Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
128-99.8TAVIS.C2.S1
Nº Convencional: 5ª SECÇÃO
Relator: RODRIGUES DA COSTA
Descritores: RESPONSABILIDADE CIVIL EXTRACONTRATUAL
INDEMNIZAÇÃO
DIREITO DE REGRESSO
ACTO MÉDICO
FACTO ILÍCITO
NEGLIGÊNCIA
Data do Acordão: 07/14/2010
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: PROVIDO
Sumário :

1. São de classificar como actos de gestão pública os actos materiais de prestação de cuidados de saúde prestados por um médico pertencente ao quadro de um hospital público, ou seja, uma pessoa colectiva pública, dotada de autonomia administrativa e financeira, sujeita à superintendência e tutela do Ministério da Saúde.
2. No âmbito de vigência do Decreto – Lei n.º 48051, de 21/11/67, só o Hospital é exclusivamente responsável, nas relações externas, pelos danos causados pela prática de um facto ilícito decorrente de acto médico praticado, a título de negligência, no exercício das funções pelo funcionário da unidade hospitalar.
3. No âmbito das relações internas, o Estado e as demais pessoas colectivas públicas que tiverem satisfeito qualquer indemnização gozam de direito de regresso contra os lesantes, nos casos em que estes agiram “com diligência e zelo manifestamente inferiores àqueles a que se achavam obrigados em razão do cargo (art. 2.º, n.º 2).
4. O pedido cível destinado a obter a indemnização pelos danos causados a terceiros, em que a causa de pedir consiste na ocorrência de facto ilícito praticado com negligência, no exercício das funções, pelo funcionário médico, só contra o Hospital pode ser dirigido.
5. Tal pedido cível apenas poderia ser dirigido contra o funcionário médico no caso de haver responsabilidade solidária da Administração (actos praticados com dolo) ou no caso de prática de acto que excedesse os limites da função, caso em que a lei estipula a responsabilidade exclusiva dos titulares de órgão, funcionários ou agentes.
6. Na hipótese de responsabilidade exclusiva da Administração com direito de regresso (factos ilícitos praticados com negligência grave), há ilegitimidade inicial do funcionário médico, caso este seja demandado, mas a Administração pode provocar a intervenção do funcionário nos termos e para os efeitos do art. 330.º do Código de Processo Civil (litisconsórcio passivo sucessivo).
7. No art. 6.º do DL 218/99, de 15/06, consagrou-se a faculdade de as instituições hospitalares poderem “constituir-se partes civis em processo penal relativo a facto que tenha dado origem à prestação dos cuidados de saúde, para a dedução do pagamento das respectivas despesas”.
8. Porém, o diploma em causa aplica-se aos casos de responsabilidade civil nos termos gerais, tendo em vista a obtenção do pagamento das referidas despesas de um terceiro (o lesante) que a elas tenha dado origem por intermédio de um facto que tenha praticado e que pode ser um facto ilícito.
9. Se o facto ilícito consistir num acto médico de um funcionário do Hospital, praticado no exercício da função e por causa desse exercício, os danos provocados em consequência desse acto ao próprio Hospital só por via do direito de regresso podem ser exigidos, no caso de o agente ter procedido com diligência ou zelo manifestamente inferiores àqueles a que se achava obrigado em razão do cargo.
10. A responsabilidade que se pretende efectivar situa-se no âmbito das relações internas entre a pessoa colectiva pública Hospital e um seu funcionário, por força da prática de um acto qualificado como de gestão pública e no domínio de uma relação que assume carácter administrativo (prosseguindo fins próprios da Administração).
11. Nesta perspectiva, os tribunais judiciais não são materialmente competentes para conhecer do caso, pois “a infracção das regras de competência em razão da matéria e da hierarquia e das regras de competência internacional, salvo quando haja mera violação dum pacto privativo de jurisdição, determina a incompetência absoluta do tribunal” (art. 101.ºdo CPC)
Decisão Texto Integral: .


I. RELATÓRIO
1. No 1.º Juízo do Tribunal Judicial de Viseu, no âmbito do processo comum colectivo n.º 128-99.8TAVIS.C2.S1, foi julgado o arguido AA, identificado nos autos, e condenado por um crime de ofensa à integridade física por negligência, previsto e punido pelos arts. 148.º, n.ºs 1 e 3, com referência ao art. 144.º, alínea d), ambos do Código Penal (CP), na pena de 8 (oito) meses de prisão, suspensa na sua execução por um período de 2 (dois) anos e 6 (seis) meses.
O arguido foi ainda condenado:
- Solidariamente com o Hospital de São Teotónio, S.A., no pagamento às demandantes BB e CC, da quantia de € 20.000 (vinte mil euros), acrescendo a de € 750,00 (setecentos e cinquenta euros), à assistente CC, e juros de mora, à taxa legal, desde a notificação do pedido cível até efectivo e integral pagamento;
- a pagar ao demandante Hospital de São Teotónio, S.A, a quantia global de € 30.374,30 (trinta mil, trezentos e setenta e quatro euros e trinta cêntimos), acrescida dos juros moratórios, à taxa legal, vencidos e vincendos, desde a notificação do pedido cível, até integral e efectivo pagamento.

2. Inconformado com a decisão, o arguido interpôs recurso para o Tribunal da Relação de Coimbra, tanto da parte criminal, como da parte cível, tendo aquele Tribunal julgado extinto, por prescrição, o procedimento criminal, arquivando os autos nessa parte, julgando, no mais, improcedente o recurso interposto.

3. Ainda inconformado, o arguido, na qualidade de demandado, interpôs recurso para o Supremo Tribunal de Justiça da parte cível, concluindo a sua motivação:
-—Em 25 de Setembro de 1998, data em que o malogrado DD foi assistido pelo arguido/demandado no Serviço de Urgência do HST, esta Instituição de Saúde era uma pessoa colectiva de direito público, o mesmo é dizer, um hospital público.
2ª - Na mesma data, o arguido/demandado, aqui Recorrente, era funcionário do HST, com nomeação definitiva na categoria de assistente graduado de Cirurgia Geral.
3ª - Foi no exercício das funções próprias da categoria mencionada na conclusão anterior, e por causa delas, que o arguido/demandado observou e tratou o malogrado DD no Serviço de Urgência do HST.
Os actos materiais de prestação de cuidados de saúde, levados a cabo nos hospitais públicos pelos seus funcionários e agentes, devem ser qualificados como de gestão pública, designadamente, para efeitos da determinação do regime da responsabilidade civil extracontratual aplicável.
4ª – Os actos materiais de prestação de cuidados de saúde. Levados a cabo nos hospitais públicos pelos seus funcionários e agentes, devem ser qualificados como de gestão pública, designadamente, para efeitos da determinação do regime da responsabilidade civil extracontratual aplicável.
5ª - No caso dos autos, sendo o HST um hospital público e o arguido/demandado um seu funcionário (agente, em sentido amplo), deverá a actuação deste último, no que tange aos cuidados médicos que prestou (ou deixou de prestar) ao malogrado DD, ser considerada como de gestão pública, para os efeitos supramencionados.
6ª - Em 25 de Setembro de 1998, data em que o malogrado DD foi assistido pelo arguido/demandado no Serviço de Urgência do H.ST, a responsabilidade civil extracontratual do Estado e das demais pessoa colectivas públicas, no domínio dos actos de gestão pública, regia-se pelo disposto no DL n° 48.051, de 21 de Novembro de 1967.
7ª - Resulta das disposições conjugadas dos artigos 2° e 3° daquele diploma que, tratando-se de um acto ilícito culposo praticado por agente administrativo no exercício das suas funções e por causa desse exercício, quem responde exclusivamente pelos prejuízos que o mesmo origine a terceiros, é o Estado ou a pessoa colectiva pública em causa, que, quando satisfizerem qualquer indemnização, gozam do direito de regresso contra o referido agente, se este procedeu com culpa grave.
8ª - Quando a causa de pedir, no tocante ao facto gerador do dano que o demandante pretende ver ressarcido, é um facto culposo praticado pelo funcionário no exercício das suas funções e por causa delas, os nossos Tribunais Superiores têm considerado, maioritariamente, que o funcionário é parte ilegítima na acção de indemnização ou no pedido cível enxertado na acção penal, e consequentemente, têm decretado a sua absolvição da instância.
9ª - Atentas as conclusões anteriores, não pode deixar de merecer censura, e, por isso, de ser revogado, o douto Acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Coimbra, aqui em recurso, por, ao arrepio das normas supramencionadas, designadamente, dos art°s 2° e 3° do DL n° 48.051, de 21 de Novembro de 1967, e da interpretação que delas fazem a Doutrina e a Jurisprudência maioritárias, ter julgado improcedente a ilegitimidade dos pedidos cíveis formulados pelas assistentes e pelo HST (rectius, a ilegitimidade passiva do arguido para ser demandado como parte principal naqueles pedidos), e por, consequentemente, não o ter absolvido da instância, como era de Justiça.
Com efeito,
10ª - Considera o Recorrente, salvo o devido respeito, que o argumentário aduzido no douto Acórdão sob recurso, a favor da improcedência da alegada ilegitimidade do arguido para ser demandado nos pedidos cíveis formulados pelas assistentes e pelo HST, não procede á luz das disposições legais substantivas e adjectivas, aplicáveis in casu, designadamente os já referidos artigos 2° e 3° do DL n° do DL n° 48.051, de 21 de Novembro de 1967, o artigo 26°, n° 1, do CPC, e os artigos 500° e 501° do CC.
11ª - No Acórdão do STA, de 25.05.2005, mais do que a questão da eventual inconstitucionalidade dos artigos 2° e 3°, n°s 1 e 2, do DL n° 48.051, de 21 de Novembro de 1967, o que verdadeiramente interessa ao bom julgamento da questão suscitada - a ilegitimidade passiva do arguido/demandado — é o reconhecimento, que nele é feito, da razão do ali recorrente A..., quando sustenta que a sentença recorrida errou ao responsabilizá-lo directamente perante o lesado.
12ª - O argumento usado para sustentar a legitimidade do arguido/demandado e a sua condenação como parte principal, segundo o qual, a responsabilização que lhe foi imposta quanto às assistentes, não decorreu do regime consagrado no DL n° 48.051, de 21 de Novembro, mas, antes, das disposições conjugadas dos artigos 500º e 501º, ambos do Código Civil, por se ter vislumbrado a existência de uma relação de comissão entre o arguido e o Hospital de São Teotónio, não colhe, consubstanciando um erro de julgamento quanto à determinação da norma aplicável ao caso dos autos.
Na verdade:
13ª - Atentas as Conclusões 1ª a 6ª dúvidas não restam de que a responsabilização imposta ao arguido/demandado, quanto às assistentes, bem como a sua condenação nos pedidos por elas formulados, deveriam ter sido conhecidas e decididas à luz das disposições aplicáveis do DL n° 48.051, de 21 de Novembro, designadamente, dos seus artigos 2° e 3º,
14ª - Sendo certo que as disposições conjugadas dos artigos 500° e 501° do CC se aplicam aos danos causados no exercício de actividades de gestão privada, o que, manifestamente, não é o caso.
15ª - Não colhe, igualmente, o argumento, segundo o qual, a lide se mostra configurada pelas demandantes de forma processualmente adequada.
16ª É certo que, à luz do regime plasmado no DL n°48.051, de 21 de Novembro, o arguido que tenha actuado com mera culpa, pode ter interesse em contradizer, mormente quando seja chamado a intervir acessoriamente no processo, nos termos do art.° 330 do CPC.
17ª - Acontece, porém, que o seu interesse como interventor acessório não é directo, como prescreve o art. 26°, n° 1, do CPC, mas indirecto, reflexo.
18ª - Assim sendo, mostra-se violado o disposto no artigo 26°, n° 1 do CPC, que deve ser interpretado e aplicado no sentido acabado de descrever.
19ª – O anteriormente concluído, para o pedido formulado pelas assistentes, vale para o formulado pelo H.S.T, uma vez que a causa de pedir, no tocante ao facto meramente culposo gerador do dano que este pretende ver ressarcido, é a mesma.
20ª - Acresce que, no caso, tendo aquele facto culposo sido praticado no seio do próprio HST, no desenvolvimento das suas atribuições de gestão pública, por um seu funcionário, no exercício das suas funções e por causa delas, é a ele, Hospital, que cabe a responsabilidade exclusiva por todos os danos, como se viu.
21ª - Em via de regresso, demonstrada que seja a culpa grave do funcionário, poderá o HST ver ressarcidos os danos que invoca, mas não num processo em que, à luz da relação material controvertida, a sua posição só poderia ser a de demandado.
Termina pedindo que seja concedido total provimento ao presente recurso e, em consequência, se revogue o Acórdão proferido no Tribunal a quo.

4. Responderam:
- A assistente BB, sustentando a correcção da decisão, por, em suma, existir entre o demandado e o Hospital de São Teotónio uma relação de comitente/comissário, tendo a lide sido configurada com base nesse pressuposto, pelo que o demandado recorrente detém legitimidade;
- O Hospital de São Teotónio, EPE, que defendeu ter o pedido deduzido pelas assistentes sido formulado com base nas disposições conjugadas dos arts. 500.º e 800.º do Código Civil (CC), em resultado da relação de comissão entre o demandado arguido, enquanto comissário e o Hospital, enquanto comitente e que aquele, ao ser demandado civilmente, foi-o com respeito e observância do disposto no art. 26.º, n.º 1 do Código de Processo Civil (CPC).
Já no tocante à responsabilização do arguido demandado no âmbito do pedido formulado pelo Hospital, tal assenta no disposto no art. 483.º e ss. do CC, sendo que, nos termos do art. 129.º do CP, a indemnização por perdas e danos emergentes de um crime é regulada pela lei civil.
Mais alegou que a aplicação do art. 2.º, n.º 2 do DL n.º 48051, de 21/11/67, está expressamente dependente e limitada às situações em que ocorreu o pagamento de uma indemnização nos termos do n.º 1 daquele artigo. Esta seria a situação de o Hospital recorrido ser obrigado a pagar às demandantes o pedido por estas formulado e, posteriormente, o mesmo Hospital vir exigir do aqui recorrente o respectivo reembolso por via do direito de regresso.

5. No Supremo Tribunal de Justiça, o Ministério Público apôs o seu visto, não lhe competindo emitir parecer no caso.

6. Colhidos os vistos em simultâneo, o processo foi presente à conferência para decisão.
II. FUNDAMENTAÇÃO
7.1. Matéria de facto apurada
7.2. Factos dados como provados:
"1. No dia 25 de Setembro de 1998, cerca das 21:00 horas, deu entrada, pelos seus próprios meios, no Serviço de Urgência do Hospital de São Teotónio (H.S.T.), em Viseu, DD, na sequência de uma queda acidental que sofreu no quintal da sua residência, sita na Rua Chão de Gaio, Santarinho, área da comarca de Viseu, em consequência da qual sofreu traumatismo crânio-encefálico, apresentando ferida inciso-contusa na região occipital.
2. No serviço de urgências do H.S.T., o doente foi atendido pelo arguido que, após avaliação do seu estado neurológico e hemodinâmico, lavou a ferida com soro fisiológico, desinfectou-a com betadine e procedeu à sua sutura.
3. De seguida, o arguido enviou o doente DD para o Serviço de Imagiologia onde o mesmo foi submetido a um "Raio X" simples do crânio, não tendo revelado qualquer traço de fractura.
4. No regresso ao Serviço de Urgência, DD teve um episódio de vómito alimentar o que levou o arguido a mantê-lo no Hospital para observação da sua evolução clínica até às 8 horas do dia seguinte, altura em que lhe deu alta para o domicílio, não lhe tendo, contudo, efectuado qualquer exame nem dado qualquer indicação terapêutica, para além de que não averiguou junto do doente ou dos seus familiares, se este estava vacinado contra o tétano.
5. O arguido, fez constar na ficha de urgência do doente (cfr. fls. 76-77 e tradução de fls. 209): «queda com T.C.E.; ferida incisa na região occipital; sem perda de conhecimento; sem vómitos; (vomitou no serviço de urgência); E.G. 15; Sem LAT. Motora; Sem parésia facial/ocular; Sem rigidez da nuca; Sem LAT. Motora.»
6. Contudo, o arguido, devia ter colocado a hipótese de se desenvolver um tétano a partir da ferida inciso-contusa, pelo que, a fim de o prevenir, podia e devia ter procedido às tentativas de profilaxia e imunização activa, nomeadamente ter administrado ao doente soro antitetânico, gamaglobulina e/ou vacina, o que não fez.
7. Assim, no dia 5 de Outubro do mesmo ano, pelas 21:42 horas, DD voltou a dirigir-se ao Serviço de Urgência do H.S.T., porquanto apresentava queixas de dores intensas na zona cervical, tendo sido observado por um médico ortopedista, cuja identidade não foi possível apurar, que o submeteu a um "Raio X" simples e o medicou com anti-inflamatórios, após o que foi transferido para os Hospitais da Universidade de Coimbra (H.U.C.), onde deu entrada pelas 00:24 horas. Depois de observado, foi-lhe dada alta para o H.S.T. e daqui foi-lhe dada alta para o domicílio.
8. No dia seguinte, perante o agravamento dos sintomas, DD dirigiu-se, pelas 03:14 horas, uma vez mais, ao Serviço de Urgência do H.S.T., tendo-lhe então sido diagnosticado tétano de predomínio cefálico, o que levou ao seu internamento na Unidade de Cuidados Intensivos Polivalente, dada a necessidade de suporte ventilatório, até ao dia 17 de Dezembro de 1998.
9. Durante o período em que DD esteve internado no H.S.T., foi submetido a vários actos de diagnóstico e/ou terapêuticos, nomeadamente: intubação nasotraqueal e oratraqueal e prótese ventilatória, cateterismos venosos centrais (jugular/subclávia) e arteriais periféricos para monitorização e terapêutica; controlo da espasticidade e contractura muscular, terapêutica antimicrobiana, terapêutica cardiovascular e fez ainda terapêutica preventiva com Fraxiparina e Ranatidina.
10. Em 8 de Novembro de 1998, suspendeu-se a curarização por já não existirem sinais de espasticidade e em 12 de Novembro foi iniciado o desmame progressivo da prótese ventilatória, tendo-se então notado algum grau de fadiga respiratória e hipotonia dos membros, pelo que foi pedida a colaboração da medicina física e de reabilitação. Em 10 de Dezembro, porque se mantinha a hipotonia apesar da reabilitação, foi feita TAC Crânio-encefálico e, em 11 de Dezembro, Electromiografia sem sinais de parésia neuromuscular periférica.
11. Perante tal quadro clínico, em 15 de Dezembro, foi realizada Ressonância Magnética da coluna cervical que revelou a existência de Hérnia Discai C3/C4 e Estenose do Canal Cervical.
12. No dia 17 de Dezembro de 1998, o doente foi transferido para os H.U.C., onde foi internado na Unidade de Neuro-traumatologia e submetido a intervenção cirúrgica na urgência.
13. Foi-lhe ainda feita corporectomia de C4 com fixação e placa entre C3 - C5 e enxerto ósseo.
14. No dia 18 de Fevereiro de 1999, DD foi transferido, através do I.N.E.M., para o Hospital de S. Bernardo, em Setúbal, onde esteve internado na Unidade de Cuidados Intensivos, até ao dia 8 de Maio de 99, data em que faleceu em consequência de pneumonia nosocomial.
15. O arguido, como técnico de saúde, conhecedor da potencialidade de riscos que tais traumatismos - como o que afectou DD - acarretam, podia e devia ter providenciado pela administração das medidas de profilaxia e imunização activa do tétano, com vista a eliminar ou reduzir ao máximo os riscos de vir a contrair tétano.
16. Ao não adoptar as medidas profiláticas que a situação impunha, o arguido não procedeu com o cuidado a que estava obrigado e de que era capaz, colocando, com essa omissão, em risco a própria vida do DD.
17. Desde data anterior à dos factos e até 22-05-2006, no HDV não existia a vacina antitetânica a fim de aí ser ministrada.
18. O DD, aquando da sua admissão na urgência do HDV, em 25-09-1998, tinha sido vacinado contra o tétano (Td I) em 22-06-1988, e, já após o episódio ora em apreço (Td II) em 06-10-1998, ministrada no HDV através de iniciativa da filha do mesmo, a assistente EE, que se deslocou ao Centro de Saúde e transportou a vacina e enfermeira que a aplicaram ao seu pai.
19. A partir de 04-11-1998 passou a existir requisição e registo de distribuição administração aos doentes de medicamentos derivados de plasma humano.
20. A partir da data que motivou a l.a deslocação de DD à urgências do Hospital, no dia 25 de Setembro de 1998, o mesmo começou a sentir dores e mal estar de ordem tal que teve de se deslocar, pelo menos, mais duas vezes ao Serviço das Urgências daquele Hospital, entre os dias 4 e 6 de Outubro de 1998.
21. Entre tais datas, DD foi transferido para os Hospitais da Universidade de Coimbra, para confirmação de diagnóstico do tétano, sendo certo que foi reencaminhado na própria noite para o Hospital de Viseu.
22. Foi, assim, sujeito a duas viagens, a estímulos sonoros e luminosos absolutamente contra-indicados para o seu estado de saúde e perfeitamente dispensáveis, pois o Hospital de S. Teotónio de Viseu detinha todos os meios de tratamento.
23. Durante todo este período, até começar a ser tratado do tétano, esteve DD lúcido e consciente, tendo sofrido dores intensas na zona da coluna cervical, má disposição frequente, muita dificuldade em mobilizar o pescoço e em abrir a boca.
24. No período em que esteve internado na Unidade de Cuidados Intensivos Polivalente do Hospital de São Teotónio até praticamente ao momento em que foi transferido para o Hospital da Universidade de Coimbra, em 17 de Dezembro de 1998, DD esteve sedado, quase em estado de coma, portanto, inconsciente.
25. Consciência que começou a recuperar quando começaram a fazer o desmame e a reduzir progressivamente a dose de sedação.
26. Certo é que, quando foi transferido da Unidade de Cuidados Intensivos Polivalente para os HUC, já recuperara DD os sentidos, embora não respirasse sozinho, pois foi traqueostomizado em 09.12.1998.
27. Facto esse que o impediu, até à data em que faleceu, de falar.
28. Desde o episódio que o levou pela primeira vez à urgência do Hospital, no dia 25 de Setembro de 1998, até à data em que faleceu, em 8 de Maio de 1999, tirando o período de cerca de quase dois meses em que esteve internado na Unidade de Cuidados Intensivos, em Viseu, DD esteve sempre lúcido e foi adquirindo plena consciência de que se avizinhava o seu fim.
29. DD passou por momentos de um sofrimento atroz, não sentindo o seu próprio corpo, tendo compreendido que estava totalmente dependente, imobilizado.
30. Durante esse tempo encontrava-se fisicamente profundamente debilitado e o seu olhar transmitia uma profunda angústia e preocupação, dominado pelo medo e ansiedade.
31. Só foram administrados o soro antitetânico e a vacina no dia 6 de Outubro de 1998, volvidos mais de 10 dias da data que motivou a sua primeira deslocação ao serviço de urgências do Hospital.
32. A 1.ª Demandante Cível, cônjuge de DD, era muito apaixonada pelo mesmo.
33. O sofrimento da 1.ª Demandante Cível, ao longo dos, pelo menos 2 meses em que teve conhecimento de que DD contraíra "tétano", numa forma muito grave, foi intenso e dramático.
34. Inicialmente, a 1ª. Demandante Cível não acreditou que a situação do seu marido fosse tão grave como realmente era, continuando a alimentar esperanças a partir de pequenos indícios de melhoras de que tudo iria terminar bem.
35. A l.ª Demandante Cível sofria um desespero intenso, um sentimento de perda iminente, de medo profundo.
36. Tendo ficado de tal forma abatida e angustiada que esteve de baixa médica.
37. Passou por todo este processo de uma forma muito difícil: nos tempos que se seguiram ao internamento do seu marido ficou completamente apática e perdida.
38. A l.ª Demandante Cível viveu, nesse período, uma profunda dor que a distanciava de tudo e de todos.
39. Actualmente, continua a l.ª Demandante Cível a recordar-se a toda a hora do sofrimento do seu marido, tendo ataques de choro, um sentimento de inconformismo e revolta muito grandes.
40. Tendo a partir de então manifestado um sentimento de repulsa e de total descrédito pelos serviços médicos e de saúde.
41. A 2.ª Demandante Cível, filha única de DD, estava profundamente ligada ao mesmo.
42. O sofrimento da 2.ª Demandante Cível, pelo menos ao longo dos 2 meses em que DD sobreviveu, foi intenso e dramático.
43. Inicialmente, a 2.ª Demandante Cível não acreditou que a situação do seu pai fosse tão grave, todavia, a partir do momento em que o mesmo se começou a queixar com tanta frequência e com necessidade de se deslocar às urgências do Hospital, tendo inclusivamente sido transferido para Coimbra para regressar na própria noite a Viseu, começou a ficar verdadeiramente preocupada, o que motivou a que estivesse a acompanhar o seu pai no dia 6 de Outubro de 1998.
44. A 2.ª Demandante Cível assistiu, no dia 6 de Outubro de 1998, ser administrado ao seu pai o soro antitetânico e foi a própria que se deslocou, no seu veículo, ao Centro de Saúde para ir buscar a vacina, uma vez que o Hospital não a possuía, pelo que, no próprio dia assistiu à administração da vacina ao seu pai, por uma enfermeira do Centro de Saúde que igualmente transportou.
45. Na verdade, a 2.ª Demandante Cível é enfermeira, pelo que logo que afirmaram que o seu pai tinha contraído tétano, estranhou que o soro ou gamaglubina só lhe tivessem sido administrados naquele dia, tendo imediatamente concluído que o seu pai não poderia ter sido bem orientado no dia em que se dirigiu pela l.ª vez às urgências do Hospital.
46. Assim, a partir do dia 6 de Outubro começou o rodopio e a 2.ª demandante, desesperada, começou a pedir informações, a fazer reclamações e a solicitar acesso ao processo do seu pai, mas as informações que lhe transmitiam, além de escassas e muito incompletas, jamais a tranquilizaram.
47. O seu sentimento de impotência e frustração, então, foi enorme, pois sabia como poderia evoluir o processo do seu pai, pelo sofrimento que o mesmo poderia e iria atravessar, todavia nada podia fazer para debelar o seu estado, cujas consequências para si ainda eram uma incógnita.
48. Todo o processo do seu pai traumatizou-a e deixou-a totalmente desestabilizada, pois sabia que o seu pai não tinha sido devidamente tratado.
49. Na verdade, até ao momento em que, na Unidade de Cuidados Intensivos Polivalente do Hospital de Viseu, começaram a reduzir a medicação, tinha a 2.ª Demandante Cível muitas esperanças que o seu pai reagisse e que, embora com algumas sequelas, ficasse curado do tétano.
50. A partir do momento em que constatou que o seu pai permanecia sem qualquer autonomia e que constatou que a cura do tétano a que fora submetido não surtira qualquer efeito, aí a 2.ª Demandante Cível começou verdadeiramente a desesperar.
51. Nessa altura, foi a 2.ª Demandante Cível quem rapidamente providenciou que o seu pai fosse operado nos Hospitais da Universidade de Coimbra, tendo exposto na altura a situação do seu pai a um cirurgião.
52. Foi um período de grande sofrimento, desgaste e preocupação para si, quer por estar a assistir ao processo de degradação da pessoa que lhe era mais querida no mundo, a par da sua mãe; quer porque tinha igualmente de apoiar a sua Mãe que estava totalmente fora de si com a evolução do estado clínico do pai.
53. A 2.ª Demandante Cível durante todos os fins-de-semana, no período de Outubro a Dezembro de 1998, deslocava-se de Setúbal a Viseu para visitar o seu pai, fazendo em média de 300 km por viagem, a que acrescem gasolina e portagens, tendo feito, nesse período, cerca de 12 a 13 viagens.
54. Cada viagem (ida e volta) custou à 2.ª Demandante Cível cerca de € 60,00 pelo que nesse período, despendeu em viagens cerca de € 750,00 (setecentos e cinquenta euros).
55. O arguido é Assistente Graduado de Cirurgia Geral, funcionário de nomeação definitiva do HDV, auferindo salário mensal não inferior a € 4.250,00.
56. É casado, a esposa aufere salário não inferior a € 400,00.
57. Têm dois filhos a cargo, de 22 e 24 anos, que estudam no ensino universitário, em Lisboa e nos Açores.
58. É considerado pelos colegas e enfermeiros, como profissional competente, empenhado, cumpridor das suas obrigações profissionais.
59. Em consequência directa e necessária das ofensas à integridade física, praticadas pela arguida na pessoa do ofendido DD, sofreu as lesões supra referidas.
60. Lesões que motivaram o seu atendimento no Serviço de Urgência do Hospital de São Teotónio nos dias 05-10-1998 e 06-10-1998, onde foi observado, diagnosticado e tratado, conforme designação contida na factura n.° ..., emitida em 10-05-2004.
61. A assistência médica atrás descrita gerou a dívida hospitalar total de € 30.374,30, nos termos da factura supracitada."

7.2. Factos dados como não provados:
"1. O arguido não questionou o DD, aquando do episódio de urgência de 25-09-1998, sobre o seu estado vacional.
2. O arguido ordenou que fosse administrada ao DD a tetuman-imunoglobulina humana tetânica e aconselhou o doente a ir ao Centro de Saúde para certificar do seu estado de vacinação antitetânica.
3. Todos aqueles actos médicos foram executados pelo arguido, embora tal não conste da ficha de urgência n.° ..., de 25/09/98.
4. Isto é, na ficha clínica supra referida, e mais concretamente nos respectivos quadros, nenhum Acto médico, nem nenhum Tratamento e Terapêutica administrada ali foi escrito. E, apesar de incompleta, o certo é que ninguém põe ou pôs em causa que tais actos foram executados pelo arguido, devendo-se tal lapso ao facto das múltiplas solicitações de um Serviço de Urgência em que aquele foi chamado a intervir.
5. A aplicação da tetuman-imunoglobulina é um acto de rotina que o arguido, como médico cirurgião, sempre utilizou neste tipo de lesão, ao longo da sua experiência de 26 anos, e que também ocorreu na pessoa do malogrado DD.
6. Mesmo no caso dos autos, e a admitir-se que foi a ferida no occipital que despoletou o episódio de tétano em 25/09/98, o que não é certo, e sabendo-se que a cura teria ocorrido entre 8 e 12 de Novembro, poder-se-á concluir que, se não fossem as outras patologias neurológicas concomitantes que o DD apresentava, a cura teria ocorrido seguramente em data muito anterior a esta última.
7. Já que o DD para além da ferida incisa na região occipital, tinha também escoriações na face anterior da perna direita como se pode ver ao exame da Sr.a Dr.a FF a fls. 212 e a fls. 401 da UCIP, onde se lê no n.° 4 da respectiva legenda: "lesão traumática esquémica", ferida esta, anterior, que poderia ter sido a porta de entrada do tétano.
8. A curarização foi mais demorada do que a esperada, devendo-se exclusivamente tal às referidas patologias neurológicas que o DD apresentava, ou seja, a mielopatia espondilótica cervical de C3; C4 e C5 e AVC anterior."

8. Questões a decidir:
- A legitimidade passiva do arguido/demandado para intervir nos pedidos cíveis formulados.

8.1. O recorrente respondeu em processo penal por crime de ofensa à integridade física negligente, previsto e punido pelo art. 148.º, n.ºs 1 e 3, com referência ao art. 144.º, alínea d), ambos do CP, praticado no exercício das suas funções de médico no Hospital de São Teotónio, em Viseu, por não ter agido com o cuidado devido e de acordo com as regras da profissão, quando assistiu, na urgência, DD, vítima de queda, no dia 25/09/98, que adquiriu uma infecção do tétano de predominância cefálica, vindo a falecer, em consequência de uma pneumonia neusocomial, no dia 8/05/99.
Por tal crime, o recorrente foi condenado na 1.ª instância na pena de 8 meses de prisão, suspensa na sua execução pelo período de 2 anos e 6 meses.
Ao mesmo tempo, porque foi demandado com o Hospital onde era funcionário pelas assistentes/demandantes familiares da vítima (mulher e filha), foi condenado solidariamente com aquele estabelecimento hospitalar a pagar àquelas a quantia de € 20.000,00, e ainda a quantia de € 750,00 à demandante filha, importâncias a que acresciam os juros de mora desde a notificação do pedido cível e até integral pagamento.
Também o Hospital onde exercia funções o demandou por via das despesas hospitalares ocasionadas com o internamento e tratamento da vítima, vindo o recorrente a ser condenado a pagar àquele a quantia € 30.374,30 (trinta mil, trezentos e setenta e quatro euros e trinta cêntimos), acrescida de juros de mora à taxa legal, desde a notificação do pedido cível e até integral pagamento.
Em recurso para ela interposto, a Relação de Coimbra veio a declarar extinto o procedimento criminal por prescrição, confirmando no mais a decisão da 1.ª instância, ou seja, no que diz respeito ao pedido cível, a solução dada à questão da legitimidade.
Ora, é precisamente a esta questão que volta o recorrente, pois não se conforma com a decisão de ser tido como parte legítima.
Vejamos:
A causa de pedir no pedido cível enxertado no processo crime procede de acto médico, mais concretamente da referida omissão de cuidados e observância de normas relativas às leges artis no tratamento da vítima pelo médico que a atendeu na urgência do Hospital – o arguido/demandado. Com isso, o arguido/demandado deu causa a ofensa à integridade física da vítima, que se prolongou no tempo, pondo em perigo a vida daquela, que, aliás, veio a falecer. Praticou, pois, um facto ilícito qualificado como crime, sendo este facto ilícito que estrutura a causa de pedir.
À data dos factos, o Hospital de São Teotónio onde foi atendida a vítima, como o reconhece o próprio (Cf. a resposta ao recurso interposto para o STJ), era uma pessoa colectiva pública, dotada de autonomia administrativa e financeira, sujeita à superintendência e tutela do Ministério da Saúde.
Por seu turno, o arguido/demandado era funcionário daquele Hospital, com nomeação definitiva na categoria de assistente graduado de cirurgia geral (Cf. n.º 55 dos factos provados) e foi no exercício das funções próprias dessa categoria e por causa delas que observou e tratou a vítima.
Segundo a jurisprudência e a doutrina dominantes, actos como os acima referidos – actos materiais de prestação de cuidados de saúde em hospital público - são de classificar como actos de gestão pública. FREITAS DO AMARAL trata da questão no seu Direito Administrativo, Lisboa 1989, Vol. III, pp. 471 e ss., afirmando, a título de exemplo (p. 494): Assim, por exemplo, a actividade dos médicos do Estado no exercício da sua profissão tem de qualificar-se como gestão pública, não porque a sua natureza seja distinta da dos médicos do sector privado, mas porque os primeiros estão integrados num serviço administrativo cujas regras os condicionam a ponto de só poderem actuar em equipa segundo o que for determinado pelo respectivo chefe. (Na jurisprudência, cf., entre ouros, os Acórdãos do STA de 08-07-2004, Proc. n.º 01129/03; de 07-07-2005, Proc. n.º 0561-05; de 25-05-2005, Proc. n.º 0855-04 e de 06-06- 2007, Proc. n.º 0295-05).
Neste âmbito rege o Decreto – Lei n.º 48051, de 21/11/67, vigente à data da prática dos factos.
As normas de tal diploma legal pertinentes ao caso são as seguintes:
Art. 2.º
1. O Estado e demais pessoas colectivas públicas respondem civilmente perante terceiros pelas ofensas dos direitos destes ou das disposições legais destinadas a proteger os seus interesses resultantes de actos ilícitos culposamente praticados pelos respectivos órgãos ou agentes administrativos no exercício das suas funções e por causa do seu exercício.
2. Quando satisfizerem qualquer indemnização nos termos do número anterior, o Estado e demais pessoas colectivas públicas gozam de direito de regresso contra os titulares do órgão ou os agentes culpados, se estes houverem procedido com diligência ou zelo manifestamente inferiores àqueles a que se acham obrigados em razão do cargo.

Art. 3.º
1. Os titulares do órgão e os agentes administrativos do Estado e demais pessoas colectivas públicas respondem civilmente perante terceiros pela prática de actos ilícitos que ofendam os direitos destes ou as disposições legais destinadas a proteger os seus interesses, se tiverem excedido os limites das suas funções ou se, no desempenho destas e por sua causa, tiverem procedido dolosamente.
2. Em caso de procedimento doloso, a pessoa colectiva é sempre solidariamente responsável com os titulares do órgão ou agente.

O regime assim estatuído pode ser definido sinteticamente da seguinte maneira, de acordo, aliás, com o Acórdão do Tribunal Constitucional de 13-04-2004, Proc. n.º 92/03:
«- Pelos actos causados por actos ilícitos e culposos (negligência) praticados pelos titulares dos órgãos e pelos agentes administrativos do Estado e demais pessoas colectivas públicas no exercício das suas funções e por causa desse exercício respondem, directa e exclusivamente, perante o lesado, o Estado ou as demais pessoas colectivas públicas (art. 2.º, n.º 1).
- Pelos danos causados por actos praticados por aqueles mesmos entes (titulares de órgãos ou agentes administrativos) nas mesmas condições (no exercício das suas funções e por causa destas), mas cometidos com dolo, respondem, solidariamente, perante o lesado, o Estado ou as demais pessoas colectivas públicas e o lesante (art. 3.º, n.ºs 1 e 2).
- Pelos actos praticados ainda pelos mesmos entes “se tiverem excedido os limites das suas funções” responde exclusivamente perante o lesado, o lesante (ar. 3.º, n.º 1).
No âmbito das relações internas, o Estado e as demais pessoas colectivas públicas que tiverem satisfeito qualquer indemnização gozam de direito de regresso contra os lesantes, nos casos em que estes agiram “com diligência e zelo manifestamente inferiores àqueles a que se achavam obrigados em razão do cargo (art. 2.º, n.º 2).
Como refere Carlos Cadilha (intervenção produzida em conferência sobre “Responsabilidade civil extracontratual do Estado”, publicada pelo Ministério da Justiça, sob o título “A responsabilidade civil extracontratual do Estado, p. 238), configuram-se assim as seguintes situações:
Responsabilidade exclusiva da administração (actos praticados com culpa leve);
Responsabilidade exclusiva da Administração com direito de regresso (actos praticados com negligência grave);
Responsabilidade solidária da Administração (actos praticados com dolo);
Responsabilidade exclusiva dos titulares de órgãos, funcionários ou agentes (actos que excedam os limites das funções.»
Por conseguinte, tendo a causa de pedir, no pedido cível, residido na prática de um facto ilícito pelo recorrente – facto esse constitutivo de crime praticado com negligência – só o Hospital é exclusivamente responsável, nas relações externas, pelos danos procedentes causalmente daquele facto.
Isto mesmo o diz o Tribunal Constitucional, no acórdão acima citado, e que transparece do trecho transcrito, quando analisou a conformidade constitucional das normas do DL 48051 atrás transcritas com as normas supervenientes da Constituição da República Portuguesa (CRP) e constantes dos arts. 22.º e 271.º, normas que fizeram correr muita tinta e causaram muita polémica. O Tribunal Constitucional, porém, veio a concluir pela compatibilidade de tais normas com a Constituição, decidindo a final: Não julgar supervenientemente inconstitucionais as normas dos artigos 2.º e 3.º, n.º s 1 e 2 do Decreto-Lei n.º 48051, enquanto eximem de responsabilidade, no plano das relações externas, os titulares de órgãos, funcionários e agentes do Estado e demais entidades públicas por danos causados pela prática de actos ilícitos e culposos (culpa leve ou grave) no exercício das funções ou por causa delas.
Em sentido idêntico conclui o Acórdão do mesmo Tribunal n.º 5/05, de 05/01/2005 (este com uma declaração de voto em sentido contrário), o qual decidiu: Não julgar inconstitucional a norma do n.º 1 do artigo 2.º do Decreto-Lei n.º 48051, de 21 de Novembro de 1967, na interpretação segundo a qual exclui a legitimidade judiciária passiva de funcionários ou agentes do Estado e demais entidades públicas, nos casos em que se procure determinar a responsabilidade por uma conduta que é imputada a tais funcionários ou agentes a título de mera culpa, e não de dolo.
Neste sentido tem sido também a jurisprudência do STA relativa à interpretação das normas a que temos vindo a referir-nos do DL 48051. Vejam-se, a título de exemplo os Acórdãos de 07/07/2005, Proc. n.º 0561/05, de 25-05-2005, Proc. n.º 0855-04 e de 06-06- 2007, Proc. n.º 0295-05, todos já citados. No primeiro, pode ler-se: Deste modo (…) aquelas entidades (designadamente os Hospitais) respondem, directa e exclusivamente, perante os lesados pelos danos resultantes de actos ilícitos praticados culposamente pelos respectivos órgãos ou agentes no exercício das suas funções e por causa desse exercício, podendo, no entanto, posteriormente, exercer o direito de regresso no caso desses órgãos ou agentes terem procedido com diligência ou zelo manifestamente inferiores àqueles a que se achavam obrigados em razão do seu cargo, isto é, no caso de terem agido com culpa grave.
No segundo, por sinal citado no aresto recorrido mas com interpretação desvirtuada, deu-se razão ao recorrente, que impugnava a sua legitimidade passiva, dizendo-se: Deste modo, impõe-se reconhecer a razão do recorrente A… quando defende que a sentença recorrida errou ao responsabilizá-lo directamente perante o lesado, com fundamento na prática de acto ilícito e culposo, pois a tal se opõe o art. 2.º, n.º 1 do DL 48051, devendo antes ser absolvido da instância nos termos do disposto no art. 494.º, e) do CPC, por ilegitimidade passiva.
No terceiro, exarou-se: É sabido que nos termos dos arts. 2.º e 3.º do DL 48051, de 21/11/67, a acção proposta contra o Estado ou pessoa colectiva pública para efectivação de responsabilidade civil por facto ilícito praticado por agente seu, no exercício das suas funções e por causa delas, só pode ser dirigida também, contra este último quando as lesões que deram origem aos prejuízos peticionados tiverem sido provocados com dolo.
Pode ainda ver-se no mesmo sentido o Acórdão deste STJ de 03/12/2009, Proc. n.º 73/99.7TAVIS.C1.S1, analisando a questão de forma exaustiva, embora mais na vertente da competência material do tribunal, mas aflorando também a questão da legitimidade passiva em sentido confirmativo do aresto recorrido e defendendo a ilegitimidade para serem demandadas directamente, quer a funcionária do Hospital, quer a sua seguradora, por acto médico negligente gerador de danos em terceiro.
Em resumo: o pedido cível formulado nos autos apenas poderia ser dirigido contra o funcionário médico no caso de haver responsabilidade solidária da Administração (actos praticados com dolo) ou no caso de prática de acto que excedesse os limites da função, caso em que a lei estipula a responsabilidade exclusiva dos titulares de órgão, funcionários ou agentes (Veja-se, para além da jurisprudência citada, CARLOS FERNANDES CADILHA, «Responsabilidade da Administração Pública», separata da Revista do Ministério Público, n.º 86, pp. 9/10 e Dicionário do Contencioso Administrativo, Coimbra 2006, p. 57).
Na hipótese de responsabilidade exclusiva da Administração com direito de regresso (factos ilícitos praticados com negligência grave), a Administração pode provocar a intervenção do funcionário nos termos do art. 330.º do CPC: 1. O réu que tenha acção de regresso para ser indemnizado do prejuízo que lhe causa a perda da demanda pode chamá-lo a intervir como auxiliar na defesa sempre que o terceiro careça de legitimidade para intervir como parte principal; 2. A intervenção do chamado circunscreve-se à discussão das questões que tenham repercussão na acção de regresso invocada como fundamento do chamamento. (Cf. Acórdão já citado do STA de 07/07/2005, Proc. n.º 0561/05). Porém, ainda nesse caso, não seria possível o litisconsórcio passivo inicial, mas apenas o litisconsórcio sucessivo.
O Tribunal “a quo”, para justificar a legitimidade passiva inicial do recorrente, baseou-se no disposto nos artigos 500.º e 800.º do CC (responsabilidade do comitente). Porém, tais disposições legais não são aplicáveis ao caso, por dizerem respeito a actos de gestão privada e não a actos de gestão pública, como assinalam PIRES DE LIMA e ANTUNES VARELA, nomeadamente em anotação ao art. 501.º (Código Civil Anotado, Coimbra Editora, Vol. 1.º).
Por todo o exposto, haveremos de concluir pela ilegitimidade do recorrente, com a consequência da sua absolvição da instância (arts. 493.º, n.ºs 1 e 2 e 494.º, alínea e), ambos do CPC), assim se dando provimento ao recurso interposto.

8.2. Um outro problema é o que respeita à condenação do recorrente a pagar as despesas hospitalares ocasionadas com os cuidados de saúde prestados à vítima.
O recorrente entende que, também aqui, é parte ilegítima. O réu hospital, por seu turno, na resposta ao recurso, alega que, nesta parte, o fundamento da obrigação de indemnizar se encontra no art. 483.º do CC – responsabilidade civil por factos ilícitos nos termos gerais – e que pediu o pagamento de tais despesas com base no disposto nos arts. 5.º e 6.ºdo DL 218/99, de 15/06.
Será assim?
O referido diploma legal veio regular a matéria de cobrança de dívidas por cuidados de saúde prestados pelas instituições e serviços integrados no Serviço Nacional de Saúde, pretendendo assim obviar às dificuldades geradas com a regulamentação anterior, baseada na natureza executiva conferida às certidões de dívida emitidas pelos hospitais e que, ao contrário do que se esperava, redundou num acréscimo de problemas e em menor celeridade (do proémio).
No art. 6.º, consagrou-se a faculdade de tais instituições poderem “constituir-se partes civis em processo penal relativo a facto que tenha dado origem à prestação dos cuidados de saúde, para a dedução do pagamento das respectivas despesas”. Foi com base nele que o réu Hospital de São Teotónio veio ao processo-crime formular o pedido do pagamento das despesas provocadas com a prestação de cuidados de saúde com a vítima.
Porém, o diploma em causa aplica-se aos casos de responsabilidade civil nos termos gerais, tendo em vista a obtenção do pagamento das referidas despesas de um terceiro (o lesante) que a elas tenha dado origem por intermédio de um facto que tenha praticado e que pode ser um facto ilícito. É preciso não esquecer, todavia, que, no caso dos autos, estamos em face de um acto de gestão pública, como acima foi explanado, mais concretamente, um acto médico praticado por um funcionário da própria pessoa colectiva pública no exercício das suas funções e por causa delas. Ora, conquanto que, na aparência, o referido diploma pareça abranger todas as situações em que seja possível estabelecer um nexo causal entre um facto ilícito e um dano indemnizável sofrido pela instituição de saúde (despesa de assistência médica), o certo é que a disposição indicada (art. 6.º) tem de ser interpretada, dentro do sistema, de acordo com os critérios gerais que regulam a responsabilidade civil dos funcionários.
Nos termos do art. 271.º, n.º 1 da CRP, «os funcionários são responsáveis civil, criminal e disciplinarmente pelas acções ou omissões praticadas no exercício das suas funções e por causa desse exercício de que resulte violação de direitos ou interesses protegidos dos cidadãos.” Da interpretação desse normativo, conjugada com o art. 22.º da CRP (que prevê a responsabilidade das entidades públicas, em forma solidária, com os titulares de órgãos, funcionários e agentes, por acções ou omissões praticadas no exercício das suas funções e por causa desse exercício, de que resulte violação dos direitos, liberdades e garantias ou prejuízo para outrem), é de supor que a responsabilidade civil dos funcionários opera nas relações da Administração perante terceiros (danos causados a outrem).
O que bem se compreende, porque estamos perante a responsabilidade resultante de actos funcionais, isto é, de actos praticados no exercício das funções e por causa desse exercício. A admitir-se que a Administração poderia intentar acção de responsabilidade civil contra o seu funcionário por danos que a sua conduta ilícita tenha causado à própria esfera jurídica da entidade pública a que o funcionário se encontra adstrito, então o regime de responsabilidade aplicável teria de obedecer às regras gerais do DL 48051. O que significaria o seguinte:
- o funcionário só responderia quando tivesse actuado excedendo os limites das funções - responsabilidade total e exclusiva;
- quando a Administração pudesse exercer o direito de regresso (caso de actuação com culpa grave);
- quando fosse caso de responsabilidade solidária da Administração e do funcionário (actuação dolosa do funcionário).
Na verdade, seria incongruente, por exemplo, que o funcionário respondesse em todos os casos, pessoalmente, pelos danos provocados na esfera jurídica do Estado ou da pessoa colectiva de que depende funcionalmente, e já em relação a danos praticados em terceiros só respondesse pessoalmente em certos casos (excesso dos limites das funções), assumindo o Estado ou a pessoa colectiva a responsabilidade exclusiva ou solidária, noutros (actuação com culpa leve ou actuação dolosa).
Por conseguinte, voltando a frisar a ideia atrás expressa, o diploma legal (DL 218/99), com base no qual (art. 6.º) o Hospital demandante veio peticionar do seu funcionário o reembolso das despesas efectuadas com a prestação de cuidados de saúde à vítima, não se aplica à situação concreta, pois esse diploma tem apenas relevância no âmbito das relações externas do Estado ou pessoa colectiva pública com um terceiro que tenha dado origem com a prática de um facto ilícito a despesas com a prestação de cuidados de saúde ao lesado, constituindo-se (aquele terceiro, ou a respectiva seguradora) na obrigação de indemnizar essas despesas.
Por outro lado, a responsabilidade civil do funcionário por actos praticados no exercício das suas funções e por causa desse exercício também não se rege pelo art. 483.º e ss. do CC, como parece pretender o Hospital recorrido, nem pelas disposições do arts. 500.º do mesmo diploma legal (relação entre comitente e comitido), por tais normativos regularem a obrigação de indemnizar com base em factos ilícitos praticados no âmbito da gestão privada.
Ora, o facto ilícito invocado no pedido formulado pelo Hospital consistiu num acto médico de um funcionário seu, praticado no exercício da função e por causa desse exercício. Os danos provocados em consequência desse acto (no caso, omissão de acto adequado e exigível) ao próprio Hospital só por via do direito de regresso podem ser exigidos, nos termos e condições atrás enunciados, ou seja: no caso de o agente ter procedido com diligência ou zelo manifestamente inferiores àqueles a que se achava obrigado em razão do cargo.
Esta última condição é, aliás, constitutiva do próprio direito que o autor/demandante se arroga, não podendo deixar de ser alegados e provados os respectivos factos.
O que se segue é que a responsabilidade que se pretende efectivar situa-se no âmbito das relações internas entre a pessoa colectiva pública Hospital e um seu funcionário, por força da prática de um acto qualificado como de gestão pública e no domínio de uma relação que assume carácter administrativo (prosseguindo fins próprios da Administração).
Nesta perspectiva, os tribunais judiciais não são materialmente competentes para conhecer do caso. Dispõe o art. 101.º do CPC: A infracção das regras de competência em razão da matéria e da hierarquia e das regras de competência internacional, salvo quando haja mera violação dum pacto privativo de jurisdição, determina a incompetência absoluta do tribunal.
Ora, a incompetência absoluta do tribunal (…) deve ser suscitada oficiosamente pelo tribunal em qualquer estado do processo, enquanto não houver sentença com trânsito em julgado proferida sobre o fundo da causa. (art. 102.º, n.º 1 do CPC).
A verificação da incompetência absoluta do tribunal implica a absolvição do réu da instância (art. 105.º, n.º 1 do mesmo diploma legal).


III. DECISÃO
9. Nestes termos, acordam em conferência na Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça em
- Conceder provimento ao recurso interposto pelo arguido/demandado AA, revogando a decisão recorrida na parte em que o condenou
- solidariamente com o Hospital de São Teotónio, S.A., no pagamento às demandantes BB e CC, da quantia de € 20.000 (vinte mil euros), acrescendo a de € 750,00 (setecentos e cinquenta euros), à assistente CC, e juros de mora, à taxa legal, desde a notificação do pedido cível até efectivo e integral pagamento, e ainda
- no pagamento ao demandante Hospital de São Teotónio, S.A, da quantia global de € 30.374,30 (trinta mil, trezentos e setenta e quatro euros e trinta cêntimos), acrescida dos juros moratórios, à taxa legal, vencidos e vincendos, desde a notificação do pedido cível, até integral e efectivo pagamento.
absolvendo-o da instância no tocante a tais pedidos cíveis (por ilegitimidade passiva no primeiro caso e por incompetência absoluta do tribunal, no segundo).

10. Custas cíveis, proporcionalmente, pelos demandantes BB e CC, e pelo Hospital de São Teotónio.

Supremo Tribunal de Justiça, 14 de Julho de 2010

Rodrigues da Costa (relator)
Arménio Sottomayor