Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
8942/19.3T8VNG.P1.S2
Nº Convencional: 1.ª SECÇÃO
Relator: JORGE ARCANJO
Descritores: INVENTÁRIO
NOTÁRIO
RECLAMAÇÃO
RELAÇÃO DE BENS
REMESSA PARA OS MEIOS COMUNS
SUSPENSÃO
ÓNUS DE ALEGAÇÃO
RECURSO DA MATÉRIA DE FACTO
REAPRECIAÇÃO DA PROVA
PRESUNÇÃO JUDICIAL
MODIFICABILIDADE DA DECISÃO DE FACTO
IMPUGNAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO
LIVRE APRECIAÇÃO DA PROVA
CONCLUSÕES DA MOTIVAÇÃO
PRINCÍPIO DA PROPORCIONALIDADE
Data do Acordão: 06/18/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA
Sumário :
I.-O ónus de especificação imposto pelo art.640 nº1 a) CPC só se revela cumprido se os concretos pontos de facto impugnados constarem de forma inequívoca das respectivas conclusões, pois são elas que delimitam objectivamente o recurso e o poder de cognição do tribunal, pelo que tal omissão implica a imediata rejeição, sem que haja lugar a aperfeiçoamento.

II.-Em processo de inventário, no âmbito do Regime Jurídico do Processo de Inventário (RJPI), aprovado pela Lei nº 23/2013, de 5 de Março, deduzido incidente da reclamação de bens, e tendo o Notário determinado a remessa dos interessados para os meios comuns, a circunstância do interessado, que impugnou a relação de bens, não haver proposto acção no prazo que foi fixado pelo Notário não preclude o direito a defender-se em acção contra si instaurada pela outra interessada.

Decisão Texto Integral:

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça

I - RELATÓRIO



1.1.- A Autora – AA - instaurou acção declarativa, com forma de processo comum, contra o Réu – BB.

Alegou, em resumo:

A Autora e Réu foram casados entre si, tendo-se divorciado por mútuo consentimento, em cuja acção declararam como bens que constituíam o património comum do casal, designadamente uma quota na sociedade S..., Lda. e a fracção autónoma/garagem, designada pelas letras “AH”.

No subsequente processo de inventário para partilha dos bens, cujos termos correram em Cartório Notarial, a Autora relacionou tais bens como comuns, mas o Réu reclamou alegando que a quota da sociedade em referência era um bem próprio deste, pois tinha sido adquirida com recurso a capitais do seu pai, tal como sucedeu com a fracção autónoma AH.

A Senhora Notária, entendendo que havia diversas questões complexas suscetíveis de influírem na partilha e bens a partilhar, por despacho de 4 de Setembro de 2017, determinou a remessa dos autos para os meios comuns. E, por despacho de 17 de Maio de 2019, decidiu que as verbas correspondentes à participação social identificada, os dividendos gerados nessa sociedade desde a data de trânsito em julgado do divórcio, até ao trânsito da partilha, os suprimentos e outros créditos, gerados na dita sociedade desde a data de trânsito em julgado do divórcio e a fracção AH correspondente a um lugar de garagem, se mantinham relacionados como bens comuns.

Pediu a condenação do Réu a reconhecer que a quota no valor nominal de €135.000,00, representativa do capital social da sociedade comercial S..., Lda., bem como os dividendos, os suprimentos e outros créditos, gerados na dita sociedade desde a data de trânsito em julgado do divórcio e até à data de trânsito em julgado da partilha, tal como a fracção AH identificada nos autos, não são bens próprios deste, mas sim bens comuns do casal, tendo, assim, a Autora direito à titularidade da meação dos referidos bens.

1.2. – O Réu contestou, alegando que os bens lhe são próprios.

1.3. – Realizada audiência de julgamento, foi proferida sentença que decidiu julgar a acção improcedente e absolver o Réu do pedido.

1.4. – A Autora recorreu de apelação e a Relação, por acórdão de 27 de Novembro de 2023, decidiu julgar improcedente o recurso e confirmar a sentença.

1.5. – Inconformada, a Autora recorreu de revista, com as seguintes conclusões:

1)Recorrente interpôs um recurso que visava efectivamente –não se tratando de mera aparência – a impugnação da matéria de facto.

2) Por conseguinte, como flui do teor das alegações deduzidas, a Recorrente entendeu que deveria ter sido dado como provado que, a participação social no capital da sociedade S..., Lda., os dividendos gerados nessa sociedade desde a data de trânsito em julgado do divórcio, até trânsito em julgado da partilha, os suprimentos e outros créditos gerados na dita sociedade e a fracção AH, foram adquiridas com dinheiro que foi emprestado ao Réu, pelo seu pai.

3)Ao contrário do decidido na douta sentença que, deu como provado que os bens em causa apenas foram adquiridos pelo Réu, recorrendo a dinheiro que lhe tinha sido doado pelo pai.

4)Tendo ficado, assim, delimitado o objecto do recurso, no que diz respeito à matéria de facto.

5) Para tanto, a Recorrente invocou o depoimento prestado em audiência de discussão e julgamento pelas testemunhas CC e DD. Além disso, a Recorrente indicou com exactidão as passagens da gravação em fundou o seu recurso, tendo, inclusivamente, transcrito um pequeno excerto das declarações prestadas pela testemunha CC.

6) Nessa conformidade, salvo melhor opinião, entende-se que a Recorrente cumpriu o ónus que lhe era imposto pela alínea a), do nº2, do artigo 640º, do CPC.

7) Do mesmo modo, também em sede das conclusões do recurso, a Recorrente fez menção expressa ao depoimento das referidas testemunhas, alegando que estas através do mesmo, afirmaram que a quota no capital da sociedade S..., Lda., os dividendos gerados nessa sociedade desde a data de trânsito em julgado do divórcio, até trânsito em julgado da partilha, os suprimentos e outros créditos gerados na dita sociedade e a fracção AH, tinham sido adquiridas com dinheiro que foi emprestado ao Réu, pelo seu pai.

8)Também nas conclusões a Recorrente deu cumprimento ao ónus consagrado no artigo 640º, nº2, al. a) do CPC, indicando, claramente, as passagens da gravação dos depoimentos das testemunhas em referência, com a referência exacta e precisa aos respectivos minutos em que tais declarações ocorreram.

9)Desta feita, temos de considerar que a Recorrente cumpriu os ónus a que estava adstrita em razão das regras contidas no artigo 640º, do CPC, pelo que o recurso, no que tange à impugnação da matéria de facto não deveria ter sido rejeitado.

10)Por outro lado, no que respeita à decisão de mérito, há que dizer que em face da matéria considerada provada na douta sentença recorrida, impunha-se que se confirmasse a decisão tomada pela Senhora Notária nos autos de inventário, e se determinasse que os bens relacionados eram comuns, e não, bens próprios do Réu.

11)Salvo melhor entendimento, tal questão ficou definitivamente resolvida no decurso do processo de inventário, uma vez que o Réu não deu cumprimento ao que lhe foi determinado pela Senhora Notária. Ou seja, por não aceitar a relação de bens constante do processo de inventário, o Réu tinha o ónus de recorrer aos meios comuns para dirimir tal questão, no prazo de 30 dias, que lhe havia sido fixado.

12) Ora, não tendo o Réu recorrido aos meios comuns até ao termo desse prazo, esse seu direito deveria considerar-se definitivamente extinto.

13)Por remissão do artigo 82º, da Lei 23/2013, não pode restar nenhuma dúvida que o prazo em causa é de natureza peremptória, considerando-se precludido o direito do Réu, o que significa que o Réu se conformou com o decidido no processo de inventário acerca da natureza comum dos bens relacionados.

14)Assinale-se ainda que estamos perante matéria de conhecimento oficioso e, não obstante os factos dado como provados na sentença imporem que daí se extraíssem consequências, a verdade é que o Tribunal de Primeira Instância não se pronunciou sobre tal facticidade. Neste sentido, esta matéria só foi objecto de apreciação no douto Acórdão recorrido, pelo que, salvo o devido respeito, entendemos que não existe dupla conforme, no que concerne a este segmento decisório.

15) O Acórdão recorrido violou o disposto nos artigos 139º e 640º, do CPC e os artigos 17º e 82º, da Lei 23/2013.

1.6. – O Réu contra-alegou no sentido da improcedência do recurso.


II – FUNDAMENTAÇÃO


2.1. – Delimitação do objecto do recurso

As questões submetidas a revista, delimitada pelas conclusões, são as seguintes:

A impugnação de facto e a violação do ónus de especificação;

A preclusão do direito do Réu.

2.2. – Os factos provados

1. Autora e Réu contraíram casamento em 06.09.2002, sem convenção antenupcial (cfr. documento n.º 1 anexo à petição inicial, cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido);

2. No pretérito ano de 2015, o Réu propôs contra a aqui Autora uma ação judicial de divórcio sem consentimento do outro cônjuge cujos termos correram pelo Tribunal Judicial da Comarca de Braga, Instância Central de...,...ª Secção de Família e Menores – J..., sob o nº 929/15.T... (cfr. teor do documento referido no facto anterior);

3. No dia 12 de maio de 2015, em audiência de tentativa de conciliação, a Autora e o Réu acordaram em converter a referida ação de divórcio sem consentimento do outro cônjuge em divórcio por mútuo consentimento (cfr. teor do documento identificado no facto 1º);

4.Nessa conformidade, acordaram na regulação do exercício de responsabilidades parentais, na prestação de alimentos e na utilização da casa de morada de família (teor do documento referido no facto 1º);

5. Tendo os aqui Autora e Réu declarado na referida audiência que os bens comuns eram os seguintes: o recheio da casa de morada de família, uma quota na sociedade S..., Lda., uma fração autónoma/garagem AH (artigo 6310 da freguesia de .../...) e um veículo automóvel, marca Volvo, com a matrícula ..-..-ZX (cfr. teor do documento referido no facto 1º);

6. Os acordos relativos à regulação do exercício de responsabilidades parentais, homologados por sentença judicial (cfr. teor do documento referido no facto 1º);

7. Foi naquela data de 12 de maio de 2015 decretado o divórcio por mútuo consentimento entre os cônjuges, os ora Autora e Réu (cfr. teor do documento referido no facto 1º);

8. Em consequência da sentença que decretou o divórcio entre as partes, no dia 22 de setembro de 2015, a Autora apresentou o requerimento inicial de inventário, cujos termos correram pelo Cartório Notarial da Dra EE (cfr. teor do documento nº 2 anexo à petição inicial, cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido);

9. No decurso do dito processo de inventário a cabeça de casal, ora Autora, apresentou a competente relação de bens (cfr. teor do documento nº 2 anexo à petição inicial, cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido);

10. Na mencionada relação de bens constavam, para além de outros, aqueles que foram referidos pelos cônjuges aquando da realização da tentativa de conciliação (cfr. teor do documento nº 3 anexo à petição inicial, cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido);

11. O Réu veio deduzir reclamação contra a relação de bens apresentada pela Autora, dizendo, em suma, o seguinte: a quota da sociedade em referência era um bem próprio deste, pois tinha sido adquirida com recurso a capitais do seu pai, e invocando que a fração autónoma designada pelas letras “AH” foi adquirida com capitais próprios (cfr. documento n.º 4, anexo à petição inicial, cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido);

12. Defendendo que não poderiam ser considerados como bens comuns os dividendos gerados pela quota, como os suprimentos ou demais créditos sobre a identificada sociedade comercial, porquanto estes teriam outrossim sido assegurados com dinheiro pertencente ao pai do Réu (cfr. teor do documento identificado no facto anterior);

13. Esclareceu ainda o Réu que aqueles capitais (dinheiro) do pai lhe tinham sido por ele emprestados (cfr. teor do documento referido no facto 11º);

14. Posteriormente, o Réu disse que se a quota foi relacionada no processo de divórcio como um bem comum, esse facto resultou de um ato inadvertido, tratando-se uma declaração meramente indicativa (cfr. documento n.º 5 anexo à petição inicial, cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido);

15. A sociedade S..., Lda., foi constituída no dia 24.10.2005 (cfr. documento n.º 1, anexo à contestação, cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido);

16. A quota relacionada tem um valor nominal de €135.000,00;

17. O valor da quota foi realizado mediante dois depósitos efetuados numa conta bancária titulada pela sociedade no Banco Santander;

18. O primeiro depósito, no valor de 67.500,00 €, foi feito pelo Réu no dia 10 de outubro de 2005;

19. A Autora foi avalista de uma obrigação assumida pela sociedade perante uma instituição financeira;

20. A fração autónoma/garagem identificada pelas letras “AH” (artigo ...10 da freguesia de .../...) foi comprada no dia 5 de agosto de 2013 (cfr. documento n.º 10, anexo à contestação, cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido);

21.Do contrato de compra e venda não consta qualquer menção sobre a proveniência e titularidade do dinheiro com que foi pago o preço de aquisição da referida fração autónoma (cfr. teor do documento identificado no facto anterior);

22. Em face das questões suscitadas pelo Réu, a Senhora Notária entendeu que havia diversas questões complexas, suscetíveis de influírem na partilha e bens a partilhar, ordenando, assim, por despacho datado de 4 de setembro de 2017, a remessa dos autos para os meios comuns (cfr. documento n.º 9, anexo à petição inicial, cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido);

23. Por despacho judicial, de 29 de setembro de 2017, proferido pelo Juiz de Direito do Juízo de Família e Menores de ... – Juiz ..., foi ordenada a devolução dos autos ao Cartório Notarial, uma vez que considerou que o Juízo de Família e Menores não era o tribunal competente para dirimir os litígios em causa (cfr. documento n.º 10 anexo à petição inicial);

24. A Senhora Notária, proferiu novo despacho, onde remetia o Inventariado, aqui réu, para os meios comuns, dado que, por este não aceitar a relação de bens constante dos autos, caber-lhe-ia lançar mão do meio processual adequado à resolução das questões controvertidas, ordenando a suspensão dos autos (cfr. documento n.º 11, anexo à petição inicial);

25. Contudo, não foi fixado prazo para a propositura da ação por parte do Réu, o que determinou uma reclamação da aqui Autora;

26. Essa reclamação foi deferida pela Senhora Notária que concedeu ao Réu o prazo de 30 dias, para poder recorrer aos meios comuns e interpor a competente ação judicial (cfr. documento n.º 12, anexo à petição inicial);

27. Por despacho de 6 de fevereiro de 2019, a Senhora Notária considerou que o despacho recorrido se tratava de um ato de mero expediente, pelo que era irrecorrível, nos termos do disposto no nº4, do artigo 152º, do CPC (cfr. documento n.º 14, anexo à petição inicial);

28. O Inventariado, agora réu, notificado do despacho proferido pela Senhora Notária, conformou-se com teor do mesmo, mas, apesar disso, não intentou a competente ação judicial, como lhe foi determinado;

29. Face à inércia do Réu ao não propor a competente ação judicial, a Senhora Notária, por despacho de 6 de fevereiro de 2019, ordenou o prosseguimento dos autos de inventário (cfr. teor do documento referido no facto 27º);

30. Por despacho de 17 de maio de 2019, a Senhora Notária determinou que, nomeadamente as verbas correspondentes à participação social identificada em supra, os dividendos gerados nessa sociedade desde a data de trânsito em julgado do divórcio, até ao trânsito da partilha, os suprimentos e outros créditos, gerados na dita sociedade desde a data de trânsito em julgado do divórcio e a fração AH correspondente a um lugar de garagem, se mantinham relacionados como bens comuns (documento n.º 15 anexo à petição inicial, cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido);

31. Notificado deste derradeiro despacho, o Réu manteve a sua postura e não propôs nenhuma ação judicial;

32.A sociedade comercial S..., Lda., teve como sócios fundadores o aqui Réu e G..., S.L. (cfr teor do documento identificado no facto 15º);

33. O capital social de €300.000,00, foi realizado unicamente quanto a 50%, no montante de €135.000,00, estipulando-se que o restante deveria ser realizado por ambos os sócios, também em dinheiro, no prazo de cinco anos;

34. O capital social foi subscrito do seguinte modo:

a) Pela sócia G..., S.L.: €165.000,00, realizado quanto a €82.500,00;

b) Pelo sócio BB: €135.000,00, realizado quanto a €77.500,00; (cfr. teor do documento referido no facto 15º);

35. No dia 15.09.2005, os pais do Réu efetuaram uma transferência bancária para a conta nº480-10.199370.1, do Banco Montepio, titulada apenas pelo Réu, no montante de €75.000,00;

36. No dia 23.01.2006, foi efetuada uma nova transferência pelos seus pais, desta feita no montante de €52.000,00 para a conta titulada pelo Réu;

37. Utilizando aqueles montantes, o Réu emitiu, à ordem da sociedade comercial mencionada, para realização do capital social, em 10.10.2005 e em 9.02.2006, dois cheques (n.ºs ...81 e ...83), cada um no valor de €67.500,00 sacados sobre a conta n.º ...01, de que era o único titular;

38. O cheque n.º ...81 foi depositado na conta da sociedade S..., Lda.;

39. O cheque n.º ...83 foi igualmente depositado na conta da sociedade S..., Lda.;

40. Tendo-se a Autora limitado a ir depositar o cheque a que se alude no número anterior;

41. As quantias supra identificadas foram doadas ao Réu pelos seus pais;

42. E tal sucedeu diversas vezes, ao longo da vida da sociedade;

43. Em 26.07.2006, quando, uma vez mais, o pai do Réu depositou na sua conta um cheque no montante de €131.665,31;

44. Que, depois de descontado, pelo menos parte, foi transferido para a conta da sociedade (€58.500,00);

45. Houve ainda lugar a uma transferência efetuada diretamente pela mãe do Réu para a referida sociedade, em 26.10.2011, da quantia de €31.500,00;

46. O preço da fração autónoma a que se alude no facto 20º foi pago pelo pai do Réu, Sr. FF;

47. Que o doou ao seu filho.

2.3. - Os factos não provados

a) No dia 7 de fevereiro foi realizado pela Autora o depósito em falta para a realização do capital social, com dinheiro que lhe pertencia, ascendendo ao montante de €67.500,00;

b) O dinheiro utilizado para a realização da quota social pelo Réu foi emprestado pelo pai deste ao casal;

c) Todas as quantias “injetadas” na sociedade comercial S..., Lda. não provieram do património do Réu, mas sim do dos seus pais.

2.4. - A impugnação de facto e o ónus de especificação

A Relação rejeitou a impugnação de facto com a justificação de que a Autora não deu cumprimento ao ónus imposto no art.640 nº1 CPC, na medida em que não indicou os pontos de facto que considerou incorrectamente julgados, nem a decisão alternativa.

A recorrente vem dizer que cumpriu, não havendo fundamento para a rejeição. Alega que, no entanto, que o concreto ponto de facto impugnado resulta do corpo das alegações:

“Porém, é verdade que a Recorrente não disse, explicitamente, que não se deveria ter dado como provado o facto ínsito no nº41 do elenco dos factos considerados provados na douta sentença.

Sendo igualmente certo que não referiu categoricamente que deveria ter sido dado como provado, o facto vertido na alínea b), dos factos não provados.

Todavia, essa situação, de maior ou menor clareza dos factos impugnados, pelos fundamentos aduzidos, salvo o devido respeito, que é muito, não determinou nem prejudicou a inteligibilidade do fim e do objecto do recurso.

Acresce que, a Recorrente terminou as conclusões alegando que, em razão dos fundamentos expendidos (prova do empréstimo e não da doação), o Tribunal teria de ter dado como provado que, a participação social no capital da sociedade S..., Lda., os dividendos gerados nessa sociedade desde a data de trânsito em julgado do divórcio, até trânsito em julgado da partilha, os suprimentos e outros créditos gerados na dita sociedade e a fracção AH, são bens comuns do casal, ao invés de não provado”.

A revisão do Código de Processo Civil, operada pelo Decreto-Lei nº329-A/95 de 12/2, instituiu, de forma mais efectiva, a garantia do duplo grau de jurisdição da matéria de facto, que foi reforçada com o novo Código de Processo Civil aprovado pela Lei nº 41/2013 de 26/6 (art. 662), nomeadamente quanto à incrementação dos poderes conferidos à Relação no âmbito da reapreciação de facto.

No entanto, o poder de cognição do Tribunal da Relação sobre a matéria de facto não assume um espectro tão abrangente que implique um novo e integral julgamento de facto. Desde logo, porque a possibilidade de conhecimento está confinada aos pontos de facto que o recorrente considere incorrectamente julgados, com os pressupostos adrede estatuídos no art.640 CPC (ónus de especificação).

A razão de ser da exigência do ónus da especificação consta do preâmbulo do Decreto-Lei nº39/95 de 15/2, visando afastar a possibilidade de o recorrente se limitar “a atacar, de forma genérica e global, a decisão de facto, pedindo pura e simplesmente a reapreciação de toda a prova produzida em 1ª instância e manifestando genérica discordância com o decidido”, decorrendo ainda dos princípios estruturantes da cooperação, lealdade e boa-fé processuais.

Dispõe o art.640 nº1 CPC:

“Quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição:

“a) - Os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados;

“b) - Os concretos meios probatórios constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida.”

c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de factos impugnadas”.

Os concretos pontos de facto impugnados devem ser feitos nas respectivas conclusões, porque delimitadoras do âmbito do recurso e constituírem o fundamento da alteração da decisão. Já quanto à especificação dos meios probatórios, a lei não impõe que seja feita nas conclusões, podendo sê-lo no corpo da motivação, o mesmo sucede quanto à exigência da decisão alternativa, conforme fixação de jurisprudência, através do AUJ nº12/2023 de 17/10/2023, publicado no DR 1ª Série de 14/11/2023.

Para além deste ónus primário, a lei impõe ainda um ónus secundário (art.640 nº2 a) CPC), pois quando os meios de prova tenham sido gravados “incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso na respectiva parte, indicar com exactidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes”.

Verifica-se que nas conclusões da apelação a recorrente não indica os pontos de facto - como reconhece - pelo que não deu cumprimento ao ónus primário, conforme justificou o acórdão recorrido.

A jurisprudência do Supremo tem sido reiteradamente uniforme no sentido de que os concretos pontos de facto impugnados só relevam se constarem das respectivas conclusões de forma inequívoca, porque são elas que delimitam objectivamente o recurso e o poder de cognição do tribunal, pelo que tal omissão implica a imediata rejeição, sem que haja lugar a aperfeiçoamento ( cf., por ex., Ac STJ de 16/5/2018 ( proc nº 2833/16), Ac STJ de 19/12/2018 ( proc nº 2364/11), Ac STJ de 14/2/2023 ( proc nº 82/20), .Ac STJ 27/4/2023 ( proc nº 4696/15), Ac STJ de 16/11/2023 ( proc nº 31206/15), disponíveis em www dgsi.pt ).

Compreende-se a exigência do ónus de conclusão, porque é através dela que se delimita objectivamente o recurso, logo, o poder de cognição do tribunal da Relação e como se observou no ac do STJ de 26/5/2015 ( proc. nº 1426/08), disponível em www dgsi.pt – “ a exigência de conclusões na alegação cumpre uma missão importante de levantamento das questões controversas, procurando evitar a impugnação geral, vaga e indefinida, mas, também, a viabilização do exercício do contraditório, de modo a não criar dificuldades acrescidas à posição da outra parte, privando-a de elementos importantes para organizar a sua defesa, em sede de contra-alegações”.

O Tribunal Constitucional tem reiterado que a imposição de ónus e preclusões processuais às partes no âmbito do processo civil, inserindo-se na liberdade de conformação do legislador ordinário, não é, em princípio, incompatível com a garantia fundamental de acesso ao direito e à justiça ( art.20 CRP), desde que não sejam arbitrários ou desproporcionados, quando confrontada a conduta imposta com a consequência desfavorável em virtude da omissão ( cf., por ex., Ac. nº122/02 de 14/3/02, Ac. nº403/02 de 9/10/02). No tocante à imposição de ónus às partes, o Tribunal Constitucional tem decidido que o juízo de proporcionalidade implica três factores: a justificação da exigência processual, a maior ou menor onerosidade por parte do interessado e a gravidade das consequências ligadas ao incumprimento do ónus (cf., por ex., Ac TC nº do 332/07, nº760/13, nº 639/14, nº 96/16).

Ora, a exigência do ónus de conclusão não é excessiva, pois não se revela oneroso para a parte, nem a consequência da rejeição, tal como sucede com o decurso do prazo ou a falta de legitimidade do recorrente. Neste sentido, decidiu-se, por exemplo, no Ac STJ de 19/9/2019 (proc. nº 3419/14) em www dgsi.pt – “Nos termos do art. 641.º, n.º 2, al. b), do CPC, a falta de apresentação de conclusões das alegações no prazo peremptório para a dedução do recurso não pode ser suprida, designadamente na sequência de convite, antes determina o indeferimento do recurso. Tal norma, com essa interpretação, não viola os arts. 2.º e 20.º da Constituição”.

2.5. – A preclusão do direito do Réu

A recorrente alega que não tendo o Réu/recorrido instaurado acção no prazo de 30 dias que senhora Notária fixou, para o efeito, deve ter-se por definitivamente assente que os bens, aqui em discussão, assumem a natureza de bens comuns, conforme foram relacionados no inventário. Para tanto, diz que o prazo fixado é peremptório, nos termos do art.139 nº3 CPC, por remissão do art.82 da Lei nº23/2013, cujo decurso fez extinguir o direito.

Contudo, esta argumentação é insubsistente e até mesmo contraditória, conforme se passa a explicitar.

A Lei nº 23/2013, de 5 de Março, que aprovou o Regime Jurídico do Processo de Inventário (RJPI), insere-se no âmbito do chamado “movimento de desjudicialização”, com uma repartição de competências, num “sistema mitigado”, relevando para a situação dos autos a versão inicial, sem a alteração introduzida pela Lei nº 117/2019 de 13 de Setembro por força do regime transitório ( art.11 nº2 – “O regime jurídico do processo de inventário, aprovado em anexo à Lei n.º 23/2013, de 5 de março, continua a aplicar-se aos processos de inventário que, na data da entrada em vigor da presente lei, estejam pendentes nos cartórios notariais e aí prossigam a respetiva tramitação”).

Como se lê na Exposição de motivos da Proposta de Lei 105/XII que deu origem à Lei nº23/2013, “o Regime Jurídico do Processo de Inventário aprovado pela presente lei cria um sistema mitigado em que a competência para o processamento dos atos e termos do processo de inventário é atribuída aos cartórios notariais, sem prejuízo de as questões que, atenta a sua natureza ou a complexidade da matéria de facto e de direito, não devam ser decididas no processo de inventário, serem decididas pelo juiz do tribunal da comarca do cartório notarial onde o processo foi apresentado”.

Iniciando-se o processo no Cartório Notarial, a lei atribui desde logo ao Notário poderes de direcção – “Ao notário compete dirigir todas as diligências do processo de inventário e da habilitação de uma pessoa como sucessora por morte de outra, sem prejuízo dos casos em que os interessados são remetidos para os meios judiciais comuns” (art.3 nº4). O RJPI confere ao juiz da Comarca uma dupla competência: uma competência própria e uma competência em sede de recurso. Para além desta competência própria, a lei atribui competência hierárquica para sindicar determinadas decisões proferidas pelo Notário, sempre que delas houver recurso (art.67 CPC), como, por exemplo, nas situações dos arts.16 nº4, 57 nº4 RJPI.

No processo de inventário, apresentada a relação de bens pelo cabeça de casal, os interessados são notificados para dela reclamar, podendo acusar a falta de bens que devam ser relacionados ou requerer a exclusão.

Deduzida a reclamação da relação de bens por omissão de relacionação ou pedindo a exclusão, não confessando o cabeça de casal o seu dever de os relacionar, são os interessados notificados para apresentarem as provas e, apresentadas que sejam, depois de produzidas, segue-se a decisão do juiz sobre a pertinência ou não da relacionação dos bem. Porém, quando a complexidade da matéria de facto subjacente às questões suscitadas tornar inconveniente a decisão incidental da reclamação, deve o juiz, por um lado, abster-se de decidir e, por outro, remeter os interessados para os meios comuns.

Pode também o juiz, com base na apreciação sumária das provas produzidas, deferir provisoriamente a reclamação, com ressalva do direito às acções competentes. Ambas as soluções (decisão provisória ou remessa para os meios comuns) pressupõem que a complexidade da matéria de facto subjacente à questão a dirimir torne inconveniente a decisão incidental no inventário, por implicar a redução das garantias das partes.

Deste modo, perante o incidente de reclamação de bens, a lei (arts.16, 17, 36 do RJPI) prevê que o Notário possa tomar uma das seguintes soluções: (1) decisão incidental definitiva, (2) decisão incidental provisória ou (3) remessa dos interessados para os meios comuns.

Tendo a Autora apresentado na relação de bens as verbas nºs 1, 2, 3, 4, 5 e 7 como bens comuns a partilhar, o aqui réu deduziu incidente de reclamação opondo-se à relacionação, alegando que tais bens só próprios, devendo ser excluídos da partilha.

Porque ambas as partes requereram a remessa para os meios comuns, por despacho de 17 de Julho de 2017 (documentado no processo) a senhora Notária, invocando os arts.16 nº1 e 2 e 36 nnº1 do RJPI, decidiu remeter os interessados para os meios comuns, concluindo: “Ordeno a suspensão deste processo de inventário nos termos do art.16 nº2 e 2 RJPI, até ser decidida a questão da qualificação dos bens”.

Por despacho de 8 de Novembro de 2018 (também documentado) foi fixado ao inventariado, aqui Réu, o prazo de 30 dias para a instauração da acção.

Por despacho de 6 de Fevereiro de 2019 (documentado no processo) ordenou-se o prosseguimento dos autos.

Ao contrário do que alega a recorrente, o prazo fixado pela senhora Notária não é um prazo peremptório cujo decurso implique a perda do direito de acção. Não se trata de um direito submetido a prazo de caducidade, que a lei não prevê, mas antes de um prazo de suspensão do inventário, como resulta da conjugação dos despachos, já que se suspendeu a instância, tendo-se ordenado o prosseguimento, findo o prazo de 30 dias.

Por outro lado, nem sequer o Réu exerceu o direito de acção (a acção foi instaurada pela Autora), mas antes confrontado com o pedido da Autora, através da presente acção, exercitou o direito ao contraditório na contestação, ao alegar que os bens são próprios e não comuns e o decurso do prazo, tal como foi fixado notarialmente, não precludiu o seu direito de defesa.

Acresce, como salientou o acórdão recorrido, a senhora Notária nada decidiu sobre a natureza comum ou própria dos bens das verbas 1, 2, 3, 4, 5 e 7, como se consignou no despacho de 17 de Maio de 2019:

“Quanto às verbas n° 1, 2, 3, 4, 5 e 7, dada a reclamação apresentada pelo inventariado e a falta de legitimidade do Notário para decidir uma questão de direito referente à natureza dos bens, foram as partes remetidas para os meios comuns.

Apesar da remessa quanto à classificação da natureza destes bens das referidas verbas, este mantém-se como relacionados como bens comuns, no presente inventário, como refere o número 2 art, 36º RJPI, “2 - No caso previsto no número anterior, não são incluídos no inventário os bens cuja falta se acusou e permanecem relacionados aqueles cuja exclusão se requereu".

Assim sendo, o processo prossegue os seus termos, considerando-se as referidas verbas como relacionados, ainda que tenha sido reclamada a sua exclusão; caso venha, ulteriormente, a ser decidida nos meios comuns a inexistência desses bens no património do dissolvido casal, pode haver lugar a nova partilha, nos termos do artigo 69 do RJPI. (…)”

Mas, com o devido respeito, a posição da recorrente revela-se até contraditória, porque ao instaurar a presente acção evidencia que a questão não ficou definitivamente resolvida no inventário, de outra forma seria incongruente e não faria sentido a sua pretensão.

Improcede a revista, confirmando-se o douto acórdão recorrido.


III – DECISÃO


Pelo exposto, decidem:

1)


Julgar improcedente a revista e confirmar o acórdão recorrido.

2)


Condenar a recorrente nas custas.


Lisboa, Supremo Tribunal de Justiça, 18 de Junho de 2024.

Jorge Arcanjo (Relator)

Pedro Lima Gonçalves

Maria João Tomé