Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça | |||
Processo: |
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Nº Convencional: | 2.ª SECÇÃO | ||
Relator: | CATARINA SERRA | ||
Descritores: | TRIBUNAL DA RELAÇÃO PODERES DO TRIBUNAL QUALIFICAÇÃO JURÍDICA INTERPRETAÇÃO DA LEI CAUSA DE PEDIR NULIDADE DE SENTENÇA EXCESSO DE PRONÚNCIA ERRO DE DIREITO LEI PROCESSUAL MATÉRIA DE DIREITO PODERES DE COGNIÇÃO BAIXA DO PROCESSO AO TRIBUNAL RECORRIDO | ||
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Data do Acordão: | 02/16/2023 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
Privacidade: | 1 | ||
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Meio Processual: | REVISTA | ||
Decisão: | CONCEDIDA | ||
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Sumário : | I. O artigo 5.º, n.º 3, do CPC dá expressão à ideia ou regra conhecida como “iura novit curia”, ou seja, de que o juiz conhece (todo) o direito. II. Nos termos do artigo 5.º, n.º 3, do CPC, o julgador não está circunscrito às alegações das partes no que toca à indagação, à interpretação e à aplicação das regras jurídicas aplicáveis. III. Sempre que o enquadramento jurídico realizado pelo tribunal se contenha dentro dos limites da factualidade essencial alegada e seja adequado ao efeito prático-jurídico pretendido, pode o tribunal realizá-lo, posto que as partes tenham tido oportunidade de se pronunciar sobre ele, sendo poder-dever do julgador proceder à requalificação ou reconfiguração normativo-jurídica do caso quando cumpridas aquelas condições. | ||
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Decisão Texto Integral: | ACORDAM NO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA
I. RELATÓRIO
Recorrentes: AA e mulher, BB Recorrida: Sortami - Mediação Imobiliária, Lda.
1. AA e mulher, BB, intentaram contra A..., S.A., e Sortami – Mediação Imobiliária, Lda., acção declarativa de condenação, com processo comum. Alegaram, em síntese, que: - sendo habitualmente residentes em ..., os autores decidiram comprar casa em Portugal; - em 2017, contactaram CC, que trabalha para a 2.ª ré, transmitindo-lhe que pretendiam uma casa com 4 ou 5 quartos, que pudesse ser explorada turisticamente quando os autores aí não permanecessem; - por indicação de CC, os autores acederam a um site, consultaram uma brochura e visitaram uma moradia com 5 quartos; - em 10.10.17, o autor e a 1ª ré, celebraram contrato-promessa de compra e venda da referida moradia; - o contrato foi enviado ao autor via e-mail, ele assinou-o e devolveu-o pelo mesmo meio; - nessa data, sinalizaram a compra com 100.000,00€ em dinheiro e, mais tarde, vieram a reforçar o sinal com as quantias de 70.000,00€ e 45.000,00€, que transferiram para uma conta da 2.ª ré; - os autores pagaram mais 200.000,00€ e 15.342,81€ e, em 26.1.18, os autores e a 1ª ré celebraram escritura pública de compra e venda, pagando, ainda, 180.000,00€; - após, foi-lhes entregue ficha técnica de habitação e certificado energético do imóvel, que os autores se limitaram a arquivar; - alguns meses depois, pretenderam licenciar a moradia para alojamento local e vieram a tomar conhecimento que a moradia em causa estava licenciada como V2 e não como V5; - se o tivessem sabido antes, os autores nunca a teriam comprado por 600.000,00€, uma vez que uma moradia com 2 quartos não valeria mais do que 350.000,00€; - as rés prestaram informação falsa sobre características essenciais do imóvel e devem ser condenadas solidariamente a pagar-lhes a quantia de 250.000,00, correspondente à diferença entre a quantia paga e o efectivo valor de mercado da moradia.
2. A 1.ª ré A..., S.A., contestou, invocando, em resumo, que: - celebrou com a 2.ª ré um contrato de mediação imobiliária, para que esta promovesse a venda da moradia em questão por 700.000,00€; - não contactou nem negociou com os autores; - não elaborou o contrato-promessa; - aceitou vender por 500.000,00€ e foi esse valor que recebeu; - os autores tiveram conhecimento das qualidades e composição do imóvel, não tendo sido enganados pela 1ª ré; - o imóvel não vale menos do que os autores pagaram e a 1ª ré não o venderia por preço inferior. Concluiu pela sua absolvição do pedido.
3. A 2.ª ré Sortami – Mediação Imobiliária, Lda., apresentou contestação, dizendo, em suma, que: - os autores sabiam que o imóvel era de tipologia T2, sendo certo que receberam diversos documentos a ele atinentes; - quando o visitaram, em 5.10.17, não podem ter deixado de perceber que a cave não era originariamente destinada a quartos de dormir, embora o dono lhe possa dar esse uso; - os autores e a 1.ª ré não celebraram entre si qualquer contrato, pelo que esta não pode ser condenada a pagar-lhe a diferença entre o preço pago (que, aliás, não é de 600.000,00€, mas de 500.000,00€) e o valor de mercado da moradia. Concluiu pela sua absolvição do pedido.
4. Dispensada a audiência prévia e proferido despacho saneador, foi proferida sentença com o seguinte dispositivo: “Pelo exposto, julgo a ação parcialmente procedente, e, em consequência, decido: a) Absolver do pedido a ré A..., S.A.; b) Condenar a ré SORTAMI – MEDIAÇÃO IMOBILIÁRIA, LDA., no pagamento aos autores AA e mulher BB, de indemnização a liquidar em incidente posterior, correspondente à diferença do preço de mercado de uma moradia como a que é objeto dos autos (prédio urbano, destinado a habitação, sito na Urbanização ..., freguesia ... e ..., concelho ..., descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o n.º ...48 e inscrita na respetiva matriz sob o artigo ...84), mas com a característica adicional de poder ser V5, e o preço de mercado da mesma moradia tal como resulta da respetiva descrição predial, portanto, V2. Tal diferença deve ser computada à data de 26 de janeiro de 2018 (data da escritura pública de compra e venda). Tal indemnização terá por limite máximo a quantia de € 150 000 (cento e cinquenta e mil euros). c) Absolver a mesma ré “Sortami” do restante pedido”.
5. A 2.ª ré Sortami – Mediação Imobiliária, Lda., interpôs recurso de apelação, tendo Tribunal da Relação de Évora proferido, em 9.06.2021, Acórdão de cujo dispositivo consta: “Por todo o exposto, acordamos em julgar a apelação procedente e, em consequência: A) Anulamos a decisão recorrida, na parte respeitante à 2ª ré; B) Em substituição do tribunal recorrido, absolvemos a 2ª ré do pedido”.
6. Desta vez, são os autores que vêm interpor recurso de revista “nos termos dos arts. 629.º n.º1, 638.º, 671.º n.º 1, 674.º n.º 1 al. b), 675.º, 676.º, todos do Código de Processo Civil”. Enunciam as seguintes conclusões: “a) O presente litígio tem na sua génese a aquisição de um imóvel por parte dos ora recorrentes à 1.ª Ré, tendo tal aquisição ocorrido por mediação da 2.ª Ré. b) Durante todo o processo de aquisição do imóvel em questão, sempre foi transmitido aos recorrentes pela 2.ª Ré ( recorrida) que o mesmo era composto por cinco quartos, isto é, o imóvel correspondia a uma habitação de tipologia V5. c) Posteriormente, após a aquisição, pretendendo os recorrentes licenciar o imóvel para efeito de exploração como alojamento local, para sua grande surpresa, tomaram conhecimento que o referido imóvel apenas estava licenciado com a tipologia V2 e não como V5. d) Atentas as referidas circunstâncias, os recorrentes intentaram ação declarativa de condenação contra os RR. na qual peticionavam a condenação solidária das últimas a proceder ao pagamento do valor de € 250.000,00, resultante da diferença entre o valor pago pelo imóvel e o efetivo valor de mercado, que o mesmo teria caso tivesse sido anunciado com as suas verdadeiras características. e) Da realidade articulada, resultou a absolvição em primeira instância da 1.ª Ré e a condenação da 2.ª, com base em incumprimento culposo dos deveres de informação à que estava adstrita no desenvolvimento da sua atividade de mediação imobiliária. f) Inconformada, a 2.ª Ré, ora recorrida, interpôs recurso para o Tribunal da Relação de Évora, onde, em suma, alegou que o Tribunal de primeira instância violou o n.º 1 do art. 3.º e n.º 1 do art. 195.º ambos do Código de Processo Civil. g) Acordaram, os Venerados Juízes Desembargadores do Tribunal da Relação de Évora, em declarar a nulidade da decisão com base na omissão da audição das partes quanto à referida adequação jurídica, e determinou que a 1.ª instância ouvisse as partes sobre tal questão. h) Ouvidas as partes, o Tribunal de 1.ª instância proferiu novamente decisão no mesmo sentido. i) A recorrida interpôs novamente recurso no qual pugnava, em suma, para o aqui importa considerar, pelo excesso de pronuncia do Tribunal a quo, alegando a violação dos artigos 5.º, n.º 1 e 608.º, n.º 2 do Código de Processo Civil. j) Tal recurso foi julgado procedente, tendo-se o Tribunal da Relação de Évora substituído ao Tribunal da 1.ª instância e absolvido a recorrida do pedido com base em vício de excesso de pronuncia. k) Com devido respeito, a recorrente não se pode conformar com o referido acórdão, pois considera que a tal acórdão procedeu à violação do n.º 3 do art. 5.º do CPC. l) A recorrida expôs ao Tribunal de 1.ª instância os factos jurídicos essenciais dos quais emerge o direito que invoca (obrigação de indemnização) e pretende fazer valer. m) Decorre dos factos dados como provados, que efetivamente a recorrida violou o seu dever de transparência na forma como desenvolve a sua atividade. n) Não tendo anunciando o imóvel em questão em conformidade com a realidade legal subjacente ao mesmo, e consequentemente, violou o disposto no art. 17.º n.º 1 da Lei n.º 15/2013 ( anunciou o imóvel como V5 e não como V2+3) – Cfr. Factos dados como provados 7 a 13, 19 e 43. o) Ficou igualmente provado, que por via desse facto, os recorrentes foram induzidos erradamente pela recorrida, pelo que nunca teriam realizado tal aquisição, face às suas necessidades e projetos, se lhes tivessem sido comunicadas as reais características do imóvel – Cfr. Factos dados como provados 31 a 33. p) O Tribunal de 1.ª Instância, tendo verificado, e por via disso, ficado convencido, conforme motivação da douta sentença, de toda a realidade fáctica dada como provada, proferiu sentença na qual procedeu à aplicação do direito adequado aos factos que resultam dos articulados das partes e da própria instrução da causa. q) O objeto do processo é integrado pela causa de pedir e pela pretensão formulada pelo autor, abarcando também eventualmente a matéria de exceção aduzida pelo réu em sua defesa. r) No seu articulado motivador, a recorrente alegou toda a matéria factual sobe a qual funda o seu pedido, desde a realidade que antecedeu a compra do imóvel em questão, facto para o qual a “postura” assumida pela recorrida foi determinante s) Assim como descreveu toda a realidade que precedeu a referida aquisição. t) É toda esta realidade factual articulada que constitui a causa de pedir, e que bem assim, integra o objeto do processo. u) Tendo em conta essas circunstâncias, o objeto do processo (supra mencionado) foi definido quanto à “Natureza jurídica das relações das partes – negociação e objecto dos acordos celebrados (…) e se nesse âmbito assiste aos AA. direito à quantia peticionada e se impende sobre as RR. a respetiva obrigação” v) Estando em causa averiguar a natureza jurídica das relações das partes e a existência, por via dessas relações, de obrigação de indemnizar por parte das então RR., bem considerou o Tribunal de 1.ª Instância, ao abrigo do princípio da oficiosidade do conhecimento e aplicação do direito aos factos trazidos pelas partes – e que se exprime no brocado latino iura novit curia – atualmente consagrado no art. 5.º, n.º 3, do CPC, ao apreciar as questões submetidas à sua apreciação com base em argumentos ou razões distintas daquelas que foram concitadas pelas partes, principalmente, in casu, no tocante à indagação, interpretação e aplicação dos factos articulados ao direito. w) Com a decisão proferida, o Tribunal de 1.ª Instância, conteve-se dentro do perímetro objetivo e subjetivo da pretensão deduzida pela recorrente, tendo sido dada a possibilidade de contraditório à recorrida sobre a alteração da qualificação jurídica em causa x) Pelo exposto, considera a recorrente que não se verificou qualquer excesso de pronúncia por parte do Tribunal de 1.ª instância y) Assim, violou o douto acórdão recorrido o estabelecido no art. 5.º n.º 3 do Código de Processo Civil, motivo pelo qual, deverá o mesmo ser substituído por outro que não julgue procedente o vício de excesso de pronuncia, em conformidade com a matéria supra alegada - deverá o mesmo ser substituído por outro que julgue improcedente o vício de excesso de pronuncia, em conformidade com a matéria supra alegada, assim como, julgue improcedentes os demais vícios apontados à Douta sentença proferida pelo Tribunal de 1.ª Instância, com as consequências legais que V. Ex.ºs venham a entender ser a legalmente admissíveis”.
7. A ré Sortami – Mediação Imobiliária, Lda., veio contra-alegar. Sustenta que “a douta sentença proferida em 1.ª instância é nula, por excesso de pronúncia, e, por isso, deve ser mantido o douto acórdão recorrido” e conclui assim: “a. O tribunal deve respeitar a definição do litígio feita pelas partes ao abrigo do princípio dispositivo. b. Assim, e apesar de o mesmo poder atribuir aos factos uma qualificação jurídica diversa da invocada pelas partes, nos termos do art. 5.º, n.º 3 do Cód. Proc. Civil, tal deve ser feito dentro da fronteira da factualidade alegada e provada e nos limites do efeito prático-jurídico pretendido pelas partes. c. A responsabilidade que foi imputada à Recorrida, na qualidade de mediadora imobiliária, radica em factos constitutivos que extravasam a causa de pedir invocada e pretendida pelos Recorrentes, sendo que a indemnização fixada é também substancial e juridicamente diversa da obrigação de redução do preço pedida na presente ação. d. Efetivamente, os Recorrentes alegaram somente que a coisa comprada não tinha as qualidades asseguradas pelo vendedor, recorrendo ao instituto da compra e venda defeituosa, que coincide com o efeito jurídico que pediram: a redução do preço e o consequente reembolso da diferença. e. Ao serem valorizados os factos na perspetiva da responsabilidade civil, que muda completamente a causa de pedir invocada pelos Recorrentes, em função da qual é deduzida a defesa, operou-se convolação para uma outra ação, que não é a ação intentada pelos mesmos, e para a qual a ora Recorrida não foi citada para se defender. f. Assim, o tribunal de 1.ª instância, ao ter condenado a Recorrida ao abrigo do instituto da responsabilidade civil extracontratual, apreciou uma pretensão qualitativamente diversa da formulada pelos Recorrentes, quer quanto à relação jurídica material controvertida, quer quanto ao próprio efeito pretendido e, por isso, fora do perímetro da vinculação temática do tribunal, nos termos decorrentes dos artigos 5.º, n.º 1, 260.º e 608.º, n.º 2 do Cód. Proc. Civil. g. Pelo que a sentença proferida pelo tribunal de 1.ª instância é nula, por excesso de pronúncia, pelo facto de ter conhecido de questão de que não podia tomar conhecimento, conforme a segunda parte da al. d) do n. º 1 do art. 615.º do Cód. Proc. Civil”.
* Sendo o objecto do recurso delimitado pelas conclusões do recorrente (cfr. artigos 635.º, n.º 4, e 639.º, n.º 1, do CPC), sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso (cfr. artigos 608.º, n.º 2, ex vi do artigo 663.º, n.º 2, do CPC), a questão a decidir, in casu, é a de saber se, ao considerar a sentença nula por excesso de pronúncia e ao substituir-se ao Tribunal de 1.ª instância, o Acórdão recorrido fez interpretação errada da lei processual, designadamente do disposto no artigo 5.º, n.º 3, do CPC.
* II. FUNDAMENTAÇÃO
OS FACTOS São os seguintes os factos que vêm provados no Acórdão recorrido: 1. Os autores residem habitualmente em ... onde têm o centro da sua vida (arts. 1.º e 2.º da petição inicial). A Portugal costumam deslocar-se para passar férias e visitar a família da autora mulher, que é de nacionalidade portuguesa (art. 3.º da petição inicial). 2. No ano de 2017, os autores decidiram comprar outra casa em Portugal para terem um local onde permanecer quando estivessem no país (art. 4.º da petição inicial). 3. Por intermédio de uma pessoa conhecida, foi-lhes apresentado o Sr. CC que trabalha para a “Sortami” na promoção de venda de imóveis, tendo este ficado a saber da intenção dos autores, tendo-se comprometido a pesquisar casas que correspondessem à vontade dos autores (art. 5.º da petição inicial). 4. A “Sortami” é uma empresa de mediação imobiliária – art. 5.º do Código de Processo Civil e fls. 76. 5. Os autores transmitiram a CC que era habitual passarem férias em Portugal, muitas vezes com os filhos e netos, pelo que precisavam de uma casa com quatro ou cinco quartos (art. 6.º da petição inicial). 6. O referido CC mostrou diversas casas aos autores, que nunca corresponderam ao desejado, fosse pelo tamanho, fosse pelo preço (art. 7.º da petição inicial). Das comunicações sobre a moradia da ré “A...” e respetivas características 7. Em 30/09/2017, a ré, através de CC, remeteu ao autor AA uma mensagem de correio eletrónico pela qual comunicou o seguinte: “Boa tarde Sr. e Sra. AA, Serve este email, para vos enviar o link duma moradia muito boa, moderna, a sul da estrada que vai para a ..., e próxima da praia da .... O link é o seguinte: ... P.S. A moradia pode ser vendida por 600 000,00, sem mobília e com a cozinha equipada. É o melhor valor que conseguimos. Obrigado. Se precisarem de mais alguma informação, por favor não hesitem em contatar-me. Cumprimentos / Best regards, cc@sortami.com T. ...59” – fls. 10 (art. 8.º da petição inicial). 8. O autor consultou o sítio da internet remetido por CC onde teve acesso a fotografias várias e informação diversa da moradia, designadamente a seguinte: (…) (art. 9.º da petição inicial). 9. Quanto ao número de divisões, anunciava a existência de cinco quartos, aliás, o próprio link refere “5-chambres”, ou seja, cinco quartos (art. 11.º da petição inicial). 10. Correspondendo ao interesse dos autores, estes manifestaram junto da ré “Sortami”, através do Sr. CC, isso mesmo (art. 12.º da petição inicial). 11. Aos autores foi entregue a brochura da “Sortami” anunciando diversos imóveis, entre os quais o imóvel que corresponde ao remetido por email por CC – fls. 31/35. Nessa brochura e nos imóveis sitos em ..., era anunciada uma moradia geminada com a área de 289 m2 e cinco quartos, pelo preço de € 700 000 (arts. 13.º e 14.º da petição inicial). (…) 12. O símbolo que corresponde a uma cama tem como legenda na primeira página da brochura “número de quartos” (art. 15.º da petição inicial). 13. Esta foi a única informação documental remetida aos autores antes da decisão quanto à compra do imóvel (art. 16.º da petição inicial). 14. No final do mês de setembro de 2017, os autores deslocaram-se a Portugal e visitaram a casa (art. 17.º da petição inicial). 15. Observaram a existência efetiva de vários compartimentos. Ficaram convencidos de que a casa era composta por cinco quartos, o que correspondia às suas necessidades familiares (art. 19.º da petição inicial). Dos contratos 16. Em 10/10/2017, entre o autor marido, na qualidade de promitente comprador e a ré “A...”, na qualidade de promitente vendedora, foi celebrado um contrato promessa de compra e venda através do qual esta prometeu vender àquele o prédio urbano, destinado a habitação, sito na Urbanização ..., freguesia ... e ..., concelho ..., descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o n.º ...48 e inscrita na respetiva matriz sob o artigo ...84 – fls. 11 (art. 20.º da petição inicial). 17. Em 6/10/2017, o autor marido efetuou a favor da ré “Sortami” transferência bancária no valor de € 5 000 (fls. 248/250); em 19/10/2017, outra transferência bancária no valor de € 70.000,00 e em 20/10/2017 ainda outra transferência no valor de € 45.000; em todos os documentos bancários a referência adotada foi o nome da ré “Sortami” - fls. 12v./13 (art. 22.º da petição inicial). 18. Os contactos com o legal representante da “A...” foram sempre por intermédio e promovidos pela “Sortami”, na pessoa do Sr. CC (art. 23.º da petição inicial). 19. Foi a “Sortami” quem promoveu a venda da moradia e estabeleceu a relação de mediação entre os autores e a ré “A...”, transmitiu o preço (€ 700 000, com mobília, e € 600 000, sem mobília) e as condições de pagamento (art. 24.º da petição inicial), tendo sido feita referência à mediação imobiliária no acordo de fls. 11 – cl. 8.ª (art. 26.º da petição inicial). 20. O acordo de fls. 11 foi elaborado pela ré “Sortami” e remetido ao autor marido para ser assinado, o que ele fez, tudo através de email (art. 27.º da petição inicial). 21. Aquando de uma visita ao imóvel em causa em que se encontrava presente o legal representante da ré “DD”, este afirmou que arrendava a casa a 10/12 pessoas (arts. 28 e 29.º da petição inicial). 22. Os autores não pediram nem procuraram qualquer aconselhamento jurídico, pois consideraram desnecessário e nunca consideraram poder haver qualquer desconformidade entre o que lhes foi mostrado e anunciado e o licenciamento do prédio (art. 30.º da petição inicial). 23. Os autores e a ré “A...” celebraram, em 26/01/2018, escritura de compra e venda do prédio referido – fls. 13 v. (art. 31.º da petição inicial). 24. Em 11/01/2018, os autores tinham efetuado um pagamento da quantia de € 200.000, em 26/01/2018 um pagamento da quantia de € 180.000 – fls. 16 v./17, em baixo (art. 32.º da petição inicial). 25. Aquando da leitura do ato notarial acima referido, não foi feita menção à tipologia do prédio que eventualmente pudesse alertar os autores para alguma desconformidade – fls. 14 (art. 33.º da petição inicial). 26. Após a escritura de compra e venda foram entregues aos autores, designadamente, ficha técnica de habitação e certificado energético (art. 34.º da petição inicial). 27. Os autores não deram relevância a tais documentos, pois não precisavam deles para o que quer que fosse naquele momento, razão por que os receberam e arquivaram (art. 35.º da petição inicial). Após a compra 28. Passados alguns meses após a compra da casa e pretendendo licenciá-la para efeitos de alojamento local, para o que se torna necessário efetuar o registo na Câmara Municipal, in casu, de ..., tomaram conhecimento de que apenas tinham disponíveis dois quartos para inserir em regime de alojamento local (art. 36.º da petição inicial). 29. Foi obtida informação junto da Câmara Municipal ... quanto ao tipo de licenciamento da moradia, tendo vindo a ser constatado que apenas dois quartos integram o licenciamento (art. 39.º da petição inicial). 30. Os autores sempre assumiram que a existência física de cinco quartos tinha correspondência com a existência legal desses cinco quartos, o que não acontece (art. 41.º da petição inicial). 31. Foi nessa ocasião que tomaram conhecimento que a moradia que adquiriram se encontra licenciada com a tipologia V2 e não V5 e que apenas dois dos quartos se encontram licenciados (art. 42.º da petição inicial). 32. Caso tivessem tomado conhecimento prévio de que assim era, os autores não teriam aceitado pagar a quantia de € 500.000 pela sua aquisição (art. 43.º da petição inicial). 33. Os autores foram induzidos em erro pela informação da ré “Sortami”, fazendo-os crer que a mesma era composta por cinco quartos (V5), entendendo-se por tal, cinco quartos licenciados (art. 45.º da petição inicial). 34. Os autores, através do seu mandatário, por carta registada sob aviso de receção, datada de 28/09/2018, comunicaram às rés as desconformidades acima descritas – fls. 17 a 22 (art. 47.º da petição inicial). 35. A “Sortami” recusou o recebimento da carta que lhe foi remetida (envelope fechado que se remeterá em suporte de papel), tendo sido a mesma carta remetida, desta feita, por email em 02/10/2018 – fls. 17/19/36 (art. 48.º da petição inicial). 36. À “A...” foi igualmente remetida cópia da carta remetida à “Sortami” – fls. 19 v. (art. 49.º da petição inicial). 37. As rés não se pronunciaram quanto ao teor das missivas (art. 50.º da petição inicial). 38. Caso a venda da moradia anunciasse apenas a existência de dois quartos, o seu valor e preço de mercado seria inferior ao de uma moradia equivalente, mas V5 (art. 53.º da petição inicial). 39. Os autores visitaram o imóvel, em 5/10/17, bem como em datas posteriores: a moradia estava dotada de 2 quartos e, na cave, de outros compartimentos na zona inferior, sem janela ou com aberturas de cerca de 40/45 cm, mas com mobília, dando a aparência e o uso de quartos (art. 7.º da contestação da ré “Sortami”). 40. Entre os autores e a “Sortami” não foi celebrado qualquer acordo escrito, sendo que a dada altura a mesma ré apresentou os autores ao representante da “A...”, após os autores terem demonstrado interesse no imóvel (art. 9.º da contestação da ré “Sortami”). 41. Os autores declararam pagar à ré “A...” a quantia de € 500.000 pela compra do imóvel – fls. 13 v. (art. 14.º da contestação da ré “Sortami”). 42. A “A...” não negociou diretamente com os autores (art. 3.º da contestação da ré “A...”). 43. A “A...” celebrou com a segunda ré “Sortami” um contrato de mediação imobiliária em que pretendia que a venda do imóvel fosse promovida por € 700 000 – fls. 47 (art. 5.º da contestação da “A...”). 44. No caso concreto, a ré acabou por declarar vender o imóvel por € 500.000 (art. 8.º da contestação da “A...”). 45. No ato da escritura, os autores receberam o certificado energético do imóvel – fls. 16 (arts. 6.º da contestação da ré “Sortami” e 13.º da contestação da ré “A...”). 46. O preço de € 500 000 foi aquele por que a “A...” esteve disposta a declarar vender a moradia (arts. 9.º e 14.º da contestação da “A...”). 47. O preço que foi fixado e pretendido pela ré tinha em conta a dimensão do imóvel, o lote em que se encontra implantada a construção, a envolvente, o jardim, a sua localização, a existência de piscina e a qualidade construtiva (art. 16.º a contestação da “A...”). 48. O valor patrimonial do imóvel que é de 275.528,88€ e fora adquirido pela ”A...” no dia 14 de setembro de 2016, pela quantia de € 372 700 – fls. 234 v. (art. 17.º da contestação da ré “A...”). 49. Existem moradias com dois quartos de valor superior e inferior a € 350.000 (art. 19.º da contestação da ré “A...”). 50. A ré “A...” é uma sociedade que tem por objeto, além do mais, a promoção imobiliária e compra e venda de imóveis e revenda dos adquiridos para esse fim e tem por objetivo o lucro – fls. 69 (art. 20.º da contestação da ré “A...”). 51. Não há qualquer valor fixo ou regulado que obrigue a R. a vender o imóvel pelo preço que os AA. pretendem (art. 25.º da contestação da ré “A...”).
E são seguintes os factos considerados não provados no Acórdão recorrido: a) Que os autores pretendessem adquirir um imóvel que viesse a constituir uma fonte de rendimento mediante a sua exploração turística, nos períodos em que não estivessem em Portugal e o tivessem expressado à “Sortami” (parte do art. 4.º da petição inicial); b) Que, aquando da celebração do CPCV, os autores tivessem efetuado, em dinheiro, o pagamento da quantia de € 100.000 (art. 21.º da petição inicial); c) Que, em 25/01/2018, os autores tivessem efetuado um pagamento da quantia de € 15.342,81 – fls. 17/246 (art. 32.º da petição inicial, parte); d) Que os autores soubessem que o imóvel era de tipologia T2 ou V2, em vez de V5 (art. 5.º da contestação da ré “Sortami”); e) Que o valor de mercado do imóvel fosse superior ao valor pelo qual o negócio foi celebrado (art. 10.º da contestação da ré “Sortami”); f) Que, depois da aquisição da moradia, em 2016, a “A...” tivesse procedido à sua beneficiação, restauração, limpeza e pintura e colocação de ar condicionado, visando obter lucro (cujo montante também não se apurou), tudo no valor de € 127 300 (500.000 – 372.700) (art. 21.º da contestação da ré “A...”); g) Que os autores tivessem tido perfeito conhecimento das qualidades e composição do imóvel para além das informações decorrentes do facto de ser um “V5” e do que lhes foi apresentado, aquando das visitas (art. 28.º da contestação da ré “A...”).
O DIREITO Observação prévia Como se viu, a recorrente entende que a sentença não deveria ter sido anulada por excesso de pronúncia, sustentando que, ao fazê-lo, o Tribunal recorrido incorreu em violação, entre outros, do disposto no artigo 5.º, n.º 3, do CPC [cfr., em particular, conclusões k), x) e y)]. Não obstante estar em causa uma decisão (decisão do Tribunal da Relação) que considera nula outra decisão (a decisão / sentença proferida pelo Tribunal de 1.ª instância), deve esclarecer-se – e manter-se sempre presente – que a decisão impugnada e que, portanto, cumpre apreciar não é esta sentença mas sim a decisão do Tribunal da Relação e o que nela se decidiu. Impõe-se, assim, exclusivamente, verificar se existe fundamento para a decisão da anulação da sentença, não obstante esta questão obrigar a uma referência constante ao teor daquela sentença.
Da questão No Acórdão recorrido decidiu-se anular a sentença por excesso de pronúncia, ao abrigo do artigo 615.º, n.º 1, al. d), do CPC, com os seguintes fundamentos: “B) Na petição inicial, os autores enunciam as características do imóvel que pretendiam comprar (artigo 4º da p.i.), descrevem os contactos havidos entre o autor e a 2ª ré, na pessoa de CC, enquadrando-os na actividade de mediação imobiliária (artigo 26º da p.i.). Mais referem um contacto presencial com o legal representante da 1ª ré (artigo 28º da p.i.). Alegam terem sido induzidos em erro pelas rés, que lhes prestaram informações falsas sobre características essenciais da moradia (artigo 45º da p.i.). Esclarecendo que não teriam comprado o imóvel pelo preço que pagaram se soubessem que a mesma estava licenciada como possuindo apenas 2 quartos – e não os 5 que, fisicamente, existem – (artigo 43º da p.i.), os autores alegaram que o preço suportado é superior ao valor da moradia nos termos em que está licenciada (artigos 53º e 54º da p.i.). E, afirmando que “O imóvel não tem as qualidades asseguradas pelas RR., no que se refere à tipologia anunciada – art. 913.º n.º 1 do Código Civil.” (artigo 51º da p.i.), os autores pretendem ser indemnizados pela diferença entre aquele preço e este valor (artigo 52º da p.i.). A 2ª ré contestou, invocando que os autores sabiam qual era a tipologia do imóvel, pelo que ao imóvel vendido não pode ser assacada a falta de qualidades asseguradas. Alegaram que entre ela e os autores não foi celebrado qualquer contrato. E, quanto ao aspecto jurídico, disseram que: “Baseando os Autores o seu pedido na regulamentação do contrato de compra e venda e no direito de redução do preço, e nada tendo a 2ª ré vendido aos Autores, não tendo, portanto, recebido qualquer preço, decorre da própria douta petição inicial a improcedência do pedido formulado em face da ora contestante”. O objecto do litígio foi, assim, definido: “Natureza jurídica das relações das partes – negociação e objecto dos acordos celebrados, características, designadamente quanto ao número de quartos pretendidos e anunciados e os existentes e licenciados; Se os AA. desconheciam a alegada desconformidade entre a realidade física e a realidade jurídica; se os RR. Induziram os AA. em erro quanto a essa questão e se nesse âmbito assiste aos AA. Direito à quantia peticionada e se impende sobre as RR. a respectiva obrigação”. E os temas da prova foram enunciados conforme segue: “a) Relações travadas entre as partes – objecto negocial: pretensão dos AA. (essencialidade de imóvel com determinadas características quanto ao número de quartos 4,5), imóvel anunciado, apresentado, e vendido, características físicas e (falta de) correspondência jurídica (licenciamento; b) se as RR. prestaram aos AA. Informações falsas fazendo-os crer que o imóvel tinha cinco quartos licenciados; c) se os AA (des)conheciam a (falta de) correspondência jurídica (licenciamento) – com a realidade física existente; d) valor do imóvel objecto da acção, consoante licenciado para V2 ou para V5”. Na sentença, escreveu-se (no segmento que agora importa considerar): “2.5.5. Da responsabilidade das rés Os autores alegaram, em suma, que foram enganados, pois que viram anunciada a venda de uma moradia V5, isto é, com cinco quartos, quando, de facto, a moradia está dotada de 2 quartos e de outros compartimentos na zona inferior, sem janela ou com aberturas pequenas, que, somados, daria os cinco quartos. É evidente que a realidade anunciada não corresponde à realidade jurídico-legal. Apesar de ter havido um contacto entre os autores e o representante da vendedora e este ter afirmado que arrendava a vivenda a mais de uma dezena de pessoas, a verdade é que tal poderia até corresponder a uma prática, não tendo sido esse fator que conduziu à decisão de comprar por parte dos autores, mas sim as características apresentadas da moradia que afinal não tinha. A circunstância de a moradia até ter vários compartimentos a que pode ser dada a função de quarto por parte do proprietário nada tem que ver com a realidade anunciada e que deveria estar em conformidade com a realidade jurídica: V5 igual a moradia com cinco quartos, assim previstos na descrição predial. Os autores referiram-se ao erro, afirmando que, ”caso tivessem tomado conhecimento prévio de que assim era, nunca os autores teriam aceitado pagar a quantia de € 600 000 pela sua aquisição” – art. 43.º da petição inicial. Alegaram depois o disposto no art. 913.º do Código Civil para, a final, concluírem com o pedido de condenação das rés no pagamento de indemnização de € 250 000, correspondente, na sua perspetiva, à diferença entre o preço de mercado de uma moradia V5 e V2. Ora, o disposto no art. 913.º do Código Civil remete para a secção anterior que, tal como as regras relativas ao erro (arts. 247.º e ss. do Código Civil), sanciona com a anulabilidade do negócio jurídico. Não foi essa a consequência jurídica peticionada pelos autores. Considerando que: - A sentença não pode condenar em quantidade superior ou em objeto diverso do que se pedir – art. 609.º, n.º 1, do Código de Processo Civil; - O juiz não está sujeito às alegações das partes no tocante à indagação, interpretação e aplicação das regras de direito – art. 5.º, n.º 3, do mesmo código, O Tribunal apreciará a responsabilização da “Sortami”, empresa de mediação imobiliária, por ter incumprido de forma culposa (tendo em conta o que resulta da lei) deveres de informação que no caso se referia ao número de quartos da moradia. (…)”. C) Entendeu a 2ª ré, entendeu a sentença e entendemos nós que os autores recorreram ao instituto da venda de coisas defeituosas, previsto nos artigos 913º e seguintes do Cód. Civ., porquanto foram induzidos em erro pelas rés quanto a características do imóvel que tinham por essenciais, não dispondo a moradia das qualidades que elas asseguraram. Pese embora tal preceito se refira expressamente ao vendedor, os autores nunca estabeleceram distinção entre a responsabilidade da 1ª ré e a responsabilidade da 2ª ré, quer quanto à circunstância de os terem induzido em erro, quer quanto à medida das suas responsabilidades, que entenderam solidárias. Ou seja, ainda que o imóvel tenha sido vendido através de mediador imobiliário e que a existência do respectivo contrato seja um dado adquirido nos autos, o que é facto é que os autores nunca evidenciaram (expressa ou implicitamente) pretender alicerçar a responsabilidade da 2ª ré em qualquer outra fonte, nomeadamente em sede de responsabilidade extracontratual pela violação do seu dever de informação na qualidade de mediadora imobiliária. Determinando o artigo 913º do Cód. Civ. que à venda de coisas defeituosas deve aplicar-se, subsidiariamente e com as devidas adaptações, o regime previsto para a venda de bens onerados (artigos 905º a 912º do mesmo diploma), é verdade que os autores não pediram a anulação do contrato de compra e venda (nos termos do artigo 905º do Cód. Civ.). E, por isso, não poderia a mesma ser decretada (artigo 609º nº 1 do Cód. Proc. Civ.). Todavia, formularam pedido que também é consequência da causa de pedir invocada. Com efeito, entendeu a 2ª ré e entendemos nós que os autores recorreram implicitamente ao nº 1 do artigo 911º [“Se as circunstâncias mostrarem que, sem erro ou dolo, o comprador teria igualmente adquirido os bens, mas por preço inferior, apenas lhe caberá o direito à redução do preço, em harmonia com a desvalorização resultante dos ónus ou limitações, além da indemnização que no caso competir”], quando alegaram a matéria dos artigos 43º, 45º e 52º a 54º da petição inicial. Assim sendo, ao eleger como causa de julgar a responsabilidade extracontratual da 2ª ré pela violação das suas obrigações de informação, enquanto mediadora imobiliária, para com os autores, a sentença extravasou do objecto da acção, sendo certo que a eles cabia defini-lo, de facto e de direito, na petição inicial (artigo 552º nº 1-d) do Cód. Proc. Civ.). A sentença padece, pois, quanto à 2ª ré, do vício de excesso de pronúncia, o que determina a sua nulidade nessa parte”. Compulsando os autos, verifica-se – e salienta-se – que, como sublinha a recorrente nas suas alegações de revista [cfr. conclusões e) a j)], esta não foi a primeira vez que o Tribunal da Relação anulou uma sentença daquele Tribunal de 1.ª instância: uma sentença anterior havia sido impugnada pela mesma ré Sortami e anulada pelo mesmo Tribunal da Relação de Évora e – note-se – pelo mesmo colectivo. De facto, em anterior Acórdão (de 11.03.2021), proferido na sequência do recurso de apelação interposto pela ré Sortami, o Tribunal da Relação deu procedência à nulidade por ela então invocada – nulidade processual resultante de o juiz, optando por subsumir a situação a um enquadramento jurídico diverso daquele que os autores indicaram na petição inicial, ter omitido a prévia audição das partes, prevista no n.º 3 do artigo 3.º do CPC, dizendo-se o seguinte: “Não obstante a liberdade do tribunal de escolher, interpretar e aplicar as regras de direito (nº 3 do artigo 5º do Cód. Proc. Civ.), não pode ele decidir questões jurídicas sem que as partes tenham tido a possibilidade de sobre elas se pronunciarem (artigo 3º nº 3 do mesmo diploma). “No plano das questões de direito, é expressamente proibida, desde a revisão de 1995-1996 do CPC de 1961, a decisão-surpresa, isto é, a decisão baseada em fundamento que não tenha sido previamente considerado pelas partes” – Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, Código de Processo Civil Anotado, Volume 1º, Almedina, Coimbra, 4ª edição:31. A propósito da especial exigência de cumprimento do dever de ouvir as partes, dizem Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Pires de Sousa (Código de Processo Civil Anotado, Vol I, Almedina, Coimbra, 2ª edição:23): “O mesmo se verifica quando está em causa uma diversa qualificação jurídica dos factos: sendo esta legítima, ao abrigo do art. 5º, nº 3, não dispensa a necessidade de o juiz auscultar as partes, na medida em que uma diversa qualificação jurídica pode contender com a posição que cada uma adotou no processo, interferindo na tutela dos respetivos interesses (…)”. C) Na petição inicial, os autores descrevem os contactos havidos entre o autor e a 2ª ré, na pessoa de CC, enquadrando-os na actividade de mediação imobiliária (artigo 26º da p.i.). Mais referem um contacto presencial com o legal representante da 1ª ré (artigo 28º da p.i.). Alegam terem sido induzidos em erro pelas rés, que lhes prestaram informações falsas (artigo 45º da p.i.). Esclarecendo que não teriam comprado a moradia pelo preço que pagaram se soubessem que a mesma estava licenciada como possuindo apenas 2 quartos – e não os 5 que, fisicamente, existem – (artigo 43º da p.i.), os autores alegaram que o preço suportado é superior ao valor da moradia nos termos em que está licenciada (artigos 53º e 54º da p.i.). E, afirmando que “O imóvel não tem as qualidades asseguradas pelas RR., no que se refere à tipologia anunciada – art. 913.º n.º 1 do Código Civil.” (artigo 51º da p.i.), os autores pretendem ser indemnizados pela diferença entre aquele preço e este valor (artigo 52º da p.i.). Na sua contestação, a 1ª ré, dizendo nunca ter contactado ou negociado com os autores, até por ter celebrado com a 2ª ré contrato de mediação imobiliária, cuja cópia juntou aos autos. Mais afirmou que nunca enganou os autores – que, aliás, sabiam das condições do imóvel – ou praticou outro ilícito de que resulte a obrigação de indemnizar. A 2ª ré contestou, invocando que os autores sabiam qual era a tipologia do imóvel, pelo que ao imóvel vendido não pode ser assacada a falta de qualidades asseguradas. Alegaram que entre ela e os autores não foi celebrado qualquer contrato. E, quanto ao aspecto jurídico, disseram que: “Baseando os Autores o seu pedido na regulamentação do contrato de compra e venda e no direito de redução do preço, e nada tendo a 2ª ré vendido aos Autores, não tendo, portanto, recebido qualquer preço, decorre da própria douta petição inicial a improcedência do pedido formulado em face da ora contestante”. O objecto do litígio foi, assim, definido: “Natureza jurídica das relações das partes – negociação e objecto dos acordos celebrados, características, designadamente quanto ao número de quartos pretendidos e anunciados e os existentes e licenciados; Se os AA. desconheciam a alegada desconformidade entre a realidade física e a realidade jurídica; se os RR. Induziram os AA. em erro quanto a essa questão e se nesse âmbito assiste aos AA. Direito à quantia peticionada e se impende sobre as RR. a respectiva obrigação”. E os temas da prova foram enunciados conforme segue: “a) Relações travadas entre as partes – objecto negocial: pretensão dos AA. (essencialidade de imóvel com determinadas características quanto ao número de quartos 4,5), imóvel anunciado, apresentado, e vendido, características físicas e (falta de) correspondência jurídica (licenciamento; b) se as RR. prestaram aos AA. Informações falsas fazendo-os crer que o imóvel tinha cinco quartos licenciados; c) se os AA (des)conheciam a (falta de) correspondência jurídica (licenciamento) – com a realidade física existente; d) valor do imóvel objecto da acção, consoante licenciado para V2 ou para V5”. Na sentença, escreveu-se (no segmento que agora importa considerar): “2.5.5. Da responsabilidade das rés Os autores alegaram, em suma, que foram enganados, pois que viram anunciada a venda de uma moradia V5, isto é, com cinco quartos, quando, de facto, a moradia está dotada de 2 quartos e de outros compartimentos na zona inferior, sem janela ou com aberturas pequenas, que, somados, daria os cinco quartos. É evidente que a realidade anunciada não corresponde à realidade jurídico-legal. Apesar de ter havido um contacto entre os autores e o representante da vendedora e este ter afirmado que arrendava a vivenda a mais de uma dezena de pessoas, a verdade é que tal poderia até corresponder a uma prática, não tendo sido esse fator que conduziu à decisão de comprar por parte dos autores, mas sim as características apresentadas da moradia que afinal não tinha. A circunstância de a moradia até ter vários compartimentos a que pode ser dada a função de quarto por parte do proprietário nada tem que ver com a realidade anunciada e que deveria estar em conformidade com a realidade jurídica: V5 igual a moradia com cinco quartos, assim previstos na descrição predial. Os autores referiram-se ao erro, afirmando que, ”caso tivessem tomado conhecimento prévio de que assim era, nunca os autores teriam aceitado pagar a quantia de € 600 000 pela sua aquisição” – art. 43.º da petição inicial. Alegaram depois o disposto no art. 913.º do Código Civil para, a final, concluírem com o pedido de condenação das rés no pagamento de indemnização de € 250 000, correspondente, na sua perspetiva, à diferença entre o preço de mercado de uma moradia V5 e V2. Ora, o disposto no art. 913.º do Código Civil remete para a secção anterior que, tal como as regras relativas ao erro (arts. 247.º e ss. do Código Civil), sanciona com a anulabilidade do negócio jurídico. Não foi essa a consequência jurídica peticionada pelos autores. Considerando que: - A sentença não pode condenar em quantidade superior ou em objeto diverso do que se pedir – art. 609.º, n.º 1, do Código de Processo Civil; - O juiz não está sujeito às alegações das partes no tocante à indagação, interpretação e aplicação das regras de direito – art. 5.º, n.º 3, do mesmo código, O Tribunal apreciará a responsabilização da “Sortami”, empresa de mediação imobiliária, por ter incumprido de forma culposa (tendo em conta o que resulta da lei) deveres de informação que no caso se referia ao número de quartos da moradia. (…)”. Entendeu a 2ª ré, entendeu a sentença e entendemos nós que os autores recorreram ao instituto da venda de coisa defeituosa, previsto nos artigos 913º e seguintes do Cód. Civ., porquanto o imóvel vendido não teria as qualidades asseguradas pelas rés. Determinando tal preceito que à venda de coisas defeituosas deve aplicar-se subsidiariamente o regime previsto para a venda de bens onerados, entendeu a 2ª ré e entendemos nós que os autores recorreram implicitamente ao nº 1 do artigo 911º [“Se as circunstâncias mostrarem que, sem erro ou dolo, o comprador teria igualmente adquirido os bens, mas por preço inferior, apenas lhe caberá o direito à redução do preço, em harmonia com a desvalorização resultante dos ónus ou limitações, além da indemnização que no caso competir”], quando alegaram a matéria dos artigos 43º, 45º e 52º a 54º da petição inicial. Assim sendo, quando a sentença responsabiliza a 2ª ré pela violação das suas obrigações de informação, enquanto mediadora imobiliária, para com os autores, leva a cabo enquadramento jurídico que antes não tinha sido equacionado (quer o objecto do litígio, quer os temas de prova não explicitam tal enquadramento, nem o mesmo deles se pode inferir). E não se diga, como fazem os apelados, que, tendo a existência de um contrato de mediação imobiliária estado sempre presente, a 2ª ré “só não deduziu a sua defesa à aplicação da Lei 15/2013 de 8 de Fevereiro porque, com o devido respeito, não lhe era oportuna”. É que é ao autor que incumbe, na petição inicial, expor as razões de direito que servem de fundamento à acção (artigo 552º nº 1-d) do Cód. Proc. Civ.), não sendo exigível a quem se defende que esgrima contra todos os enquadramentos jurídicos que possam eventualmente acobertar os factos alegados pelo autor, mas que este não cuidou de invocar. D) Tratando-se, como vimos, de questão de direito sobre a qual as partes ainda não tinham tido o ensejo de se pronunciar, a omissão da respectiva audição antes da sentença configura irregularidade processual (artigo 195º nº 1 do Cód. Proc. Civ.) (…)”. Merece destaque – e por isso se repete – a frase inicial deste primeiro Acórdão: “Não obstante a liberdade do tribunal de escolher, interpretar e aplicar as regras de direito (nº 3 do artigo 5º do Cód. Proc. Civ.), não pode ele decidir questões jurídicas sem que as partes tenham tido a possibilidade de sobre elas se pronunciarem (artigo 3º nº 3 do mesmo diploma)”. Quer dizer: em momento anterior, o Tribunal a quo deu a impressão de reconhecer a liberdade de enquadramento jurídico que assistia ao tribunal, ao abrigo do artigo 5.º, n.º 3, do CPC, ainda que sob condição de as partes serem previamente ouvidas. Admitindo-se que esta impressão é correcta, compreende-se que a recorrente estranhe que, uma vez sanado o vício da falta de audição das partes e tendo o Tribunal de 1.ª instância proferido uma decisão com teor essencialmente igual ao da anteriormente proferida, ela venha a ser anulada por vício de excesso de pronúncia. Com interesse para a matéria, assinale-se ainda que o Tribunal de 1.ª instância fez anteceder a sentença da seguinte consideração prévia: “Considerando que: - Na sequência do acórdão do Tribunal da Relação de Évora, as partes tiveram oportunidade de se pronunciar expressamente sobre o enquadramento jurídico realizado, manifestando-se a “Sortami” contra o mesmo sob pena de nulidade da sentença por excesso de pronúncia (fls. 335 v.) e concluindo pela absolvição do pedido. Sucede que o Tribunal aprecia a factualidade alegada e dada por provada, além daquela admissível nos termos do art. 5.º do Código de Processo Civil e não está sujeito ao enquadramento jurídico formulado pelas partes. De resto, da experiência de anos, decorre que muitas vezes o enquadramento alegado é conjugado com outros elementos apurados em audiência, qualificando-se juridicamente a factualidade de maneira diferente, ainda que com o limite do pedido, mas procurando realizar a justiça do caso concreto, no fundo o que se procura com cada SENTENÇA (…)”. O artigo 5.º do CPC é do seguinte teor: 1 - Às partes cabe alegar os factos essenciais que constituem a causa de pedir e aqueles em que se baseiam as exceções invocadas. 2 - Além dos factos articulados pelas partes, são ainda considerados pelo juiz: a) Os factos instrumentais que resultem da instrução da causa; b) Os factos que sejam complemento ou concretização dos que as partes hajam alegado e resultem da instrução da causa, desde que sobre eles tenham tido a possibilidade de se pronunciar; c) Os factos notórios e aqueles de que o tribunal tem conhecimento por virtude do exercício das suas funções. 3 - O juiz não está sujeito às alegações das partes no tocante à indagação, interpretação e aplicação das regras de direito”. Costuma dizer-se que o n.º 3 dá expressão à ideia ou regra iura novit curia, ou seja, de que o juiz conhece (todo) o direito. Sobre esta norma, diz, por exemplo, Rui Pinto, que ela “trata dos poderes do tribunal quanto à matéria de direito. O princípio é o da competência autónoma para indagação, interpretação e aplicação das regras de direito, o que configura uma expressão do princípio da oficiosidade quanto à matéria de direito (…). No entanto, esta regra tem no respeito pela proibição de decisões-surpresa um limite absoluto (…). Por isso, por ex., se o autor pede a condenação do réu no pagamento de uma quantia a título de indemnização, não pode o juiz decretar essa condenação como restituição de enriquecimento sem causa sem ouvir as partes”[1]. Explica também Miguel Teixeira de Sousa que “o tribunal conhece do direito aplicável (iura novit curia; da mihi facta; dabo tibi ius; la cour sait le droit: art. 5.º, n.º 3), tanto à admissibilidade do processo, como à admissibilidade e validade dos actos processuais, como ainda à apreciação do mérito da causa. Deste postulado decorrem três corolários: - Um de carácter negativo: o tribunal não pode ser vinculado pelas partes (nem mesmo por um acordo destas) quanto ao direito aplicável na decisão da causa; daí que o tribunal possa corrigir uma deficiente qualificação jurídica fornecida pelas partes; - Um outro igualmente de carácter negativo: as partes não podem afastar a aplicação pelo tribunal das regras de carácter imperativo, apesar de, naturalmente, poderem dispor das regras de natureza supletiva através das estipulações que as substituam; assim, por exemplo, as partes não podem pretender que o tribunal aprecie apenas a justificação para o incumprimento de um contrato se o mesmo for considerado inválido por violação da forma legal: - Finalmente, um outro de carácter positivo: o tribunal deve analisar os factos alegados pelas partes segundo todas as possíveis qualificações legais; este dever de esgotamento das qualificações jurídicas é, em regra, irrelevante quando a acção proceder, porque para o autor é, em princípio, indiferente o fundamento desta procedência, mas é sempre relevante quando a acção houver de ser julgada improcedente, porque, neste caso, há que esgotar todas as possibilidades de procedência da acção” [2]. Refira-se, por último, a posição que toma Lopes do Rego, que, a abrir o seu importante estudo em tema poderes de cognição e de convolação do julgador, afirma o seguinte: “Os arts. 661.º e 664.º do CPC [actuais artigos 609.º e 5.º do CPC, respectivamente] – cuja redacção, no essencial, remonta ao Código de 1939 – estabelecem dois princípios básicos do nosso processo civil, articulando os poderes cognitivos do julgador com o princípio do dispositivo, em função do qual cabe essencialmente às partes definir o objecto da lide, articulando os factos essenciais que suportam as pretensões deduzidas e formulando os consequentes pedidos; e assim: - o juiz não está sujeito às alegações das partes no tocante à indagação, interpretação e aplicação das regras de direito; será, pois, em função do princípio jus novit curia que o julgador irá orientar-se na selecção das normas jurídicas aplicáveis à composição da lide e na determinação do seu sentido e – saliente-se – da sua conformidade à Constituição, já que, como é sabido, no nosso ordenamento jurídico todos os juízes têm acesso directo à Lei Fundamental, detendo, consequentemente, o poder-dever de recusarem a aplicação de normas que reputem de inconstitucionais; - porém, o juiz está: - em primeiro lugar, condicionado pelos factos essenciais alegados pelas partes como suporte das pretensões ou excepções que deduzam, não podendo servir-se, para a composição do litígio, de factos não oportunamente alegados - salvo no casos em que prevaleça um princípio de inquisitoriedade e de funcionamento da regra da preclusão – por força do estipulado no art. 264.º do CPC: a liberdade de subsunção jurídica irá, pois, necessariamente exercer-se sobre os factos substantivamente relevantes que possam ter-se por processualmente adquiridos, nos termos da referida disposição legal; - em segundo lugar, limitado pelo pedido ou pedidos formulados, já que não pode a sentença proferida – sob pena de comentimento da nulidade de excesso de pronúncia – condenar em quantidade superior ou em objecto diverso do que se pediu” [3]. Observando agora como tem sido interpretada e aplicada a norma na jurisprudência, veja-se, antes de mais, o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 2.03.2011 (Proc. 823/06.7TBLLE.E1.S1), em que – repare-se – se considerou “lícito ao tribunal convolar de um improcedente pedido de reconhecimento, no plano dos direitos reais, de uma situação de compropriedade no imóvel adquirido, em nome próprio, pelo mandatário desprovido de poderes representativos para o reconhecimento do direito, estritamente obrigacional, – e, portanto, desprovido de eficácia «erga omnes», dependendo decisivamente o cumprimento da obrigação do mandatário de este ainda conservar a titularidade e o poder de disposição do bem adquirido - de ver transferido para o património do mandante a quota que lhe caberia no imóvel adquirido, nos termos previstos no nº1 do art. 1181º do CC”. Diz-se no respectivo sumário: “1. O tribunal não está sujeito às alegações das partes no tocante à indagação, interpretação e aplicação das regras de direito ( art. 664º do CPC) - podendo, consequentemente, com plena autonomia, qualificar juridicamente os factos alegados como integradores da causa de pedir (ou que estão na base de uma excepção peremptória, deduzida pelo R), suprindo uma omissão da parte na indicação do fundamento jurídico da sua pretensão ou corrigindo oficiosamente uma qualificação jurídica que tenha por incorrecta , imperfeita ou inadequada (…) 3. O que identifica decisivamente a pretensão material do autor, o efeito jurídico que ele visa alcançar, enquanto elemento individualizador da acção, é o efeito prático-jurídico por ele pretendido e não a exacta caracterização jurídico-normativa da pretensão material, a sua qualificação ou subsunção no âmbito de certa figura ou instituto jurídico”. No sumário do Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 27.09.2011 (Proc. 2005/03. 0TVLSB.L1.S1): “O juiz tem o dever de participar na decisão do litígio, participando na indagação do direito – iura novit curia –, sem que esteja peado ou confinado à alegação de direito feita pelas partes. Porém, a indagação do direito sofre constrangimentos endoprocessuais que atinam com a configuração factológica que as partes pretendam conferir ao processo”. Na fundamentação do Acórdão explica-se: “No domínio da legislação italiana, tal como na maioria da legislações, onde se pretendem estabelecer regras de um processo justo - processo organizado e estruturado de modo a garantir, no limite do possível, a justiça do resultado - o juiz tem o dever de participar na decisão do litigio participando na indagação do direito – iura novit cura – sem que esteja peado ou confinado à alegação de direito feita pelas partes. A indagação do direito sofre, no entanto, constrangimentos endoprocessuais que atinam com a configuração factológica que as partes pretendam conferir ao processo. Este confinamento factológico, balizante da capacidade cognoscente do tribunal, não impede o tribunal de enveredar pelo conhecimento de questões que as partes não tenham enunciado ou não tenham qualificado durante, ou no desenvolvimento, da lide processual. A questão que se coloca na doutrina é saber se tendo, por exemplo, dirigido ao tribunal um pedido para, segundo determinada factologia, apreciar se ocorreu um inadimplemento de um contrato e o juiz, oficiosamente, na apreciação de mérito a que procede declara a nulidade do contrato. Vale por dizer se é legítimo neste caso o juiz decidir sobre a nulidade de um contrato sem que qualquer das partes tenha suscitado a questão e sem que, previamente, tenha convocado as partes a pronunciar-se sobre esta hipótese decisão. O exemplo, académico, que se convocou dilucida de forma paradigmática o que deve ser tido por decisão-surpresa ou “decisão solitária” do juiz. O juiz de forma absolutamente inopinada e apartado de qualquer aportamento factual ou jurídico envereda por uma solução que os sujeitos processuais não quiseram submeter ao seu juízo, ainda que possa ser a solução que mais se adeqúe a uma correcta e atinada do litígio. Não tendo, no entanto as partes configurado a questão na via adoptada pelo Juiz caber-lhe-ia dar-lhe a conhecer a solução jurídica que pretenderia vir a assumir para que as partes pudessem contrapor os seus argumentos (…)”. No sumário do Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 19.01.2017 (Proc. 873/10.9T2AVR.P1.S1) diz-se algo semelhante: “Incumbe ao tribunal proceder à qualificação jurídica que julgue adequada, nos termos do artigo 5.º, n.º 3, do CPC, mas dentro da fronteira da factualidade alegada e provada e nos limites do efeito prático-jurídico pretendido, sendo-lhe vedado enveredar pela decretação de uma medida de tutela que extravase aquele limite, ainda que pudesse, porventura, ser congeminada por extrapolação da factualidade apurada”[4]. Por fim, no sumário do Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 15.03.2018 (Proc. 2057/11.0TVLSB.L1.S2) pode ler-se: “I - Emerge do art. 608.º, n.º 2, do CPC que a actividade judicativa, com excepção das questões que o julgador deva conhecer oficiosamente, mostra-se confinada ao objecto do litígio, sendo o objecto do processo integrado pela causa de pedir e pela pretensão formulada pelo autor, abarcando também e eventualmente a matéria de excepção aduzida pelo réu em sua defesa. II - Ao abrigo do princípio da oficiosidade do conhecimento e aplicação do direito aos factos trazidos pelas partes – e que se exprime no brocado latino iura novit curia – actualmente consagrado no art. 5.º, n.º 3, do CPC, o tribunal pode apreciar as questões submetidas à sua apreciação com base em argumentos ou razões distintas daquelas que foram concitadas pelas partes”. Em síntese, tanto a doutrina como a jurisprudência, designadamente deste Supremo Tribunal, convergem no entendimento de que é possível ao (e desejável que) o tribunal dê às questão submetidas à sua apreciação o enquadramento jurídico mais adequado, ainda que isso signifique divergir do enquadramento cogitado pelos autores, caso em que devem ser previamente ouvidas. Mas é indispensável que o novo enquadramento se processe dentro do quadro factológico essencial fornecido pelo autor para justificar o seu pedido ou a sua pretensão, ou seja, a causa de pedir[5]. Decorre do artigo 581.º, n.ºs 3 e 4, do CPC que o pedido ou a pretensão é o efeito jurídico que o autor visa com a acção e que a causa de pedir é o facto ou o conjunto de factos jurídicos de que procede o pedido / a pretensão do autor. A causa de pedir reconduz-se, assim, grosso modo, aos factos constitutivos da situação jurídica que o autor quer fazer valer ou “ao conjunto de factos que integram a previsão da norma ou das normas materiais que estatuem o efeito jurídico pretendido”[6]. Mais incisivamente, nas palavras de Manuel de Andrade, o pedido é “o direito para que [o Autor] solicita ou requer a tutela jurisdicional e o modo por que intenta obter essa tutela (a providência judiciária requerida); o efeito jurídico pretendido pelo Autor” e a causa de pedir é “o acto ou facto jurídico (simples ou complexo, mas sempre concreto) donde emerge o direito que o Autor invoca e pretende fazer valer”[7]. Voltando ao caso concreto, sendo adquirido que as partes foram ouvidas quanto ao proposto novo enquadramento jurídico, cumpre indagar se se mostram “ultrapassados” na sentença a causa de pedir e / ou o pedido formulados pelos autores. Os autores alegam que ambas as rés lhes prestaram informação falsa sobre características essenciais do imóvel, o que configuram como incumprimento contratual, mais precisamente cumprimento defeituoso. Com base nisto, pedem uma compensação pelos danos sofridos, o que, segundo eles, se concretiza por via da redução do preço e do reembolso da diferença entre o prédio efectivamente vendido e o prédio pretendido. No que respeita, em particular, à ré Sortami, a causa de pedir é, assim, a prestação de informação falsa sobre características essenciais da moradia (cfr. artigo 45,º da p.i. e, depois, facto provado 33) e o pedido é que a ré Sortami seja condenada a indemnizá-los pelos prejuízos sofridos (cfr. artigo 52.º da p.i.). No que respeita à ré Sortami, o Tribunal de 1.ª instância deu razão aos autores, declarando que eles eram titulares do direito que invocavam e que a ré Sortami tinha a obrigação de os indemnizar. Procedeu, todavia, a uma requalificação jurídica dos factos, entendendo que a indemnização em que os autores pediam que a ré Sortami fosse condenada não radicava – não podia radicar – no regime da venda de coisas defeituosas (artigos 905.º a 912.º, ex vi dos artigo 913.º do CC), mas sim no regime da responsabilidade civil e devia ser calculada em conformidade (cfr. artigo 562.º e 566.º, n.º 2, do CC). Assim sendo, o Tribunal de 1.ª instância limitou-se a requalificar a situação subjacente ao pedido de indemnização (que seria manifestamente improcedente se fundado no regime da venda de coisas defeituosas uma vez que a ré Sortami não ocupava a posição de vendedora), enquadrando-a num outro regime – o regime da responsabilidade civil. Mas este novo enquadramento não importa uma substituição ou um “entorse” dos factos constitutivos do direito alegado pelos autores. Quer dizer: não há alteração da realidade, da materialidade ou dos factos; os “factos essenciais que constituem a causa de pedir”, como se dispõe no artigo 5.º, n.º 1, do CPC, são suficientes para se proceder àquele novo enquadramento. A causa de pedir é – e continua a ser – a prestação de falsa informação, que induziu os autores numa compra em condições que eles não teriam aceitado caso tivessem sido correctamente informados. Tão-pouco existe um “extravasamento” do pedido: o pedido é – continua a ser – o de ressarcimento pelos danos sofridos e é esse o pedido que o Tribunal de 1.ª instância julga procedente, baseando-se, é certo, em regime normativo diferente daquele que os autores julgavam ser adequado para fundar e fixar a indemnização. Recorde-se que o pedido deve ser entendido como o resultado ou efeito que se pretende obter numa perspectiva prática ou económica – o efeito prático-jurídico ambicionado ou pretendido. O pedido pressupõe a especificação do tipo de providência jurisdicional requerida, devendo existir correspondência ou congruência entre o pedido deduzido e a pronúncia jurisdicional obtida, a final, pela parte[8]. Em conclusão, dando por assente que a factualidade alegada pelos autores e tida por provada podia subsumir-se sem esforço à figura da responsabilidade civil, o Tribunal de 1.ª instância procedeu a esta requalificação – uma requalificação ou reconfiguração da factualidade alegadas pelas partes, logo, dos factos processualmente adquiridos, no estrito plano normativo ou do direito aplicável. O Tribunal de 1.ª instância respeitou os limites impostos à liberdade de requalificação jurídica da situação decidenda, atrás enunciados, e cumpriu o procedimento adequado a situações de requalificação jurídica (o dever de ouvir as partes), pelo que não se encontra razão para censurar a sua conduta, nomeadamente, para considerar que actuou em excesso de pronúncia, nos termos do artigo 615.º, n.º 1, al. d), do CPC, e em violação dos artigos 5.º, n.º 1, e 608.º, n.º 2, do CPC (sobre os poderes de cognição do tribunal e sobre as questões a resolver pelo tribunal, respectivamente). Não é possível, em suma, acompanhar a recorrida, quando aponta que “[a] responsabilidade que [lhe] foi imputada, na qualidade de mediadora imobiliária, radica em factos constitutivos que extravasam a causa de pedir invocada e pretendida pelos Recorrentes, sendo que a indemnização fixada é também substancial e juridicamente diversa da obrigação de redução do preço pedida na presente ação” (cfr. conclusão c.) e, muito menos, que “[a]o serem valorizados os factos na perspetiva da responsabilidade civil, que muda completamente a causa de pedir invocada pelos Recorrentes, em função da qual é deduzida a defesa, operou-se convolação para uma outra ação, que não é a ação intentada pelos mesmos, e para a qual a ora Recorrida não foi citada para se defender” (cfr. conclusão e.) e que “[a]ssim, o tribunal de 1.ª instância, ao ter condenado a Recorrida ao abrigo do instituto da responsabilidade civil extracontratual, apreciou uma pretensão qualitativamente diversa da formulada pelos Recorrentes, quer quanto à relação jurídica material controvertida, quer quanto ao próprio efeito pretendido e, por isso, fora do perímetro da vinculação temática do tribunal, nos termos decorrentes dos artigos 5.º, n.º 1, 260.º e 608.º, n.º 2 do Cód. Proc. Civil”. Não é possível, consequentemente, confirmar a decisão do Tribunal a quo, que concluiu que a sentença era nula por excesso de pronúncia, nos termos do artigo 615.º, n.º 1, al. d), do CPC, e se substituiu ao Tribunal de 1.ª instância, impondo-se, ao invés, revogar o Acórdão recorrido.
* III. DECISÃO
Pelo exposto, concede-se provimento à revista e revoga-se o Acórdão recorrido, determinando-se a baixa dos autos ao Tribunal a quo para que aí sejam apreciadas as questões suscitadas na apelação que, por força da decisão ora revogada, haviam ficado prejudicadas.
* Custas a final.
* Lisboa, 16 de Fevereiro de 2023
Catarina Serra (Relatora)
Rijo Ferreira
Cura Mariano _______ [1] Cfr. Rui Pinto, Código de Processo Civil Anotado, volume I, Coimbra, Coimbra Editora, 2018 p. 63. |