Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
255/24.5YRPRT.S1
Nº Convencional: 6ª SECÇÃO
Relator: LUIS CORREIA DE MENDONÇA
Descritores: REVISÃO E CONFIRMAÇÃO DE SENTENÇA
ESCRITURA PÚBLICA
ADOÇÃO
DECISÃO DA AUTORIDADE ADMINISTRATIVA
INTERPRETAÇÃO DA LEI
LEI ESTRANGEIRA
DECISÃO JUDICIAL
ACÓRDÃO UNIFORMIZADOR DE JURISPRUDÊNCIA
Data do Acordão: 02/13/2025
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: REVISTA PROCEDENTE
Sumário :
A escritura pública de adopção outorgada no Brasil em cartório notarial é susceptível de revisão, nos termos e para os efeitos da acção especial regulada pelos artigos 978.º e seguintes do CPC.
Decisão Texto Integral:
Processo n.º 255/24.5YIPRT


Acordam no Supremo Tribunal de Justiça


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AA, interpôs recurso do Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 22-11-2024, que julgou improcedente o pedido de reconhecimento e confirmação à escritura pública outorgada em ... de novembro de 1990, constante de fls. ...59, verso, do Livro ...36N, do...º Tabelionato de Notas, da cidade de ..., Estado de ..., República Federativa do Brasil, perante o Tabelião do referido Cartório, na qual participaram a requerente e os Requeridos BB e esposa, CC, pretendendo ver revista e confirmada a escritura pública de adoção da requerente pelos requeridos.

São as seguintes as conclusões de recurso, que delimitam o seu objecto:

«I. A Recorrente vêm interpor recurso de revista do Acórdão proferido pelo Tribunal da Relação do Porto, em 22 de Novembro de 2024 que, de forma surpreendente, julgou a presente ação improcedente e recusou a revisão e confirmação.

II. Na medida em que, salvo o devido respeito, por opinião em contrário, o mesmo se encontra em clara violação do enquadramento legal aplicável, in casu, nos termos estatuídos nos artigos 978.º e seguintes do CPC, em conjugação com as disposições normativas constantes dos artigos 6.º, 7.º, 10.º e 11.º do Código do Registo Civil, conduzindo, em certa medida, aumaerradaaplicaçãodaleideprocesso,nostermosdo artigo 674.º, n.º 1, alínea b) do CPC,

III. Ao interpretar que, a adoção celebrada no Brasil, em 1990, por escritura pública, não é passível de revisão e confirmação, através da ação de revisão de sentença estrangeira, nos termos do artigo 978.º e seguintes do CPC.

IV. A Recorrente, adere na integra ao entendimento explanado no voto de vencido do Exmo. Venerando Juiz Desembargador António Carneiro da Silva, constante do douto Acórdão recorrido.

V. O acórdão do Tribunal da Relação do Porto, posto em crise, procedeu a uma análise e interpretação enviesada sobre o instituto jurídico que é a adoção de maiores - permitido à luz da lei processual brasileira - negando em absoluto que uma escritura pública lavrada, no Brasil, por um notário/tabelião - em que se decrete uma adoção, possa ser alvo de revisão e confirmação através da ação de revisão de sentença estrangeira, nos termos dos artigos 978.º e ss. do CPC.

VI. Salvo o devido respeito, entende-se que o Tribunal ad quem, e por uma questão de adequação, justiça e igualdade de direitos, deve interpretar, extensivamente, o mecanismo da ação de revisão de sentença estrangeira, mais concretamente, o disposto no artigo 978.º, n.º 1do CPC, integrando o conceito “decisões”, não só as decisões judiciais propriamente ditas, mas também decisões de autoridade administrativa estrangeira competente, cuja revisão e confirmação é exigível à luz da lei civil e processual civil portuguesas, designadamente, uma escritura pública na qual se decreta uma adoção -como é o caso concreto.

VII. Ou seja, não obstante a mudança de filiação no país de origem da Recorrente, para que a referida escritura pública notarial que decretou a adoção, produza efeitos no ordenamento jurídico português, a mesma carece de reconhecimento e confirmação pelo Tribunal da Relação competente para o efeito, conforme dispõe o artigo 978.º, n.º 1 e artigo 979.º, ambos do Código de Processo Civil.

VIII. Além do mais, é incontroverso que, a escritura pública em causa nos presentes autos, é autêntica e passível de ser revista e confirmada, uma vez que, preenche todos os requisitos previstos nas alíneas a) a f) do artigo 980º do CPC.

IX. Assim, o Acórdão proferido pelo Tribunal da Relação do Porto, de que se recorre, revela-se incompreensível e em manifesta violação das disposições legais previstas nos artigos 978.º e seguintes do Código de Processo Civil, conduzindo, assim, de certa forma, a uma errada aplicação da lei processual, em conformidade com o disposto no artigo 674.º, n.º 1, alínea b) do CPC.

X. O Tribunal a quo fundamentou a sua decisão com base no Acórdão Uniformizador de Jurisprudência nº 10/2022, de 24 de Novembro, que trata da figura de "união estável" no Brasil, estabelecendo que, tal relação jurídica, não constitui uma decisão com força de caso julgado e, portanto, não poderia ser revista nem confirmada pelos tribunais portugueses, nos termos dos artigos 978.º e seguintes do CPC.

XI. Contudo, este entendimento não é aplicável ao caso concreto, uma vez que a "união estável" e a "adoção" são figuras jurídicas substancialmente diferentes, não devendo ser tratadas deforma análoga, pois é patente que, a figura da "união estável" não está prevista no ordenamento jurídico português, ao contrário da figura da "adoção", que é regulada de forma clara no nosso sistema jurídico.

XII. A comparação entre estas duas figuras jurídicas, é inadequada e resulta numa aplicação incorreta do direito.

XIII. Ora, face à recusa do Tribunal a quo em proceder à revisão e confirmação da adoção celebrada no Brasil, entre Recorrente e Recorridos, e tendo em conta que as Conservatórias de Registo Civil consideram-se incompetentes para proceder ao averbamento no registo civil da adoção em causa, lavrada por escritura pública (de acordo com a lei brasileira), por não terem competência e autonomia para reconhecer e fazer operar direta e imediatamente, pois, como é sabido, a competência pertence exclusivamente aos tribunais, ao abrigo do expediente legal regulado no artigo 978.º e ss. do CPC.

XIV. O resultado do entendimento pugnado pelo Tribunal a quo, do Acórdão de que se recorre, culminaria na criação de um vazio legal, ao qual nenhuma entidade/autoridade daria resposta condigna, permanecendo a filiação da Recorrente incorreta, no registo civil nacional, a qual não corresponde à verdade dos factos.

XV. A Recorrente viu-se obrigada a recorrer à ação de revisão de sentença estrangeira, para que lhe fosse reconhecido os plenos efeitos jurídicos em Portugal quanto à decisão de adoção, despendendo às suas custas de taxas de justiça e honorários do mandatário judicial, vendo-se numa situação de desigualdade sem precedentes, perante situações semelhantes à sua e são ainda confrontados com os demais encargos que o presente recurso acarreta, para que possa ver desbloqueada a sua situação, que se torna verdadeiramente limitadora a todos os níveis.

XVI. O que culmina numa violação dos seguintes princípios constitucionais: do princípio da igualdade (artigo 13.º da CRP); do princípio da equiparação (ou do tratamento nacional) dos estrangeiros (artigo 15.º da CRP), em absoluta e manifesta desproporcionalidade, corrosiva do Estado de Direito Democrático.

XVII. Pelo exposto, entende-se que, sendo recusado o direito de revisão e confirmação da escritura pública de adoção da Recorrente, tal cria uma situação de insegurança jurídica e discriminação, sem justificação e ou razão, extremamente prejudicial para a Recorrente.

XVIII. E, dessa forma, é forçoso concluir que, no Acórdão recorrido, estamos perante uma decisão em violação do enquadramento legal aplicável, in casu, nos termos estatuídos nos artigos 6.º e 7.º do Código do Registo Civil, em conjugação com o disposto no artigo 978.º e seguintes do CPC, e,

XIX. Por conseguinte, uma errada aplicação da lei de processo no que concerne à escritura pública que decreta uma adoção, no sentido em que esta não é passível de ser objeto de ação de revisão de confirmação de sentença estrangeira, nos termos dos artigos 978.º e seguintes do CPC.

XX. Nessa medida, deverá o presente recurso ser julgado procedente, e em consequência, ser revogado o acórdão proferido pelo Tribunal a quo, substituindo-o por outro acórdão que julgue procedente a presente ação de revisão e confirmação do ato apresentado pela Recorrente, por estarem verificados os pressupostos estabelecidos nos artigos 978.º e ss. do CPC, e confirmada a escritura pública de adoção, lavrada em ... de Novembro de 1990, no Lº ...93, Fls. ...90/Vº do ...º Tabelionato de Notas, da cidade de ..., Estado de ..., perante o Oficial/Tabelião do referido Cartório, que decretou a adoção da Requerente, para valer e produzir os efeitos em Portugal, nos seus precisos termos.

NESTES TERMOS, e nos melhores de Direito, que V.Exas, como sempre, mui doutamente suprirão, deve ser concedido provimento ao presente recurso de revista, interposto pela Recorrente, por fundado nos termos supra expostos e, em consequência, ser revogado o Acórdão proferido pelo Tribunal a quo, substituindo-se por outro Acórdão que julgue procedente a presente ação de revisão e confirmação do ato apresentado pela Recorrente e, em consequência, confirmada a escritura pública de adoção da Recorrente AApelos Recorridos BBeCC, com vista à sua efetivação, eficácia e execução no ordenamento jurídico português, com as demais consequências dai advenientes».

O MP apresentou contra-alegações em que pugna pela revogação do acórdão.


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A única questão decidenda consiste em saber se se deve ou não proceder ao reconhecimento e integração no nosso ordenamento jurídico da escritura pública de adopção da requerente, lavrada na República Federativa do Brasil.

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São os seguintes os factos considerados assentes no Tribunal da Relação:

1. AA nasceu no dia ... de outubro de 1972, em ..., Estado de ..., República Federativa do Brasil, sendo filha biológica de EE e FF.

2. No dia 12 de Novembro de 1990, foi lavrada escritura pública, constante de fls. 159 e 159, verso, do Livro ...36N, do ...º Tabelionato de Notas, da cidade de ..., Estado de ..., República Federativa do Brasil, perante o Oficial/ Tabelião do referido Cartório, na qual participaram a Requerente e os Requeridos e na qual estes declararam adotar aquela, que declarou aceitar a adoção.


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Da delibação

O problema da eficácia das sentenças estrangeiras responde à questão consistente em saber em que termos as sentenças proferidas pelos órgãos jurisdicionais de um Estado estrangeiro produzem efeitos de caso julgado e de título executivo no Estado português.

De entre os sistemas que dão solução a este problema, o sistema comum português de revisão pertence ao tipo misto de revisão formal e revisão de mérito (José Alberto dos Reis, Processos Especiais, Vol II, Coimbra Editora, Coimbra, :139 e seguintes). Quer isto dizer que o tribunal competente – as Relações – limita-se a verificar se a sentença estrangeira satisfaz certos requisitos de forma e certas condições de regularidade (alíneas a) a f) do artigo 980.º CPC) – sistema de revisão formal ou delibação - podendo ainda sindicar se o resultado da revisão ofende manifestamente os princípios de ordem pública internacional do Estado português (alínea f)) – sistema de revisão de mérito.

Os artigos 978.º a 985.º do Código de Processo Civil tratam do processo de revisão e confirmação das sentenças estrangeiras.

«Confirmar uma sentença estrangeira, após ter procedido à sua revisão é, como diz Marques dos Santos, reconhecer-lhe, no Estado do foro, os efeitos que lhe cabem no Estado de origem, como acto jurisdicional, segundo a lei desse mesmo Estado» (António Marques dos Santos, “Revisão e confirmação de sentenças estrangeiras no novo Código de Processo Civil de 1997 (Alterações ao regime anterior)’’, Aspectos do Novo Processo Civil, Lex, Lisboa, 1997: 105).

Preceitua o artigo 978.º

1.Sem prejuízo do que se ache estabelecido em tratados, convenções, regulamentos da União Europeia e leis especiais, nenhuma decisão sobre direitos privados, proferida por tribunal estrangeiro, tem eficácia em Portugal, seja qual for a nacionalidade das partes, sem estar revista e confirmada.

2. Não é necessária a revisão quando a decisão seja invocada em processo pendente nos tribunais portugueses como simples meio de prova sujeito à apreciação de quem haja de julgar a causa.

Resulta deste normativo que nenhuma decisão sobre direitos privados, proferida por tribunal estrangeiro, tem eficácia em Portugal, sem estar revista e confirmada.

A lei fala em decisão e não em sentença.

No nosso ordenamento processual há dois tipos de decisões judiciais: as sentenças (quando colegiais, os acórdãos) e os despachos (artigo 152.º CPC).

A lei refere-se a “decisões sobre direitos privados’’. É consensual que o que importa é o objecto da decisão e não a natureza da autoridade que a proferiu’’ (Isabel Magalhães Collaço, Revisão de Sentenças Estrangeiras, Apontamentos de alunos coligidos por Lucas Filipe da Cruz, AAFDL, Lisboa, 1963:25).

Não se deve fazer uma interpretação muito restritiva do artigo 978.º, de maneira que faça corresponder as decisões revisíveis às que correspondam a um verdadeiro e próprio acto jurisdicional.

Pelo contrário, não só se admite que nada obsta ao reconhecimento de sentenças homologatórias de tribunais estrangeiros (actos judiciários não jurisdicionais) como inclusivamente se aceita a procedência de um pedido de revisão de uma decisão homologatória de uma entidade administrativa estrangeira (acto não judiciário nem jurisdicional) com uma condição: a de ter havido uma emissão formal da vontade da entidade administrativa responsável pelo acto.

Mas há ainda outra história recente para contar, que separou a nossa jurisprudência.

Até há pouco tempo, era quase pacífico o entendimento de que as decisões em que uma autoridade administrativa reconhecia as uniões de facto ou atestava os divórcios podiam desde que revistas produzir efeitos em Portugal (v.g. Acs. de STJ 22.05.2013, Proc. 687/12, de 25.6.2013, Proc. 623/12, de 29.1.2019, Proc. 896/18, e de 8.9.2020, Proc. 1884/19). Era este o caso das escrituras públicas.

Porém, mais recentemente, a propósito das escrituras públicas de união estável, outorgadas na República Federativa do Brasil, uma corrente jurisprudencial passou a julgar improcedente os pedidos de confirmação dessas escrituras (vejam-se os Acs. do STJ de 9.5.2019, Proc. 828/18, 28.02.2019, Proc. n.º 106/18, de 21.03.2019, Proc. n.º 559/18, de 10.12.2019, Proc. 249/18, de de 12.11.2020m e de 20.1.2022, Proc. 151/21).

Esta corrente foi seguida em dezenas de acórdãos dos tribunais das Relações (vejam-se, entre outros, os Acs. da RP de 18.04.2005, Proc. 0456925, RL de 26.09.2019, Proc. 1777/19, RL de 17.10.2019, Proc. 1268/19, RL de 24.10.2019, Proc. 1531/19, de RE de 07.11.2019, Proc. 84/19, de RL 28.01.2020, proc. 3097/19).

Entretanto, foi publicado o AUJ n.º 10/2022 (Diário da República, 14.11.2022), segundo o qual a escritura pública declaratória de união estável celebrada no Brasil não constitui uma decisão revestida de força de caso julgado que recaia sobre direitos privados, daí que não seja susceptível de ser revista e confirmada pelos tribunais portugueses, nos termos dos artigos 978.º e seguintes do CPC.

Da fundamentação deste Acórdão de Uniformização, a jurisprudência posterior (Ac. STJ de 15.12.2022, Proc.276/21) destaca as seguintes passagens:

«Esclarecido o que é a união estável e o que é a escritura pública declaratória de união estável, o problema está em concretizar o conceito de decisão sobre direitos privados, proferida por tribunal estrangeiro, do art. 978.º do Código de Processo Civil, para averiguar se o caso da escritura pública declaratória de união estável deve ou não coordenar-se-lhe.

(…) O conceito de decisão sobre direitos privados, proferida por tribunal estrangeiro, deve interpretar-se no sentido de designar “tão somente a decisão revestida de força de ‘caso julgado’ que recaia sobre ‘direitos privados’, isto é, sobre matéria civil e comercial”.

Face ao conceito de decisão sobre direitos privados, proferida por tribunal estrangeiro, do art. 978.º do Código de Processo Civil, deverá averiguar-se:

I. — se a escritura pública declaratória de união estável contém uma decisão;

II. — se a escritura pública declaratória de união estável contém uma decisão revestida de força de caso julgado.

(…) a escritura pública declaratória de união estável não contém nenhuma definição da situação jurídica dos declarantes; ainda que contivesse uma definição da situação jurídica dos declarantes, nunca conteria uma definição imodificável, em termos comparáveis aos de uma sentença declaratória de união estável transitada em julgado (…).

Excluída a qualificação da escritura como “decisão revestida de força de ‘caso julgado’”, está em causa, tão-só, um meio de prova, sujeito a livre apreciação pelo tribunal».

O acórdão ora recorrido transpôs esta doutrina para o caso em apreciação e argumentou: «A escritura pública aqui em causa foi meramente declaratória. Na verdade, aí se diz: «(…) compareceram partes entre si justas e contratadas, a saber: de um lado, como outorgantes adotantes, o Sr. (…); e de outro lado, como outorgada adotada a Srta (…). E, perante as mesmas testemunhas, pelas partes, falando cada um por sua vez, foi dito o seguinte: (…) os outorgantes adotantes vinham adotar, como efetivamente adotam, a outorgada adotada AA (…) tudo em conformidade com o disposto no artigo 368.º, do Código Civil Brasileiro e legislação complementar. Pela outorgada adotada, (…) foi dito que era verdade todo o acime exposto e que aceitava essa escritura em todos os seus termos, tal como está redigida. E de como assim o disseram, do que dou fé, lavrei este instrumento, que lhe sendo lida em voz alta, acharam conforme, outorgam e assinam (…).».

Resulta claramente deste texto que o Sr. Tabelião não ponderou/apreciou os requisitos legais a observar para constituição da adoção, designadamente no tocante à pessoa dos adotantes (art.º 368º e 369º do CC brasileiro de 1916) e à existência ou não de filhos biológicos (art.º 377º do mesmo diploma).

A escritura pública aqui em questão limita-se a dar «fé-pública» das declarações de vontade prestadas pelos outorgantes. O tabelião nada decidiu sobre a conformação jurídica e material da situação de facto, sobre a verificação dos requisitos legais que os outorgantes lhe estavam a reportar.

(…)

Concluindo, a escritura pública aqui em causa não constitui uma “decisão” para efeitos do art.º 978º do CPC».

Esta decisão da Relação do Porto não foi unânime.

No voto do relator vencido, rebate-se, ponto por ponto, aquela opinião.

A discordância baseou-se no seguinte:

1. Para além dos actos e negócios jurídicos estritamente voluntários produtores de efeitos na ordem jurídica e das decisões judiciais com os seus naturalmente inerentes efeitos jurídicos, facilmente uma terceira categoria será pensável, integrada pelos actos definidores do direito, no âmbito de relação jurídicas privadas, tomados por outras autoridades estaduais.

2. No ordenamento jurídico português podemos encontrar diversos casos de actos que, não emanando de órgãos judiciais não jurisdicionais, implicam uma hétero definição do conteúdo de relação jurídico-privada susceptível de se tornar definitiva e executória [casos flagrantes reconduzir-se-ão à decisão de executoriedade proferida no âmbito dos procedimentos de injunção, nacional e europeia, sem oposição, bem como à partilha de herança por inventário notarial] ou maior [caso da possibilidade de divórcio por mútuo consentimento decidido pelo conservador do registo civil].

3. Em Portugal, numa sentença homologatória de transacção proferida no âmbito do processo comum declarativo, a força da regulação que daí decorre essencialmente assenta no acordo das partes, limitando-se a decisão judicial a aferir da legitimidade substantiva dos intervenientes para assumir a concreta vinculação acordada, e da adequação desta ao ordenamento jurídico vigente – mas também nesta situação não vemos que possa haver qualquer dúvida que, tratando-se de decisão homologatória proferida por tribunal estrangeiro, seja susceptível de revisão e confirmação para valer em Portugal.

4. E é procurando encontrar uma solução equilibrada em todo este conjunto de hipóteses que o nosso Supremo Tribunal de Justiça tem sistematicamente defendido que o segmento “decisão sobre direitos privados” constante do corpo do artigo 978º do Código de Processo Civil deve entender-se de modo amplo, «de modo a abranger decisões proferidas quer por autoridades judiciais, quer por autoridades administrativas», nele se incluindo, designadamente, a escritura pública através da qual na República Federativa do Brasil é possível realizar o divórcio consensual entre os cônjuges.

5. O que parece ser a única solução razoável possível se tivermos em conta que «reconhecer uma sentença estrangeira é atribuir-lhe no Estado do foro (Estado requerido, Estado ad quem) os efeitos que lhe competem segundo a lei do Estado onde foi proferida (Estado de origem, Estado a quo), ou pelo menos alguns desses efeitos», em ordem a «assegurar a continuidade e estabilidade das situações da vida jurídica internacional, a fim de que os direitos adquiridos e as expectativas dos interessados não sejam ofendidos» [Prof. Ferrer Correia, in “Lições de Direito Internacional Privado”, tomo I, Almedina, 2000, página 454] – ou, nas palavras quase centenárias do Prof. Alberto dos Reis, «o estado a que chegou, entre as nações civilizadas, a vida jurídica internacional», exige que a regulamentação desta área se se afaste o «princípio da desconfiança para com as jurisdições dos outros Estados, princípio contrário às normas e às exigências da comunidade internacional» [“Processos Especiais – volume II (obra póstuma), reimpressão, Coimbra Editora, 1982, páginas 141 e 142].

6. O critério para reconhecer ou não as escrituras públicas elaboradas no Brasil e integrá-las ou não no nosso ordenamento consta do próprio AUJ n.º 10/2022.

7. A identificação dos elementos desse critério exige a interpretação do conteúdo do acto vertido no acto não judicial nem jurisdicional, cuja revisão é pretendida.

8. Não oferece dúvida que, na base do acto, se encontra a manifestação de vontade das partes, aqui autora e réus, no estabelecimento do vínculo da adopção. Mas a intervenção do oficial público, sancionando a sua regularidade, mostra-se determinante ao válido e eficaz estabelecimento do vínculo – designadamente, tal como sucede com uma sentença homologatória de transacção no âmbito de um procedimento judicial, verificando a legitimidade substantiva dos intervenientes face ao acto e a adequação do conteúdo deste ao ordenamento jurídico.

9. Face à lei vigente no momento da sua outorga, parece claro que a homologação pelo tabelião do acto de vontade manifestado por autora e réus constituía pressuposto constitutivo e gerador do vínculo jurídico da relação jurídica de adopção, independentemente de obviamente ter origem no acordo das partes».

Pensamos ser esta a solução correcta do caso.

Antes do AUJ n.º 10/2022, como dissemos, vários acórdãos do STJ se tinham pronunciado sobre a revisibilidade das escrituras públicas, sem distinção, de entre eles o Ac. STJ de 22.05.2013, revista n.º 687/12: «O que interessa para a ordem jurídica portuguesa é mais o conteúdo do acto administrativo, ou seja, o modo como regula os ditos interesses privados»; «do ponto de vista formal apenas releva que o acto administrativo provenha efectivamente duma autoridade administrativa»; «se não ofende a ordem pública portuguesa, quanto à maneira como regulou esses interesses privados e provém duma autoridade administrativa, estão preenchidos os requisitos para a confirmação do seu conteúdo»; «não releva, portanto, o modo ou a via como se chegou à produção desse acto, ou seja, se através duma emissão formal da vontade da entidade administrativa responsável pelo acto, ainda que de carácter meramente homologatório, ou se de maneira mais «contratual» apenas através das declarações dos outorgantes. Por outras palavras, basta que se trate de um acto caucionado administrativamente pela ordem jurídica em que foi produzido (cfr. artigo 1º da Convenção de Haia Sobre o Reconhecimento dos Divórcios e Separação de Pessoas, de 1/06/1970)”.Acresce que se, assim não fosse, «estava-se a denegar a força do dito acto, como idóneo para produzir os seus efeitos, como se de sentença fosse. Ou seja, estava-se a denegar a competência da entidade que o produziu, quando é certo que a competência para o acto, como é de jurisprudência, é definida pela lei nacional dessa entidade».

O AUJ n.º 10/2022 tem uma dezena de votos de vencido, dizendo um que « A escritura pública declaratória da união estável consubstancia indiscutivelmente a prática de um acto administrativo, presidido por oficial dotado de fé pública, onde se procede ao caucionamento e formalização do reconhecimento de direitos privados conferidos aos conviventes que, nessa medida e a partir daí, podem ser opostos a terceiros»; «Não faz sentido, portanto, a sua desvalorização ou desconsideração pelas autoridades judiciárias portuguesas, no âmbito do processo especial de revisão e confirmação de sentença estrangeira, quando se trata de um acto jurídico formal e solene, praticado em plena conformidade com o ordenamento jurídico estrangeiro que o rege, presidido por uma entidade oficial desse país munida de competência para tal, que o autoriza e certifica, dotando-o de fé pública e força probatória plena, destinando-se a publicitar perante terceiros relevantes direitos privados dos conviventes, no plano geral das relações familiares e mesmo do estatuto sucessório, previstos nas disposições legais que se referenciaram supra», outro que «se é certo que uma escritura não é uma sentença, não menos certo será que uma interpretação actualista e universal da lei, impõe que no processo especial de revisão de sentença estrangeira se deva atribuir um sentido amplo ao termo decisão sobre direitos privados, proferida por tribunal estrangeiro, considerando abrangidos quer as decisões dos tribunais, quer as decisões de entidades administrativas, caso a lei do país de origem atribua relevância jurídica à referida entidade e considere admissível essa forma de dissolução do casamento, desde que essa decisão se mostre conforme aos requisitos formais previstos pelo artigo 980.º do CPCivil»; «o argumento utilizado no projecto de que na escritura declarativa de união estável nada se decide, porquanto o tabelião se limita a atestar, constatar e/ou certificar as declarações emitidas pelos interessados, é uma falácia, porque ao que se sabe, em variadas escrituras, vg de compra e venda, doação, permuta, empréstimo, os notários/tabeliões, nada decidem, limitam-se igualmente a atestar as declarações das partes e, também ao que se sabe, tais escrituras têm como objecto uma decisão intrínseca de compra e venda, doação, permuta, empréstimo etc...» e ainda outro voto de vencido onde se afirma que «a escritura pública de união estável, não só pela relevância da vontade dos sujeitos no ato de constituição, cuja formação livre o tabelião deve controlar, a par da ausência de impedimentos, mas também pelos seus efeitos jurídicos, em tudo semelhantes aos do casamento (cf. artigos 1724.º e 1725.º do código civil brasileiro), inclusive nos efeitos sucessórios (cf. decisão do STF, de 10-05-2017), não pode deixar de conter uma decisão de uma entidade pública sobre direitos privados suscetível de ser objeto de um processo de reconhecimento e de revisão de sentença estrangeira».

Seja como for, havendo um recente acórdão uniformizador, considerando a importante função nomofiláctica da jurisprudência do Supremo, só diante de razões fortes se justifica divergir da orientação que saiu então vencedora.

Ora, julgamos que estamos diante de um caso cuja razão de decidir deve diferir da do AUJ de 2022.

Não encontrámos jurisprudência do STJ posterior a 2022 que se tenha debruçado sobre revisão de escrituras de adopção elaboradas no Brasil.

Porém, recentemente, o Ac. do STJ de 20.9.2023, Proc. 3185/22 afastou a aplicação da doutrina do AUJ a uma acção de delibação em que era pedido o reconhecimento de uma escritura de dissolução do vínculo conjugal, com o argumentando de que a razão que tinha conduzido à tese que naquele acórdão prevaleceu - a não produção de efeitos duradouros na ordem jurídica brasileira- não se verificava no caso concreto.

Ora, também no caso sujeito de adopção, os efeitos produzidos são duradouros, não podendo ver-se na intervenção do notário/tabelião um mero acto de inteligência.

O voto de vencido a que se fez referência lembra, com inteira pertinência, que em Novembro de 1990, data da escritura pública, vigorava a Constituição da República Federativa do Brasil de 5 de Outubro 1988, cujo artigo 227º, § 5 deixava para a lei comum a regulação do regime jurídico da adopção, mas impondo que a constituição do vínculo sempre estaria dependente da chancela estadual [A adoção será assistida pelo Poder Público, na forma da lei (…)].

Acrescenta-se que «por essa altura sobre a matéria regia ainda o Código Civil dos Estados Unidos do Brasil, aprovado pela Lei nº 3071, de 01 de Janeiro de 1916, que admitia a adopção de maiores de idade (artigo 373), e, no seu artigo 375º, expressamente previa a formalização da adopção por escritura pública, formalidade notoriamente ad substantiam [cfr ponto I. do corpo do artigo 134º do Código Civil Brasileiro de 1916], dotando o acto de fé pública e fazendo prova plena do mesmo [§ 1º do artigo 134º, sempre do Código Civil Brasileiro de 1916]. Este regime saiu reforçado na evolução legislativa sobre a adopção, como se demonstra.

O processualista francês H. Motulsky fazia a distinção, em sede de DIP, entre actes volitifs (décisionnels) e actes recépfis (H. Motulsky, Trav. Comité fr. DIP, 1948-1952: 13). Esta distinção é útil para fazer compreender que, ao contrário do que se defendeu no acórdão recorrido, o notário, quando lavra uma escritura constitutiva da adopção não se limita a ser um receptáculo de vontades alheias, antes emite um acto de resolução e vontade próprias.

Um tabelião, no Brasil, é um profissional que exerce uma função pública delegada, de garantia da autenticidade, segurança e validade dos actos jurídicos, conferindo-lhes fé pública.

O tabelião não é apenas responsável por lavrar as escrituras, ou seja, redigir o documento com base nas informações fornecidas pelas partes envolvidas. Ele deve ainda verificar a legalidade do ato, analisando a documentação necessária e certificando-se de que todas as partes estão de acordo com os termos e condições estabelecidos. No caso, é importante notar que a manifestação de vontade do notário é feita na base de documentos e diante das testemunhas apresentadas.

Reitere-se: no essencial, a razão do AUJ de 22, para não conferir o atributo decisório à escritura da união estável, foi a de que esta escritura não contém nenhuma definição da situação jurídica dos declarantes.

Razão que não é transponível para a escritura de adopção, que tem caracter constitutivo.

Sendo assim as coisas, não vislumbramos razões consistentes para não considerar a actuação do notário uma decisão revisível.

O mérito da causa, no processo de revisão, não é substantivo, mas processual.

O juiz verifica oficiosamente -e a isso se reduz com frequência a sua intervenção-, se concorrem as condições necessárias para a revisão indicadas nas alíneas a) e f) do artigo 984.º, ou seja, sindica a autenticidade do documento a sua inteligibilidade e outrossim se o reconhecimento da decisão é manifestamente incompatível com os princípios da ordem pública internacional do Estado português. Em relação a estes requisitos tem o tribunal de certificar-se sempre.

No caso, não havendo dúvidas sobre a autenticidade da escritura de adopção, nem a respeito da inteligência da mesma, e que a adopção não é incompatível com os princípios de ordem pública internacional do Estado Português, não se tendo apurado a falta de qualquer dos demais requisitos exigidos por lei, há-de proceder a pretensão da recorrente requerente.


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Pelo exposto, acordamos em revogar o acórdão recorrido e em julgar procedente o pedido de revisão da escritura de adopção.

Custas pela recorrente, porque foi quem tirou proveito de acção não contestada (artigo 535.º, 1 e 2, al. a), do CPC).

Cumpra-se o disposto no artigo 78.º CRC.


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Luís Correia de Mendonça (Relator)

Rosário Gonçalves

Teresa Albuquerque