Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça | |||
Processo: |
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Nº Convencional: | JSTJ000 | ||
Relator: | SOUSA PEIXOTO | ||
Descritores: | PODERES DA RELAÇÃO RESPOSTAS AOS QUESITOS ALTERAÇÃO PRESUNÇÕES JUDICIAIS NULIDADE DE ACÓRDÃO ACIDENTE DE TRABALHO DESCARACTERIZAÇÃO DE ACIDENTE FALTA GRAVE E INDESCULPÁVEL CULPA DO TRABALHADOR ARGUIÇÃO DE NULIDADES INTERPOSIÇÃO DE RECURSO REQUERIMENTO | ||
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Nº do Documento: | SJ200503100040904 | ||
Data do Acordão: | 03/10/2005 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Tribunal Recurso: | T REL ÉVORA | ||
Processo no Tribunal Recurso: | 854/04 | ||
Data: | 06/08/2004 | ||
Texto Integral: | S | ||
Privacidade: | 1 | ||
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Meio Processual: | REVISTA. | ||
Decisão: | NEGADA A REVISTA. | ||
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Sumário : | 1. As nulidades do acórdão têm de ser arguidas no requerimento de interposição de recurso. 2. A Relação não pode alterar as respostas aos quesitos se não tiver havido gravação da prova e o juiz tiver fundamentado a sua convicção nos depoimentos prestados oralmente e em documentos particulares de livre apreciação. 3. O facto de não ter havido testemunhas oculares do acidente não obsta a que o tribunal dê como provada determinada versão do acidente, com base em presunções judiciais. 4. Só há falta grave e indesculpável da vítima, quando a sua conduta atentar contra o mais elementar sentido de prudência. 5. Tal não acontece quando o acidente ocorreu pelo facto de a viatura ter começado a andar para trás, por deficiência do travão de mão ou por este não ter sido devidamente accionado pelo trabalhador, que por ela veio a ser colhido, por ter escorregado e caído, quando, ao aperceber-se do andamento da mesma, tentou segurá-la pela parte traseira. | ||
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Decisão Texto Integral: | Acordam na secção social do Supremo Tribunal de Justiça: 1. "A" propôs no tribunal do trabalho de Setúbal a presente acção emergente de acidente de trabalho contra B - Companhia de Seguros, S.A., pedindo que a ré fosse condenada a pagar-lhe uma pensão anual e vitalícia, alegando que seu marido C foi vítima de um acidente de trabalho mortal em 2 de Maio de 1999, quando se encontrava ao serviço de D. A ré contestou por impugnação e excepcionou a descaracterização do acidente, alegando a este respeito que o sinistrado apresentava uma taxa de alcoolemia de 1,08g/l que terá afectado seriamente o seu comportamento, toldando-lhe a lucidez e levando-o a arriscar a vida de forma temerária. Realizado o julgamento, a acção foi julgada procedente e a ré foi condenada a pagar à autora a pensão anual e vitalícia de 2.092,20 euros, com início em 3 de Maio de 1999 e a reembolsar o Instituto de Solidariedade Social e Segurança Social/Centro Nacional de Pensões das pensões de sobrevivência que pagou à autora. A ré apelou, sem sucesso, para o Tribunal da Relação de Évora e interpôs agora o presente recurso de revista, tendo concluído as suas alegações da seguinte forma: «1. A Recorrente suscitou, no seu recurso, não haver sido notificada da decisão sobre a matéria de facto, o que 2. Teria inviabilizado a hipótese de a atacar por via das contradições e obscuridade nela encerradas. 3. Reconhecendo implicitamente aquela falta de notificação tanto assim é que sobre as suscitadas contradições se pronunciou, a Relação ficou aquém do que lhe competia, 4. Já que não extraiu as consequências jurídicas daquela falta de notificação. Não exerceu de pleno a jurisdictio. 5. Envolvendo aquela falta de notificação matéria que influiu na decisão, segue-se que o vício emergente é a nulidade- V. art.º 201º, nº l, do Cód. de Processo Civil. 6. Nem se diga que a Recorrente não arguiu qualquer nulidade já que o Tribunal não está vinculado às interpretações jurídicas das partes, e 7. Porque às partes basta suscitar os factos, sendo irrelevante não fazer o respectivo enquadramento jurídico. 8. A Recorrente vem, simultaneamente, já que nada havendo eles presenciado se limitaram a traçar conjecturas a partir do cadáver de C, e 9. Por outro lado por via da ausência de razoabilidade dos seus depoimentos que não conheciam a vítima nem dela conheciam qualquer rotina. 10. Esta questão não recolheu, todavia, a utilidade de uma linha que fosse da Relação - V. Conclusões 11 e 12. 11. É certo que, escudando-se na falta de gravação da audiência, a Relação considerou ser-lhe impossível a reapreciação da prova. Porém, 12. Quanto à falta de qualidade das pretensas testemunhas, questão prévia ao conhecimento dos seus relatos, nada disse - V. Conclusões 11 e 12, pelo que 13. Se abre espaço à nulidade por virtude de o Tribunal deixar de se pronunciar sobre questão que devesse - V. art.º 668, n.º 1, do Cód. de Processo Civil. 14. Incorporam os autos relatórios dos agentes da judiciária ouvidos em audiência. Consequentemente, 15. A partir dos mesmos, que não andarão longe dos relatos verbais, é sempre possível a modificação da matéria de facto dando-se como não provados os quesitos 1° a 9°, 14° e 15° - V. art.º 712°, n.º l, a), do Cód. de Processo Civil. 16. De resto, os quesitos 1.º a 8.º que decorrem da matéria articulada sob os artigos 2.º a 7.º da p. i., reconduzem àqueles ditos relatórios. 17. Relativamente à incongruência contida nas respostas 3° e 4°, cuja persiste, tal se deve ao facto de que no primeiro momento, sem estar travada a viatura manteve-se quieta e, no segundo, travada, deslizou. 18. Ficou provado que o travão de mão funcionava de modo deficiente (resposta ao quesito 12°). 19. Ficou igualmente provado que C por vezes se esquecia de accionar o travão de mão ( resp. ao quesito 11). 20. Estes factos por si só impunham a C usar da máxima diligência, quer evitando esquecer-se de o accionar, quer accionando-o devidamente e, em via de reforço, engrenar à viatura uma velocidade contrária ao possível sentido da sua deslocação em razão de eventual deslize. 21. E configurando o local uma ligeira inclinação (situação do inteiro conhecimento de C, alias à semelhança do mau funcionamento do travão) era-lhe absolutamente fácil antever o deslize, pelo que 22. Não havendo feito uso da caixa de velocidades imprimindo à viatura a 1.ª velocidade, o que teria evitado que a mesma deslizasse, C revelou, a um tempo, um comportamento merecedor de forte censura que traduz exclusividade e falta grave e indesculpável sua na produção do acidente. 23. Ao minimizar o comportamento exigível a C naquelas circunstâncias concretas (travão deficiente e inclinação do terreno), mal andou a Relação já que desprezou o contexto em que ocorreu a deslocação da viatura. 24. Supondo que C, ao aperceber-se da deslocação da viatura, teria tentado segurá-la pela parte traseira e assim atropelado, esta sua conduta configura acto temerário já que estando a viatura em movimento e em plano inclinado a tarefa de a suster era francamente irrealizável por um só homem, pelo que, 25. Aconselharia a prudência que evitasse a trajectória da viatura em lugar de se expor ao risco que lhe seria fatal. 26. A pretensão da Recorrida deve ser denegada já que não foi feita prova do acidente e ainda que tivesse sido feita este estaria sempre descaracterizado. 27. O acórdão fez violação dos artigos 342°, do Cód. Civil, 201, n.º 1, 668, n.º1, d), 712, n.º 1, a), do Cód. de Processo Civil, Base VI, n.º1, b), da Lei n. 2127 de 03/08/65 e art. 13° do Decreto n.º 360/71, de 21 de Agosto. Termos em que, Revogando a decisão e, em seu lugar outra produzida decretando a absolvição da Recorrente, Vossas Excelências farão JUSTIÇA.» A autora não contra-alegou e a Ex.ma Procuradora-Geral Adjunta emitiu douto parecer no sentido de ser negada a revista. Colhidos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir. 2. Os factos Nas instâncias foram dados como provados os seguintes factos: Da especificação: 1) C faleceu no dia 02.05.1999, no estado de casado com a A., A. 2) No dia 02.05.1999, C trabalhava ao serviço de D, na Herdade do Zambujal, Águas de Moura. 3) No dia 02.05.99, C foi encontrado debaixo da viatura ligeira de mercadorias QQ. 4) C faleceu em virtude de asfixia por compressão toráxica com fractura múltipla de costelas, conforme relatório da autópsia que consta do fls. 26 e 27 dos autos, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido para todos os efeitos legais. 5) C auferia a retribuição de 111.700$00 x 14 meses. 6) D havia transferido para a Ré Seguradora a responsabilidade pelos danos emergentes de acidente de trabalho de que fosse vítima C, mediante contrato de seguro titulado pela apólice n.º 10-212799 que consta dos documentos que constituem fls. 5 a 9, 12 e 13. 7) Aquando da realização da autópsia, C apresentava uma taxa de alcoolémia de 1,08 gr/litro. 8) Referindo o Sr. perito médico que efectuou o relatório da autópsia, na adenda ao mesmo que consta de fls. 28 dos autos, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido para todos os efeitos legais, que a taxa de alcoolemia referida em G) «representa que o indivíduo se encontrava sob a influência da acção perturbadora do álcool.». 9) C era beneficiário do Centro Regional de Segurança Social com o n.º 107078458. 10) Em consequência do falecimento do referido C, conforme alínea D), a A. requereu ao Instituto de Solidariedade e Segurança Social (ISSS)/ Centro Nacional de Pensões o pagamento das prestações por morte daquele, o que foi deferido. 11) Tendo, em consequência, o Centro Nacional de Pensões (CNP) pago à A. a quantia de 790.010$00, a título de subsídio por morte. 12) Bem como, a título de pensões de sobrevivência referentes ao período de Junho de 1999 a Abril de 2003 inclusive, a quantia global de € 6.992,22. 13) Sendo o valor mensal da pensão de sobrevivência, em Abril de 2003, de € 137,28. Do questionário: 14) No dia 02.05.99, entre as 13h30 e as 14h00, depois de ter ido a Águas de Moura buscar pregos necessários ao seu trabalho e levar o almoço a sua sogra, C regressava à herdade referida em B), para aí continuar o seu trabalho, vindo de tal localidade, (Resp. quesito 1º ) 15) Conduzindo a sua viatura referida em C). (Resp. quesito 2º) 16) Ao chegar ao local a que chamam «Portão do Ministro», C, de modo a poder abrir o portão que dá acesso à propriedade referida em B), parou a viatura, saiu da mesma e abriu o portão. (Resp. quesito 3º) 17) Após ter entrado com a viatura pelo referido portão, C voltou a parar a viatura, tendo-a travado e dela saído para fechar o portão. (Resp. quesito 4º) 18) Após o referido no quesito 4º, a viatura, que se encontrava em terreno ligeiramente inclinado, começou a deslizar para trás, segundo essa inclinação, vindo a atropelar C na sequência do referido nas respostas aos quesitos 14º e 15º, (Resp. quesito 5º) 19) E, com ele já entalado entre o chão e os órgãos inferiores da viatura (diferencial), arrastou-o cerca de um metro, (Resp. quesito 6º) 20) Apenas se detendo quando a pressão da viatura no seu corpo foi tal que a impediu de prosseguir. (Resp. quesito 7º) 21) A viatura, cuja caixa de velocidades não se encontrava com qualquer mudança engatada, deslocou-se em consequência ou de deficiência do travão de mão ou de este não ter sido completamente accionado por C. (Resp. quesito 8º) 22) As lesões referidas em D) resultaram do descrito nos quesitos 6º e 7º.(Resp. quesito 9º) 23) Por vezes, o C esquecia-se de accionar o travão de mão. (Resp. quesito 11º) 24) O travão de mão funcionava mal. (Resp. quesito 12º) 25) O Centro Nacional de Pensões tem continuado a pagar à A. a pensão de sobrevivência, incluindo o pagamento de um 13º mês de pensão em Dezembro e de um 14 mês em Julho de cada ano. (Resp. quesito 13º) 26) C, quando se apercebeu de que a carrinha estava a deslocar-se, tentou fazê-la parar, segurando-a pela sua parte traseira. (Resp. quesito 14º) 27) E tendo C escorregado e caído ao chão, em consequência do que foi colhido pela carrinha.. (Resp. quesito 15º) 3. O direito Como resulta das conclusões apresentadas pela recorrente, são três as questões por ela suscitadas: - nulidades do acórdão, - alteração da matéria de facto, - descaracterização do acidente. 3. 1 Nulidades do acórdão Segundo a recorrente, o acórdão da Relação é nulo por não se ter pronunciado sobre as consequências da nulidade processual resultante de ela não ter sido notificada da decisão proferida sobre a matéria de facto e por não se ter pronunciado sobre a questão relativa à falta de seriedade dos dois agentes da polícia judiciária que depuseram como testemunhas. Sobre esta questão, limitamo-nos a dizer que este tribunal não pode conhecer das alegadas as nulidades, por não terem sido arguidas no requerimento de interposição de recurso, conforme dispõe o n.º 1 do art. 72.º do CPT81 (1), aplicável aos acórdãos da Relação, conforme, reiteradamente, este tribunal tem vindo a decidir (2). Com efeito, tendo as referidas nulidades sido arguidas apenas nas alegações do recurso, essa arguição é manifestamente extemporânea e tal facto obsta a que dela se conheça. 3.2 Da alteração da matéria de facto No recurso de apelação, a recorrente pretendia que as respostas dadas aos quesitos 1.º a 9.º, 14.º e 15.º fossem alteradas, no sentido de os referidos quesitos serem dados como não provados, com o fundamento de que não tinha sido feita qualquer prova sobre os respectivos factos, pois ninguém teria presenciado o acidente, limitando-se as testemunhas arroladas pela autora a fazer conjecturas acerca do mesmo. O Tribunal da Relação não procedeu à reapreciação da matéria de facto, com o fundamento de que a prova produzida em audiência não tinha sido objecto de gravação. A recorrente discorda daquela decisão, por entender que "os autos comportam documentos vários e, curiosamente, oferecidos pela própria Recorrida e através dos quais é perfeitamente possível aquilatar da natureza dos depoimentos testemunhais que suportam a decisão", que "inexistem quaisquer testemunhas oculares do pretenso acidente" e que "os testemunhos sobre os quais foi erguida a decisão foram prestados exactamente pelos mesmos agentes da polícia judiciária que, não havendo presenciado o que quer que fosse, depressa cederam à especulação conforme decorre dos seus relatórios carreados pela Recorrida (...)." Segundo a recorrente, a Relação, ao não reapreciar a matéria de facto, violou o disposto no art. 712, n.º 1, a), do CPC. Será que ela tem razão? E, adiantando desde já a resposta (3), diremos que não, pois, como claramente consta do art. 712, n.º 1, al. a), do CPC, a decisão do tribunal da 1.ª instância sobre a matéria de facto só pode ser alterada pela Relação "se do processo constarem todos os elementos de prova que serviram de base à decisão sobre os pontos da matéria de facto em causa ou se, tendo ocorrido gravação dos depoimentos prestados, tiver sido impugnada, nos termos do art. 690-A, a decisão com base neles proferida." Ora, como se constata da fundamentação das respostas aos quesitos (a fls. 210 e 211 dos autos), as respostas dadas aos quesitos 1.º a 9.º, 14.º e 15.º basearam-se no depoimento de parte da autora, nos depoimentos das testemunhas E, F, G, H, I, J e L e nos documentos de fls. 44 a 64 (duas "informações de serviço" elaboradas pelos agentes da policia judiciária que se deslocaram ao local do acidente no dia em que o mesmo ocorreu, relatando o que aí observaram, nomeadamente a posição da carrinha e do corpo da vítima; fotografias então tiradas pelos referidos agentes da polícia; um "relato de diligência externa" em que participaram três agentes da polícia judiciária, dando conta da sua deslocação à morgue no dia em que a autópsia foi realizada e das informações então prestadas pelo médico que a realizou; três autos de "Informação" levados a cabo dias após o acidente os quais se traduziram na recolha de declarações prestadas pela viúva e pela filha do sinistrado e por M). E sendo assim, é óbvio que a Relação não podia sindicar as respostas dadas aos quesitos, uma vez que, não tendo havido gravação da prova, não podia averiguar da existência de eventual erro por parte do M.mo Juiz na apreciação dos referidos depoimentos, sendo certo que os documentos invocados pela recorrente não têm força probatória superior à da prova testemunhal, por serem de livre apreciação no que diz respeito às circunstâncias em que o acidente ocorreu. Se a recorrente queria precaver-se contra um eventual erro na apreciação das provas e, consequentemente, contra um eventual erro de julgamento na decisão que viesse a ser proferida sobre a matéria de facto, só tinha um caminho a seguir que era o de requerer a gravação da prova. Não o tendo feito, a sua pretensão de a Relação alterar as respostas dadas aos quesitos, com fundamento na alegada falta de credibilidade das testemunhas é logicamente descabida e processualmente insustentável, desde logo porque a falta de credibilidade das testemunhas só foi suscitada na fase de recurso, pois, como da acta de audiência e julgamento se constata, nada foi requerido a esse respeito. E nem se diga, como faz a recorrente, que a falta de gravação da prova era, in casu, irrelevante, por não haver testemunhas oculares do acidente e que, por isso, a Relação não estava impedida de proceder à alteração da matéria de facto. Com efeito, apesar de não ter havido testemunhas presenciais do acidente (conforme é reconhecido na fundamentação das respostas aos quesitos), tal facto não impedia que o tribunal estivesse impedido de chegar a uma conclusão acerca das circunstâncias em que o acidente ocorreu. Mal andaria a administração da justiça se os tribunais só pudessem formar a sua convicção sobre a existência de determinados factos quando acerca deles houvesse testemunhas oculares ou outras provas imediatas. A recorrente ou, melhor dizendo, o seu mandatário não pode ignorar que é lícito ao tribunal socorrer-se de provas mediatas, nomeadamente das chamadas presunções judiciais (art. 351 do C.C.). Estas, como é sabido, são ilações que o julgador tira de um facto conhecido, para firmar um facto desconhecido (art. 349 do CC) e, como dizem A. Varela (4) e Manuel de Andrade (5) , fundam-se e mergulham nas regras práticas da experiência, no curso ou andamento natural das coisas, na normalidade dos factos, nos ensinamentos hauridos através da observação (empírica) dos factos e são continuamente usadas pelo juiz na apreciação de muitas situações de facto. E não pode ignorar que a prova, no âmbito da administração da justiça, ao invés do que ocorre com a demonstração, no campo da matemática, ou com a experimentação, no âmbito das ciências naturais, não visa obter a certeza lógica ou absoluta, mas apenas a convicção (o grau de probabilidade) essencial às relações práticas da vida social (a certeza histórico-empírica) (6). Como diz Manuel de Andrade (7), a prova não é certeza lógica, mas tão-só um alto grau de probabilidade, suficiente para as necessidades práticas da vida (certeza histórico-empírica) e pode dizer-se que haverá prova acerca dum ponto de facto logo que o material probatório existente nos autos já permita ao juiz uma opinião (mais do que a ignorância ou a dúvida, e menos do que a certeza, que corresponde à evidência) quanto a esse ponto. Deste modo e ao contrário do que a recorrente alega, não há nada de fantasioso ou de hollywoodesco em dar como provada determinada versão do acidente com base nos indícios materiais recolhidos pelas testemunhas, no local do acidente, momentos depois de este ter ocorrido. 3.3 Da descaracterização do acidente A recorrente insiste na tese de que o acidente ocorreu exclusivamente por culpa grave e indesculpável do sinistrado (8). Segundo ela, "a mera circunstância do travão de mão funcionar de forma deficiente seria por si só bastante para indiciar, claramente, situação de perigo eminente pelo que, em consequência, exigível se tornou, por esse facto, que C usasse da máxima prudência quer evitando esquecer-se de accionar o travão de mão, quer accionando-o devidamente e reforçando a imobilização com o auxílio da caixa de velocidades engatilhando uma velocidade contrária à do sentido do possível deslize. Ora se a isto acrescermos que tudo se passou em local com ligeira inclinação, então, concluiremos que acrescida deveria ter sido a prudência do C (...) E supondo que C, quando se apercebeu de que a carrinha estava a deslocar-se, tentou fazê-la parar, segurando-a pela sua traseira, sempre se dirá que a sua conduta assumiu um acto notoriamente temerário porquanto a prudência aconselharia a que, na circunstância, se pusesse a salvo da trajectória da carrinha, desta fugindo em lugar de, arvorando-se em gigante, se entregar à tarefa irrealizável por um só homem." Será que a recorrente tem razão? Vejamos. Nos termos da alínea b) do n.º 1 da Base VI da Lei n. 2127, de 3/8/65 (aqui aplicável, uma vez que o acidente ocorreu durante a sua vigência), não dá direito a reparação o acidente "que provier exclusivamente de falta grave e indesculpável da vítima." E, conforme ainda recentemente se disse no acórdão deste tribunal, de 2.2.2005 (9), citando Tomás de Resende (10), para descaracterizar o acidente com base na falta grave e indesculpável da vítima, não basta a culpa leve, como a mera negligência, imprudência, distracção, imprevidência ou comportamentos semelhantes. Exige-se um comportamento temerário, reprovado pelo mais elementar sentido de prudência, pois, como é sabido, a Lei n.º 2127 não se limitava a dizer que a falta tinha de ser grave. Acrescentava que tinha de ser indesculpável, o que pressupunha, já nessa altura, a ideia de que o acto praticado teria de revelar um negligência grosseira, conceito que a actual lei dos acidentes de trabalho veio expressamente a adoptar no seu art. 7, n. 1, al. b) (11). Efectivamente, para que o acidente possa ser descaracterizado não basta que seja imputável a uma qualquer omissão do dever geral de cuidado. Utilizando a terminologia clássica, não basta que a vítima tenha actuado com culpa levíssima ou com culpa leve, isto é, não basta que tenha omitido os deveres de cuidado que uma pessoa excepcionalmente diligente teria observado (culpa levíssima) e não basta que tenha omitido os deveres de cuidado que uma pessoa normalmente diligente teria respeitado (culpa leve). É preciso que haja uma culpa grave, isto é, é preciso que a vítima tenha deixado de observar os deveres de cuidado que só uma pessoa particularmente negligente deixaria de observar, isto é, é preciso que a culpa se apresente como negligência grosseira que é a negligência que os romanos apelidavam de nimia ou magna negligentia e que segundo eles, consistia em non intelligere quod omnes intelligunt (12). E é preciso, ainda, que a falta seja indesculpável, isto é, é preciso que se trate de uma falta absolutamente desnecessária, de uma falta absolutamente inútil. E este tem sido o entendimento uniforme, quer da doutrina quer da jurisprudência: - A gravidade do acto "há-de traduzir-se em imprudências ou temeridades inúteis, de todo inexplicáveis, por isso, indesculpáveis, sem ligação directa com o trabalho." (Carlos Alegre, in Acidentes de Trabalho, Notas e Comentários à Lei n.º 2127, Almedina, pag. 51 e 52). - "Da alínea b) resulta que a presente lei, como todas as inspiradas no risco da autoridade, continua (como a anterior) a considerar indemnizáveis os acidentes resultantes de negligência, imprudência, imprevidência, imperícia, distracção, esquecimento de uma ordem, e comportamentos análogos, abrangidos na figura jurídica da culpa em sentido genérico, como a simples e involuntária inobservância daquela diligência que se deveria ter empregado, e que se tivesse sido empregada teria impedido a realização do facto danoso. Para aplicação da alínea b) do n.º 1 é preciso que haja um comportamento temerário, reprovado por um elementar sentido de prudência, uma imprudência e temeridade inútil, indesculpável, mas voluntária embora não intencional (...)." (Cruz de Carvalho, Acidentes de Trabalho e Doenças Profissionais, 1980, Petrony, pag. 42). - "Não basta a culpa leve, uma simples imprudência, uma distracção ou comportamento semelhantes para descaracterizar o acidente. É necessário um comportamento temerário ou reprovado por um elementar sentido de prudência e, como bem mostra o emprego do advérbio "exclusivamente", que para ele não haja concorrência de culpa da entidade patronal (...) Por outras palavras, essa culpa grave resultará portanto do incumprimento voluntário, por parte da vítima de um acto das suas funções, quando tal atitude era perigosa e conhecida como tal, não sendo necessária, nem útil, nem fora ordenada ou expressamente autorizada." (Melo Franco, Acidentes de Trabalho e Doenças Profissionais, in BMJ (Suplemento- ano 1979), pag. 72 ). - "Ao referir-se que a falta da vítima deve ser grave e indesculpável, tem-se por finalidade acentuar o elevado grau de reprobabilidade e censurabilidade do comportamento objectivador dessa falta. Para que se verifique aquela falta grave e indesculpável necessária se torna a existência de um comportamento temerário, inútil, indesculpável, reprovado por um elementar sentido de prudência e ainda que tal comportamento seja a causa única do acidente, como se retira da expressão "exclusivamente." (Ac. do STJ de 7.10.98, Colectânea de Jurisprudência, Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça, ano VI, tomo III, 1998, pag. 256). Deste modo, para que o acidente possa ser descaracterizado com base na al. b) do n.º 1 da Base VI da Lei n.º 2127 e, consequentemente, para que se verifique a exclusão da responsabilidade pela sua reparação, é necessário que se verifiquem cumulativamente os seguintes requisitos: a) culpa grave e indesculpável da vítima; b) a exclusividade dessa culpa. Posto isto e revertendo agora ao caso em apreço, está provado que o acidente ocorreu pelo facto da carrinha que o sinistrado conduzia (e que era sua propriedade) ter começado a andar para trás, quando ele tinha saído dela, para ir fechar o portão por onde acabara de entrar na Herdade do Zambujal, onde prestava a sua actividade, tendo sido atropelado e colhido pela dita carrinha, por ter escorregado e caído ao chão, quando, ao aperceber-se da sua deslocação, tentava deter a sua marcha, segurando-a pela parte traseira. Também está provado que o terreno no local do acidente era ligeiramente inclinado, que o sinistrado tinha travado a carrinha quando saiu para fechar o portão, que aquela não tinha engatada qualquer mudança e que começou a deslizar devido ou a deficiência do travão de mão (que funcionava mal) ou por este não ter sido completamente accionado pelo sinistrado. Perante os factos referidos, temos de concluir, antes de mais, que o acidente só ao sinistrado pode ser imputado, por não estar provado que para ele tenha contribuído a conduta de mais alguém, seja a conduta da entidade patronal seja a conduta de terceiras pessoas. Assim não seria se a carrinha pertencesse à entidade empregadora, pois, nesse caso, o mau funcionamento do travão de mão talvez permitisse imputar o acidente àquela entidade. Resta, por isso, averiguar se o acidente ocorreu efectivamente por culpa grave e indesculpável da vítima. E como já foi referido, segundo a recorrente, o sinistrado teria agido com falta grave e indesculpável, por duas razões. Em primeiro lugar, por não ter utilizado a caixa de velocidades, mais propriamente por não ter engatado a primeira velocidade e, em segundo lugar, por ter tentado parar a carrinha pela parte traseira da mesma. Diz a recorrente que o sinistrado devia ter engatado a primeira velocidade, uma vez que o terreno era inclinado e o travão de mão funcionava mal. Acontece, todavia, como se diz no acórdão da Relação, que nem sequer se sabe qual foi a verdadeira razão da carrinha ter começado a deslizar: se foi a deficiência do travão de mão ou se foi o facto de este não ter sido devidamente (completamente) accionado. De qualquer modo, se foi devido à deficiência do travão, só haveria culpa do sinistrado se ele tivesse conhecimento dessa deficiência (o que nem alegado foi), pois nesse caso a prudência aconselharia que ele deixasse a carrinha engatada na primeira velocidade. Se foi por não ter accionado completamente o travão, então o uso da caixa de velocidades não era necessário, tanto mais que o declive do terreno era ligeiro, mas, nesse caso, o sinistrado teria actuado com negligência, por não ter accionado completamente o travão. Contudo, em quaisquer dos casos, a sua falta de diligência estaria longe de configurar um caso de negligência grosseira, não passando de simples, frequente e vulgar descuido em que quase todos os condutores incorrem. Nomeadamente em relação à não utilização da caixa de velocidades, tal precaução, segundo o critério de um bonus pater familias, não se mostrava especialmente exigível, até porque o tempo de paragem seria muito curto (o tempo de fechar o portão). Só uma pessoa extremamente diligente teria tomado aquele cuidado. Relativamente ao facto de tentar segurar a carrinha, temos de reconhecer que aí já houve alguma temeridade, sabido como é que uma viatura como a dos autos (vide fotos de fls. 52 e 53) pesa mais de 2.000 Kg e não é fácil de deter por uma pessoa só. Todavia, tal conduta também não pode ser considerada como uma verdadeira temeridade, por resultar, como se disse nas instâncias, de um impulso natural, de uma reacção instintiva e instantânea e, por conseguinte de um acto irreflectido, levado a cabo sem o sinistrado ter ponderado devidamente o respectivo risco, nomeadamente o risco de escorregar e cair, como veio a acontecer. 4. Decisão Nos termos expostos, decide-se negar a revista e manter a douta decisão recorrida. Custas pela recorrente. Lisboa, 10 de Março de 2005 Sousa Peixoto, Vítor Mesquita, Fernandes Cadilha. ----------------------------------- (1) - O CPT aqui aplicável é o CPT aprovado pelo DL n.º 281-A/81, de 30/9, uma vez que o processo foi instaurado em 3.5.99 (data em que a participação do acidente deu entrada em juízo) e o CPT aprovado pelo DL n.º 480/99, de 9/11, só entrou em vigor no dia 1.1.2000 e só é aplicável aos processos instaurados a partir dessa data (vide art. 3.º do DL n.º 480/99). (2) - Vide, por todos, o recente acórdão de 14.12.2004, proferido no processo n.º 2169/04, 4.ª Secção e os acórdãos nele citados (3) - Anote-se que não seria de conhecer desta questão, se o processo tivesse sido instaurado depois da entrada em vigor do DL n.º 375-A/99, de 20/9, que aditou o n.º 6 ao art. 712.º do CPC, nos termos do qual as decisões da Relação relativas à matéria de facto não são susceptíveis de recurso. Diz aquele n.º 6: "6. Das decisões da Relação previstas nos números anteriores não cabe recurso para o Supremo Tribunal de Justiça." (4) - A. Varela, Miguel Bezerra e Sampaio e Nora, Manual de Processo Civil, 2.ª Edição, Coimbra Editora, pag. 502). (5) - "Presunções naturais - de facto (praesumptiones facti ou hominis), judiciais, simples, ou de experiência - São as que resultam da experiência (das máximas de experiência), do curso ou andamento natural das coisas, da normalidade dos factos (regra da vida; quod plerumque accidit), sendo livremente apreciadas pelo juiz." - Noções Elementares de Processo Civil, Coimbra Editora, 1979, pag. 215-216 -. (6) - A. Varela, ob. cit., pag. 407-408. (7) - Ob. cit., pag. 191 e 192. (8) - Anote-se que a recorrente abandonou a tese da descaracterização do acidente com base na alcoolemia, que tinha sustentado na contestação e no recurso de apelação, embora nas alegações do recurso (mas não já nas conclusões) ainda se refira a alcoolemia, dizendo não ser de excluir que o facto de o sinistrado não estar completamente lúcido tenha contribuído para a eclosão do acidente. (9) - Proc. n.º 3151/04, da 4.ª Secção, de que foi relator o Ex.mo Conselheiro Paiva Gonçalves. (10) - Acidentes de Trabalho, pag. 22. (11) - Art. 7.º da Lei n.º 100/97, de 13/9: "1. Não dá direito a reparação do acidente: a) (...) b) Que provier exclusivamente de negligência grosseira do sinistrado." (12) - Inocêncio Galvão Telles, Direito das Obrigações, Coimbra Editora, 2.ª edição, pag. 304. |