Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
4047/19.5T8CBR-J.C1.S1
Nº Convencional: 6ª SECÇÃO
Relator: LEONEL SERÔDIO
Descritores: RECURSO DE REVISTA
REVISTA EXCECIONAL
PRESSUPOSTOS
REJEIÇÃO DE RECURSO
VALOR DA CAUSA
ALÇADA
Data do Acordão: 09/17/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA (COMÉRCIO)
Decisão: RECLAMAÇÃO INDEFERIDA
Sumário :
I -A revista “ excecional” apenas é admissível desde que se verifiquem os pressupostos da revista “ normal”.

II – Não é admissível em fase de recurso a correção do valor da causa, fixado na sentença proferida em 1.ª instância.

III -O acórdão da Tribunal da Relação que apreciou a decisão do incidente de diferimento da desocupação do imóvel não admite recurso de revista.

Decisão Texto Integral: Processo: 4047/19.5T8CBR -J.C1-S1

Acordam em conferência no Supremo Tribunal de Justiça ( 6ª secção)

AA, insolvente, veio requerer, nos termos do artigo 150º n.º 5 do CIRE, com remissão para os artigos 862º a 865º do CPC, diferimento de desocupação da casa onde residia.

O Tribunal de 1ª instância proferiu sobre o referido requerimento a seguinte decisão:

“Indefere-se o requerido diferimento de desocupação por mais 5 meses, e em consequência, após o aludido prazo (30 dias após a publicação da Lei n.º 31/2023 de 4 de julho) deve a insolvente proceder à entrega do imóvel em causa sob pena de recurso à autoridade policial competente a fim de ser tomada posse efetiva do imóvel por parte do adquirente, BANCO COMERCIAL PORTUGUÊS, S.A.”

A Requerente apelou e por acórdão proferido no Tribunal da Relação de Coimbra em 24.10.2023, foi o recurso julgado improcedente e confirmada a decisão recorrida.

A Requerente AA veio interpor recurso de revista excecional, nos termos do artigo 672º n.º 1 al. b) do CPC, apresentando as seguintes conclusões:

“I.A decisão proferida pelo Tribunal da Relação de Coimbra, no que tange à interpretação do artigo 150º, nº 5 do CIRE, com remissão aos artigos 862º a 865º do CPC, não poderá estar circunscrita à fase de apreensão de bens para a massa insolvente, mas aplicar-se também à fase de liquidação e encerramento.

II . As referidas normas do CPC e do CIRE visam uma aplicação a todo o processo de insolvência, por forma a possibilitar o realojamento social e encontrar uma solução de arrendamento apoiado, que evite o desalojamento da Recorrente.

III. A interpretação restritiva do artigo 150º, nº 5 do CIRE à fase de apreensão dos bens, viola os artigos 862º a 865º do CPC, devendo, em função dos mesmos, ser alargada às fases de encerramento e liquidação do processo de insolvência.”

A final pede se revogue o acórdão recorrido “ admitindo-se o diferimento da desocupação da habitação, pelo prazo de cinco meses, considerando-se que a aplicação efetuada do artigo 150º, nº 5 do CIRE à fase de apreensão, viola os artigos 862º a 865º do CPC, que implicam que o diferimento em causa não seja apenas à fase de apreensão de bens mas, também, à fase do liquidação e encerramento do processo de insolvência.”

O Recorrido BCP contra-alegou, pugnando pela confirmação do acórdão recorrido.


*


Após ter sido dado cumprimento ao artigo 655º do CPC, com comunicação às partes de que se entendia não ser admissível o recurso de revista, sem que as partes se tivessem pronunciado, foi proferida decisão pelo relator de 14.06.2024, que não admitiu a revista, com a seguinte fundamentação:

“ A admissibilidade da revista excecional pressupõe sempre a da revista normal, apenas impedida por via da constituição da dupla conforme, nos termos do artigo 671º, nº 3, do Código de Processo Civil.

Assim, antes de remeter o recurso à Formação nos termos do artigo 672º n.º 3 do CPC, há que apreciar se se verificam os pressupostos gerais da admissibilidade da revista.

Em primeiro lugar constatamos que ao processo de insolvência foi fixado o valor de 10 000€ (dez mil euros) e consultado o histórico do processo principal e do apenso de liquidação do ativo, não se deteta que esse valor tenha sido corrigido ou tenha sido atribuído outro valor ao incidente de desocupação do imóvel onde reside a Insolvente e, por isso, o seu valor é o da causa, nos termos do artigo 304º n.º 1 do CPC ex vi artigo 17º n.º1 do CIRE .

Ora, nos termos do artigo 629º n.º 1 do CPC e artigo 44º n.º1 da LOSJ ( Lei n.º 62/2013 de 62/2013), em princípio, só é admissível recurso para o STJ, se a ação tiver valor superior a 30 000€.

Assim sendo e dado que a recorrente não indica, nem se vislumbra, que se está perante uma situação que seja admissível recurso para o STJ independentemente do valor da causa, entende-se que a revista não é admissível.

Por outro lado, ainda que a causa tivesse valor superior à alçada do Tribunal da Relação entende-se que o acórdão recorrido não integra a previsão do artigo 671º do CPC.

O citado artigo estipula:

1 - Cabe revista para o Supremo Tribunal de Justiça do acórdão da Relação proferido sobre decisão da 1.ª instância, que conheça do mérito da causa ou que ponha termo ao processo, absolvendo da instância o réu ou algum dos réus quanto ao pedido ou reconvenção deduzidos.

2- Os acórdãos da Relação que apreciem decisões interlocutórias que recaiam unicamente sobre a relação processual só podem ser objeto de revista:

a) – Nos casos em que o recurso é sempre admissível;

b) – Quando estejam em contradição com outro, já transitado em julgado, proferido pelo Supremo Tribunal de Justiça, no domínio da mesma legislação e sobre a mesma questão fundamental de direito, salvo se tiver sido proferido acórdão de uniformização de jurisprudência com ele conforme.

Assim, diferentemente do previsto no artigo 644.º, n.º 1, alínea a), do CPC, quanto ao cabimento do recurso de apelação autónoma de decisão da 1.ª instância que ponha termo a incidente processado autonomamente, os parâmetros de admissibilidade da revista definidos no art.º 671.º, n.º 1, do mesmo diploma circunscrevem-se aos acórdãos da Relação que, proferidos sobre decisão da 1.ª instância, conheçam do mérito da causa ou ponham termo ao processo, absolvendo da instância o réu ou algum dos réus quanto ao pedido ou reconvenção deduzidos.

Não se contemplam, pois, neste normativo as decisões finais dos incidentes da instância.

Os incidentes da instância traduzem relações processuais secundárias, intercorrentes no processo principal, de caráter episódico ou eventual, os quais se destinam, em regra, a prover sobre questões acessórias ( cf. Alberto dos Reis, em Comentário ao Código de Processo Civil, Vol. 3.º, , pp. 560 e 563 e Salvador da Costa, Os Incidentes da Instância, 2ª edição, pp.7 e 8).

Como refere Alberto dos Reis o processo principal visa a solução da causa principal e o incidente visa a solução da questão secundária que se enxertou no processo principal.

Ora, no caso, o acórdão recorrido não se traduz em decisão que conheça do mérito da causa nem que tenha posto termo ao processo mediante absolvição do réu da instância ou por forma a esta equiparada.

O que se decidiu no acórdão recorrido foi a confirmação da decisão da 1.ª instância que indeferiu o requerimento apresentado pela Insolvente a pedir o diferimento da desocupação do imóvel onde habitava e fora penhorado desde maio de 2016, no âmbito de execução instaurada pelo credor hipotecário em 2011, apreendido no processo de insolvência a Insolvente se apresentou em 25.06.2019, tendo sido vendido neste processo de insolvência através de escritura pública celebrada em 15.12.2020.

Assim, nos termos do artigo 671º n.º 1 do CPC, os acórdãos da Relação que apreciem decisões incidentais não admitem recurso de revista, exceto quando o recurso seja sempre admissível ( cf. neste sentido Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta, Filipe Pires de Sousa, CPC Anotado, vol. I, pág. 807 e acórdãos do STJ nele citados de 03.10.2013, processo n.º 2656/10 e de 29.06.2017, processo n.º 2487/07 e José Lebre de Freitas, Ribeiro Mendes e Isabel Alexandre, CPC Anotado, 3º vol., pág. 199).

Acresce que aplicando-se ao incidente de diferimento de desocupação da casa de habitação da insolvente, por remissão do disposto no artigo 152º do CIRE, o disposto nos artigos 863º a 865º do CPC ( inseridos no processo executivo) e, por essa via, as disposições reguladoras de recurso nas ações executivas, nos termos no artigo 854º do CPC, está também afastada a admissibilidade do recurso de revista no incidente de diferimento de desocupação.

Temos, pois, que o acórdão da Tribunal da Relação em causa que apreciou a decisão do incidente de diferimento da desocupação do imóvel não admite recurso de revista, por não conhecer do mérito da causa e, por conseguinte, também com este fundamento não é admissível revista “ordinária” e consequentemente também excecional.”

De referir que se entendeu não estar o presente recurso sujeito ao regime do artigo 14º n.º 1 do CIRE, mais desfavorável à Recorrente, desde logo por exigir a invocação da contradição do acórdão recorrido com outro acórdão da Relação ou do STJ que haja decidido de forma divergente a mesma questão de direito, que a Recorrente não invoca, pois o incidente devia ter corrido os seus termos no apenso de liquidação do processo de insolvência (artigo 170º CIRE), até porque a decisão da 1ª instância e o acórdão recorrido indeferiram o pedido de diferimento, no pressuposto do artigo 150º n.º 5 do CIRE já não se aplicar na fase de liquidação de bens.


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A Insolvente/recorrente AA, veio, nos termos do artigo 652º n.º 2 do CPC ex vi artigo 679º do mesmo diploma, reclamar para a conferência, apresentando as seguintes conclusões, que se transcrevem:

“ I- A Recorrente utilizou o mecanismo legal de recurso de revista excepcional, ao abrigo do artigo 672, nº 1, al. b) do CPC (interesse de particular relevância social).

II- A fundamentação do recurso teve por objecto a questão de o pedido de diferimento de desocupação da casa de habitação/morada de família, sendo admissível apenas quando efectuado na fase de apreensão de bens ou se pode ser efectuado na liquidação e encerramento do processo de insolvência.

III- Ao não admitir o recurso, a questão suscitada não foi objecto de pronúncia.

IV- O fundamento de indeferimento baseado no valor atribuído à insolvência (10.000,00 €), viola o estatuído nos artigos 306º, nº 1 do CPC e 812º, nº 3, al. a) e b) do CPC, porquanto, estando em causa a habitação do requerente, o valor da causa será sempre fixado em função do valor patrimonial (45.03,01 €) ou do valor da venda (99.600,00 €), não colhendo assim, cabimento legal o fundamento utilizado.

V- A decisão em causa constitui uma decisão de mérito, enquadrando-se no artigo 671º, nº 1 do CPC, ao indeferir o diferimento de desocupação por mais cinco meses, pelo que a douta decisão singular recorrida violou aquela norma.

VI- Em qualquer dos casos, a Recorrente interpôs a revisão excepcional para o Supremo com base no artigo 672, nº 1, al. b) do CPC, com base interesse de particular relevância social, o qual foi alegado e fundamentado, pelo que o acórdão violou este preceito legal.

Termos em que deverá ser admitida a presente reclamação e, por via dela, revogar-se a decisão singular proferida, admitindo-se o recurso de revista excepcional interposto.”

Juntou cópia da escritura de compra e venda do prédio em causa, outorgada em 15.12.2020, onde consta que o Banco Comercial Português o adquiriu pelo preço de 99.600,00 € (noventa e nove mil e seiscentos euros) e que o valor patrimonial do prédio é de 45.035,01 € (quarenta e cinco mil e trinta e cinco euros e um cêntimo).

Não foram apresentadas respostas.

II .Fundamentação

A questão a decidir é a de saber se é admissível, recurso de revista do acórdão do tribunal da relação que confirmou a decisão da 1ª instância que indeferiu o pedido de diferimento de desocupação da casa onde residia o insolvente, nos termos do artigo 150º n.º 5 do CIRE e artigos 862º a 865º do CPC.


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A factualidade a considerar é a referida no relatório.

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A Reclamante parece sustentar que tendo interposto recurso de revista excecional, o STJ, ou seja, a Formação ( artigo 672º n.º 3 do CPC) tinha de decidir se se verificava ou não o pressuposto por ela invocado, no caso, estar em causa interesse de particular relevância social ( artigo 672º n.º 1 al. b) do CPC).

No entanto, como consta do despacho reclamado, a admissibilidade da revista excecional pressupõe sempre a admissibilidade da revista normal.

Neste sentido, escreve Abrantes Geraldes, em “ Recursos no Novo CPC, 2ª edição, pág.330, “ O acesso à revista excecional depende naturalmente da verificação dos pressupostos do recurso de revista “ normal”, designadamente as que respeitam à natureza ou conteúdo da decisão, em face do artigo 671º, ao valor do processo ou da sucumbência ( artigo 629º, n.º 1) ou à legitimidade ( artigo 631º).” Também seguindo o mesmo entendimento Lebre de Freitas, Ribeiro Mendes e Isabel Alexandre, CPC Anotado, vol. 3º, ( 3ª edição) pág. 211), escrevem: “ A revista excecional só pode ser interposta desde que o valor do processo seja superior ao da alçada da Relação ( …). Pressupõe ela igualmente que estamos perante caso abrangido pelo n.º 1 ou pelo n.º 2 do artigo 671º.”

Assim sendo, é incontroverso que a revista “ excecional” apenas é admissível desde que se verifiquem os pressupostos da revista “ normal”.

Por isso, no despacho reclamado se apreciou a verificação ou não dos pressupostos gerais da admissibilidade da revista.

Quanto ao valor da ação, considerou-se que tendo na ação de insolvência sido fixado na sentença o valor de 10 000€ (dez mil euros) que não foi corrigido, nem foi fixado outro valor ao incidente de desocupação do imóvel onde reside a Insolvente,, por isso, o valor do incidente é o da causa, nos termos do artigo 304º n.º 1 do CPC ex vi artigo 17º n.º1 do CIRE .

Ora, nos termos do artigo 629º n.º 1 do CPC e artigo 44º n.º1 da LOSJ ( Lei n.º 62/2013 de 62/2013), em princípio, só é admissível recurso para o STJ, se a ação tiver valor superior a 30 000€ e a Recorrente não indica, nem se vislumbra, que se está perante uma situação que seja admissível recurso para o STJ independentemente do valor da causa, entende-se que a revista não é admissível.

O referido valor de €10 000 (dez mil euros) foi indicado pela Reclamante na petição em que requereu a declaração da sua insolvência e a sentença que declarou a insolvência datada de 02.07.2019 fixou provisoriamente à ação o valor de € 10.000,00.

Solicitada informação ao Tribunal de 1ª instância sobre se esse valor foi corrigido, a Sr.ª Juíza informou “que não foi proferido despacho a alterar o valor da ação fixado na sentença de declaração de insolvência.” E ainda que “tendo os autos prosseguido para liquidação, encontra-se junto inventário com o valor de €53.602,26.”

Este esclarecimento não contraria o que se referiu no despacho reclamado, ou seja, que não consta do histórico do processo de insolvência e do apenso de liquidação do ativo que o valor de € 10 000 tenha sido corrigido ou que tenha sido fixado valor ao incidente de diferimento de desocupação do imóvel.

Por outro lado, a circunstância de o Sr. Administrador de Insolvência ter, no anexo designado inventário, ao relatório de insolvência a que se reporta o artigo 155º n.º1 do CIRE, indicado o valor de € 53 602.26, não tem como consequência a alteração automática do valor da ação de insolvência, tendo o juiz de proferir despacho a corrigir o valor fixado.

A Recorrente defende na sua reclamação que o valor a atender deve ser de 99.600,00 € (noventa e nove mil e seiscentos euros), correspondente ao preço do prédio em causa ou no mínimo o seu valor patrimonial de 45.035,01 € (quarenta e cinco mil e trinta e cinco euros e um cêntimo).

Em rigor, o valor do incidente de diferimento de desocupação do prédio, não corresponde ao valor do prédio, nos termos do artigo 302º n.º 1 do Código Processo Civil, sendo certo que a Recorrente não pretende fazer valer o direito de propriedade sobre o mesmo, mas apenas manter a ocupação do mesmo por mais 5 meses, por isso, o correto valor do incidente, nos termos do artigo 296º n,.º 1 do CPC, corresponderia à utilidade económica da pretensão da Recorrente, ou seja, tão só ao valor locativo do prédio por 5 meses.

No entanto, não é na fase do recurso de revista que pode ser alterado o valor da ação.

Como decidiu o acórdão proferido em 11.06.2024, no processo n.º 2648/23.6T8VFX.L1-A.S1, relator Ricardo Costa, cuja fundamentação se passa a seguir, o artigo 306º, 1 e 2, do CPC estipula que “compete ao juiz fixar o valor da causa, sem prejuízo do dever de indicação que impende sobre as partes”, sendo esse valor fixado, por regra, no despacho saneador ou na sentença.

Com este exercício a lei visa evitar a manipulação do valor da causa (atribuído pelo Autor/Requerente ou aceite, expressa ou tacitamente, pelas partes: arts. 552º, 1, f), 583º, 2, 305º CPC) – apresentando várias implicações processuais: desde logo, no art. 296º, 2, do CPC – em função de interesses particulares, entregando ao juiz a tarefa de zelar pelo cumprimento dos critérios legais. Em suma: “independentemente das posições assumidas pelas partes, o juiz sempre terá de se debruçar sobre o assunto e fixar o valor da causa, sem estar vinculado a qualquer dos valores indicados ou aceites por aquelas.”

No presente processo o valor foi fixado na sentença em € 10.000,00, inferior ao valor da alçada do Tribunal da Relação.

Tal fixação do valor da causa nos termos atribuídos pelo art. 306º, 1 e 2, do CPC, sendo “decisão de pendor incidental” uma vez transitada em julgado, não admite depois qualquer alteração, a não ser que se verifiquem, a título excecional, circunstâncias legais de correção (nos termos do artigo 299º, 4, do CPC) e seja proferido novo despacho (com consequências possíveis, entre outras, na admissibilidade de recurso ordinário).

Na ausência do exercício desse poder-dever de correção – inclusivamente, através de “despacho judicial autónomo de acertamento do valor da causa”–, terá sempre o recurso para tribunal superior que ser avaliado na sua admissibilidade à luz do valor da causa que transitou e vale nesse momento, de acordo com os termos do art. 296º, 1 e 2, do CPC.

Tal significa que não é esta a sede, como pretende a Recorrente, por ser extemporânea, que se pode sindicar a bondade do critério que serviu de base à decisão sobre o valor da causa ou promover a correção do valor da causa atribuído ou do incidente.

Improcede, pois, a pretensão da Reclamante que se corrija o valor da causa e/ou valor do incidente de diferimento de desocupação do imóvel.

Assim, o valor a atender, nos termos do artigo 304º n.º 1 do CPC, é o valor da causa ( €10 000 (dez mil euros) e, por isso, a revista não é admissível.

Por outro lado, como decidiu o despacho reclamado, ainda que a causa tivesse valor superior à alçada do Tribunal da Relação, o acórdão recorrido não integra a previsão do artigo 671º do CPC.

Ao contrário do que sustenta a Reclamante o acórdão recorrido que confirmou o despacho da 1ª instância que indeferiu o diferimento de desocupação da casa onde habita a insolvente, não é uma decisão de mérito, para efeitos do disposto no artigo 671º n.º 1 do CPC.

O citado artigo estipula:

1 - Cabe revista para o Supremo Tribunal de Justiça do acórdão da Relação proferido sobre decisão da 1.ª instância, que conheça do mérito da causa ou que ponha termo ao processo, absolvendo da instância o réu ou algum dos réus quanto ao pedido ou reconvenção deduzidos.

2- Os acórdãos da Relação que apreciem decisões interlocutórias que recaiam unicamente sobre a relação processual só podem ser objeto de revista:

a) – Nos casos em que o recurso é sempre admissível;

b) – Quando estejam em contradição com outro, já transitado em julgado, proferido pelo Supremo Tribunal de Justiça, no domínio da mesma legislação e sobre a mesma questão fundamental de direito, salvo se tiver sido proferido acórdão de uniformização de jurisprudência com ele conforme.

Assim, diferentemente do previsto no artigo 644.º, n.º 1, alínea a), do CPC, quanto ao cabimento do recurso de apelação autónoma de decisão da 1.ª instância que ponha termo a incidente processado autonomamente, os parâmetros de admissibilidade da revista definidos no art.º 671.º, n.º 1, do mesmo diploma, circunscrevem-se aos acórdãos da Relação que, proferidos sobre decisão da 1.ª instância, conheçam do mérito da causa ou ponham termo ao processo, absolvendo da instância o réu ou algum dos réus quanto ao pedido ou reconvenção deduzidos.

Não se contemplam, pois, neste normativo as decisões finais dos incidentes da instância.

Os incidentes da instância traduzem relações processuais secundárias, intercorrentes no processo principal, de caráter episódico ou eventual, os quais se destinam, em regra, a prover sobre questões acessórias ( cf. Alberto dos Reis, em Comentário ao Código de Processo Civil, Vol. 3.º, pp. 560 e 563 e Salvador da Costa, Os Incidentes da Instância, 2ª edição, pp.7 e 8).

Como refere Alberto dos Reis o processo principal visa a solução da causa principal e o incidente visa a solução da questão secundária que se enxertou no processo principal.

Ora, no caso, o acórdão recorrido não se traduz em decisão que conheça do mérito da causa nem que tenha posto termo ao processo mediante absolvição do réu da instância ou por forma a esta equiparada.

O que se decidiu no acórdão recorrido foi a confirmação da decisão da 1.ª instância que indeferiu o requerimento apresentado pela Insolvente a pedir o diferimento da desocupação do imóvel onde habitava e fora penhorado desde maio de 2016, no âmbito de execução instaurada pelo credor hipotecário em 2011, apreendido no processo de insolvência a que a Insolvente se apresentou em 25.06.2019, tendo sido vendido neste processo de insolvência através de escritura pública celebrada em 15.12.2020.

Assim, nos termos do artigo 671º n.º 1 do CPC, os acórdãos da Relação que apreciem decisões incidentais não admitem recurso de revista, exceto quando o recurso seja sempre admissível.

Neste sentido Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta, Filipe Pires de Sousa, CPC Anotado, vol. I, pág. 807 escrevem: “ Em princípio, os acórdãos da Relação que apreciem decisões interlocutórias da 1ª instância sobre questões de natureza adjetiva não admitem recurso de revista, a não ser que integrem alguma das previsões constantes do artigo 629º n.º 2, ou entrem em contradição direta com acórdão do Supremo, já transitado em julgado, proferido no domínio da mesma legislação ( n.º 2 do artigo 671º). O mesmo ocorre com os acórdãos da Relação que recaiam sobre decisões incidentais.”

No mesmo sentido, José Lebre de Freitas, Ribeiro Mendes e Isabel Alexandre, CPC Anotado, 3º vol., pág. 199, escrevem, em anotação ao artigo 671º do CPC : “ Da comparação do n.º 1 com o artigo 644º n.º 1 a) resulta que por “decisão que ponha termo ao processo” é de entender o mesmo que “ por decisão que ponha termo à causa”, ficando de fora de previsão o que ponha a procedimento cautelar e a incidente, com procedimento autónomo ou não.”

E ainda o relevante acórdão de 29.06.2017, processo n.º 2487/07.1TBCBR-C.C1.S1 ( relator Tomé Gomes), com o sumário:

“I. Os incidentes da instância traduzem-se em relações processuais secundárias, intercorrentes no processo principal, de caráter episódico ou eventual, que se destinam a prover, em regra, sobre questões acessórias, nomeadamente respeitantes ao preenchimento ou à modificação de alguns dos elementos da instância em que se inserem, como sucede nos casos de substituição de alguma das partes - art.º 262.º, alínea a), do CPC.

II. Diferentemente do previsto no artigo 644.º, n.º 1, alínea a), do CPC, quanto ao cabimento do recurso de apelação autónoma de decisão da 1.ª instância que ponha termo a incidente processado autonomamente, os parâmetros de admissibilidade da revista definidos no n.º 1 do art.º 671.º do mesmo diploma não contemplam as decisões finais dos incidentes da instância que versem unicamente sobre a relação processual.

III. Assim, do acórdão da Relação que revogue uma decisão da 1.ª instância a julgar procedente um incidente de habilitação singular de cessionário, considerando, ao invés, tal habilitação improcedente com fundamento em nulidade, por simulação, da invocada cessão de crédito, só é admissível revista com base nos fundamentos especiais previstos nas alíneas a) e b) do n.º 2 do artigo 671.º do CPC.”

E ainda o acórdão do STJ de 03.10.2013, processo n.º 2656/107TBVFR-B.P1.S1, relator Nuno Cameira, com aplicação do CPC, na versão anterior à reforma de 2013, com o sumário:

I - É inadmissível recurso de revista de acórdão da Relação que aprecia um despacho que põe fim a um incidente de diferimento da desocupação de imóvel, deduzido em sede de oposição à execução para entrega de coisa certa.

II - Tratando-se dum despacho que põe fim a um incidente, admite recurso de apelação nos termos do art. 691.º, n.º 2, al. j), do CPC (na redacção do DL n.º 303/2007, de 24/08), sendo certo que, segundo o art. 721.º, n.º 1, deste Código, apenas cabe recurso de revista para o STJ do acórdão da Relação proferido ao abrigo do n.º 1 e da al. h) do n.º 2 daquele art. 691.º”.

Temos, pois, que o acórdão da Tribunal da Relação em causa que apreciou a decisão do incidente de diferimento da desocupação do imóvel não admite recurso de revista, por não conhecer do mérito da causa e, por conseguinte, também com este fundamento não é admissível revista “ordinária” e, por isso, também revista “excecional.”

Consequentemente o recurso não pode ser remetido à Formação para que seja conhecido o fundamento (interesse de particular relevância social), da revista excecional invocado pela Recorrente.


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Decisão

Pelo exposto, indefere-se a reclamação e mantém-se o despacho reclamado que não admitiu o recurso de revista.

Custas pela Reclamante, sem prejuízo do apoio judiciário de que beneficia.


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Lisboa, 17.09.2024

Leonel Serôdio ( relator)

Maria do Rosário Gonçalves ( 1ª adjunta)

Luís Espírito Santo ( 2º adjunto)