto, Teoria Geral do Direito Civil, Coimbra, Coimbra Editora, 2005, 4.ª edição por António Pinto Monteiro e Paulo Mota Pinto, p. 444 e ss.;
- Ferrer Correia, Erro e Interpretação na Teoria do Negócio Jurídico, Coimbra, Almedina, 2001 4.ª reimpressão, p. 188 e ss., 196 e ss.;
- L. Miguel Pestana de Vasconcelos, Direito das Garantias, Coimbra, Almedina, 2013, 2.ª edição, p. 79;
- Luís de Menezes Leitão, Direito das Obrigações, Volume II, Transmissão e extinção das obrigações. Não cumprimento e garantias do crédito, Coimbra, Almedina, 2010, 7.ª edição, p. 324 ; Garantias das Obrigações, Coimbra, Almedina, 2008, 2.ª edição, p. 102;
- Manuel de Andrade, Teoria Geral da Relação Jurídica, Volume II, Facto Jurídico, em especial Negócio Jurídico, Coimbra, Almedina, 1983, p. 309 e 311;
- Maria raquel Rei, Da interpretação da declaração negocial no Direito civil português (Tese de Doutoramento em Direito, ramo de Ciências Jurídicas, na especialidade de Direito Civil), Lisboa, 2010, p. 144-145, in http://repositorio.ul.pt/handle/10451/4424;
- Pedro Romano Martinez e Pedro Fuzeta da Ponte, Garantias de Cumprimento, Coimbra, Almedina, 2006, 4.ª edição, p. 70 e 71;
- Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil anotado, Volume I, colaboração de Manuel Henrique Mesquita, Coimbra, Coimbra Editora, 1987, p. 642;
- Rui Pinto Duarte, A interpretação dos contratos, Coimbra, Almedina, 2016, p. 56, 57 e 84.
Legislação Nacional:
CÓDIGO CIVIL (CC): - ARTIGOS 236.º E 237.º.
Jurisprudência Nacional:
ACÓRDÃOS DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:


- DE 05-07-2012, PROCESSO N.º 1028/09.OTVLSB.L1.S1;
- DE 16-04-2013, PROCESSO N.º 2449/08.1TBFAF.G1.S1.
Sumário :
I. O artigo 236.º do CC consagra a teoria da impressão do destinatário, segundo a qual o sentido do negócio jurídico é o “sentido com que a declaração seria interpretada por um declaratário razoável, colocado na posição concreta do declaratário efectivo”.

II. Na interpretação do negócio, além do clausulado, e entre outros elementos do “horizonte do destinatário” (alguns dos quais podem não estar disponíveis no caso concreto), desempenha um papel importante o fim do negócio, devendo o sentido apurado ser de molde a que o negócio realize este fim.

III. A regra disposta no artigo 237.º do CC aplica-se, como bem decorre da sua epigrafe, apenas a casos duvidosos, não constituindo recurso nas situações em que dos elementos que compõem o horizonte do destinatário resulta claro o sentido a atribuir, em concreto, ao negócio.

Decisão Texto Integral: ACORDAM NO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA

RELATÓRIO


                                                           *

AA, casada com BB, cuja intervenção principal, provocada pela autora, veio a ser admitida nos autos, instaurou, em 9.06.2015, na Instância Central – Secção Cível, da Comarca de Coimbra, contra a Caixa CC, CRL., com sede em …, acção declarativa, de condenação, com processo comum, pedindo que a ré fosse condenada a restituir-lhe a quantia de 149.640,00 €, que disse ter sido indevidamente retirada pela ré da conta nº 43…12, acrescida de juros contratuais, vencidos desde 05/04/2003, e que, até à data da instauração da acção, ascendiam ao valor de 68.026,00 €, e dos juros vincendos até a solicitada reposição.

Alegou a autora, para tanto, que era titular solidária com o seu marido de uma conta num dos balcões da ré. Entretanto, em condições que a autora ignora, o seu marido assinou uma declaração, na qual se afirmava, entre outras coisas, “dar em caução à Caixa de CC, C.R.L. o montante do depósito a prazo abaixo indicado” e que “a presente caução constitui garantia especial de bom e integral pagamento de todas e quaisquer quantias resultantes de obrigações assumidas pelos mutuários, relativamente a todas as responsabilidades existentes ou a conceder, incluindo descobertos em contas de depósito à ordem relativamente à DD, Lda., da qual o signatário é sócio gerente”. Entendia a autora que a declaração subscrita por seu marido era nula, por diversas razões: em primeiro lugar, não enumerava as obrigações que pretenderia garantir; em segundo lugar, a mesma declaração seria nula por falta de legitimidade do declarante; em terceiro lugar, a ré nunca poderia ter efectuado a operação que fez.

Contrapôs a ré, por sua vez, que era beneficiária de um penhor, subscrito pelo marido da autora, sobre a conta de que a autora era titular solidária com seu marido e que se limitara, de harmonia com a melhor prática bancária, a operar a compensação de um débito desta última sobre o depósito, não tendo incorrido em qualquer nulidade.

Em 15.05.2017 foi proferida sentença pelo Tribunal Judicial da Comarca de Coimbra, em que, julgando-se totalmente improcedente a acção, se absolveu a ré do pedido (fls. 75 e s.).

A autora, inconformada, recorreu desta decisão para o Tribunal da Relação de Coimbra, pugnando pela substituição da decisão recorrida por decisão que julgasse procedente o pedido por si formulado.

Em 6.03.2018 proferiu o Tribunal da Relação de Coimbra, um Acórdão, cuja parte decisória era do seguinte teor:

Em face de tudo o exposto, Acordam os Juízes deste Tribunal da Relação em, na improcedência da Apelação, manter, complementada com o aqui decidido “ex novo”, a sentença recorrida” (fls. 101 e s.).

Deste Acórdão vem a autora interpor recurso de revista para este Supremo Tribunal de Justiça (fls. 123 e s.).

Do requerimento de interposição de recurso e das respectivas alegações resulta que a recorrente “solicita revista e revista excepcional do douto Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra que, em parte, manteve a decisão proferida em primeira instância e que julgou improcedente o pedido que formulou contra a Caixa CC, solicitando a condenação desta instituição bancária a restituir-lhe o valor de 149.640,00 €, acrescido de juros vencidos e vincendos, uma vez que operou compensação de um débito de DD, Lda., sobre a totalidade do um depósito de que era titular solidária com seu marido, com base numa declaração/penhor apenas subscrita por este”.

Das alegações resulta ainda que a recorrente entende que “o recurso por si interposto é de revista, no que se refere à amplitude do penhor prestado por seu marido através da carta/declaração de 13/06/2002, matéria que apenas foi apreciada pelo douto Tribunal recorrido, pelo que não ocorreu dupla conforme e, por outro lado, reveste a qualidade de revista excepcional, no que tange à questão de a Caixa Ré poder ou não efectuar compensação sobre a totalidade do saldo da conta bancária solidária de que era titular juntamente com seu marido, pelo que irá pronunciar-se sobre os dois aspectos, em separado[1].

Resulta disto que a recorrente requer simultaneamente recurso (ordinário) de revista por via normal, para apreciação da questão da amplitude do penhor, e recurso (ordinário) de revista por via excepcional, para a apreciação da questão da admissibilidade da compensação.

As conclusões das alegações formuladas pela recorrente são as seguintes:

1° Ao considerar que a declaração carta subscrita pelo mando da A aos 13/06/02 abarcava todas e quaisquer obrigações que o mesmo tinha ou viesse a assumir perante a Caixa Ré, fez incorrecta interpretação do alcance dessa declaração.

2o Atentos os termos dessa declaração, no que à DD, Lda., respeitava, aquela declaração apenas abarcava os descobertos que viessem a ocorrer nas contas à ordem dessa empresa.

3o Nesse aspecto a douta decisão recorrida viola o disposto no artigo 237$ do CC, pelo que se impõe revogá-la e considerar que a Caixa recorrida não poderia fazer a compensação operada e, consequentemente, deve a mesma Caixa ser condenada a restituir à A importância do depósito de que era co-titular, com juros, conforme solicitado.

4o Por outro lado, douta decisão proferida, ao considerar que a Caixa recorrida estava autorizada pela mencionada declaração assinada pelo marido da A compensar débitos deste ou pelos quais este fosse co-responsável, pela totalidade do depósito emigrante que ali constituíra com a, viola e contradita diversas decisões dos nossos tribunais superiores, designadamente o Ac. R. P: de 14/07/08, que acima se transcreveu, pelo que se impõe proferir Acórdão de uniformização de jurisprudência sobre a matéria.

5o E, por razões de unanimidade do sistema jurídico, e atentas as decisões que têm vindo a ser proferidas em matéria análoga por este Supremo Tribunal, impõe-se que a decisão a proferir proíba essa compensação ou apenas a autorize na medida do crédito do titular devedor da instituição, com as legais consequências para a situação concreta em análise, assim se fazendo JUSTIÇA”.

A recorrida apresentou, também ela, (contra-)alegações, pugnando pela inadmissibilidade do recurso e, subsidiariamente, pela sua improcedência, formulando as seguintes as conclusões:

A. DA REVISTA

1.         Questão Prévia:

1) Alega a recorrente que quanto à amplitude da garantia - penhor - prestada pelo cônjuge à recorrida, esta matéria apenas foi apreciada pelo Venerando Tribunal da Relação.

2) O douto Tribunal de 1.ª instância deu como provado nos artigos 14.º e 16.º dos Factos dados como Provados: «14° Posteriormente, este valor “resgatado” foi “compensado” (aplicado) - cfr. doc. n.º 5 junto com a petição inicial, páginas 7 e 8 do documento - na liquidação dos seguintes empréstimos [art45/46PI]: a) na liquidação do empréstimo n.º 58…1, titulado pela “Empresa DD, Ld.a - empréstimo este de que o cônjuge BB (sócio - gerente da mutuária) era garante (avalista) (cfr. documento n.º 5 junto com a petição inicial, Proposta de Crédito), e b) na liquidação do empréstimo n.º 56…1 concedido ao próprio cônjuge BB (cfr. documento n.º 5 junto com a petição inicial, (Crédito a Particulares). (...) 16.º A proposta do marido da autora garantia operações de crédito da empresa de pesca do marido da autora [art 23contestação].

3) A omissão de pronúncia só acontece quando o Acórdão deixa de decidir alguma das questões suscitadas pelas partes. O que, in casu, não aconteceu.

4) No douto Acórdão recorrido foi suprida esta questão, mas apenas em complemento da decisão do Tribunal de 1.ª instância, já que a posição assumida no Acórdão no que a esta matéria diz respeito tem por base factos dados como provados na douta sentença da 1.ª instância (pontos 14.º e 16.º).

5) Pelo que quanto a esta questão, não é admissível o recurso nos termos do artigo 671.º, n.º 3 do CPC.

6) Mesmo que assim não se entenda, o penhor em análise pretendia garantir o «bom e integral pagamento de todas e quaisquer quantias resultantes de obrigações assumidas pelos mutuários, relativamente a todas as responsabilidades existentes ou a conceder»;

7) O valor do penhor foi resgatado e aplicado pela recorrida, nomeadamente, na liquidação do empréstimo n.º 58008079621, titulado pela Empresa DD, Ld.ª,

8) empréstimo este que o cônjuge da recorrente, BB, sócio - gerente da mutuária, era garante (avalista),

9) tendo, consequentemente, assumido solidariamente com aquela empresa, ou seja, ao mesmo nível de responsabilidade de pagamento relativamente ao titular, a liquidação daquele empréstimo.

10) Falece assim o argumento da recorrente, quer do ponto de vista literal (atendendo à carta subscrita pelo marido da A. que prevê a constituição, condições e amplitude do penhor em causa, datada de 13/06/2002), quer do ponto de vista material (atendendo ao facto do cônjuge da Autora, BB, ser garante (avalista), do empréstimo n.º 58…1).

II. DA REVISTA EXCEPCIONAL

1. Questão Prévia

11) A recorrente indica como Acórdão fundamento o de «R.P. de 14/07/2008» que transcreve nas suas doutas alegações.

12) A questão que a recorrente ora traz à demanda não foi objecto de recurso pela mesma aquando da interposição de recurso de apelação para o Venerando Tribunal da Relação de Coimbra, nem foi objecto de apreciação deste no que à apreciação dos fundamentos do recurso interposto pela recorrida concerne.

13) O Venerando Tribunal da Relação de Coimbra, a páginas 7 do douto Acórdão recorrido, determinou que «importará apurar: - Se era a Ré, que, com restrição à prova documental, cabia o ónus de provar que dera conhecimento à Autora das condições em que o marido assinou a declaração de 13/06/2002, não sendo esta onerada com a prova de que não lhe foi dado conhecimento de tais condições, pelo que as ignorava; - Se de uma reposta afirmativa a tal questão resulta ter que se dar como provado, como é pretensão da Apelante, a matéria do ponto 1, dos factos não provados e, se na sequência disso, é, depois, de concluir pela “ilegitimidade do marido da A. para, sem a intervenção da A., subscrever a “declaração” em análise e constituir a garantia…”; Verificar se ocorreu a omissão de pronúncia que a Apelante imputa à sentença.

14) Lidas as doutas conclusões de recurso da Autora, nada se refere sobre a questão agora colocada em crise, referente às regras de movimentação e compensação de uma conta bancária conjunta, em regime de solidariedade

15) O objecto de recurso define-se pelas conclusões que a recorrente extrai da respectiva motivação.

16) Pelo, quanto a esta matéria, o recurso interposto também não deve ser admitido.

2. Da fundamentação

17) Nos autos discute-se a regularidade da constituição de uma garantia - penhor - sobre um depósito a prazo titulado pela Autora e cônjuge, a favor da Ré, e a execução dessa garantia/resgate desse depósito a prazo, pela Ré, ou seja a liquidação e movimentação do valor do depósito a prazo para cumprimento de responsabilidades vencidas garantidas pelo mesmo,

18) e não a forma de movimentação da conta à ordem co-titulada pela Autora ou uma operação de compensação efectuada pela recorrida tendo por objecto saldo/valor disponível na mesma.

19) Veja-se no que a este aspecto diz respeito a «IDENTIFICAÇÃO DO OBJETO DO LITÍGIO E ENUNCIAÇÃO DOS TEMAS DA PROVA», determinada nestes autos, pelo Tribunal de 1.ª instância, nos termos do artigo 596º, nº 1 do CPC - cfr. acta junta aos autos a fls…, datada de 26-10-2016:

19) Estas operações bancárias - execução de garantia/resgate desse depósito a prazo, e liquidação e movimentação do valor do depósito a prazo para cumprimento de responsabilidades vencidas garantidas pelo mesmo, salvo o devido respeito não são idênticas às operações bancárias objecto de apreciação no douto Acórdão «fundamento» indicado e trazido à liça pela recorrente.

20) Mas mesmo que assim não se entendesse, o que por mero exercício intelectual se coloca, não pode a Ré subscrever a interpretação sufragada pela Autora.

21) O depósito bancário é configurado como um contrato atípico.

22) As contas à ordem podem ser singulares e colectivas; as colectivas, por sua vez, podem ser solidárias ou conjuntas.

23) As contas bancárias solidárias têm um regime que resulta das respectivas aberturas de conta. No omisso, caberá recorrer às regras gerais sobre obrigações solidárias, verificando, caso a caso, as adaptações que se mostrem necessárias.

24) Cada depositante tem a vantagem de poder movimentar sozinho, o saldo; tem a
desvantagem de poder ser despojado do seu valor, por acto unilateral do seu parceiro.

25) Perante uma conta solidária, pode a instituição bancária compensar o crédito que tenha sobre algum dos seus contitulares, até à totalidade do saldo.

26) A recorrida, enquanto instituição bancária depositária, podia compensar o crédito que tinha sobre o cônjuge da Autora até à totalidade do saldo daquela conta.

27) Independentemente do exposto, a verdade é que a forma de movimentação da conta de depósitos à ordem referenciada pela recorrente nas suas doutas alegações, titulada por esta e seu cônjuge não foi matéria por si vertida nos autos, em qualquer articulado, nem objecto de discussão ou prova nestes autos.

28) Pelo que, no que a este argumento diz respeito, também não assiste qualquer razão à recorrente”.

Tendo subido a este Supremo Tribunal de Justiça, o processo foi distribuído ao Exmo. Senhor Conselheiro Relator. Este, por despacho em 27.09.2018, admitiu o recurso, restringindo, por então, o objecto do recurso à questão da delimitação do âmbito do penhor mercantil prestado pelo marido da autora, no que se refere à DD, Lda. (questão nova decidida pela Relação, suprimindo a pronúncia da decisão da 1.ª instância), e determinando, quanto à questão restante, da admissibilidade da compensação convencional bancária operada pela ré, a remessa dos autos à Formação prevista no n.º 3 do artigo 672.º do CPC (fls. 216).

Verificada a ausência da exigível contradição de julgados, a Formação, por Acórdão de 15.11.2018, não admitiu a revista excepcional (fls. 223 e s.).

Como se sabe, o objecto do recurso é delimitado pelas conclusões do recorrente (cfr. artigos 635.º, n.º 4, e 639.º, n.º 1, do CPC), sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso (cfr. artigos 608.º, n.º 2, ex vi do artigo 663.º, n.º 2, do CPC).

Neste caso, porém, atendendo ao exposto neste Relatório, o objecto do recurso está delimitado às conclusões 1.º a 3.º das alegações, circunscrevendo-se a questão a apreciar a uma única: a delimitação do âmbito do penhor mercantil prestado pelo marido da autora. Caberá, mais precisamente, decidir se o referido penhor abrangia todas e quaisquer obrigações que o marido da autora tinha ou viesse a assumir perante a ré ou estava limitado aos descobertos que viessem a ocorrer nas contas à ordem da DD, Lda.



*



FUNDAMENTAÇÃO


OS FACTOS

Tendo o Tribunal recorrido decidido manter a factualidade fixada pelo Tribunal de 1.ª instância, são os seguintes os factos que vêm provados no Acórdão recorrido:

1º Na sequência de anteriores depósitos no balcão da …, aos 25/06/2001, a. abriu ali uma conta de depósito a prazo, a que foi atribuído o nº 44…0, no valor de 124.699,47 € (cento e vinte e quatro mil seiscentos e noventa e nove euros e quarenta e sete cêntimos). Doc. 1 [art1PI]

2º Esse depósito foi feito pelo período de seis meses, com a taxa de juro anual de 5% [art2PI].

3º Aos 04/04/2002, com o valor daquele depósito, acrescido dos juros entretanto auferidos e da quantia de 50.000,00 € (cinquenta mil euros) aportada pelo marido da A. BB, constituíram um depósito poupança emigrante com o nº 43…2, no valor de 178.090,69 (cento e setenta e oito mil e noventa euros e sessenta e nove cêntimos. Doc. 2 e 3 [art3PI]

4º Ficando como titulares solidários, a e seu identificado marido [art4PI].

5º Tendo-lhes sido entregue uma caderneta [art5PI].

6º Aos 13/06/2002, o marido da A. assinou uma carta declaração, que se junta por certidão, onde constitui folhas 4 e 5. Doc. 5 [fls. 12 vs. e 13 do processo], na qual afirmava “dar em caução à Caixa CC, C.R.L. o montante do depósito a prazo abaixo indicado, de que é titular, que ficarão indisponíveis e afectos ao cumprimento das obrigações que especialmente garantem, durante os prazos dos mesmos depósitos e suas eventuais renovações” [art6/7PI]

E, também:

7º “A presente garantia vigorará até completa extinção das responsabilidades assumidas…” [art8PI]

Bem como:

8º “O incumprimento das obrigações assumidas dará à Caixa CC a faculdade de, sem prévio aviso em qualquer momento, mesmo se anterior ao vencimento dos depósitos dados em caução, deles transferir, por uma ou mais vezes, as importâncias necessárias ao seu pagamento e dos juros e demais encargos a eles relativos” [art9PI]

E ainda:

9º “Para assegurar a efetivação do presente penhor, o signatário entrega, nesta data à Caixa CC devidamente endossadas as promissórias que titulam os depósitos a prazo…” [art10PI]

Acrescentando:

10º “Se tiver sido requerida, por quem quer que seja, falência do signatário, ou dos mutuários… as obrigações ou responsabilidades garantidas pela presente caução vencer-se-ão imediatamente…” [art11PI]

Terminando:

11º “A presente caução constitui garantia especial de bom e integral pagamento de todas e quaisquer quantias resultantes de obrigações assumidas pelos mutuários, relativamente a todas as responsabilidades existentes ou a conceder, incluindo descobertos em contas de depósito à ordem relativamente à DD, Lda., da qual o signatário é sócio gerente”. [art12PI]

12º A ré dirigiu ao marido da autora BB a carta com data de 20/05/2003, cuja cópia consta de fls. 14 do processo, da qual consta que [art 16PI]:

 “De acordo com as condições contratuais, procedemos no dia 08/05/2003 ao resgate do depósito a prazo nº 43…2, em nome de V. Exª com a consequente transferência para liquidação do empréstimo nº 58….1, titulado pela Empresa DD, Lda. e retenção de parte por conta do empréstimo 56…1, titulado por V. Exª, com os seguintes fundamentos:

- O empréstimo nº 58…1, encontrava-se em atraso desde 04/04/2003.

- Via judicial foi-nos dado conhecimento de arrestos e penhoras de saldos bancários em nome de V. Exª.”

13º Quando foi “resgatado” o Depósito a Prazo - "Poupança- emigrante" - n.º 43…2 (por liquidação deste em 08/05/2003), o respetivo valor (já de 182.964,70 €, devido à contabilização de juros) foi creditado na mesma Conta (suporte) de Depósito à Ordem n.º 40…4, solidária, aberta em nome de ambos os cônjuges, conforme foi comunicado à autora – cfr. doc. n.º 5 junto com a petição inicial, páginas 6 e 7 do documento (fls. 13 vs. e 14 dos autos) [art45/46PI].

14º Posteriormente, este valor “resgatado” foi “compensado” (aplicado) - cfr. doc. n.º 5 junto com a petição inicial, páginas 7 e 8 do documento – na liquidação dos seguintes empréstimos [art45/46PI]:

a) na liquidação do empréstimo n.º 58…1, titulado pela “Empresa DD, Ld.ª – empréstimo este de que o cônjuge BB (sócio-gerente da mutuária) era garante (avalista) (cfr. documento n.º 5 junto com a petição inicial, Proposta de Crédito) e

b) na liquidação do empréstimo n.º 56…1 concedido ao próprio cônjuge BB (cfr. documento n.º 5 junto com a petição inicial, (Crédito a Particulares).

15º A autora AA e o interveniente BB contraíram casamento católico, sem convenção antenupcial, em 20 de novembro de 1965 na Capela da …, concelho de … [certidão de fls. 54].

16º A proposta do marido da autora garantia operações de crédito da empresa de pesca do marido da autora [art23contestação].

17º Esta operação permitiu que o marido da autora se financiasse, quer pessoalmente, quer à sua empresa de pescas, beneficiando de uma melhor taxa de juro [art25contestação].

E são os seguintes os factos que vêm não provados no Acórdão recorrido:

- A autora ignora, porque delas não teve conhecimento, as condições em que o marido assinou a declaração de 13/6/2002 [art6PI].

- O casal era sustentado pela atividade económica e profissional do marido [art22contestação].

- A proposta do marido da autora garantia operações de crédito do casal [art23contestação].

- Com benefício da própria autora [art26contestação]”.




O DIREITO

Quanto à única questão em causa no recurso, alega a recorrente que:

1° Ao considerar que a declaração carta subscrita pelo mando da A aos 13/06/02 abarcava todas e quaisquer obrigações que o mesmo tinha ou viesse a assumir perante a Caixa Ré, fez incorrecta interpretação do alcance dessa declaração.

2o Atentos os termos dessa declaração, no que à DD, Lda., respeitava, aquela declaração apenas abarcava os descobertos que viessem a ocorrer nas contas à ordem dessa empresa.

3o Nesse aspecto a douta decisão recorrida viola o disposto no artigo 237.º do CC, pelo que se impõe revogá-la e considerar que a Caixa recorrida não poderia fazer a compensação operada e, consequentemente, deve a mesma Caixa ser condenada a restituir à A importância do depósito de que era co-titular, com juros, conforme solicitado”.

Relativamente a esta questão, foi a seguinte a decisão do Tribunal da Relação de Coimbra:

(…) a garantia do penhor, em nosso entender, também legitimava a liquidação do empréstimo nº 58…1 titulado pela Empresa DD (mutuária), não, propriamente, atenta a circunstância de a garantia responder por 'descobertos em contas de depósito à ordem relativamente à DD, Lda.', mas porque cobria o 'bom e integral pagamento de todas e quaisquer quantias resultantes de obrigações assumidas pelos mutuários, relativamente a todas as responsabilidades existentes ou a conceder...' e porque cônjuge da Autora, BB (sócio-gerente da mutuária) era garante (avalista) desse empréstimo, sendo certo, ainda, estar provado (16º), que 'A proposta do marido da autora garantia operações de crédito da empresa de pesca do marido da autora'.

Portanto, o que concluímos, é que, a questão suscitada pela Autora, não pode ser resolvida a seu favor, porque, no nosso entender, a liquidação do empréstimo nº 58...1 titulado pela Empresa DD, também estava abarcada pela garantia do penhor.


Aprecie-se.

E comece-se por recordar os factos que apresentam maior relevância para a resolução da questão:

6º Aos 13/06/2002, o marido da A. assinou uma carta declaração, que se junta por certidão, onde constitui folhas 4 e 5. Doc. 5 [fls. 12 vs. e 13 do processo], na qual afirmava “dar em caução à Caixa CC, C.R.L. o montante do depósito a prazo abaixo indicado, de que é titular, que ficarão indisponíveis e afectos ao cumprimento das obrigações que especialmente garantem, durante os prazos dos mesmos depósitos e suas eventuais renovações” [art6/7PI]

E, também:

7º “A presente garantia vigorará até completa extinção das responsabilidades assumidas…” [art8PI]

Bem como:

8º “O incumprimento das obrigações assumidas dará à Caixa CC a faculdade de, sem prévio aviso em qualquer momento, mesmo se anterior ao vencimento dos depósitos dados em caução, deles transferir, por uma ou mais vezes, as importâncias necessárias ao seu pagamento e dos juros e demais encargos a eles relativos” [art9PI]

E ainda:

9º “Para assegurar a efetivação do presente penhor, o signatário entrega, nesta data à Caixa Agrícola devidamente endossadas as promissórias que titulam os depósitos a prazo…” [art10PI]

Acrescentando:

10º “Se tiver sido requerida, por quem quer que seja, falência do signatário, ou dos mutuários… as obrigações ou responsabilidades garantidas pela presente caução vencer-se-ão imediatamente…” [art11PI]

Terminando:

11º “A presente caução constitui garantia especial de bom e integral pagamento de todas e quaisquer quantias resultantes de obrigações assumidas pelos mutuários, relativamente a todas as responsabilidades existentes ou a conceder, incluindo descobertos em contas de depósito à ordem relativamente à DD, Lda., da qual o signatário é sócio gerente”. [art12PI].

(…)

14º Posteriormente, este valor “resgatado” foi “compensado” (aplicado) - cfr. doc. n.º 5 junto com a petição inicial, páginas 7 e 8 do documento – na liquidação dos seguintes empréstimos [art45/46PI]:

a) na liquidação do empréstimo n.º 58…1, titulado pela “Empresa DD, Ld.ª – empréstimo este de que o cônjuge BB (sócio-gerente da mutuária) era garante (avalista) (cfr. documento n.º 5 junto com a petição inicial, Proposta de Crédito) e

b) na liquidação do empréstimo n.º 56…1 concedido ao próprio cônjuge BB (cfr. documento n.º 5 junto com a petição inicial, (Crédito a Particulares).

(…)

16º A proposta do marido da autora garantia operações de crédito da empresa de pesca do marido da autora [art23contestação]”.

A primeira coisa que salta aos olhos é que não é absolutamente claro que tipo de negócio o marido da autora e a ré realizaram, referindo-se a carta / declaração quer a uma “caução”, quer a um “penhor”, quer ainda, mais genericamente, a uma “garantia”.

Torna-se conveniente, antes de prosseguir, esclarecer este ponto, ou seja, qualificar juridicamente o negócio e fixar o regime que lhe aplicável.

Começando pela caução (primeiro termo usado pelo signatário para designar o negócio), ela está regulada de uma forma genérica na lei, nos arts. 623.º e s. do CC, no capítulo reservado às garantias especiais das obrigações.

Decorre da disciplina legal da caução que ela pode ser imposta ou autorizada por lei, decisão judicial ou estipulada negocialmente, assumindo, consoante os casos, as mais várias formas.

No que respeita à caução imposta ou autorizada por lei, não indicando a lei a espécie que ela deve revestir, a garantia é prestada por meio de depósito de dinheiro, títulos de crédito, pedras ou metais preciosos ou por penhor, hipoteca ou fiança bancária ou, na impossibilidade de qualquer destes meios, por outra espécie de fiança, desde que o fiador renuncie ao benefício da excussão prévia (cfr. art. 623.º, n.ºs 1 e 2, do CC). A lei admite, em síntese, apenas a prestação de caução por meio de garantias reais, com excepção da fiança bancária.

No que respeita à caução resultante de negócio jurídico ou determinação do tribunal, a lei é mais permissiva do que (não é tão exigente como) na caução imposta ou autorizada por lei[2]. Dispõe a norma do art. 624.º do CC que é permitido prestar caução por qualquer meio de garantia, real ou pessoal.

É patente o distanciamento existente entre a caução e as outras garantias especiais ou, numa palavra, o seu carácter sui generis. Devido à variabilidade do seu conteúdo, os efeitos da caução enquanto tipo de garantia especial reconduzem-se aos efeitos de cada um dos outros tipos – do tipo de garantia especial por meio da qual a caução é concretamente prestada[3].

Deste modo, se for prestada por meio de uma garantia real, ela converte o credor num credor preferente, permitindo que ele seja pago preferencialmente (em primeiro lugar) pelo produto da venda de determinados bens (dos bens objecto da garantia) ou pelos rendimentos destes, deixando para os credores comuns apenas o remanescente. Se for prestada por meio de garantia pessoal, há um património de terceiro que fica sujeito à eventualidade de execução na hipótese de não cumprimento pelo devedor[4], sendo certo que, independentemente da qualidade de parte na relação contratual, o terceiro assume aqui uma obrigação própria, através da qual se torna (subsidiária ou solidariamente) responsável pelo cumprimento da obrigação por parte do devedor principal[5].

Em face disto, dir-se-ia que a prestação de caução é uma garantia “à parte”, que não se reconduz sem dificuldades aos quadros tipológicos das garantais especiais.

De uma forma geral, toda a doutrina portuguesa dá conta disto. Antunes Varela diz, por exemplo, que a caução não possui “natureza intrínseca própria (ao contrário de outras garantias especiais, como o penhor, a hipoteca ou a fiança)” e que, por isso, ela não tem “um lugar ao sol bem definido no direito substantivo”[6]. António Menezes Cordeiro diz, por seu turno, que “a caução é uma figura híbrida porque resulta de uma qualquer garantia considerada idónea[7]. Por fim, Pedro Romano Martinez e Pedro Fuzeta da Ponte afirmam que “a caução constitui uma “garantia especial mista, um tertium genus entre as garantias pessoais e reais [8].

Seja como for, por força da sua indeterminação ou da variabilidade do seu conteúdo, ela tem, enquanto garantia especial, uma autonomia limitada[9]. É certamente por causa desta indeterminação ou variabilidade, aliás, que o termo “caução” é não raras vezes utilizado num sentido amplo ou, como dizia Adriano Vaz Serra, como sinónimo de garantia[10] [11]. Veja-se, só para um exemplo, o texto do art. 707.º, n.º 1, do CC[12].

Num esforço de definição, poderia dizer-se que a caução é um reforço à garantia geral dos credores ou, mais precisamente, que ela se destina a assegurar o cumprimento da obrigação. Mas isso seria irrelevante, dado que, por si só, tal característica não permite distingui-la das outras garantias especiais.

Mais decisivo será o facto de, através dela, o reforço da garantia se realizar com assinalável liberdade, contentando-se a lei, como já se viu, nos casos em que ela resulta de negócio jurídico ou determinação do tribunal, com a prestação de qualquer garantia, real ou pessoal[13].

O que se coligiu sobre a caução permite já algum enquadramento do negócio em causa nos autos, verificando-se, com efeito, que existia um depósito de dinheiro com o fim de “caucionar” ou “garantir” o cumprimento de certas obrigações.

A conclusão é complementada pela disciplina do penhor onde se encontram elementos relevantes adicionais para qualificar a garantia em causa, decorrentes, designadamente, do disposto no artigo 666.º do CC. Neste preceito, para além de se dizer, no n.º 1, que “[o] penhor confere ao credor o direito à satisfação do seu crédito, bem como dos juros, se os houver, com preferência sobre os demais credores, pelo valor de certa coisa móvel, ou pelo valor de créditos ou outros direitos não susceptíveis de hipoteca, pertencentes ao devedor ou a terceiro”, diz-se, no n.º 2, que “[é] havido como penhor o depósito a que se refere o n.º 1 do artigo 623.º”.

Está agora completamente identificado o tipo de garantia prestada, em concreto, pelo marido da autora e a disciplina que lhe é aplicável. Trata-se de uma caução prestada por meio de depósito de dinheiro, a que, por força de uma equiparação legal, se aplicam as normas que regulam o penhor.

Mas o problema que deve resolver-se permanece: qual é, em concreto, o alcance desta caução?

Para responder, devem ser convocados de novo os factos provados, sobretudo os factos 11.º, 14.º e 16.º , dos quais resulta que:

- a caução prestada pelo marido da autora tinha a função de “garantir o bom e integral pagamento de todas e quaisquer quantias resultantes de obrigações assumidas pelos mutuários, relativamente a todas as responsabilidades existentes ou a conceder, incluindo descobertos em contas de depósito à ordem relativamente à DD, Lda., da qual o signatário é sócio gerente” (facto 11.º);

- “a proposta do marido da autora garantia operações de crédito da empresa de pesca do marido da autora” (facto 16.º); e

- no que toca ao empréstimo especialmente posto em causa pela autora (o empréstimo n.º 58…1, titulado pela DD, Lda.) o cônjuge BB (sócio - gerente da mutuária) era garante (avalista)” (facto 14.º).

Dispõe o artigo 236.º do CC que “[a] declaração negocial vale com o sentido que um declaratário normal, colocado na posição do real declaratário, possa deduzir do comportamento do declarante, salvo se este não puder razoavelmente contar com ele”.

Esta norma consagra aquilo que Manuel de Andrade designa como a “teoria da impressão do destinatário”, segundo a qual o sentido do negócio jurídico é o “sentido com que a declaração seria interpretada por um declaratário razoável, colocado na posição concreta do declaratário efectivo [14].

A teoria da impressão do destinatário é o critério abraçado pela esmagadora maioria da doutrina portuguesa para a interpretação dos negócios jurídicos (Ferrer Correia, Manuel de Andrade, Carlos da Mota Pinto, só para nomear alguns[15]).

Explica António Menezes Cordeiro que o “horizonte do destinatário” é composto dos seguintes elementos: (1) a letra do negócio; (2) os textos circundantes; (3) os antecedentes e a prática negocial; (4) o contexto; (5) o objectivo em jogo; e (6) elementos jurídicos extra-negociais”[16].

Ora, analisando o primeiro, ou seja, o clausulado da carta / declaração reproduzido nestes factos, não restam dúvidas de que, do ponto de vista de um declaratário razoável, a garantia abrangia “todas e quaisquer” obrigações, assumidas ou a assumir, a qualquer título, pelo marido da autora e que estão incluídos nela não só os “descobertos em contas de depósito à ordem relativamente à DD, Lda.” mas também “operações de crédito da empresa”, como o dito empréstimo n.º 58….1, contraído pela DD, Lda., em que o marido da autora figurava como “garante (avalista)”.

Destaca-se o uso do advérbio “inclusivamente” por referência a “descobertos em contas de depósito à ordem relativamente à DD, Lda.”. Ele torna particularmente claro que a referência a este tipo de obrigações é exemplificativa quanto ao objecto da garantia.

Mas outros elementos do “horizonte do destinatário” reforçam a conclusão. Avulta o importantíssimo elemento respeitante ao fim do negócio. Como esclarece, mais uma vez, António Menezes Cordeiro, o negócio não surge, em regra, como um fim em si mesmo, servindo fins exteriores; “conhecido o fim relevante do negócio, há que validar as saídas interpretativas que permitam a sua prossecução[17].

No caso em apreço está provado – e é compreensível, sendo sócio e gerente da sociedade – que o propósito que o marido da autora perseguia através da prestação da garantia era granjear crédito – granjear crédito em condições favoráveis – junto da ré, tanto para a sociedade como para si próprio (cfr. facto 17º “Esta operação permitiu que o marido da autora se financiasse, quer pessoalmente, quer à sua empresa de pescas, beneficiando de uma melhor taxa de juro [art25contestação]”). Em face deste propósito, que sentido teria incluir no âmbito da garantia, os “descobertos” da sociedade e excluir os mútuos que contraídos por ela? Com tal exclusão, muito dificilmente o negócio seria apto a satisfazer o interesse das partes[18], logo, a realizar o fim predisposto.

Por fim, quanto à ressalva dos casos em que o declarante não pudesse razoavelmente contar com o sentido da declaração assim apurado, contida na parte final do artigo 236.º, n.º 1, do CC – aquilo a que Maria raquel Rei chama “válvula de segurança do modelo de interpretação gizado sobre a posição do declaratário” –, que “[n]ão se exige que o sentido apurado seja o sentido querido pelo declarante ou considerado por ele, ao realizar o comportamento. Basta que, com razoabilidade, i.e., de acordo com as regras do bom-senso e da razão, o sentido apurado pudesse ser pelo declarante previsto[19].

Merece ainda uma última nota a alegação da recorrente que “a douta decisão recorrida viola o disposto no artigo 237º do CC” (3.º conclusão das alegações de recurso).

O artigo 237.º do CC tem a epígrafe “[c]asos duvidosos” e determina: que “[e]m caso de dúvida sobre o sentido da declaração, prevalece, nos negócios gratuitos, o menos gravoso para o disponente e, nos casos onerosos, o que conduzir ao maior equilíbrio das prestações”.

Pelas razões expostas acima, entende-se, salvo o devido respeito, que não existe qualquer possibilidade de o sentido da declaração contida na carta / declaração subscrita pelo marido da autora ser duvidoso, não se verificando, assim, o pressuposto de que depende a aplicação desta norma.

Como esclarece Rui Pinto Duarte, “a regra sobre a prevalência do sentido que conduzir ao maior equilíbrio das prestações no caso de dúvidas sobre o sentido de um contrato oneroso é isso mesmo: uma regra sobre a superação de dúvidas – e não uma regra que permita ao tribunal equilibrar contratos que tenha por desequilibrados [20].



*



DECISÃO


Pelo exposto, nega-se provimento à revista e confirma-se o acórdão recorrido.



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Custas pelo recorrente.


                                                           *


LISBOA, 2 de Maio de 2019

                                                            

Catarina Serra

Bernardo Domingos

João Bernardo

___________

[1] Das alegações resulta também que a recorrente considera que “deve ser proferido acórdão uniformizador” e “que se impõe proferir Acórdão de uniformização de jurisprudência sobre a matéria” (cfr. conclusão 4.ª). Atendendo, porém, ao contexto em que tal é dito e, sobretudo, à falta de outras e mais precisas referências a este recurso extraordinário no requerimento de interposição de recurso, só pode a recorrente estar a referir-se à uniformização que pretende obter por força da revista excepcional, nos termos do artigo 672.º, n.º 1, al. c), do CPC.

[2] A circunstância é assinalada por quase toda a doutrina [cfr., por todos, Pires de Lima / Antunes Varela, Código Civil anotado, volume I (com a colaboração de Manuel Henrique Mesquita), Coimbra, Coimbra Editora, 1987, p. 642].

[3] Luís de Menezes Leitão [Garantias das Obrigações, Coimbra, Almedina, 2008 (2.ª edição), p. 102] diz que a prestação de caução é “um caso especial de garantia que constitui uma figura genérica que pode ter como conteúdo outras garantias específicas”. Mais sintético, Almeida Costa [Direito das obrigações, Coimbra, Almedina, 2006 (10.ª edição), p. 884] diz que a caução “[se] concretiza[…] através de umas e de outras”.

[4] Pedro Romano Martinez e Pedro Fuzeta da Ponte [Garantias de Cumprimento, Coimbra, Almedina, 2006 (4.ª edição), pp. 70-71] afirmam que “a prestação de caução corresponde a uma garantia que se estabelece de múltiplas formas” e “[a]s vantagens e inconvenientes da prestação de caução [se] ligam[…] à forma como esta garantia se estabeleceu. Se a caução se constituiu através de uma fiança, as vantagens e os inconvenientes têm de ser apreciados tendo em conta esta garantia. O mesmo se diga no caso de ter sido constituída por meio de uma hipoteca, de um seguro de caução, etc.”.

[5] Sobre isto, cfr. também, entre outros, Luís de Menezes Leitão, Direito das Obrigações, volume II – Transmissão e extinção das obrigações. Não cumprimento e garantias do crédito, Coimbra, Almedina, 2010 (7.ª edição), p. 324.

[6] Cfr. Antunes Varela, Das obrigações em geral, volume II, Coimbra, Almedina, 1997 (7.ª edição,), p. 472 (itálicos do A.).

[7] Cfr. António Menezes Cordeiro, Direito das Obrigações, cit., p. 502, e Tratado de Direito Civil Português, II – Direito das Obrigações, Tomo IV – Cumprimento e não cumprimento. Transmissão. Modificação e extinção. Garantias, Coimbra, Almedina, 2010, p. 537.

[8] Cfr. Pedro Romano Martinez / Pedro Fuzeta da Ponte, Garantias de Cumprimento, cit., p. 70 (itálicos dos AA.).

[9] Parece ter uma visão semelhante Almeida Costa (Direito das obrigações, cit., p. 884), quando diz: [a]ntes de examinarmos as garantias pessoais e as garantias reais das obrigações, importa referir autonomamente a prestação de caução” (itálicos do A.). Para o mesmo entendimento parece apontar, ainda mais claramente, a afirmação de Brandão Proença (Lições de cumprimento e não cumprimento das obrigações, Coimbra, Coimbra Editora, 2011, p. 422): “[d]estes quadros [dos quadros das garantias especiais], e pela sua especificidade (no tocante ao âmbito ou fontes heterogéneas de aplicação e formas de realização), deve ser autonomizada a prestação de caução (cfr. os arts. 623.º a 626.º)”.

[10] Cfr. Adriano Vaz Serra, “Responsabilidade patrimonial”, in Boletim do Ministério da Justiça, 1958, n.º 75, p. 122.

[11] Reiterando a ideia, L. Miguel Pestana de Vasconcelos [Direito das Garantias, Coimbra, Almedina, 2013 (2.ª edição), p. 79] diz que, “[n]um sentido bastante genérico, a caução [se] identifica[...] praticamente com a garantia especial das obrigações”.

[12] Cfr., no mesmo sentido, Almeida Costa (Direito das obrigações, cit., p. 884).

[13] Rectius: com recurso a garantias pessoais não legalmente previstas, já que quanto às garantias reais vigora o princípio da taxatividade ou do numerus clausus. É de notar que o Código Civil disciplina as garantias reais clássicas (consignação de rendimentos, penhor, hipoteca, privilégios creditórios e direito de retenção).

[14] Cfr. Manuel de Andrade, Teoria Geral da Relação Jurídica, vol. II – Facto Jurídico, em especial Negócio Jurídico, Coimbra, Almedina, 1983, p. 309 (sublinhados do autor).

[15] Cfr. Ferrer Correia, Erro e Interpretação na Teoria do Negócio Jurídico, Coimbra, Almedina, 2001 (4.ª reimpressão), pp. 188 e s. e pp 196 e s. , Manuel de Andrade, Teoria Geral da Relação Jurídica, vol. II – Facto Jurídico, em especial Negócio Jurídico, cit., pp. 311 e s., e Carlos da Mota Pinto, Teoria Geral do Direito Civil, Coimbra, Coimbra Editora, 2005 (4.ª edição por António Pinto Monteiro e Paulo Mota Pinto), pp. 444 e s. Para mais referências aos autores portugueses que se pronunciaram sobre a matéria cfr. Rui Pinto Duarte, A interpretação dos contratos, Coimbra, Almedina, 2016, p. 84 (nota 51).

[16] Cfr. António Menezes Cordeiro, Tratado de Direito Civil, II – Parte Geral – Negócio Jurídico, Coimbra, Almedina, 2014 (4.ª edição), p. 718. Estes elementos têm sido expressamente considerados pela jurisprudência portuguesa. Cfr., por todos, Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 5.07.2012, Proc. 1028/09.OTVLSB.L1.S1, e de 16.04.2013, Proc. 2449/08.1TBFAF.G1.S1

[17] Cfr. António Menezes Cordeiro, Tratado de Direito Civil, II – Parte Geral – Negócio Jurídico, cit., pp. 725-726.

[18] Diz Rui Pinto Duarte (A interpretação dos contratos, cit., p. 56) que, sendo o contrato um acordo de vontades, releva a vontade comum e não apenas a vontade de cada uma.

[19] Cfr. Maria raquel Rei, Da interpretação da declaração negocial no Direito civil português (Tese de Doutoramento em Direito, ramo de Ciências Jurídicas, na especialidade de Direito Civil), Lisboa, 2010, pp. 144-145 (disponível em http://repositorio.ul.pt/handle/10451/4424).

[20] Cfr. Rui Pinto Duarte, A interpretação dos contratos, cit., p. 57.