Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
4452/13.0TBVLG.P1.S1
Nº Convencional: 1.ª SECÇÃO
Relator: JORGE DIAS
Descritores: RESPONSABILIDADE EXTRACONTRATUAL
ACIDENTE DE VIAÇÃO
FACTO ILÍCITO
CÁLCULO DA INDEMNIZAÇÃO
DANOS PATRIMONIAIS
DANO BIOLÓGICO
DANOS FUTUROS
PERDA DE CAPACIDADE DE GANHO
DANOS NÃO PATRIMONIAIS
EQUIDADE
INCAPACIDADE PERMANENTE ABSOLUTA
Nº do Documento: SJ
Data do Acordão: 03/14/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: CONCEDIDA A REVISTA
Sumário :
I - Na determinação do montante da justa indemnização destinada a ressarcir danos futuros, perante a constatação da impossibilidade de averiguar o valor concreto dos danos, tem a jurisprudência recorrido ao juízo de equidade a que se reporta o art. 566.º, n.º 3, do CC, a partir dos elementos de facto apurados, conjugados com diversos critérios de cálculo de natureza instrumental.

II - Em caso de julgamento segundo a equidade, devem os tribunais de recurso limitar a sua intervenção às hipóteses em que o tribunal recorrido afronte, manifestamente, aquelas regras.

III - Tendo ficado provado que a autora ficou incapacitada para desempenhar a profissão que exercia, mas compatível com o exercício de outras profissões da área da sua preparação técnico profissional que envolvam tarefas com pouca exigência física ao nível de força muscular com os membros superiores, postura curvada ou bipedestação, mas passados nove anos ainda não tinha retomado qualquer atividade profissional, a determinação da indemnização nesta sede deve ser calculada com base no rendimento anual.

IV - Exercendo a autora a profissão de esteticista e não se apurando quanto auferia no exercício dessa atividade, tem de se entender que auferiria pelo menos o equivalente ao salário mínimo nacional.

V - Ponderados todos os factos apurados, o tempo decorrido desde a data do acidente até à consolidação médico-legal das lesões, a incapacidade para a autora continuar a exercer a sua atividade profissional, a incapacidade geral de 26%, mas que na prática equivale a uma situação de incapacidade total permanente para o trabalho (dada a dificuldade em conseguir outro trabalho compatível com a sua diminuída capacidade física e que não conseguiu pelo menos 9 anos), afigura-se ser justa e adequada a fixação de uma indemnização por dano patrimonial futuro por perda da capacidade de ganho desde a data do sinistro no montante de 200.000,000.

Decisão Texto Integral:

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça, 1ª Secção Cível.

AA, divorciada, contribuinte fiscal n.º ..., residente na Rua ..., ... ..., veio intentar esta ação declarativa sob a forma comum (para efetivação de responsabilidade civil em consequência de acidente de viação) contra Fidelidade, Companhia de Seguros SA, com sede no Largo ..., ... ..., em consequência de acidente de viação ocorrido no dia 15 de Agosto de 2013 em ..., ..., concluindo o seu articulado formulando o seguinte pedido:

“Termos em que deve a presente acção ser julgada procedente por provada e, em conformidade, ser Ré condenada a pagar à Autora:

i. a quantia global de € 33.540,61 (trinta e três mil, quinhentos e quarenta euros e sessenta e um cêntimos), a título de indemnização pelos danos patrimoniais e não patrimoniais decorrentes do sinistro em crise nos presentes autos;

ii. as quantias a liquidar em ampliação do pedido ou execução de sentença e referente aos danos alegados nos artigos 61.º, 66.º, 71.º, 72.º, 74.º, 85.º, 86.º, 95.º e 96.º desta peça processual;

iii. a quantia a título de juros de mora calculados à taxa legal e contabilizados desde a citação até efectivo e integral pagamento;

iv. no pagamento das custas do presente processo e na procuradoria devida.”


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Contestou a ré aceitando o contrato de seguro do veículo automóvel interveniente no acidente, aceitando ainda a responsabilidade do seu segurado na produção do mesmo e obrigação de indemnizar, mas impugnando os demais factos invocados pela autora, no que se refere aos efetivos danos e sua valoração (tudo também como melhor consta do seu articulado de fls. 37 e ss., que igualmente se dá por integralmente reproduzido).

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A fls. 217 e ss., mostra-se realizada a audiência prévia, tendo sido proferido despacho saneador do processo com fixação do objeto da ação e enunciação dos temas da prova, que não mereceram reclamação.

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Posteriormente, por requerimento de fls. 1029 e ss. veio a autora ampliar e concretizar os seus pedidos que havia formulado ilíquidos, pedindo a condenação da ré a pagar-lhe a quantia global de 384.835,66 euros.

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Por despacho de 17.06.2021, o Juízo Local Cível ... declarou-se incompetente para conhecer da ação face ao valor do pedido assim ampliado, sendo o processo remetido a este juízo central cível ... – Juiz ....

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Já neste juízo central cível, foi admitida a ampliação e liquidação dos pedidos, conforme despacho de fls. 1060.

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Realizado o julgamento, foi proferida sentença com o seguinte dispositivo:

“Tudo ponderado, nos termos expostos e ao abrigo das disposições legais acima referidas, julgo a acção parcialmente procedente, por também parcialmente provada e, consequentemente, decido:

A- Condenar a ré Fidelidade – Companhia de Seguros SA, a pagar à autora AA, a quantia global de 253.415,66 euros (duzentos e cinquenta e três mil quatrocentos e quinze euros e sessenta e seis cêntimos), sendo 50.000,00 euros a título de danos não patrimoniais e 203.415,66 euros a título de danos patrimoniais, quantia global esta acrescida de juros de mora à taxa legal desde a citação e até pagamento;

B- Ao valor acima referido, será deduzido o montante recebido pela autora a título de arbitramento de reparação provisória (art. 388 nº 3 do Código de Processo Civil, cfr. processo apenso);

C- Absolver a ré do demais peticionado pela autora.


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Não se conformando com o assim decidido vieram interpor recurso de apelação, a ré, que mereceu a seguinte deliberação do Tribunal da Relação:

“Acordam, pois, os juízes que compõem a 3ª Secção (... Secção Cível) do Tribunal da Relação do Porto, em conceder parcial provimento ao recurso e revogar a sentença recorrida, com a consequente condenação da Apelante /Ré a pagar à Apelada /Autora a quantia global de € 150.273,66 (cento e cinquenta mil, duzentos e setenta e três euros e sessenta e seis cêntimos) acrescida de juros moratórios vencidos e vincendos calculados nos termos supra descritos, até integral pagamento.


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Agora inconformada a autora com o decidido pela Relação, interpõe recurso de Revista para este STJ, formulando as seguintes conclusões:

“(i) Não pode a aqui Recorrente aceitar o juízo equitativo efetuado pelo tribunal recorrido, quando veio a fixar em € 106.858,00 (cento e seis mil, oitocentos e cinquenta e oito euros) o montante indemnizatório pelas consequências patrimoniais da afetação da capacidade geral ou funcional de trabalho (em vez do montante dos € 200.000,00 (duzentos mil euros) atribuído pela 1.ª instância;

(ii) Deve o tribunal ad quem, considerar que o juízo equitativo formulado pelo tribunal recorrido, na fixação do montante indemnizatório pelas consequências patrimoniais da afetação da capacidade geral ou funcional da lesada, apresenta uma falha na ponderação dos contornos do caso concreto e, consequentemente, deve revogar o mesmo, fixando, em sua substituição, o valor da indemnização que veio a ser atribuído pelo tribunal de 1.ª instância, ou seja, € 200.000,00 (duzentos mil euros), quantia essa que engloba, quer a perda de rendimentos ou benefícios durante o período de convalescença em seguida ao acidente quer a posteriori perda da capacidade de ganho após alta médica;

(iii) De igual modo, a Recorrente também não poderá aceitar o valor da indemnização atribuída a título do dano não patrimonial que veio a ser atribuído pelo tribunal recorrido (€ 40.000,00);

(iv) Na verdade, considerando toda a factualidade considerada provada, ponderando os parâmetros elencados nesta instância recursiva, incluindo os da jurisprudência, e dando especial enfoque aos danos e às dores físicas, à gravidade das lesões e à sua complexidade, ao prejuízo de afirmação pessoal, ao dano estético e ao sofrimento vivenciado desde o acidente, as sequelas e limitações que padece, a perda da alegria de viver e ao dano de afirmação pessoal, entende a Recorrente que o valor fixado a esse título pelo tribunal de primeira instância é o mais adequado à situação concreta pelo que, deverá o tribunal ad quem, fixar este dano nos € 50.000,00 (cinquenta mil euros);

(v) Acresce que, estando em causa critérios de equidade, as indemnizações arbitradas pelo tribunal de primeira instância apenas deverão ser alteradas quando afrontem manifestamente as regras da boa prudência, do bom senso prático, da justa medida das coisas e de criteriosa ponderação das regras da vida;

(vi) Ademais, os valores indemnizatórios devem ter carácter significativo, não podendo assumir feição meramente simbólica;

(vii) Comparando as indemnizações fixadas pelo tribunal de primeira instância e aquelas que vieram a ser atribuídas pelo tribunal da Relação, não consegue a Autora perceber em que medida é que a decisão proferida pelo tribunal de primeira instância afronta manifestamente as regras da boa prudência, do bom senso prático, da justa medida das coisas e de criteriosa ponderação das regras da vida;

(viii) A decisão em crise, constitui uma violação do disposto nos artigos 494.º, 496.º, 562.º, 564.º e 566.º, n.º 2 do Código Civil.

Termos em que, deve o presente recurso de revista ser julgado totalmente procedente por provado e, nessa conformidade, deverá o tribunal ad quem revogar a decisão recorrida, substituindo-a por outra que considere os termos expostos nas conclusões supra, por ser da mais elementar Justiça.

Responde a ré e conclui a sua alegação pedindo que seja negado provimento ao recurso de revista, mantendo-se o decido pela Relação do Porto no acórdão recorrido.


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O recurso foi admitido.

Cumpre apreciar e decidir.


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Nas Instâncias foram julgados como provados e não provados, os seguintes factos:

“A sentença recorrida deu como assentes os seguintes factos que se passam a transcrever:

1- No dia 15 de Agosto de 2013, pelas 18:30 horas (hora ...), na Avenida ..., em ..., ..., ..., no sentido poente - nascente, ocorreu um acidente de viação, em que foi interveniente apenas o veículo pesado de passageiros, de marca Mercedes, modelo ..., de matrícula ..-..-TR, propriedade de E..., Limitada, com sede na Rua ..., ..., G...;

2- O veículo pesado de passageiros era conduzido por motorista no exercício da sua actividade profissional, em cumprimento de prévias ordens e instruções que a proprietária do veículo lhe havia transmitido e por um itinerário por esta definido;

3- A autora, AA, seguia na última fila de passageiros desse veículo, na parte vulgarmente denominada de "coxia", fazendo uso do respectivo sistema de retenção, vulgo cinto de segurança;

4- A Avenida ..., atento o sentido poente - nascente, descreve-se em reta de boa visibilidade, a qual tem início num entroncamento existente com a Avenida ... e termina na ...;

5- O trânsito nesse entroncamento é regulado por uma placa giratória - vulgo rotunda – a qual se situa numa passagem superior;

6- A Avenida ... é constituída por seis corredores de circulação, sendo três afectos ao sentido de marcha poente - nascente e os outros dois estão reservados ao sentido de marcha contrário, encontrando-se delimitados ao centro por um separador central em cimento com menos de 1 metro de largura, onde se encontram implantados os postes de iluminação pública e alguma sinalização vertical, sendo o seu piso em asfalto;

7- A velocidade máxima permitida naquele local era de 30 km/horários, já que existia um sinal vertical a informar os condutores desse limite máximo;

8- O piso, no momento do acidente, encontrava-se em bom estado de conservação, sendo bom o estado do tempo;

9- Momentos antes da ocorrência do acidente de viação em apreço nos presentes autos, o veículo de matrícula TR transitava pela Avenida ..., no sentido poente - nascente, pelo corredor de circulação mais à direita, atento o seu sentido de marcha, a uma velocidade não concretamente apurada, mas não inferior a 50 km/horários;

10- Quando se encontrava numa posição paralela a uma entrada de um parque de estacionamento subterrâneo que se apresentava à sua direita, situada imediatamente a seguir ao entroncamento formado pela artéria por onde transitava e a Rúa ..., o condutor do veículo pesado de passageiros, deparou-se com um semáforo o qual se encontra colocado precisamente por cima de uma passadeira para peões, que dista no entroncamento referido supra não mais de 20/30 metros;

11- Essa passadeira encontrava-se bem delimitada no pavimento através de marcas rodoviárias e, bem assim, de um relevo com cerca de 20/25 cm de altura;

12- Essa lomba estava devidamente sinalizada através de um sinal vertical;

13- Sucede porém que, quando o veículo pesado de passageiros se encontrava a não mais de 10/15 metros da sobredita passadeira para peões, apercebe-se que a sinalização semafórica está a passar de verde para amarelo e, pretendendo aproveitar a abertura do sinal, acelerou a marcha;

14- Contudo, o seu condutor não contava com o relevo do pavimento, pelo que, o veículo pesado de passageiros ao passar sobre a passadeira dá um forte solavanco, projectando os passageiros que nele eram transportados, pese embora os mesmos utilizassem o respectivo cinto de segurança;

15- Esse movimento brusco do veículo, exponenciado pelo facto de a Autora ser transportada na coxia do veículo, veio a provocar danos corporais à autora;

16- A proprietária do veículo de matrícula TR, através da celebração de um contrato de seguro de responsabilidade civil automóvel titulado pela apólice n.º ...73, transferiu a responsabilidade civil emergente da circulação desse veículo para a aqui ré, encontrando-se tal seguro válido e eficaz no momento do acidente;

17- Em consequência do acidente, a autora AA, sofreu as consequências e sequelas melhor descritas no relatório pericial do INML de fls. 1001 a 1009, incluindo os esclarecimentos de fls. 1017, que se dão por integralmente reproduzidos e aqui integrados nos seus dizeres e que formulam as seguintes conclusões:

- A data da consolidação médico-legal das lesões é fixável em 14.02.2017;

- Período de Défice Funcional Temporário Total fixável num período de 29 dias;

- Período de Défice Funcional Temporário Parcial fixável num período de 1250 dias;

- Período de Repercussão Temporário Parcial na Actividade Profissional Total fixável num período total de 1279 dias;

- Quantum Doloris fixável no grau 5/7;

- Défice Funcional Permanente da Integridade Físico-Psíquica fixável em 26 pontos;

- As sequelas descritas são, em termos de Repercussão Permanente na Actividade Profissional, impeditivas do exercício da actividade profissional habitual, sendo no entanto compatíveis com outras profissões da área da sua preparação técnico profissional que envolvam tarefas com pouca exigência física ao nível de força muscular com os membros superiores, postura curvada ou em bipedestação, tais como formadora e recepcionista, conforme proposta de avaliação efectuada no CRPG;

- Dano Estético Permanente fixável no grau 2/7;

- Repercussão permanente na Actividade Sexual fixável no grau 3/7;

18- A autora trabalhava por conta própria como esteticista, em estabelecimento comercial próprio e atendendo clientes no seu domicílio, utilizando os proveitos que obtinha para satisfação das necessidades próprias e do seu agregado familiar, que incluía um filho menor, àquela data;

19- Durante o período de incapacidade, a autora teve despesas por necessidade de ajuda de terceira pessoa para tarefas do dia-a-dia, como sejam, lavar-se, vestir-se ou calçar-se;

20- Profissionalmente, a autora ainda não regressou à vida activa, após o acidente;

21- Em consequência do acidente, a autora teve despesas médicas, medicamentosas e de deslocações para tratamentos médicos no valor global de 1.515,66 euros, de que ainda não foi reembolsada pela ré.


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A sentença não deu como provado o quantitativo concreto do valor médio mensal de rendimentos que a autora obtinha da sua actividade profissional.

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Conhecendo:

São as questões suscitadas pela recorrente ré, e constantes das respetivas conclusões, que o tribunal de recurso tem de apreciar – artigos 635º, nº 3 a 5 e 639º, nº 1, do C.P.C.     

Questiona a recorrente:

- O juízo equitativo efetuado pelo tribunal recorrido na fixação do montante indemnizatório pelas consequências patrimoniais da afetação da capacidade geral ou funcional de trabalho para a autora em consequência do acidente;

- O valor da indemnização atribuída a título do dano não patrimonial que veio a ser atribuído pelo tribunal recorrido;


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- Apreciação do quantum indemnizatório fixado pelo Tribunal a quo a título de dano moral.

Nesta sede a sentença arbitrou a quantia de €50.000 e, o acórdão recorrido entendeu como adequada a quantia de €40.000.

Fundamentou o acórdão recorrido:

“As indemnizações por dano não patrimonial devem ter em conta um conjunto de elementos que vão desde a idade do acidentado, às lesões por si sofridas e respectivas sequelas, ao sofrimento que lhe provocaram e às consequências que advieram para a sua vida futura.

Tudo isto deve ser analisado de modo equilibrado e equitativo de modo a que não caiamos em indemnizações miserabilistas e desprestigiantes para os Tribunais nem em indemnizações que por tão excessivas não tenham correspondência com a realidade e correspondam por isso a um enriquecimento ilegítimo.

Fazendo um paralelismo com as indemnizações que vêm sendo arbitradas pelo direito à vida (cfr. critérios fixados pelas Portarias 377/2008 e 679/2009), afigura-se-nos exagerado o montante indemnizatório atribuído pelo Tribunal a quo a tal título - € 50.000,00 -, pelo que se substitui este por um montante quantitativo inferior que se fixa em definitivo em € 40.000,00, de acordo com o disposto no nº 3 do artigo 496.º do Código Civil.

Nos termos do art. 496º, nº 1, do Cód. Civil, “na fixação da indemnização deve atender-se aos danos não patrimoniais que, pela sua gravidade, mereçam a tutela do direito”.

E o n.º 3 do referido art. 496º e o art. 494º do mesmo diploma dispõem que a indemnização por danos não patrimoniais seja fixada de forma equitativa pelo tribunal, tendo em atenção o grau de culpabilidade do agente, a situação económica e as demais circunstâncias do caso.

Conforme Ac. de 07-10-2021, por nós relatado, no Proc. nº 235/14.9T8PVZ.P1.S1 “A fixação da indemnização em termos de equidade deve ter em conta as regras de boa prudência, de bom senso prático, de justa medida das coisas e de criteriosa ponderação das realidades da vida. Em caso de julgamento segundo a equidade, devem os tribunais de recurso limitar a sua intervenção às hipóteses em que o tribunal recorrido afronte, manifestamente, aquelas regras”.

Ensina Antunes Varela in “Das Obrigações em Geral”, Vol. I, 10.ª Edição, Almedina, pág. 605, nota 4, seguido pela jurisprudência dos nossos tribunais, que o juízo de equidade requer do julgador que tome “em conta todas as regras da boa prudência, do bom senso prático, da justa medida das coisas e da criteriosa ponderação das realidades da vida”, sem olvidar que a “indemnização” por tais danos tem natureza mista, pois que visa, ainda, reparar o dano, mas também reprovar a conduta lesiva.

Como refere o Ac. do STJ de 16-12-2017, no Proc. nº 1509/13.1TVLSB.L1.S1 “Com efeito, ante a imaterialidade dos interesses em jogo, a indemnização dos danos não patrimoniais não pode ter por escopo a sua reparação económica. Visa sim, por um lado, compensar o lesado pelo dano sofrido, em termos de lhes proporcionar uma quantia pecuniária que permita satisfazer interesses que apaguem ou atenuem o sofrimento causado pela lesão; e, por outro lado, servir de sancionamento da conduta do agente”.

Face à matéria de facto provada concordamos com o acórdão recorrido ao referir-se ao acidente como “impressivo atropelamento”.

São factos relevantes para apuramento destes danos (que reproduzimos sinteticamente):

- O acidente ocorreu em 15 de Agosto de 2013;

- Em consequência do acidente a autora sofreu lesões e:

- A data da consolidação médico-legal das lesões é fixável em 14.02.2017;

- Período de Défice Funcional Temporário Total fixável num período de 29 dias;

- Período de Défice Funcional Temporário Parcial fixável num período de 1250 dias;

- Período de Repercussão Temporário Parcial na Actividade Profissional Total fixável num período total de 1279 dias;

- Quantum Doloris fixável no grau 5/7;

- Défice Funcional Permanente da Integridade Físico-Psíquica fixável em 26 pontos;

- As sequelas descritas são, em termos de Repercussão Permanente na Actividade Profissional, impeditivas do exercício da actividade profissional habitual (esteticista) sendo, no entanto, compatíveis com outras profissões da área da sua preparação técnico profissional que envolvam tarefas com pouca exigência física ao nível de força muscular com os membros superiores, postura curvada ou em bipedestação, tais como formadora e recepcionista, conforme proposta de avaliação efectuada no CRPG;

- Dano Estético Permanente fixável no grau 2/7;

- Repercussão permanente na Actividade Sexual fixável no grau 3/7;

- Durante o período de incapacidade a autora teve necessidade de ajuda de terceira pessoa para tarefas do dia-a-dia, como sejam, lavar-se, vestir-se ou calçar-se;

- Profissionalmente, a autora ainda não regressou à vida activa, após o acidente (reportado à data do julgamento acrescentamos nós);

A autora tinha à data da sentença (8 de março 2022) 49 anos, pelo que a sua idade à data do acidente era de 40 anos. Constando da sentença, na fundamentação de direito, mas que não deixa de ser um facto e não impugnado, “… mas devendo levar-se em linha de conta que, com a sua idade (49 anos de idade, ao dia de hoje) …”, sendo a sentença datada de “Porto, 08.03.2022”, e o acórdão recorrido reporta-se, à “idade de 44 anos à data da alta”.

Tendo em conta estes factos e atenta a idade da autora com apenas 40 anos quando do acidente e, segundo as regras da experiência, o tipo de mazelas sofridas são para a vida e com tendência para se agravarem com o adiantar da idade, não se tem por desajustada aos padrões seguidos pela jurisprudência a indemnização de 50.000,00€ fixada na sentença, que não afrontava as regras da prudência e equidade, pelo que não deveria se reduzida para os 40.000,00€ arbitrados no acórdão recorrido.

Foi longo o tempo de incapacidade, um mês de incapacidade total e cerca de 3 anos e meio de incapacidade parcial.

São bastante significativas as dores que a autora sofreu, 5/7.

Tem relevo o défice funcional permanente, 26% e impeditivo de a autora exercer a sua profissão como esteticista.

A autora sentiu-se incapacitada de, por si só, ser totalmente autónoma no seu dia a dia, precisando de ajuda de terceiros para tratar da sua higiene, se vestir e calçar.

Repercussão permanente em grau de 3/7 na sua atividade sexual, quando tinha apenas 40 anos de idade.

São mazelas graves e merecedoras da tutela do direito e, a quantia arbitrada pela sentença não ofendia os princípios da equidade e da prudência devida, pelo que razões não havia para essa quantia ser diminuída no acórdão recorrido.

Nem há que fazer paralelismo, como faz o acórdão recorrido, com o dano morte e critérios fixados pelas Portarias 377/2008 e 679/2009.

Devem ser observados os padrões de indemnização seguidos pela prática jurisprudencial, procurando - até por uma questão de justiça relativa - uma aplicação tendencialmente uniformizadora ainda que evolutiva do direito, como aliás impõe o n.º 3 do artigo 8º do Cód. Civil.

Não se pode atender só à prática seguida pela jurisprudência de equivaler indemnizações para factos semelhantes e assim fazer estagnar os montantes indemnizatórios, porque os termos de comparação se referem a situações passadas, devendo ser tida em conta a evolução, fazendo o acompanhamento do aumento do custo de vida (inflação) e o aumento dos rendimentos médios das pessoas.

E as indemnizações a atribuir por danos não patrimoniais não podem ser meramente simbólicas, devendo antes mostrar-se adequadas ao fim a que se destinam, ou seja, atenuar a dor sofrida pelo lesado e também reprovar, no plano civilístico, a conduta do agente.

Pelo que se julga procedente o recurso neste segmento, repristinando-se a quantia arbitrada pela sentença.


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Montante indemnizatório pelas consequências patrimoniais da afetação da capacidade geral ou funcional de trabalho para a autora em consequência do acidente.

Entendeu o acórdão recorrido:

“…importa referir que, como consequência directa e necessária do acidente, a Apelada ficou com a incapacidade descrita no item 17 do probatório, que aqui se dá por reproduzido, ficando totalmente incapacitada para a actividade profissional que exercia, podendo exercer outras actividades “com pouca exigência física”.

Porém, dever-se-á levar em linha de conta que, com a sua idade e habilitações técnicas, se tornará difícil a readaptação para outro tipo de trabalho que não exija esforços físicos.

Ora, à data do acidente ocorrido em 15 de Agosto de 2013, a Autora tinha então 40 anos de idade (nasceu em .../.../1972).

Foi considerada a data de 14/02/2017 como sendo a da consolidação médico-legal das lesões, tinha então a Autora 44 anos.

O Tribunal a quo considerou, e bem, que a Autora não logrou provar o montante de rendimentos que efectivamente auferia mensalmente à data do acidente.

E considerou o salário mínimo nacional como a referência para o cálculo da indemnização pelo dano patrimonial, incluindo as perdas de rendimentos desde a data do acidente e o dano patrimonial futuro.

(…)

A priori, desde já se nos afigura que o valor encontrado de € 200.000,00, a título de danos emergentes, não se mostra minimamente fundamentado.

Desde logo, considerando a referência do salário mínimo nacional, as alegadas perdas de rendimentos da Autora até à data da alta, em 14 de Fevereiro de 2017, contabilizam o valor de € 21.258,00 ( 2013: 4,5 meses x € 485,00 = € 2.182,50; 2014: 12 meses x € 485,00 = € 5.820,00; 2015: 12 meses x € 505,00 = € 6.060,00; 2016: 12 meses x € 530,00 = € 6.360,00; 2017: 1,5 meses x € 557,00 = € 835,50.).

Este valor a que chegamos supra é de contabilizar na totalidade a título de danos patrimoniais sofridos até à data da alta (14 de Fevereiro de 2017), pelo que sempre será a Apelante condenada a pagar o mesmo a título de danos patrimoniais.

Já relativamente ao dano patrimonial futuro, as sequelas de que a Autora padece não a impedem de exercer toda e qualquer profissão, pelo que o Tribunal a quo não poderia ter considerado que a Autora tem direito a receber indemnização equivalente a uma situação de total incapacidade para o trabalho, suportando a Ré, aqui Apelante, um valor correspondente a um valor mensal de salário mínimo nacional até ao final da vida activa da Autora.

Na verdade, a Autora tem condições para exercer outras actividades dentro da sua formação e habilitações profissionais, não sendo a idade actual de 49 anos (à data da sentença) impedimento para tal.

Isto considerando:

- os 26 pontos de incapacidade;

- a compatibilidade com o exercício de outras profissões da área da sua preparação técnico profissional que envolvam tarefas com pouca exigência física ao nível de força muscular com os membros superiores, postura curvada ou bipedestação, tais como formadora e recepcionista;

- a idade de 44 anos à data da alta;

- a idade de reforma actual de 66 anos e 3 meses;

- a esperança média de vida;

- a circunstância da indemnização ser paga de uma só vez;

- o valor do salário mínimo nacional x 12 meses;

Em face da matéria de facto que vem dada como provada, não se poderá sustentar que as sequelas de que Autora padece em consequência do presente sinistro venham a acarretar no futuro uma perda total e efectiva de rendimentos que justifique – tout court – a atribuição de uma indemnização por danos patrimoniais futuros nos termos em que foi fixada.

É certo que, discutida a questão dos autos, resultou demonstrado que em consequência do acidente a Autora padece de um défice funcional permanente da integridade físico-psíquica de 26 pontos e que as sequelas de que é portadora são incompatíveis com o exercício da sua actividade habitual, sendo no entanto compatíveis com outras profissões da área da sua preparação técnico profissional que envolvam tarefas com pouca exigência física ao nível de força muscular com os membros superiores, postura curvada ou em bipedestação, tais como formadora e recepcionista, conforme proposta de avaliação efectuada no CRPG.

Não resultou porém demonstrado nos autos que o sobredito défice funcional permanente vá acarretar uma efectiva perda de rendimentos do seu trabalho na mesma medida daquele défice, ou noutra, designadamente, uma perda total de rendimentos.

Não estando demonstrado o efectivo rebate nos rendimentos do seu trabalho, não assiste à Autora o direito a ser indemnizada nessa vertente, não havendo fundamento para que se recorra a tabelas financeiras, ou outros métodos de cálculo semelhantes, que aludem essencialmente aos sobreditos parâmetros indemnizatórios.

À Autora assiste, sim, o direito a ser ressarcida pela incapacidade de que padece, traduzida na diminuição da sua condição física. Essa diminuição física representa um dano específico e indemnizável, assente na penosidade adveniente da diminuição de capacidades e do maior esforço físico que a Autora terá de desenvolver na sua vida diária e profissional.

O chamado “dano biológico” justifica uma indemnização com vista a compensar as consequências negativas futuras que esse dano determina na vida do lesado em geral.

Ora, face ao enquadramento factual resultante da decisão sob censura, não é previsível saber qual o dano patrimonial futuro decorrente do défice permanente de integridade físico-psíquico (artigo 564.º n.º 2 do Código Civil), o que é o mesmo que dizer que nenhum dano haverá a indemnizar neste campo, ou a este título.

Destarte, o dano biológico da Autora deverá ser compensado tendo em conta o défice de 26 pontos na fixação do montante indemnizatório, assumindo aqui especial relevo os critérios de equidade.

Posto isto, na ponderação do quantum da indemnização, o julgador não pode deixar de ter em consideração alguns elementos, destacando-se, por exemplo, as tabelas financeiras de cálculo de danos patrimoniais que se repercutam no futuro, que podem servir como critério coadjuvante, permitindo aferir o máximo da indemnização que seria devida para o caso de se verificar uma efectiva perda de rendimentos.

E não será de desprezar o contributo dos critérios estabelecidos na legislação respeitante à quantificação das indemnizações devidas pelas Seguradoras na fase extrajudicial em resultado de um acidente de viação.

(…)

De acordo com os critérios estabelecidos na Portaria 679/2009, de 25 de Junho, que alterou a Portaria acima citada (Portaria nº 377/2008) a compensação do dano biológico da Autora acrescido dos parâmetros previstos para uma incapacidade para a profissão habitual com reconversão profissional deve situar-se em quantia que, num juízo de equidade, fixamos em € 80.000,00.

Aqui chegados, numa perspectiva de ressarcimento de uma efectiva perda de rendimentos, e considerando uma esperança de vida activa de 26 anos (44 anos + 26 anos = 70 anos), importa destacar o seguinte:

- Em primeiro lugar, atender aos valores actualizados do salário mínimo nacional ao longo dos últimos 7 anos (2015-2022), bem superiores à média dos restantes salários praticados no sector público que serve de referente ao sector privado, decorrente de uma necessária convergência/ aproximação aos valores praticados na generalidade dos países da União Europeia. Os valores do salário mínimo nacional foram assim actualizados nos últimos anos na ordem de 4% / 5%, enquanto a inflação se fixava entre 1% / 2% ao ano.

- Em segundo lugar, atender ao fenómeno recente da inflação – no presente ano a valores próximos de 8% - cujos efeitos desconhecemos se se irão prolongar nos próximos anos e que repercussões irão ter em termos de perda efectiva de rendimentos. É sabido que a inflação elevada afecta sobretudo as classes mais desfavorecidas pelo facto de dependerem sobretudo de bens de primeira necessidade.

Tudo ponderado, tendo em conta os parâmetros previstos para uma incapacidade para a profissão habitual com reconversão profissional, o valor de € 80.000,00, que atribuímos a título de danos patrimoniais futuros, a partir de 14 de Fevereiro de 2017 - data da consolidação médico-legal das lesões -, até à idade de 70 anos , que completa em Outubro de 2042 - data limite para a reforma (25 anos e 8 meses de vida activa) -,deverá ter um coeficiente de valorização anual de 7% , cifrando a indemnização nesta parte no montante de € 85.600,00 ( € 80.000 + 7% = 85.600,00).

Nos termos do art. 562º do Cód. Civil, “quem estiver obrigado a reparar um dano deve reconstituir a situação que existiria, se não se tivesse verificado o evento que obriga à reparação”.

Na determinação do montante da justa indemnização destinada a ressarcir danos futuros, perante a constatação da impossibilidade de averiguar o valor concreto dos danos, tem a jurisprudência recorrido ao juízo de equidade a que se reporta o art. 566º, n.º 3, do Cód. Civil, a partir dos elementos de facto apurados, conjugados com diversos critérios de cálculo de natureza instrumental.

O art. 566º do Cód. Civil, consagra o princípio da reconstituição natural do dano, mandando o art. 562º reconstituir a situação hipotética que existiria se não fosse o facto gerador da responsabilidade e não sendo possível a reconstituição natural, não reparando a mesma integralmente os danos ou sendo excessivamente onerosa para o devedor, deve a indemnização ser fixada em dinheiro – nº1. do art. 566º.

E a indemnização pecuniária deve medir-se pela diferença entre a situação (real) em que o facto deixou o lesado e a situação (hipotética) em que ele se encontraria sem o dano sofrido, diferença que se estabelece entre a situação real atual e a situação hipotética correspondente ao mesmo momento.

Deve atender-se aos danos futuros, nº 2, do art. 564º, desde que previsíveis, sendo que o nº 3, do art. 566º, confere ao tribunal a faculdade de recorrer à equidade quando não seja possível, designadamente face à imprecisão dos elementos de cálculo, fixar o valor exato dos danos.

Assim, a lei prevê a indemnização dos danos futuros, exigindo tão só a sua previsibilidade.

Constitui entendimento da jurisprudência que a indemnização a arbitrar por tais danos patrimoniais futuros deve corresponder a um capital produtor do rendimento de que a vítima ficou privada e que se extinguirá no termo do período provável da sua vida, determinado com base na esperança média de vida e não apenas em função da duração da vida profissional ativa do lesado, até este atingir a idade normal da reforma.

Não havendo fórmula exata de cálculo destes danos, a solução encontrada deve ser mitigada, como já dito, com o recurso à equidade.

A fixação da indemnização em termos de equidade deve ter em conta as regras de boa prudência, de bom senso prático, de justa medida das coisas e de criteriosa ponderação das realidades da vida. Em caso de julgamento segundo a equidade, devem os tribunais de recurso limitar a sua intervenção às hipóteses em que o tribunal recorrido afronte, manifestamente, aquelas regras.

“IV. O juízo de equidade de que se socorrem as instâncias para a fixação de indemnizações por danos patrimoniais futuros e por danos não patrimoniais, alicerçado na ponderação das particularidades e especificidades do caso concreto, não integra, em rigor, a resolução de uma questão de direito, pelo que tal juízo prudencial e casuístico deverá, em princípio, ser mantido, salvo se o critério adoptado se afastar, de modo substancial e injustificado, dos padrões que, generalizadamente, se entende deverem ser adoptados numa jurisprudência evolutiva e actualística, abalando a segurança na aplicação do direito e o princípio da igualdade” – Ac. do STJ desta Secção, de 26-01-2021, no proc. nº 688/18.6T8PVZ.P1.S1.

A equidade desempenha um papel corretor e de adequação da indemnização decretada às circunstâncias do caso, nomeadamente quando, como é frequente, os tribunais recorrem a “cálculos matemáticos e tabelas financeiras.

Os danos futuros decorrentes de uma lesão física “se não reduzem à redução da sua capacidade de trabalho, já que, antes do mais, se traduzem numa lesão do direito fundamental do lesado à saúde e à integridade física; que, por isso mesmo, não pode ser arbitrada uma indemnização que apenas tenha em conta aquela redução. Nomeadamente, não pode ser considerada a relevância da lesão apenas com referência à vida activa provável do lesado; antes se há de considerar também o período posterior à normal cessação de actividade laboral, com referência à esperança média de vida (…)” (cfr. também os acórdãos deste Supremo Tribunal de 28 de Outubro de 1999, proc. nº 99B717, e de 25 de Junho de 2002, proc. nº 02A1321, disponíveis em www.dgsi.pt).

Esse recurso à equidade não afasta, todavia, a necessidade de observar as exigências do princípio da igualdade, o que implica a procura de uma uniformização de critérios, não incompatível, naturalmente, com a devida atenção às circunstâncias do caso.

É entendimento deste STJ que, não equivalendo a equidade a arbitrariedade, a fixação de indemnização com recurso a esse juízo não pode surgir como expressão de sensibilidades ou intuições meramente subjectivas do julgador, tendo antes de se alicerçar em factualidade donde se possa, com base em padrões sedimentados na experiência comum, chegar a um valor racional – neste sentido cfr. acórdão de 21-04-2016, Proc. n.º 2138/03.3TCSNT.L1.S1, em www.stj.pt

Da matéria de facto relevante e provada salienta-se:

- os 26 pontos de incapacidade;

- a compatibilidade com o exercício de outras profissões da área da sua preparação técnico profissional que envolvam tarefas com pouca exigência física ao nível de força muscular com os membros superiores, postura curvada ou bipedestação, tais como formadora e recepcionista;

- a idade de 44 anos à data da alta (40 à data do acidente);

- a esperança média de vida;

Importa referir, como faz o acórdão recorrido que, “Em segundo lugar, importa referir que, como consequência directa e necessária do acidente, a Apelada ficou com a incapacidade descrita no item 17 do probatório, que aqui se dá por reproduzido, ficando totalmente incapacitada para a actividade profissional que exercia, podendo exercer outras actividades “com pouca exigência física”.

Porém, dever-se-á levar em linha de conta que, com a sua idade e habilitações técnicas, se tornará difícil a readaptação para outro tipo de trabalho que não exija esforços físicos.” (sublinhado nosso).

O que se manifesta algo contraditório com o que o acórdão recorrido refere de seguida: “Em face da matéria de facto que vem dada como provada, não se poderá sustentar que as sequelas de que Autora padece em consequência do presente sinistro venham a acarretar no futuro uma perda total e efectiva de rendimentos que justifique – tout court – a atribuição de uma indemnização por danos patrimoniais futuros nos termos em que foi fixada.”

E, “Na verdade, a Autora tem condições para exercer outras actividades dentro da sua formação e habilitações profissionais, não sendo a idade actual de 49 anos (à data da sentença) impedimento para tal.

Ou, “a compatibilidade com o exercício de outras profissões da área da sua preparação técnico profissional que envolvam tarefas com pouca exigência física ao nível de força muscular com os membros superiores, postura curvada ou bipedestação, tais como formadora e recepcionista;

Relevante, como consta dos factos provados, é que a autora, pelo menos à data da sentença (8 de março de 2022) ainda não tinha retomado atividade profissional, “20- Profissionalmente, a autora ainda não regressou à vida activa, após o acidente;”, ou seja, em consequência do acidente a demandante nunca mais trabalhou.

Não tendo a autora conseguido regressar à vida ativa cerca de 9 anos após o acidente, cada vez se tornará mais difícil conseguir trabalho, dentro da sua formação e habilitações profissionais, e “com pouca exigência física”.

No caso concreto o défice funcional em percentagem de 26%, não só representa incapacidade total para o exercício da atividade que a autora exercia, como é limitativo para o exercício de outras atividades económicas, que à autora pudessem, entretanto, surgir na área da sua formação profissional. Aproxima-se de “situação de uma incapacidade total permanente para o trabalho”, como considerou o Ac. deste STJ de 1 de março de 2018, no Proc. nº 773/07.0TBALR.E1.S1, por o acidente ser causa de consequências extremamente negativas na possibilidade efetiva de a lesada vir a exercer atividade profissional alternativa.

Nessa medida, apesar de o défice ser de 26%, tal défice não pode deixar de relevar em sede do chamado dano biológico patrimonial, suscetível, portanto, de indemnização reparatória daquela redução do rendimento económico potencial, com vem sendo seguido pela jurisprudência.

A autora exercia a profissão de esteticista e ficou impossibilitada de a poder exercer.

Não se apurou quanto auferia no exercício dessa atividade, pelo que se entende que auferiria pelo menos o equivalente ao salário mínimo nacional.

Considerou o Ac. deste STJ de 12-12-2017, no Proc. nº 1292/15.6T8GMR.S1 que, “I - Encontrando-se o autor desempregado, à data do acidente em que ficou lesado, mas exercendo, no atrasado, uma atividade profissional remunerada, por conta de outrem, é de prever, até pela sua jovem idade de 24 anos, que iria regressar ao mercado de trabalho, e receberia, então, um ordenado, pelo menos, num patamar equivalente ao salário mínimo nacional, o qual se mostra adequado para calcular o rendimento relevante que representa o respetivo limiar inferior, abaixo do qual a dignidade humana já é, severamente, punida e, consequentemente, não constitui um valor arbitrário.

Assim, tem de se olhar ao rendimento da lesada, ao grau de défice funcional, mas também à sua idade e esperança de vida.

A esperança de vida para mulher nascida em Portugal em 1972 é de 71,5, mas sempre a crescer, sendo em 2013, data do acidente, de 83,00 pontos (dados do INE).

A perda da capacidade geral de ganho tem repercussões negativas ao longo de toda a vida do lesado e não cessa com a previsível idade da reforma.

Refere o Ac. deste STJ de 1 de março 2018, no Proc. nº 773/07.0TBALR.E1.S1 que, “Com efeito, os índices de Incapacidade Geral Permanente não se confundem com índices de Incapacidade Profissional Permanente, correspondendo a duas tabelas distintas, aprovadas pelo Decreto-Lei nº 352/2007, de 23 de Outubro. Nas palavras do preâmbulo deste diploma legal, na incapacidade geral avalia-se “a incapacidade para os actos e gestos correntes do dia-a-dia”, a qual poderá ter reflexos ao nível da incapacidade profissional, mas que com esta não se confunde (cfr. Maria da Graça Trigo, Adopção do conceito de dano biológico pelo direito português, in Revista da Ordem dos Advogados, ano 72, I, págs. 148-149).

E ficou provado que a autora ficou incapaz para o exercício da profissão habitual de esteticista, restando-lhe a possibilidade de exercer outras actividades profissionais, desde que compatíveis com as suas qualificações, experiência, mas, face às limitações funcionais inerentes à incapacidade geral de que ficou a padecer em virtude do acidente, à data do julgamento (nove anos depois do acidente) ainda não tinha retomado qualquer atividade profissional.

A equidade deve ser o critério definidor e legalmente previsto no art. 566º, nº 3 do Cód. Civil, “se não puder ser averiguado o valor exato dos danos, o tribunal julgará equitativamente dentro dos limites que tiver por provados”.

A jurisprudência do STJ vai no sentido de ser fixado um montante indemnizatório por via da equidade, ao abrigo do disposto no artigo 566º, nº 3, do Cód. Civil, em função das circunstâncias concretas de cada caso, segundo os padrões que têm vindo a ser delineados, atentos os graus de gravidade das lesões sofridas e do seu impacto na capacidade económica do lesado, considerando uma expetativa de vida ativa não confinada à idade-limite para a reforma. De referir que aqui só relevam as implicações de alcance económico e já não as respeitantes a outras incidências no espectro da qualidade de vida, mas sem um alcance dessa natureza.

Sendo que nem sempre se mostra tarefa fácil estabelecer comparações entre os diversos casos já tratados na jurisprudência, ante a multiplicidade de fatores variáveis e as singularidades de cada caso, em especial, o impacto concreto que determinado grau de défice funcional genérico é suscetível de provocar no contexto da atividade económica que estava ao alcance da iniciativa do sinistrado com a inerente perda de oportunidade de ganho.

O STJ decidiu no Ac. de 19-09-2019, no Processo nº  2706/17.6T8BRG.G1.S1, “III - Tendo em conta que o recorrente: (i) ficou afetado com um défice funcional permanente de 32 pontos, que o impede de exercer a sua profissão habitual de serralheiro mecânico, bem como qualquer outra dentro da sua área de preparação técnico-profissional; (ii) contava com 45 anos à data do acidente; (iii) auferia um rendimento mensal ilíquido de € 788,00, à data do acidente, que subiu cerca de dois meses depois para € 816,00, acrescido de € 80,00 de subsidio de alimentação; afigura-se ser acertado o montante indemnizatório de € 200 000,00, considerando o benefício emergente da entrega antecipada do capital, para compensar os comprovados danos sofridos pelo autor no que respeita à perda de capacidade de ganho e dano biológico (no plano estritamente material e económico).

E no Ac. do STJ de 23-05-2019 no Processo nº 2476/16.5T8BRG.G1.S2, em www.stj.pt/wp-content/uploads/2017/10/jurisprudenciatematica_danocorporal2015aoutubro2019.pdf

decidiu; “- Ac. do STJ de 23-05-2019 (Relatora Maria dos Prazeres Beleza; p. 2476/16.5T8BRG.G1.S2; acessível em): a sinistrada ficou impedida de exercer a sua atividade profissional habitual de educadora de infância mas não de exercer outras profissões da área da sua preparação técnico-profissional embora com acrescidas dificuldades; auferia uma retribuição mensal de € 1.706,20, catorze meses por ano; ficou com um défice funcional de 26 pontos; tinha 44 anos de idade à data do acidente; o STJ confirmou o montante de € 250.000,00 fixado pelo Tribunal da Relação a título de indemnização por perda de capacidade de ganho, aqui incluída a vertente patrimonial do dano biológico;

E no Ac. do STJ de 1-03-2018, no Proc. nº 773/07.0TBALR.E1.S1, acessível em www.dgsi.pt., sinistrado com 39 anos à data do acidente; as lesões sofridas pelo autor determinaram-lhe um défice funcional permanente da integridade físico-psíquica fixável em 53 pontos; as sequelas de que ficou a padecer são impeditivas do exercício da atividade profissional habitual, sendo no entanto compatíveis com outras profissões da área da sua preparação técnico-profissional; o STJ fixou em €400.000,00 o valor da indemnização arbitrada a esse título no Tribunal da Relação (€ 280.000,00).

Ponderados todos os factos apurados, o tempo decorrido desde a data do acidente até à consolidação médico-legal das lesões, a incapacidade para a autora continuar a exercer a sua atividade profissional, a incapacidade geral de 26%, mas que na prática equivale a uma situação de incapacidade total permanente para o trabalho (dada a dificuldade em conseguir outro trabalho compatível com a sua diminuída capacidade física e que não conseguiu durante pelo menos 9 anos), afigura-se ser justa e adequada a fixação de uma indemnização por dano patrimonial futuro por perda da capacidade de ganho desde a data do sinistro no montante de 200.000,00€.

Pelo que, face ao exposto, o recurso de revista deverá ser julgado procedente.


*


Sumário elaborado ao abrigo do disposto no art. 663 nº 7 do CPC:

I- Na determinação do montante da justa indemnização destinada a ressarcir danos futuros, perante a constatação da impossibilidade de averiguar o valor concreto dos danos, tem a jurisprudência recorrido ao juízo de equidade a que se reporta o art. 566º, n.º 3, do Cód. Civil, a partir dos elementos de facto apurados, conjugados com diversos critérios de cálculo de natureza instrumental.

II- Em caso de julgamento segundo a equidade, devem os tribunais de recurso limitar a sua intervenção às hipóteses em que o tribunal recorrido afronte, manifestamente, aquelas regras.

III- Tendo ficado provado que a autora ficou incapacitada para desempenhar a profissão que exercia, mas compatível com o exercício de outras profissões da área da sua preparação técnico profissional que envolvam tarefas com pouca exigência física ao nível de força muscular com os membros superiores, postura curvada ou bipedestação, mas passados nove anos ainda não tinha retomado qualquer atividade profissional, a determinação da indemnização nesta sede deve ser calculada com base no rendimento anual.

IV- Exercendo a autora a profissão de esteticista e não se apurando quanto auferia no exercício dessa atividade, tem de se entender que auferiria pelo menos o equivalente ao salário mínimo nacional.

V- Ponderados todos os factos apurados, o tempo decorrido desde a data do acidente até à consolidação médico-legal das lesões, a incapacidade para a autora continuar a exercer a sua atividade profissional, a incapacidade geral de 26%, mas que na prática equivale a uma situação de incapacidade total permanente para o trabalho (dada a dificuldade em conseguir outro trabalho compatível com a sua diminuída capacidade física e que não conseguiu pelo menos 9 anos), afigura-se ser justa e adequada a fixação de uma indemnização por dano patrimonial futuro por perda da capacidade de ganho desde a data do sinistro no montante de 200.000,00€.

Decisão:

Pelo exposto acordam, no STJ e 1ª Secção Cível, em julgar procedente o recurso e, consequentemente, concede-se a revista, revogando-se o acórdão recorrido e repristinando-se a sentença quanto aos segmentos analisados.

Custas pela recorrida.


Lisboa, 14-03-2023

Fernando Jorge Dias – Juiz Conselheiro relator

Jorge Arcanjo – Juiz Conselheiro 1º adjunto

Isaías Pádua – Juiz Conselheiro 2º adjunto