Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça | |||
| Processo: |
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| Nº Convencional: | JSTJ00019320 | ||
| Relator: | AMADO GOMES | ||
| Descritores: | HOMICÍDIO VOLUNTÁRIO HOMICÍDIO QUALIFICADO ESPECIAL CENSURABILIDADE DO AGENTE ELEMENTOS DA INFRACÇÃO TRAIÇÃO CRIME DE PERIGO ARMA NÃO MANIFESTADA | ||
| Nº do Documento: | SJ199306090432023 | ||
| Data do Acordão: | 06/09/1993 | ||
| Votação: | UNANIMIDADE | ||
| Referência de Publicação: | BMJ N428 ANO1993 PAG284 | ||
| Tribunal Recurso: | T CIRC PAREDES | ||
| Processo no Tribunal Recurso: | 157/92 | ||
| Data: | 07/15/1992 | ||
| Texto Integral: | S | ||
| Privacidade: | 1 | ||
| Meio Processual: | REC PENAL. | ||
| Decisão: | PROVIDO. NEGADO PROVIMENTO. | ||
| Área Temática: | DIR CRIM - CRIM C/PESSOAS / TEORIA GERAL. | ||
| Legislação Nacional: | CPP87 ARTIGO 410 N2 N3 ARTIGO 433. CP82 ARTIGO 22 ARTIGO 23 ARTIGO 72 ARTIGO 73 ARTIGO 74 A ARTIGO 78 ARTIGO 132 N1 N2 C F ARTIGO 260. CCIV66 ARTIGO 483 ARTIGO 495 ARTIGO 496. | ||
| Jurisprudência Nacional: | ASSENTO STJ DE 1989/04/05 IN DR 107 IS 1989/05/10. | ||
| Sumário : | I - O crime de homícidio voluntário qualificado tem como elemento específico a especial censurabilidade ou perversidade da conduta do agente. II - O termo "especial" significa que a conduta do agente há-de revelar algo que transcenda a censurabilidade inerente a um crime de homicídio, e a perversidade que revela aquele que matou um ser humano. III - As circunstâncias enumeradas no n. 2 do artigo 132 do Código Penal, susceptíveis de relevar esse algo de "especial", não constituem elementos do tipo legal daquele crime, mas sim da culpa, o que significa não serem de funcionamento automático. IV - Revela especial censurabilidade e perversidade o arguido que, depois de ter lutado fisicamente com a vítima e, quando esta já ia a afastar-se, de costas para o arguido, disparou contra ele um tiro, e depois mais três tiros, provocando-lhe lesões causadouras da sua morte, pois que tal actuação revela cobardia, deslealdade e surpresa, impossibilitando a vítima de esboçar qualquer defesa. V - O crime previsto e punido no artigo 260 do Código Penal (uso de arma não manifestada) é um crime de perigo comum, integrando a circunstância da alinea f) do n. 2 do artigo 132 do Código Penal. | ||
| Decisão Texto Integral: | Acordam no Supremo Tribunal de Justiça: A, identificado nos autos foi julgado e condenado pelo Tribunal Colectivo do Círculo de Paredes: 1- como autor material de um crime de homicídio voluntário simples, na pena de 14 anos de prisão; 2- como autor material de um crime do mesmo tipo legal, mas sob a forma tentada, na forma de 7 anos de prisão; e 3- pela autoria material de um crime de detenção de arma proibida, na pena de 1 ano de prisão; 4- em cúmulo jurídico, na pena única de 19 anos de prisão; 5- e a pagar à viúva da vitima a indemnização de 3957800 escudos, acrescida de juros à taxa legal de 15%, até integral pagamento. Desta decisão interpuseram recurso o arguido e o Ministério Público. O primeiro pretende ver reduzida a pena e a indemnização. Na motivação que apresentou concluiu: 1- não ocorreu nenhum facto que possa considerar-se como circunstância agravante e, em contrapartida, há várias circunstâncias atenuantes umas, de carácter geral e outras, capazes de atenuar especialmente a pena. 2- Houve provocação injusta da parte da vitima e do ofendido, na medida em que ambos se intrometeram com o arguido: o B, quando o mesmo vibrou murros no balcão e batia com o capacete no chão do café; o C, quando ele, embriagado, resmungava ameaças contra ausentes. 3- Verificou-se ainda ofensa imerecida por banda deles, já que o B empurrou o arguido abaixo do banco giratório do balcão, fazendo-o estatelar-se no chão do café e, pondo-se em cima dele, agarrou-lhe as abas do casaco e batendo-lhe uma ou duas vezes com a cabeça no solo; o C pontapeou-o na cabeça uma vez pelo menos, aproveitando o facto de o ver por terra dominado pelo B. 4- A embriagues incompleta do recorrente devia justificar a atenuação especial da pena. 5- Só disparou uma vez sobre o B quando o podia ter feito mais vezes e só o fez sobre o C quando este avançou para si. 6- O café Pontual, onde os factos se passaram, é frequentado pelas pessoas mais conflituosas do meio e nele aoorrem frequentemente grandes discussões que terminam em agressões físicas. 7- O recorrente é cortador de madeiras, possui a 3. classe que completou aos 13 anos de idade e descende de família de baixa condição sócio económica. 8- Todas estas circunstâncias deviam conduzir a uma atenuação especial da pena, como dispõem os artigos 73 e 74 do Código Penal, de forma a que, em cúmulo, não ultrapasse os 8 anos de prisão. 9- O montante da indemnização peca pelo exagero, devendo fixar-se em quantia não superior a 1500000 escudos. 10- O acórdão recorrido violou os artigos 131, 22, 23, 260, 72 e 78 do Código Penal e 483, 495, e 496 do Código Civil. O Ministério Público respondeu a esta motivação defendendo a improcedência do recurso. Nas alegações escritas apresentadas neste Supremo Tribunal o arguido concluiu da mesma forma e o Excelentíssimo Procurador-Geral Adjunto concluiu pela improcedência do recurso do arguido. Recurso do Ministério Público na sua motivação concluí da forma seguinte: 1- Na acusação tinha imputado ao arguido dois crimes qualificados de homicídio voluntário um, na forma consumada, outro, na forma tentada. 2- Também tinha alegado várias circunstâncias reveladoras de especial censurabilidade e perversidade da conduta do agente, designadamente actuação premeditada e frieza de ânimo através da perpetração de um crime de perigo comum. 3- Da matéria de facto resulta uma conduta do arguido reveladora da referida especial censurabilidade e perversidade, designadamente nos disparos com arma proibida, pelas costas e com frieza de ânimo traduzido numa demorada, lenta e fria reflexão sobre os eventos a praticar. 4- Devia ter sido condenado pelos crimes imputados na acusação. 5- A pena aplicável em cúmulo jurídico não deve ser inferior ao máximo legal, atendendo à grande intensidade do dolo, ao elevadíssimo grau de ilícitude e à ausência de atenuantes de algum vulto. 6- O Colectivo violou, por erro de interpretação, no artigo 131, 132 ns. 1 e 2 f) e g), já citados e 374 do Código Penal. O arguido não respondeu à motivação do Ministério Público. Nas alegações apresentadas neste tribunal pelo Procurador Geral-Adjunto, conclui que o recurso do Ministério Público não merece provimento. A assistente D não respondeu nos dois recursos nem alegou neste Supremo Tribunal. Foram colhidos os vistos legais. Cumprido o formalismo legal passa-se a decidir. Os poderes de cognição deste Tribunal, nos termos do artigo 433 do Código de Processo Penal, estão limitados exclusivamente ao reexame da matéria de direito, sem prejuízo do disposto no artigo 410, ns. 2 e 3 do mesmo Código que, no caso presente, não tem aplicação. Assim, o reexame da matéria de direito há-de ter por base a seguinte matéria de facto que vem definitivamente fixada: 1- No dia 26 de Novembro de 1991, cerca das 4 horas, o arguido deslocou-se num velocípede com motor, pertencente a seu sogro à tasca de Quintela transportando como passageiros os seus amigos E e F. 2- Enquanto conversavam beberam nessa tasca, pelo menos três garrafas de vinho "Três Marias". 3- Por volta das 17 e 30 horas resolveram ir até ao café Pontual, sito no lugar do Relógio, da freguesia de Lustosas, do concelho de Lousada, tendo sido o F quem transportou o arguido e o E na dita motorizada. 4- Aí chegados, o arguido ficou a jogar bilhar, bebendo alguns cálices de agua-ardente. 5- Cerca das 18 horas ou 18 e 30 horas, findo o jogo que disputara com a testemunha G, coube ao arguido pagar o bilhar, uma vez que tinha perdido. 6- Porque discordasse do montante a pagar pela utilização do bilhar o arguido começou a discutir com a testemunha H, irmão da vítima B e do ofendido C, que costumava ajudar o dono desse estabelecimento do café. 7- Embora acabasse por proceder ao referido pagamento, o arguido começou a dar murros no balcão e a bater com o seu capacete da motorizada, no chão. 8- Nessa altura a vitima B que, entretanto, havia chegado ao café Pontual, advertiu-o de que tivesse cuidado porque poderia ferir alguém e ainda danificar o seu próprio capacete, ao que o arguido reagiu de imediato dizendo ao B que se metesse na sua vida e apelidando-o, por várias vezes, de "filho da puta". 9- O B abandonou o café, no que foi seguido, pouco depois, pelo arguido. 10- Já depois das 19 horas o arguido voltou de novo ao café Pontual sentando-se ao balcão e pedindo uma "Seven-Up". 11- Iniciou então, em voz alta, uma série de comentários sobre o já mencionado H, referindo que lhe havia de bater. 12- Nessa ocasião chegou ao café o ofendido C que, ouvindo as palavras proferidas pelo arguido, se dirigiu ao mesmo dizendo-lhe que nem ele nem nenhum dos seus irmãos lhe tinham medo. 13- Ainda durante a troca de palavras entre o arguido e o ofendido C de Sousa, regressou ao café a vitima B que se sentou ao balcão, ao lado do arguido que, a dado momento se lhe dirigiu chamando-lhe "filho da puta" e culpando-o de tudo o que nessa tarde lhe acontecera no interior do café Pontual. 14- Então o B deu um empurrão ao arguido, fazendo com que este caísse do banco para o chão, e aí se envolveram em luta corporal, ficando o B sobre o arguido. 15- Nesse envolvimento o B agarrou o arguido pelas abas do casaco que vestia, abandonando-o, fez com que o mesmo batesse uma ou duas vezes com a cabeça no solo. 16- Por seu turno, o C, que se havia aproximado dos dois, deu, pelo menos, um pontapé na cabeça do arguido. 17- O B saiu então de cima do arguido, mantendo-se este, por alguns momentos, deitado no chão. 18- O B aproximou-se do balcão e sugeriu a seu irmão C que se fossem embora, a fim de evitarem mais problemas com o arguido. 19- Nessa altura o arguido levantou-se e, dirigindo-se ao balcão, pediu ao dono do café, I que lhe servisse uma cerveja, respondendo o mesmo que só lhe serviria o refrigerante "Seven-Up" que o arguido anteriormente pedira e que não acabara de beber. 20- Depois de paga a despesa, o B dirigiu-se para a porta de saída e o arguido Albino, ao aperceber-se de tal facto, tirou do casaco a pistola examinada a folhas 16 e, empunhando-a, efectuou um disparo na direcção do B quando este já se encontrava de costas e a cerca de dois metros do arguido. 21- Com tal disparo o arguido atingiu o B na região toráxica, provocando-lhe ferida perfurante ao nível do primeiro espaço intercostal esquerdo na sua porção exterior e ferida perfurante ao nível do vértice do pulmão esquerdo e face postera-lateral esquerda da traqueia. 22- Tais ferimentos constituíram causa necessária e adequada a morte de B. 23- Ao dar conta do disparo efectuado contra o seu irmão, o ofendido C, que se encontrava no outro extremo do balcão, avançou de imediato para o arguido que já estava virado para si, e a cerca de dois ou três metros de distância apontou a pistola na sua direcção e fez três disparos, sendo o último que viria a atingir o abdómen do C, efectuado quando ambos já estavam agarrados. 24- Em consequência destes disparos o C sofreu três feridas perfurantes, uma na região cervical lateral anterior direito, outra no braço esquerdo e outro no flanco direito que a curar demandaram noventa e cinco dias, com igual tempo de incapacidade para o trabalho. 25- Findas as munições da sua arma o arguido fugiu de imediato do interior do café, ficando o C caído no interior do estabelecimento e o B a cerca de 50 metros da saída do café Pontual, distância essa que este último percorreu após ter sido atingido pelo arguido. 26- O arguido agiu voluntaria e conscientemente, com a intenção de atingir mortalmente o B e o C. 27- A pistola com que foram feitos os disparos, examinado a folhas 16, pertencia ao arguido mas não estava manifestadamente registada. 28- O arguido agiu em estado de embriagues incompleta. 29- Do seu certificado de registo criminal consta uma condenação em pena de multa, datada de 22 de Outubro de 1991, por infracção à lei da Caça. 30- Como cortador de madeiras o arguido auferia, antes de preso, 12000 escudos por semana. 31- Sua mulher, que é operária têxtil, tem estado de baixa médica, recebendo o subsídio mensal de 23800 escudos. 32- O arguido nunca contribuiu de forma regular para o sustento do seu agregado familiar, compostos por sua mulher e dois filhos menores, de 5 e 2 anos de idade, valendo-se duma certa cobertura económica por parte do seu sogro, que vive no mesmo prédio. 33- Possui a 3. classe que completou com 13 anos de idade. 34- Descendendo de uma família de baixa condição sócio-económica, o arguido tem o seu percurso profissional caracterizado por uma certa irregularidade e pouca assiduidade. Atento o objecto de cada um dos recursos impõe-se, logicamente, que se conheça em primeiro lugar, do recurso do Ministério Público. Na verdade, pretendendo o Ministério Público que os factos sejam integrados no tipo legal de homicídio qualificado e, pretendendo o arguido, apenas a redução da medida da pena e do montante da indemnização, há que decidir em primeiro lugar qual o tipo de crime praticado pelo arguido e só depois o tribunal pode pronunciar-se sobre a medida das penas que considera justa e adequadas. Assim: Recurso do Ministério Público, na sua motivação defende que o arguido devia ter sido condenado por dois crimes de homicídio qualificado, um consumado e outro tentado, a punir pelo artigo 132, ns. 1 e 2, c), conjugado com os artigos 22 e 23, do Código Penal, quanto ao segundo. Entende que a conduta do arguido revela especial censurabilidade e perversidade, designadamente ao disparar a pistola deliberadamente, a curta distância, procurando visar região vital, e pelas costas, no que à vítima respeita. E revela também insensibilidade moral e frieza de ânimo, agindo por motivo fútil, sem nunca perder de vista os dois irmãos, escolhendo o momento próprio para lhes tirar a vida tendo formado a vontade de modo frio e lento, reflectindo sobre o momento de disparar quando, ao saírem, pelo menos a vitima, já lhe era impossível furtar-se a ser alvejado. O crime de homicídio voluntário qualificado tem, como elemento específico, a especial censurabilidade ou perversidade da conduta do agente - artigo 132, n. 1 do Código Penal. O termo "especial" significa que a conduta do agente há-de revelar algo que vai além da censurabilidade inerente ao crime de homicídio, e da perversidade que revela aquele que mata um ser humano. É através da valoração de todas as circunstâncias provadas que o julgador há-de concluir se a conduta do agente traduz esse algo de "especial". As circunstâncias enumeradas no n. 2 do artigo 132 do Código Penal, susceptíveis de revelar esse algo de "especial", não constituem elementos do tipo legal mas sim da culpa, o que significa não serem de funcionamento automático. Não basta que a conduta do agente, objectivamente considerada, se possa enquadrar numa das situações exemplificativamente apontadas no n. 2 do artigo 132, para se poder concluir pela especial censurabilidade ou perversidade. Analisando os acontecimentos entende-se ser de afastar a ideia de que o arguido agiu por motivo torpe ou fútil e com frieza de ânimo. Na verdade, embora seja fútil o motivo que o levou a começar a dar murros no balcão e a bater com o capacete no chão e a chamar "filho da puta" à vitima, já o mesmo não acontece com os acontecimentos que imediatamente antecederam os disparos:- a vitima tinha-se envolvido em luta com o arguido porque este uma vez mais o apelidara de "filho da puta", abanando-o e fazendo-o bater com a cabeça no chão uma ou duas vezes. Por seu turno, o ofendido C, durante aquela refrega, deu-lhe um pontapé na cabeça. Foi logo a seguir a esta luta, quando a vítima já ia a sair, de costas para o arguido, que este disparou contra ele um tiro e, logo a seguir, disparou três, contra o ofendido C, ao ver que este vinha direito a si. A actuação do arguido não foi leviana nem ditada por razões insignificantes, como não resultou de um processo lento e cauteloso na sua preparação, razões porque não se entende que o arguido agiu por motivo fútil e com frieza de ânimo. Diferentes tem de ser as conclusões quanto às circunstâncias "arma proibida" e "traição". O arguido disparou contra a vítima quando esta já dele se afastava, de costas, a uma distância de 2 a 3 metros. É uma actuação que, além de revelar cobardia, deslealdade e surpresa, impossibilita o visado de esboçar qualquer defesa; é esse esboço de defesa que pretende evitar quem actua desta forma. Ao proceder desta forma em relação à vítima, o arguido agiu à traição e com surpresa, circunstâncias que revelam especial censurabilidade e perversidade. Vejamos agora se a arma usada também é susceptível de qualificar o crime. A pistola que o arguido usou não estava manifestada nem registada. Em conformidade com o Assento deste Tribunal de 5 de Abril de 1989, é uma arma proibida para os efeitos da previsão e artigo 260 do Código Penal. O seu uso integra o crime previsto e punível por este preceito legal. É um crime de perigo comum - vd. capítulo III, Secção I, do título III da parte especial. De acordo com o disposto na alínea f) do n. 2, do citado artigo 132, é susceptível de revelar especial censurabilidade e perversidade, a circunstância do agente "utilizar veneno, qualquer outro meio insidioso ou quando o meio empregado se traduzir na prática de um crime de perigo comum". Portanto, na prática dos crimes de homicídio voluntário, consumado e tentado, o meio usado pelo arguido traduziu-se na prática de um crime de perigo comum. Sendo este meio "susceptível" de qualificar o crime, será que, no caso concreto, ele revela especial censurabilidade e perversidade para se poder concluir pela qualificação do crime? A estrutura dos crimes de perigo comum é uma estrutura complexa, em que cada uma das partes componentes recebe autonomia, para o efeito da sua incriminação, de modo que o crime de perigo comum se configure como uma progressão criminosa, sendo punível, por si mesma, a acção perigosa na qual se integra o evento de perigo quando tenha lugar; se à produção do perigo se segue a realização do dano, a pena única recai sobre a unidade de facto complexo, visto que o último estádio pressupõe, além da acção perigosa, e da criação do perigo, um resultado do dano verificando-se então um crime de perigo comum qualificado pelo resultado - Professor C. Ferreira - Lições I página - 234 (1987). Na estrutura subjectiva dos crimes de perigo comum há a considerar o dolo de perigo que não equivale ao dolo de dano. Pode haver só a consciência de perigo sem intenção de cometer o dano ou haver mesmo intenção de cometer o dano. Nesta última hipótese, acrescenta o Professor C. Ferreira, "...e quanto ao crime de homicídio, a perpetração de homicídio mediante um facto que consiste em crime de perigo comum, constitue o crime de homicídio qualificado (artigo 132 f)". Mas, no caso em apreço, porque razão o facto de a pistola não estar manifestada nem registada, há-de qualificar o crime, se é certo que o uso de uma pistola deste tipo, legalizada, já não o qualificaria? O uso de armas não é livre. Depende do tipo de arma e da personalidade do utente. Assim as armas de defesa só podem ser usadas depois de as autoridades administrativas e policiais as reconhecerem como tal e de por formularem um juízo positivo sobre a idoneidade de quem as pretende usar. Pretende-se, assim, evitar o uso incondicionado de armas, dado o risco de serem usadas por quem não tenha idoneidade moral ou psíquica. Por outro lado, as armas adaptadas como a do arguido, oferecem um grande risco quanto à segurança, o que também se pretende evitar. Assim, o uso de uma arma deste tipo, nas circunstâncias em que o arguido usou a pistola examinada a folhas 16, é um índice de especial censurabilidade e perversidade. Por isso se entende - como vem entendendo este Tribunal - que a conduta do arguido integra a previsão do artigo 132, ns. 1 e 2 f) do Código Penal. É, assim, autor material de um crime de homicídio voluntário consumado previsto e punido por aquele preceito legal, e de um crime do homicídio voluntário tentado, previsto e punido pelo mesmo preceito legal, conjugado com os artigos 22, 23 e 74, n. 1 a) do mesmo Código. Procede, portanto, o recurso do Ministério Público, o que não implica a inutilidade do recurso do arguido, pois este alega não haver circunstâncias agravantes e existirem várias atenuantes que devem conduzir à atenuação especial da pena, nos termos dos artigos 73 e 74 do Código Penal. Por esta razão, a determinação da medida das penas a aplicar, só pode ter lugar depois de decididas as questões postas pelo arguido. Recurso do arguido. A- Analisadas as circunstâncias atenuativas que vêm alegadas, conclui-se o seguinte: 1- Não houve provocação injusta da parte do falecido B nem do ofendido C. Foi o arguido quem iniciou, por motivo fútil, uma conduta provocatória relativamente a quantos se encontravam no café Pontual, dando murros no balcão e batendo com o capacete no chão. Qualquer pessoa que ali se encontrasse podia ter reagido a esta conduta porque tinha o direito de não ser incomodada. O falecido B reagiu, mas fê-lo de forma cordata, chamando-lhe apenas a atenção. Apesar disso o arguido reagiu de forma desabrida, chamando-lhe "filho da puta"- ver factos ns. 6, 7 e 8 atrás descritos. 2- Também não se verifica a ofensa imerecida consistente no facto de o B ter feito cair o arguido ao chão e tê-lo feito bater com a cabeça no chão e de o C lhe ter dado um pontapé na cabeça. Na verdade, da descrição dos acontecimentos constante dos números 10 a 17 da matéria de facto, vê-se que foi o arguido quem, de novo, iniciou uma conduta provocatória: começou por ameaçar o irmão do B e do C, razão porque este interveio a dizer que não lhe tinham medo; a seguir, no balcão, de novo chamou ao B, "filho da puta", do que resultou este ter empurrado o arguido, fazendo-o cair ao chão, onde ambos lutaram. 3- Argumenta o recorrente que só disparou uma vez sobre o B, podendo tê-lo feito mais vezes e que só disparou sobre o C quando este avançou para ele. Não está provado, nem se extrai da matéria do facto, que o arguido pudesse ter disparado mais vezes sobre o B. O que resulta dos factos descritos sob o n. 23 é que o arguido já não teve possibilidades de efectuar mais disparos sobre o B porque o irmão C ao ouvir o disparo, de imediato avançou para o arguido "que já estava virado para si". E, na iminência de ser agredido pelo C, fez três disparos contra ele, ficando sem munições - ver facto n. 25. 4- Embora esteja provado que o arguido se encontrava em estado de embriagues incompleta - facto n. 28 -, a descrição factual permite concluir que não lhe diminuiu a capacidade de entender nem de se determinar, como não o impossibilitou de agir voluntária e conscientemente - facto n. 26. 5- Em matéria atenuativa é irrelevante o tipo de frequência do café Pontual. 6- O Tribunal Colectivo considerou a condição social, económica e familiar do arguido como circunstâncias que depõem a favor dele e, apesar do que atrás se diz quanto a embriagues, também o Tribunal Colectivo entendeu que devia ser considerada no doseamento da pena - folhas 161 e verso. Em resumo; de todo o circunstancialismo apenas dispõem a favor do arguido, a sua situação familiar e económica, bem como a embriagues incompleta que não o impediu de agir voluntária e conscientemente. São circunstâncias de escasso valor atenuativo que não têm a virtualidade de diminuir de forma acentuada, a ilicitude de facto e a culpa do agente. Não é possível, portanto, a atenuação especial da pena, nos termos dos artigos 73 e 74 do Código Penal. B- Pedido Cível. O recorrente impugnou apenas o montante da indemnização, alegando unicamente o seguinte: "De facto, constam dos mesmos valores, nomeadamente o estipulado para valorizar o direito à vida, que em muito ultrapassa o modo como tem sido considerado tal direito". E conclui pedindo a redução da indemnização para 150000 escudos. Nada mais disse. Quanto a esta matéria vêm provados os seguintes factos: 1- O B é filho da requerente D e nasceu no dia 7 de Outubro de 1972, tendo falecido no estado de solteiro no dia 26 de Novembro de 1991. Tinha 20 anos. 2- A D aufere mensalmente uma pensão de sobrevivência de montante não apurado e vive em casa arrendada com seus filhos Joaquim António de Sousa, deficiente mental com 26 anos de idade e Fernando Manuel de Sousa, com 17 anos. 3- O falecido B era operário fabril e ganhava por mês o vencimento líquido de 33180 escudos. 4- Pelo menos metade desse vencimento era entregue pelo B à requerente, com quem vivia, para ajuda de seu sustento e do restante agregado. 5- Após a agressão praticada pelo arguido, o B foi transportado ao Hospital de Guimarães onde veio a falecer. 6- Antes de falecer o B sofreu enormes dores. 7- O falecido era filho dedicado e muito amigo de sua mãe que sofreu um grande desgosto com a sua morte. 8- O B era um jovem saudável e trabalhava, cheio de vida e alegria. 9- Com a realização do funeral do seu filho B, a requerente gastou 80000 escudos, tendo recebido já 22000 escudos de subsídio de funeral do Centro Regional da Segurança Social do Porto. O Tribunal fixou o montante da indemnização a pagar à requerente pelo arguido, em 3957800 escudos, sendo de 2000000 escudos o valor fixado pela perda do direito à vida. O arguido não fundamentou o seu pedido de redução. Disse apenas que o montante da indemnização pela perda do direito à vida ultrapassa em muito "o modo como tem sido considerado tal direito". Não é essa a orientação que vem sendo seguida. A vida humana tem sido considerada pelos tribunais com toda a sua dignidade. Embora o seu valor não possa ser traduzido em termos pecuniários, a indemnização, como compensação que é, tem de traduzir essa dignidade. Se atendermos ainda que o falecido era um jovem de 20 anos, saudável, com fundadas esperanças de largos anos de vida, considera-se equilibrada a quantia de 2000 contos pela perda de direito à vida. Pelo contrário, a quantia proposta pelo recorrente não traduz o respeito e a dignidade de que é merecedora a vida do falecido B. Igualmente não merece censura a quantia total fixada, de acordo com o disposto nos artigos 483, 495 e 496 do Código Civil. Improcede totalmente o recurso do arguido. Decididos como estão os recursos, passa-se a determinar a medida das penas a aplicar de acordo com a integração feita. De acordo com o preceituado no artigo 72 do Código Penal, atender-se-à às seguintes circunstâncias: - O elevadíssimo grau de ilícitude dos factos; - as graves consequências que deles resultaram; - o dolo muito intenso com que o arguido agiu; - a situação social, familiar e económica; - a embriagues incompleta nos termos já definidos. É muito elevado o grau de culpa do arguido. A culpa é a medida que a pena não pode ultrapassar nem mesmo lançando apelo às necessidades de prevenção, que neste caso são muito acentuadas. Como a atenuação é de escasso valor, a pena tem de ser muito elevada porque muito elevada é a culpa e muito acentuada são as necessidades de prevenção. Por isso é incorrecta a utilização, na graduação da medida da pena, do ponto médio entre os limites mínimo e máximo da pena, como vem sendo entendido. A determinação da medida da pena não depende de critérios aritméticos. Tudo ponderado, consideram-se justas e adequadas as seguintes penas: 1- pelo crime de homicídio voluntário qualificado, consumado, previsto e punido pelos artigos 131 e 132, n. 2, alínea f) do Código Penal, dezasseis anos de prisão; 2- pelo crime tentado de homicídio qualificado previsto e punido pelos citados preceitos, conjugados com os artigos 22, 23 e 74, n. 1 alínea a) do mesmo Código, 8 anos (oito) de prisão; Atento a qualificação jurídica feita, o arguido será absolvido pelo crime de detenção de arma proibida, visto que, tratando-se de um crime de perigo comum que entrou na qualificação jurídica feita, não pode ser punido autonomamente. Assim, fazendo o cúmulo jurídico das restantes penas, o arguido vai condenado, nos termos do artigo 78 do Código Penal, na pena única de dezanove (19) anos de prisão. Em face do exposto acorda-se em dar provimento ao recurso do Ministério Público e em negar provimento ao recurso do arguido. Em consequência: a) absolve-se o arguido do crime de detenção de arma proibida; b) condena-se o arguido por um crime consumado de homicídio voluntário qualificado, previsto e punido pelo artigo 131 e 132 ns. 1 e 2 alínea f), do Código Penal, na pena de quinze anos de prisão; c) condena-se o arguido por um crime tentado de homicídio voluntário qualificado, previsto e punido pelos referidos preceitos legais, conjugados com os artigos 22, 23 e 74, n. 1 alínea a) do mesmo Código, na pena de oito anos de prisão; d) condena-se o arguido, em cúmulo jurídico, nos termos do artigo 78 do mesmo Código, na pena única de dezanove (19) anos de prisão. Termos em que se revoga o acórdão recorrido e se confirma no mais. O arguido, porque decaiu no seu recurso, pagará 5 UCS de taxa de justiça, com custas, fixando-se a procuradoria no mínimo. Lisboa, 9 de Junho de 1993. Amado Gomes, Pereira Vidigal, Pinto Bastos. Ferreira Dias. Acórdão de 15 de Julho de 1992 do Tribunal de Círculo de Paredes. |