Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
07A074
Nº Convencional: JSTJ000
Relator: AZEVEDO RAMOS
Descritores: CONTRATO DE EMPREITADA
ABANDONO DA OBRA
DEFEITOS
INCUMPRIMENTO DEFINITIVO
INDEMNIZAÇÃO
Nº do Documento: SJ200703060741
Data do Acordão: 03/06/2007
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA
Sumário :
I – No contrato de empreitada aplicam-se as normas especiais dos arts 1207 e segs do C.C. e as gerais relativas ao cumprimento e incumprimento das obrigações que com as primeiras se não revelem incompatíveis .
2 – Tendo a obra sido voluntariamente abandonada pela empreiteira, antes de concluída, tal evidencia o seu propósito firme e definitivo de não cumprir a prestação, ficando aquela, a partir de então, colocada numa situação equivalente à de incumprimento definitivo .
3 – Havendo abandono, equivalente a incumprimento definitivo, não é exigível ao dono da obra que interpele o empreiteiro para eliminar os defeitos .
4 – Na hipótese de abandono definitivo de obra inacabada, por ocorrer incumprimento definitivo, deve ser considerado legítimo que o dono da obra conclua os trabalhos e corrija os defeitos, por sua iniciativa, justificando-se a concessão da indemnização correspondente ao interesse contratual positivo, mediante a colocação do dono da obra na situação em que estaria se esta tivesse sido concluída e o contrato pontual e exactamente cumprido
Decisão Texto Integral:
Acordam no Supremo Tribunal de Justiça :


Em 21-9-01, AA instaurou a presente acção ordinária contra a ré BB, L.da, pedindo :
- que seja declarado resolvido o contrato de empreitada celebrado entre o autor e a ré ;
- que se condene a ré no pagamento das seguintes quantias:
- 4.500.000$00, correspondente ao valor actual da empreitada de carpintaria, necessários para a execução dos trabalhos em falta e correcção dos defeitos ;
- 450.000$00, acrescida de juros, referente a prejuízos causados na pintura do imóvel;
- 51.585$00, acrescida de juros, correspondente ao valor dos vidros das portas de que se apropriou .
Para tanto, alega ter celebrado com a ré a execução de uma empreitada de carpintaria da sua moradia, pelo preço de 2.350.000$00, e o revestimento da escadaria, por 550.000$00 .
Do preço contratado já pagou a quantia de 2.500.000$00.
Todavia, a ré abandonou a empreitada, sem a concluir, executou-a com defeitos, apropriou-se de portas ali colocadas e danificou a pintura.
A ré contestou, por excepção e por impugnação, pugnando pela improcedência da acção .
Em reconvenção, pede a condenação do autor a pagar-lhe a importância de 1.435.880$00, correspondente à parte do preço em falta, bem como de trabalhos extra.
Houve réplica.

Realizado o julgamento e apurados os factos, foi proferida sentença que decidiu :
1- Julgar a acção totalmente procedente e, consequentemente:

a) – Declarar a resolução do contrato de empreitada celebrado entre o autor e a ré, referente à execução da carpintaria do prédio do autor ;
b) condenar a ré a pagar ao autor a quantia global de 24.947,60 euros (correspondente à soma dos pedidos de indemnização), acrescida de juros, à taxa legal de 7% desde a citação até 30 de Abril de 2003 e de 4% desde 1 de Maio de 2003 até efectivo pagamento .

2 – Julgar a reconvenção totalmente improcedente, absolvendo o autor do pedido reconvencional .
*
Apelou a ré, mas sem êxito, pois a Relação do Porto negou provimento à apelação e confirmou a sentença recorrida.

Continuando inconformada, a ré pede revista, onde conclui:
1 – Não pode ser considerado que a ré incumpriu o contrato de empreitada, em razão do abandono definitivo da obra .
2 – Também não pode ser entendido que a comunicação que o autor dirigiu à ré, datada de 13-3-01, possa valer como interpelação admonitória a que se refere o art. 808, nº1, do C.C., sendo que nem sequer se provou que o seu conteúdo fosse do conhecimento da ré .
3 – A resolução do contrato não se coaduna com o peticionado pedido de indemnização pelo interesse contratual positivo .
4 – A ré não pode ser condenada no pagamento da quantia de 4.500.000$00, que o autor peticiona como correspondente ao valor actual da empreitada, pois o dono da obra apenas tem direito a ser indemnizado pelos danos negativos, isto é, pelos danos que não teria sofrido se não tivesse celebrado o contrato .
5 – Não resultou provado qual o montante necessário para a conclusão da empreitada, por um lado, e para o serviço de levantamento das madeiras ali existentes, por outro, o que torna a decisão sobre a matéria de facto deficiente e obscura, a evidenciar a necessidade da sua anulação, para ampliação .
6 – A condenação no pagamento do referido montante de 4.500.000$00, correspondente a 22.445,90 euros, configura um abuso do direito .
7 – Considera violados os arts 224, 334, 436, 562, 563, 801, 808 e 1218 do C.C.

Não houve contra-alegações .

Corridos os vistos, cumpre decidir :


A Relação considerou provados os factos seguintes :

1 - A ré exerce a actividade de execução de empreitadas de carpintaria .

2 – O autor acordou com a ré o fornecimento, na sua moradia, de apainelados, rodapés, portas, vãos das portas e janelas, guarnições, faixas rodapé, armários e roupeiros, bem como de soalho em carvalho francês, em três quartos, pelo preço de 2.350.000$00 .

3 – O acordo foi celebrado em Junho de 2000.

4 – Também em Junho de 2000, a ré, a pedido do autor, acordou em revestir a escadaria interior da referida moradia, em madeira de carvalho francês, com balaústres, mediante o preço de 550.000$00.

5 – A ré recebeu do autor a quantia de 2.500.000$00 .

6 – O autor, por intermédio do seu advogado, enviou à ré a carta datada de 13-3-01, com o seguinte teor :
Acordaram V. Ex.as a execução de uma empreitada de carpintaria no prédio do meu cliente ...
Apesar da obra não estar concluída, a verdade é que a mesma apresenta graves defeitos de execução, nomeadamente :
a) Todas as portas estão empenadas e necessitam de afinação ;
b) A madeira das mesmas é de péssima qualidade, apresentando galhos ;
c) Os tectos não são em afizélia, conforme o acordado, e estão empenados ;
d) O soalho dos quartos apresenta galhos e tem de ser substituído, além de que apresenta emendas visíveis .
O meu cliente solicitou orçamento para eliminação de tais defeitos, o que tudo orça na quantia de cerca de 1.500.000$00, a que acrescerá a mão de obra.
Atendendo a que tem necessidade premente de ver concluída a casa, vem pela presente solicitar o seu acabamento, no prazo máximo de 15 dias, e bem assim a eliminação dos defeitos aqui denunciados .
Findo este prazo sem que V. Ex.as dêem cumprimento ao solicitado, o meu cliente considera rescindido o contrato, por incumprimento da vossa parte, adjudicando os trabalhos a outrem e debitando o que for devido.
Por último, solicita lhe sejam entregues as chaves da casa que V. Ex.as mantém em vosso poder “ .

7 – O autor enviou a carta referida no anterior nº6 porque a ré tinha deixado de comparecer na obra há várias semanas .

8 – No dia 23-3-01, após ter recebido a mencionada carta, a ré retirou da cave uma porta de duas folhas e uma porta de acesso ao vão de escada .

9 – E retirou do 1º andar uma porta de duas folhas, na sala, e uma outra de acesso ao vão de escada, a porta da cozinha, três portas dos quartos, uma porta da casa de banho, a porta da casa de banho privativa do quarto de casal, quatro portas do guarda-fatos e cinco portas de outro guarda-fatos .

10 – Nas portas referidas nos nºs 8 e 9 estavam colocados vidros lapidados, pagos pelo autor, no valor de 51.585$00 .

11 – Na empreitada estavam incluídas duas portas corta fogo, as quais não foram colocadas pela ré .

12 – Ao retirar as portas indicadas nos nºs 8 e 9, a ré danificou a pintura interior da moradia.

13 – A pintura das paredes, em consequência do indicado no nº12, ascende à quantia de 450.000$00 .

14 – A escada interior, forrada a carvalho, tem degraus fora de esquadria .

15 – A madeira do soalho, em carvalho francês, dos três quartos está deficientemente assente e muitas das tábuas são emendadas.

16 – Em consequência, o soalho tem de ser levantado e colocado de novo.

17 – Toda a madeira utilizada pela ré está “bichada” e podre.

18 – A madeira aplicada nos apainelados das portas e janelas estão em muito mau estado, sendo visíveis nós na madeira .

19 – A maioria dos balaústres da escadaria interior e os degraus estão partidos, estando alguns dos balaústres desalinhados dos restantes .

20 – Os tectos exteriores, em afizélia, estão abaulados, necessitando de substituição .

21 – Os aros das portas e janelas estão emendados, alguns com tacos ou rolhas de madeira .

22 – Os roupeiros estão forrados com contraplacados de madeiras diversas, com emendas mal rematadas e prumos emendados .

23 – A madeira da escada interior tem nós, está manchada e mal rematada e o corrimão está empenado, quer vertical, quer horizontalmente.

25 – E os balaústres não têm todos a mesma medida, estando alguns deles desligados dos degraus e partidos e alguns aumentados com colas e serrim.

26 – Os serviços de carpintaria que a ré não executou e o levantamento das madeiras ali existentes ascendem a 4.500.000$00 .


Por acordo da ré, constante do artigo 59 da contestação, está ainda provado, ao abrigo dos arts 659, nº3, 713, nº2 e 726 do C.P.C., que a aludida carta de 13-3-01 foi recebida pela mesma ré em 15-3-01 .


Vejamos agora o mérito do recurso .

Entre o autor e a ré foi celebrado o ajuizado contrato de empreitada da carpintaria .
O contrato de empreitada é um contrato bilateral ou sinalagmático de que resultam prestações recíprocas ou correlativas, isto é, interdependentes, sendo uma o motivo determinante da outra: a obrigação de executar a obra e a do pagamento do preço – art. 1207 do Cód. Civil.
O empreiteiro deve executar a obra em conformidade com o que foi convencionado e sem vícios que reduzam ou excluam o valor dela, ou a sua aptidão para o uso ordinário previsto no contrato – art. 1208.
O preço deve ser pago, não havendo cláusula em contrário, no acto da aceitação da obra- art. 1211, nº2.
O lesado com a defeituosa execução da obra, para se ressarcir dos respectivos prejuízos, deverá observar o regime estabelecido nos arts 1221, 1222 e 1223 do Cód. Civil, os quais conferem ao dono da obra uma série de direitos .
O dono da obra não pode seguir qualquer uma das vias apontadas, a seu livre arbítrio, estando antes obrigado, em princípio, a observar a ordem de prioridade dos direitos consagrados nos referidos preceitos legais .
No entanto, importa salientar que ao contrato de empreitada se aplicam as normas especiais dos arts 1207 e segs do C.C. e as gerais relativas ao cumprimento e incumprimento das obrigações que com as primeiras se não revelem incompatíveis .
No não cumprimento, em sentido lato, incluem-se a impossibilidade de cumprimento, o incumprimento definitivo propriamente dito, o incumprimento proveniente da conversão da situação de mora e a recusa categórica de cumprir .
É susceptível de se integrar na figura de recusa tácita, categórica, de cumprir o abandono definitivo, pelo empreiteiro, de obra inacabada.
Pois bem .
No caso concreto, apurou-se que a obra não foi concluída e apresenta defeitos .
Quanto ao momento do pagamento do preço acordado, não se provou que algo tivesse sido convencionado, mas a ré recebeu do autor 2.500.000$00 .
A ré abandonou a obra e não procedeu à sua conclusão, nem à reparação dos defeitos, conclusão e reparação que foram solicitadas pela carta de 13-3-01, recebida por esta em 15-3-01, sendo que tal comunicação se tornou eficaz nos termos do art. 224, nºs 1 e 2, do C.C., por ter sido recebida pela ré .
Com efeito, não logrou provar-se que a entrada da ré na obra fosse impedida pelo autor, através da mudança da fechadura, como foi invocado pela mesma ré para justificar a falta de conclusão da empreitada ( resposta negativa ao quesito 43º) .
Os serviços de carpintaria que a ré não executou e o levantamento das madeiras ali existentes ascendem a 4.500.000$00.
Só alguns dos defeitos que ficaram demonstrados foram denunciados, como resulta do confronto dos factos provados com o teor da dita carta de 13-3-01.
Todavia, tendo a obra sido voluntariamente abandonada pela empreiteira, antes de concluída, tal evidencia o seu propósito firme e definitivo de não cumprir a sua prestação, ficando a ré, a partir de então, colocada numa situação equivalente à de incumprimento definitivo .
Havendo abandono, equivalente a incumprimento definitivo, não é exigível ao dono da obra que interpele o empreiteiro para eliminar os defeitos, nos termos do art. 1220, nº1, do C.C.
Nessa hipótese de abandono definitivo de obra inacabada, como é o caso, por ocorrer incumprimento definitivo, deve ser considerado legítimo que o dono da obra conclua os trabalhos em falta e corrija os defeitos, por sua iniciativa, justificando-se a concessão da indemnização, correspondente ao interesse contratual positivo, mediante a colocação do dono da obra na situação em que estaria se esta tivesse sido concluída e o contrato pontual e exactamente cumprido ( Ac. S.T.J. de 21-10-03, Sumários de Acordãos do S.T.J., nº 74, pág. 71).
A condenação da ré no pagamento da referida quantia de 4.500.000$00 ao autor não configura qualquer abuso do direito, face aos factos que resultaram provados e ao disposto no art. 334 do C.C.
A matéria de facto apurada constitui base suficiente para a decisão de direito, não se justificando a sua ampliação – art. 729, nº3, do C.P.C.

Termos em que, embora com diversa fundamentação, negam a revista .
Custas pela recorrente .

Lisboa, 6-3-2007

Azevedo Ramos ( relator)
Silva Salazar
Afonso Correia