Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
493/09.0PAENT-A.S1
Nº Convencional: 5ª SECÇÃO
Relator: RODRIGUES DA COSTA
Descritores: RECURSO DE REVISÃO
CASO JULGADO
NOVOS FACTOS
NOVOS MEIOS DE PROVA
QUEIXA
DESISTÊNCIA
EXTINÇÃO DO PROCEDIMENTO CRIMINAL
CRIME PÚBLICO
CRIME SEMI-PÚBLICO
ALTERAÇÃO DA QUALIFICAÇÃO JURÍDICA
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Data do Acordão: 04/04/2013
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO DE REVISÃO
Decisão: NEGADA A REVISÃO
Área Temática:
DIREITO PENAL - DIREITO DE QUEIXA.
DIREITO PROCESSUAL PENAL - JULGAMENTO / AUDIÊNCIA - RECURSOS.
Doutrina:
- CAVALEIRO DE FERREIRA, “Revisão Penal”, Scientia Jutridica, cit. por SIMAS SANTOS e LEAL HENRIQUES, Recursos em Processo Penal, 6ª edição, 2007, pp. 212/213.
- CAVALEIRO DE FERREIRA, cit. por MAIA GONÇALVES, no “Código de Processo Penal”, Anotado, 2007, 16ª Edição, p. 979.
- EDUARDO CORREIA, Caso Julgado e Poderes de Cognição do Juiz, Coimbra, Livraria Atlântida, 1948, p. 7
- FIGUEIREDO DIAS, Direito Processual Penal, Coimbra Editora, 1974, p. 44.
- PAULO PINTO DE ALBUQUERQUE, Comentário do Código de Processo Penal, Universidade Católica Editora, 4.ª edição actualizada, p. 1207.
Legislação Nacional:
CÓDIGO DE PROCESSO PENAL (CPP): - ARTIGOS 358.º, N.ºS 1 E 3, 449.º, N.ºS1 E 3.
CÓDIGO PENAL (CP): - ARTIGO 116.º, N.º2.
CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA PORTUGUESA (CRP): - ARTIGO 29.º, N.º6.
Jurisprudência Nacional:
ACÓRDÃO DO TRIBUNAL CONSTITUCIONAL:
-N.º 376/2000, DE 13-07-2000.
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ACÓRDÃOS DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:
-DE 30/4/1990, PROC. N.º 41800;
-DE 3/7/1997, PROC. N.º 485/97;
-DE 7/10/2009, PROC. N.º 8523/06.1TDLSB-E.S1, DA 3.ª SECÇÃO;
-DE 19/01/2012, PROC. N.º 1099/07.4GAVNF-A.S1, DA 5.ª SECÇÃO;
-PROCESSO N.º 330/04.2JAPTM – B.S1, DA 5.ª SECÇÃO.
Sumário :

I - O recurso extraordinário de revisão de sentença é estabelecido e regulado pelo CPP, como também pelo CPC, como forma de obviar a decisões injustas, fazendo-se prevalecer o princípio da justiça material sobre a certeza e segurança do direito, a que o caso julgado dá caução.
II -A revisão extraordinária de sentença transitada, se visa tais objectivos, conciliando-os com a necessidade de certeza e segurança do direito, não pode, por isso mesmo, ser concedida senão em situações devidamente clausuladas, pelas quais se evidencie ou pelo menos se indicie com uma probabilidade muito séria a injustiça da condenação, dando origem, não a uma reapreciação do anterior julgado, mas a um novo julgamento da causa com base em algum dos fundamentos indicados no n.º 1 do art. 449.° do CPP.
III -No caso, a questão é a de saber se a alegada intenção de o ofendido desistir da queixa constitui um facto novo para efeitos de revisão (fundamento da al. d) do n.º 1 do art. 449.º do CPP).
IV -A desistência é um facto que, não incidindo sobre os factos constitutivos do crime ou os seus elementos essenciais, tem incidência sobre o procedimento, acarretando a extinção do procedimento criminal naqueles casos em que este depende de participação ou queixa do ofendido com a prática do crime. Extinguindo-se o procedimento criminal, cessa a perseguição do crime e o apuramento dos factos respectivos, com o consequente arquivamento dos autos.
V - Deste modo, havendo desistência, não há lugar à aplicação de qualquer pena. Por isso mesmo, a desistência tem de ter lugar até à publicação da sentença em 1.ª instância, exigindo-se ainda que o arguido se lhe não oponha (art. 116. °, n.º 2, do CP).
VI -Uma coisa é a intenção de o ofendido vir a desistir da queixa apresentada e outra a própria desistência manifestada por qualquer meio (escrito ou oral) até ao limite temporal assinalado. Só esta última é válida e eficaz.
VII - No caso dos autos, o ofendido nunca manifestou em devido tempo a sua intenção de desistir da queixa e perdoar ao arguido/recorrente. Tendo intervindo na audiência de julgamento e sendo o seu depoimento de relevância para os factos dados como provados, como resulta da motivação da convicção do tribunal, não existe a mínima alusão no processo ao facto de ele ter referido que, apesar de ter sido prejudicado com a prática do crime, a sua intenção era perdoar ao arguido e desistir da queixa, se pudesse.
VIII - Efectivamente, só depois do trânsito em julgado da decisão condenatória é que o recorrente começou a diligenciar no sentido de obter do ofendido a declaração que veio a juntar a estes autos. Já tarde, porém, dado que o facto novo por ele invocado era dele conhecido a partir da notificação da alteração da qualificação na audiência de julgamento. E, a partir desse momento, poderia ter pedido ao tribunal para suspender a audiência, a fim de contactar o ofendido, ou requerer a sua audição suplementar na própria audiência de julgamento, tudo com vista a obter a desistência da queixa ainda antes do encerramento daquela.
IX - À luz dos factos constitutivos do crime, é seguro que os mesmos não são beliscados com o pretenso facto novo e com a nova prova oferecida; o que sucede é que o procedimento criminal poderia ter sido extinto, independentemente de se virem a dar ou não como provados os factos, se o recorrente tivesse obtido em devido tempo, como podia, a declaração do ofendido a desistir da queixa apresentada.
X - Por último, importa dizer que a desistência de queixa não é um direito do arguido; é uma faculdade do ofendido que, sendo livremente exercida por este em determinado momento processual, pode acarretar benefício para o arguido, fazendo extinguir o procedimento criminal em certos casos (dependentes de queixa ou de participação). Não é um direito do arguido à absolvição ou sequer à extinção do procedimento criminal; é um benefício de carácter processual que lhe pode advir, dadas certas circunstâncias, de um comportamento alheio.


Decisão Texto Integral:

I. RELATÓRIO

1. AA, identificado nos autos, veio interpor recurso extraordinário de revisão de sentença, nos termos do art. 449.º, n.º 1, alínea d) do Código de Processo Penal (CPP), da decisão proferida em 16/06/2011 no processo comum singular n.º 493/09.0PAENT, do Tribunal Judicial da Comarca do Entroncamento, que o condenou por 1 crime de furto simples, do art. 203.º, n.º 1 do Código Penal (CP), na pena efectiva de 6 meses de prisão, posteriormente confirmada pelo Tribunal da Relação de Évora, tendo ainda o arguido interposto recurso para o Tribunal Constitucional, que, por decisão sumária transitada em julgado em 20/09/2012, não tomou conhecimento do objecto do recurso.

2. Resumiu a motivação do recurso nas seguintes conclusões:

1. O presente recurso baseia-se em novos factos, tendo chegado ao conhecimento do arguido, em momento posterior à douta sentença revidenda.

2. Quer a doutrina quer a jurisprudência, vem entendendo que a novidade de que fala o preceito, deve ser vista no sentido de incluir novos factos ou meios de prova não apreciados no processo que conduziu à decisão a rever.

3. O arguido foi julgado e condenado por douta sentença de 16-06-2011, transitada em julgado, na pena de 6 (seis) meses de prisão efetiva na sua execução, por um crime de furto simples previsto e punido pelo artigo 203° n° 1 do CP.

4. Acontece que o condenado, ora requerente, vinha acusado de um crime de roubo previsto e punido pelo artigo 210° n° 1 do C P, conforme acusação de fls., 55 e 56 que aqui se dá por integralmente reproduzida.

5. Por, aliás, douto despacho de 16-06-2011, nos termos do artigo 358° do CPP, o tribunal por entender que face à prova produzida e à factualidade apreciada, ao invés do crime de roubo que constava da acusação, «os factos apurados são susceptíveis de integrar a prática de um crime de furto simples».

6. Cumprido o formalismo legal, o tribunal «a quo» procedeu de imediato à leitura da sentença, tendo condenado o arguido na pena de 6 (seis) meses de prisão efetiva, por um crime de furto simples p. e p. pelo artigo 203° n° 1 do C.P.

7. Assim sendo, o arguido vinha acusado de um crime de natureza pública, e, afinal, foi condenado por um crime de natureza semipúblico.

8. Ou seja, vinha acusado por um crime que não permitia a desistência de queixa (público), e foi condenado por um crime em que a declaração do ofendido de desistência de queixa implicava o arquivamento dos autos.

9. E, na verdade e posteriormente aos acontecimentos, alegadamente, por ser vizinho do condenado ora requerente, o ofendido terá pretendido desistir da queixa nestes autos, mas foi informado pelo OPC, em data que não pode precisar mas, seguramente anterior ao julgamento, que sendo o crime público, não podia desistir da queixa.

10. E, na verdade, face á natureza inicial do crime, a aludida desistência de queixa seria irrelevante, pois os autos teriam de prosseguir, os ulteriores termos até final.

11. Acontece que todos estes factos, só agora chegaram ao seu conhecimento, bem como a relevância que teriam tido se tivessem constado nos presentes autos.

12. Ora, o ofendido (testemunha), BB, declarou que se dependesse dele, posteriormente, teria desistido do procedimento criminal contra o condenado ora requerente.

13. Por isso declarou por escrito a sua intenção, conforme documento que se junta sob. Doc. 1 e se reproduz integralmente para os devidos e legais efeitos.

14. Temos então que com o documento ora junto e a diligência que abaixo se requererá, se suscitam graves dúvidas sobre a justiça da condenação.

15. Ou seja, que provados os factos ora alegados deveria, a final, o procedimento criminal contra o condenado ser julgado extinto, com o consequentemente arquivamento do processo, desaparecendo do mundo jurídico a sua condenação.

16. Na verdade, tivesse sido o ofendido informado da alteração da qualificação jurídica e da possibilidade, que dispunha para pôr fim ao processo e tê-lo-ia declarado nos presentes autos.

No final, juntou como prova uma testemunha (o ofendido pelo crime de furto) e um documento.

            3. O Ministério Público junto do tribunal da condenação, veio responder à motivação de recurso, tendo concluído pela inexistência de facto novo que fosse susceptível de fundamentar o pedido de revisão, devendo o mesmo ser declarado legalmente infundado.

4. O juiz do processo designou dia para inquirição da testemunha oferecida.

            5. No termo das diligências probatórias, que se resumiram à inquirição da testemunha já referida, o juiz do processo da condenação, no cumprimento do disposto no art. 454.º do CPP, prestou informação sobre o mérito do pedido, historiando os incidentes por que passou, a prova que foi produzida e opinando, em suma, que não há qualquer facto novo a considerar, nomeadamente por tal não dizer respeito aos factos que motivaram a condenação, com referência ao tipo obejctivo ou subjectivo do ilícito – (…) a pretensa vontade de desistir não manifestada nos autos pelo ofendido (nem em sede de inquérito, nem em sede de audiência de julgamento) - não se nos afigura como facto cujo conhecimento fosse relevante ao arguido para efeitos de defesa, nem pode ser considerado um direito do arguido (o de desistência da queixa), mas tão só uma faculdade do ofendido passível de beneficiar o arguido, faculdade essa a ser livremente exercida.  

            Por outro lado faz notar, (…) que tendo sido comunicada a alteração de qualificação jurídica pelo tribunal, convolando-se a qualificação dos factos num crime de natureza semi-pública, o recorrente, na pessoa do seu Defensor nada veio requerer, mormente a audição do ofendido, com vista a auscultar e colher a sua eventual vontade de desistir do procedimento criminal.

            Assim, expende a opinião de que a revisão não deve ser autorizada.

            6. Neste Tribunal, a Sra. Procuradora-Geral Adjunta emitiu parecer em que conclui não se mostrar preenchido o fundamento de admissibilidade do recurso de revisão previsto no art. 449, n.º 1, alínea d) do CPP, devendo a mesma ser negada.

            7. Colhidos os vistos em simultâneo, o processo veio para conferência para decisão.

            II. FUNDAMENTAÇÃO

            8. Factos em que assentou a condenação:

            a) No dia 3 de Dezembro de 2009, cerca das 2ih e 30m, o arguido dirigiu-se até junto do ofendido BB, o qual se encontrava em zona próxima do Centro Comercial ..., sito na Av...., no....

b) Chegando junto do ofendido, o arguido de imediato agarrou o telemóvel que tinha na mão e retirou-lho, isto contra a vontade do ofendido e sem que ele tivesse esboçado qualquer reacção de oposição.

c) Com a sua conduta, o arguido conseguiu causar medo ao ofendido.

d) O arguido apoderou-se do telemóvel de marca Nokia N73, e que o ofendido avaliou em cerca de € 180.

e) O arguido sabia que tal telemóvel não lhe pertencia e que, apropriando-se dele e integrando-o no seu património, agia contra a vontade do seu proprietário.

f) Ao actuar da forma descrita, o arguido agiu sempre de modo livre e voluntário e fê-lo com o intuito de inquietar e amedrontar o ofendido.

g) O arguido sabia que a sua conduta era proibida por lei. Mais se apurou que:

h) O telemóvel foi recuperado.

i) O arguido é o mais velho de três filhos.

j) A mãe do arguido foi condenada numa pena de prisão efectiva quando este tinha sete anos de idade, tendo então o arguido integrado o agregado familiar dos avós maternos, residentes no Entroncamento.

k) Aquando da sua primeira saída precária, a mãe do menor não regressou ao estabelecimento prisional, tendo nessa altura iniciado outro relacionamento afectivo, que determinou a sua expulsão da comunidade cigana.

I) Desde então, o arguido não tem relacionamento com a mãe, desconhecendo o seu paradeiro.

m) O percurso escolar do arguido caracterizou-se pelo elevado absentismo, não sendo esta vertente valorizada pelo próprio e seus familiares.

n) O arguido nunca manteve actividade laboral estruturada, nem adquiriu hábitos de trabalho.

o) Sem orientação de adultos, o arguido começou a gerir o seu quotidiano de acordo com os seus interesses e nem sempre de forma estruturada.

p) Aos 15 anos, o arguido iniciou o consumo de haxixe, por influência do grupo de pares.

q) O arguido encontra-se a ser acompanhado pelos serviços de reinserção social, no âmbito de pena de prisão suspensa na execução; a qual tem decorrido regularmente, embora exista a necessidade de atitude vigilante e assertiva.

r) O arguido integra o agregado de origem constituído pelo progenitor e dois irmãos, residindo numa casa arrendada, com modestas condições de habitabilidade.

s) A família do arguido alterna períodos em que se encontra no Entroncamento, com outros em que permanece na comunidade cigana existente na Quinta da Fonte, Apelação, onde reside a família paterna.

t) A dinâmica e relacionamento familiar caracterizam-se pela ausência de supervisão parental, gerindo o arguido o seu quotidiano consoante os seus interesses e desejos.

u) O arguido dispõe de apoio incondicional, ainda que o mesmo surja pouco estimulante ao nível das competências pessoais e laborais.

v) Em termos ocupacionais, o arguido mantém-se inactivo, colaborando pontualmente com alguns familiares na venda ambulante.

w) Por vezes o arguido ajuda o pai na recolha e venda de sucata,

x) A sustentabilidade económica do agregado familiar do arguido é assegurada pelo provento económico que o pai consegue obter da venda de sucata e ao nível alimentar são coadjuvados pelos avós maternos.

y) O arguido encontra-se inscrito no centro de emprego local, mas sem resultados positivos.

z) O estilo de vida do arguido é marcado por comportamentos, relações sociais e frequência de locais problemáticos.

aa) No meio sócio residencial, a imagem do arguido surge um pouco negativa.

bb) O arguido revela traços de introversão, imaturidade e irresponsabilidade.

cc) O arguido assume fraca capacidade para antever a consequência dos seus actos e revela grandes limitações para projectar o seu futuro.

dd)  Por acórdão de 08.04.2008, transitado em julgado em 28.04.2008, proferido no processo n.° 132/07.4PZLSB, que correu seus termos pela 8ª Vara Criminal de Lisboa, o arguido foi condenado pela prática, em 13.02.2007, de um crime de roubo, p. e p. pelo n° 1 do art. 210° do Código Penal, na pena de um ano e seis meses de prisão, pena suspensa por igual período com regime de prova, pena esta declarada extinta pelo cumprimento.

ee) Por acórdão de 21.01.2009, transitado em julgado em 10.02.2009, proferido no processo n.° 718/06.4PZLSB, que correu seus termos pela 8ª Vara Criminal de Lisboa, o arguido foi condenado pela prática, em 28.09.2006, de um crime de roubo, p. e p. pelo n° 1 do artº 210° do Código Penal, na pena de dois anos e seis meses de prisão, pena suspensa por igual período com regime de prova.

 

9. O recurso extraordinário de revisão de sentença é estabelecido e regulado pelo Código de Processo Penal, como também pelo Código de Processo Civil, como forma de obviar a decisões injustas, fazendo-se prevalecer o princípio da justiça material sobre a certeza e segurança do direito, a que o caso julgado dá caução. Com efeito, este tem na sua base «uma adesão à segurança com eventual detrimento da verdade …», como observou EDUARDO CORREIA, Caso Julgado e Poderes de Cognição do Juiz, Coimbra, Livraria Atlântida, 1948 p. 7). Porém, não se pode levar longe de mais a homenagem tributada a tal princípio, de reconhecida utilidade pela estabilidade e certeza que proporciona do ponto de vista das necessidades práticas da vida, do ponto de vista do próprio direito, que, de contrário, perderia credibilidade com a possibilidade de julgados contraditórios, reflectindo-se na estruturação da própria organização social, e do ponto de vista da paz jurídica, que é um objectivo a que almejam os cidadãos.

Mas nem tudo se alcança só com a estabilidade e a segurança, mormente se o sacrifício da justiça material - esse princípio estruturante de qualquer sociedade e pedra-de-toque de um Estado de direito democrático, que tem a dignidade humana como valor supremo em que assenta todo o edifício social e político – fosse levado a extremos que deitassem por terra os sentimentos de justiça dos cidadãos, pondo-se, assim, em causa, por essa via, a própria estabilidade e a segurança, que se confundiriam com a tirania ou com a «segurança do injusto», na expressão de FIGUEIREDO DIAS, Direito Processual Penal, Coimbra Editora, 1974, p. 44. Os cidadãos seriam, desse modo, transformados «cruelmente em vítimas ou mártires duma ideia mais do que errada, porque criminosa, da lei e do direito», como opinou CAVALEIRO DE FERREIRA (cit. por MAIA GONÇALVES no seu Código de Processo Penal Anotado, 2007, 16ª Edição, p. 979.

E se tanto no processo civil como no processo penal a certeza e a segurança do direito cedem, em certos casos, ao triunfo da justiça material, há-de convir-se que no processo penal esta se impõe com muito mais pujança, dado o realce diferente e mais exigente de certos princípios que constituem a raiz mesma dos direitos, liberdades e garantias dos cidadãos. Daí que a Constituição no art. 29.º n.º 6 estabeleça: «Os cidadãos injustamente condenados têm direito, nas condições que a lei prescrever, à revisão da sentença e à indemnização pelos danos sofridos.

A revisão extraordinária de sentença transitada, se visa tais objectivos, conciliando-os com a necessidade de certeza e segurança do direito, não pode, por isso mesmo, ser concedida senão em situações devidamente clausuladas, pelas quais se evidencie ou pelo menos se indicie com uma probabilidade muito séria a injustiça da condenação, dando origem, não a uma reapreciação do anterior julgado, mas a um novo julgamento da causa com base em algum dos fundamentos indicados no n.º 1 do art. 449.º do CPP:

a) A decisão transitada ter assentado em falsos meios de prova, reconhecidos em outra sentença transitada em julgado;

b) Tiver sido feita prova, também por sentença transitada, de crime cometido por juiz ou jurado e relacionado com a sua função no processo;.

c) Os factos em que assentou a decisão serem inconciliáveis com os dados como provados noutra sentença e daí resultarem graves dúvidas sobre a justiça da condenação;  

d) Descoberta de novos factos ou meios de prova, que, de per si ou combinados com os do processo suscitem graves dúvidas sobre a justiça da condenação;

e) Terem servido de fundamento para a condenação provas proibidas, nos termos do n.ºs 1 e 3 do art. 126.º do CPP;

f) Ser declarada pelo Tribunal Constitucional a inconstitucionalidade, com força obrigatória geral de norma de conteúdo menos favorável ao arguido que tenha servido de fundamento à condenação;

g) Inconciliabilidade entre a decisão condenatória e uma outra sentença vinculativa do Estado Português, proferida por uma instância internacional, ou suscitação, por força desta, de graves dúvidas sobre a justiça da condenação.


10. Factos «são os factos probandos», ou seja «os factos constitutivos do próprio crime, ou os seus elementos essenciais» e ainda «os factos dos quais, uma vez provados, se infere a existência ou inexistência de elementos essenciais do crime»

Elementos ou meios de prova são «as provas destinadas a demonstrar a verdade de quaisquer factos probandos, quer dos que constituem o próprio crime, quer dos que são indiciantes de existência ou inexistência de crime ou seus elementos» (CAVALEIRO DE FERREIRA, “Revisão Penal”, Scientia Jutridica, cit. por SIMAS SANTOS e LEAL HENRIQUES, Recursos em Processo Penal, 6ª edição, 2007, ps. 212/213).
Convém salientar que estes novos factos ou meios de prova têm de suscitar grave dúvida sobre a justiça da condenação, não podendo ter como único fim a correcção da medida concreta da sanção aplicada (n.º 3 do art. 449.º do CPP).

A lei não exige certezas acerca da injustiça da condenação, mas apenas dúvidas, embora graves (Ac. do STJ de 3/7/97, Proc.n.º 485/97). Essas dúvidas, porém, porque graves têm de ser de molde a pôr em causa, de forma séria, a condenação de determinada pessoa, que não a simples medida da pena imposta. As dúvidas têm de incidir sobre a condenação enquanto tal, a ponto de se colocar fundadamente o problema de o arguido dever ter sido absolvido. «A dúvida sobre a justiça da condenação abrange todos aqueles casos em que o arguido não terá que cumprir uma pena e em que esta não teria que ser aplicada no momento de decidir, se o tribunal tivesse acesso a tais factos» (ac. do STJ de 30/4/90, Proc. n.º 41800).

Daí que os novos factos ou os novos meios de prova tenham de ter a força bastante para gerarem essas graves dúvidas, dando azo a um novo julgamento. Os novos factos ou os novos meios de prova, porém, obedecem a uma condição prévia; apenas relevam  aqueles que não puderam ser apresentados e apreciados ao tempo do julgamento, quer por serem desconhecidos dos sujeitos processuais, quer por não poderem ter sido apresentados a tempo de serem submetidos à apreciação do julgador - «aqueles que não puderam ser apresentados e apreciados antes, na decisão que transitou em julgado», na formulação do Acórdão do Tribunal Constitucional (TC) n.º 376/2000, de 13-07-2000).

Segundo a jurisprudência mais recente, tem-se considerado que «factos ou meios de prova novos são aqueles que eram ignorados pelo recorrente ao tempo do julgamento e não puderam ser apresentados antes deste, sendo, consequentemente, insuficiente que os factos sejam desconhecidos do tribunal, devendo exigir-se que tal situação se verifique, paralelamente, em relação ao requerente (Acórdão de 7-10-2009, Proc. n.º 8523/06.1TDLSB-E.S1, da 3.ª Secção, entre muitos outros.) Na doutrina mais recente PAULO PINTO DE ALBUQUERQUE afina pelo mesmo diapasão (Comentário do Código de Processo Penal, Universidade Católica Editora, 4.ª edição actualizada, p. 1207).

 Numa outra “nuance” jurisprudencial, os factos ou meios de prova novos, conhecidos de quem cabia apresentá-los, serão invocáveis em sede de recurso de revisão, desde que seja dada uma explicação suficiente, para a omissão, antes da sua apresentação. Por outras palavras, o recorrente terá que justificar essa omissão, explicando porque é que não pôde, e, eventualmente até, porque é que entendeu, na altura, que não devia apresentar os factos ou meios de prova, agora novos para o tribunal (Acórdão proferido no processo n.º 330-04.2JAPTM – B.S1, da 5.ª Secção).

11. A questão é a de saber se a alegada intenção de o ofendido desistir da queixa constitui um facto novo para efeitos de revisão de sentença.

A desistência é um facto que, não incidindo sobre os factos constitutivos do crime ou os seus elementos essenciais, tem incidência sobre o procedimento, acarretando a extinção do procedimento criminal naqueles casos em que este depende de participação ou queixa do ofendido com a prática do crime. Extinguindo-se o procedimento criminal, cessa a perseguição do crime e o apuramento dos factos respectivos, com o consequente arquivamento dos autos.

Deste modo, havendo desistência, não há lugar à aplicação de qualquer pena.

Por isso mesmo, a desistência tem de ter lugar até à publicação da sentença em 1.ª instância, exigindo-se ainda que o arguido se lhe não oponha (art. 116.º, n.º 2 do CP).

Ora, uma coisa é a intenção de o ofendido vir a desistir da queixa apresentada e outra, a própria desistência manifestada por qualquer meio (escrito ou oral) até ao limite temporal assinalado. Só esta última é válida e eficaz.

No caso dos autos, o ofendido nunca manifestou em devido tempo a sua intenção de desistir da queixa e perdoar ao arguido/recorrente. Tendo intervindo na audiência de julgamento e sendo o seu depoimento de relevância para os factos dados como provados, como resulta da motivação da convicção do tribunal, não existe a mínima alusão no processo ao facto de ele ter referido que, apesar de ter sido prejudicado com a prática do crime, a sua intenção era perdoar ao arguido e desistir da queixa, se pudesse.

É certo que ele podia estar convencido de que o crime, sendo público tal como configurado na acusação, não admitia perdão ou desistência de queixa, por ter sido informado nesse sentido, como veio a escrever mais tarde numa declaração, que foi junta como meio de prova neste recurso. Isso, contudo, não o impedia de manifestar essa vontade, pelo menos em julgamento, quando foi ouvido, como sucede normalmente com os ofendidos que têm uma genuína vontade de perdoar e desistir da queixa, no convencimento, aliás fundado, de que a manifestação de uma tal vontade acaba por ter alguma influência, pelo menos na medida da pena (Cf. Acórdão de 19/01/2012, Proc. n.º 1099/07.4GAVNF-A.S1, da 5.ª Secção, relatado pelo mesmo relator deste processo).

Acresce ainda um outro facto de relevância irrecusável: o arguido foi notificado na audiência de julgamento da alteração da qualificação dos factos, nos termos do disposto no art. 358.º, n.ºs 1 e 3 do CPP, tendo-lhe sido dada oportunidade para, se assim o entendesse, requerer prazo pelo tempo estritamente indispensável para preparar a sua defesa. A verdade é que nada requereu, sendo certo que poderia ter requerido a interrupção da audiência pelo tempo necessário para contactar o ofendido, no sentido de ver se obtinha deste a tal desistência de queixa, ou poderia requerer de imediato que o ofendido fosse novamente ouvido para tal fim.

Deste modo, essa falta sibi imputet (ou seja, é-lhe imputável), não podendo agora fazer reverter em seu favor uma omissão que inteiramente lhe cabe.

Mas mais do que isso: o recorrente interpôs recurso para o Tribunal da Relação de Lisboa da decisão condenatória e, mesmo aí, não mencionou tal facto, nem essa questão foi objecto do recurso que veio a interpor para o Tribunal Constitucional.

Só depois disso é que o recorrente começou a diligenciar no sentido de obter do ofendido a declaração que veio a juntar a estes autos. Já tarde, porém, dado que o facto novo por ele invocado era dele conhecido a partir da notificação da alteração da qualificação na audiência de julgamento. E, a partir desse momento, como se disse, poderia ter pedido ao tribunal para suspender a audiência, a fim de contactar o ofendido, ou requerer a sua audição suplementar na própria audiência de julgamento, tudo com vista a obter a desistência da queixa ainda antes do encerramento daquela.

Assim, esse novo facto ou meio de prova não são novos, na acepção que, preliminarmente a esta análise, expusemos.

Esta mesma versão foi, de resto, corroborada pelo ofendido, quando ouvido no âmbito já do recurso extraordinário de revisão, colhendo-se do seu depoimento que subscreveu a declaração acima referida por ter sido abordado em finais do mês de Dezembro de 2012 (portanto, já depois do trânsito em julgado da sentença condenatória), pelo pai do arguido, que lhe perguntou se se importava de retirar a queixa, tendo-lhe o ofendido respondido que não.

Por outro lado, o ofendido declarou que, embora estivesse convencido que não podia retirar a queixa, porque disso foi informado pela Polícia, sempre condicionou a declaração de desistência à devolução do telemóvel  e que só recuperou este já depois do julgamento.

Em suma: o facto da desistência não tem, neste contexto, qualquer relevância como facto novo, à luz dos conceitos que acima explanámos. O facto é claramente posterior à prolação da decisão de 1.ª instância e mesmo ao seu trânsito em julgado, não tendo virtualidade para desencadear uma revisão da decisão condenatória. Nem sequer se põe o problema de haver qualquer dúvida sobre a justiça da condenação.

À luz dos factos constitutivos do crime, é seguro que os mesmos não são beliscados com o pretenso facto novo e com a nova prova oferecida; o que sucede é que o procedimento criminal poderia ter sido extinto, independentemente de se virem a dar ou não como provados os factos, se o recorrente tivesse obtido em devido tempo, como podia, a declaração do ofendido a desistir da queixa apresentada.

            Por último, diga-se que a desistência de queixa não é um direito do arguido; é uma faculdade do ofendido que, sendo livremente exercida por este em determinado momento processual, pode acarretar benefício para o arguido, fazendo extinguir o procedimento criminal em certos casos (dependentes de queixa ou de participação). Não é um direito do arguido à absolvição ou sequer à extinção do procedimento criminal; é um benefício de carácter processual que lhe pode advir, dadas certas circunstâncias, de um comportamento alheio.

III. DECISÃO

12. Nestes termos, acordam em conferência na Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça em negar a revisão pedida por AA.

13. Custas pelo recorrente com 5 UC de taxa de justiça.

Supremo Tribunal de Justiça, 4 de Abril de 2013

                                              


Rodrigues da Costa (relator)
Arménio Sottomayor
Santos Carvalho