Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
401/07.3TBSR-A.C1-A.S1
Nº Convencional: 5ª SECÇÃO
Relator: ISABEL PAIS MARTINS
Descritores: FIXAÇÃO DE JURISPRUDÊNCIA
ACÓRDÃO
Data do Acordão: 01/13/2011
Votação: UNANIMIDADE
Referência de Publicação: DR I SÉRIE,30,11-02-2011,P.769-780.
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: FIXAÇÃO DE JURISPRUDÊNCIA
Decisão: FIXADA JURISPRUDÊNCIA
Sumário : A suspensão do procedimento por contra-ordenação cuja causa está prevista na alínea c) do n.º 1 do artigo 27.º-A do Decreto-Lei n.º 433/82, de 27 de Outubro, inicia-se com a notificação do despacho que procede ao exame preliminar da impugnação judicial da decisão da autoridade administrativa e cessa, sem prejuízo da duração máxima imposta pelo n.º 2 do mesmo artigo, com a última decisão judicial que vier a ser proferida na fase prevista no Capítulo IV da Parte II do Regime Geral das Contra-Ordenações.
Decisão Texto Integral:



Acordam no Pleno das Secções Criminais do Supremo Tribunal de Justiça

I


1. AA, Supermercados S.A.” interpôs, em 03/03/2010, recurso extraordinário para fixação de jurisprudência, ao abrigo do artigo 437.º do Código de Processo Penal, do acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, proferido no processo n.º 401/07.3TBSRE-A.C1, 5.ª secção, em 13/01/2010, por, em seu entender, se encontrar em oposição com o acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, proferido no processo n.º 9952/08, 9.ª secção, em 01/10/2009.

2. Realizada a conferência a que se refere o artigo 441.º do Código de Processo Penal, por acórdão proferido em 01/07/2010, foi decidido verificarem-se todos os pressupostos de admissibilidade do recurso, nomeadamente, a oposição de julgados sobre a mesma questão de direito.

Com efeito, na aplicação da norma da alínea c) do n.º 1 do artigo 27.º-A do Decreto-Lei n.º 433/82, de 27 de Outubro, na redacção introduzida pela Lei n.º 109/2001, de 24 de Dezembro, segundo a qual a prescrição do procedimento por contra-ordenação suspende-se durante o tempo em que o procedimento estiver pendente a partir da notificação do despacho que procede ao exame preliminar do recurso da decisão da autoridade administrativa que aplica a coima, até à decisão final do recurso (sem que a suspensão possa ultrapassar seis meses, segundo o n.º 2 do mesmo artigo), a situações de facto idênticas, os acórdãos recorrido e fundamento, ambos de tribunais de relação, revelam decisões expressas e antagónicas sobre a mesma questão de direito.

Qual seja, em síntese, a de saber se esse prazo de suspensão, no máximo de seis meses, se conta até à data da prolação da decisão, em 1.ª instância, do recurso de impugnação judicial da autoridade administrativa ou, antes, até à data da última decisão jurisdicional que põe fim ao processo contra-ordenacional.

3. Foram os sujeitos processuais notificados para alegar, nos termos e para os efeitos do n.º 1 do artigo 442.º do Código de Processo Penal.

4. Alegaram a recorrente e o Ministério Público.

4.1. A recorrente “AA, Supermercados S.A.” concluiu, como segue, as suas alegações:

«1ª Está em causa, no presente, a interpretação e aplicação da norma contida na al. c) do nº 1 do artº 27º-A do DL nº 433/82, de 27 de Outubro, na redacção introduzida pela Lei nº 109/2001, de 24 de Dezembro.

«2ª Os acórdãos recorrido e fundamento assentam em soluções opostas para a mesma questão de direito, qual seja a de saber se o prazo de suspensão (no máximo de 6 meses - cfr. artº 27º-A, nº 2 do citado diploma) se conta até à data da prolação da decisão, em 1ª instância, do recurso de impugnação judicial da autoridade administrativa ou, antes, até à data da última decisão jurisdicional que põe fim ao processo contra-ordenacional.

«3ª A divergência está, em resumo, na interpretação e aplicação que é operada quanto à expressão "decisão final do recurso" (al.c) in fine).

«4ª Salvo melhor entendimento, a posição sustentada no acórdão recorrido, que por sua vez se apoia no Ac. da Relação do Porto de 19-7-2006, não pode proceder.

«5ª Concorda-se que não é irrelevante que o legislador tenha acrescido o adjectivo "final".

«Sucede que, como infra se sustentará, pela leitura das restantes normas do diploma, o que o legislador qualifica e apelida como "decisão final do recurso" é a que é proferida em 1ª instância, pois é essa a decisão final quanto ao recurso de impugnação judicial da decisão da autoridade administrativa.

«6ª Por outro lado e em obediência ao disposto no artº 9º, nº 3 in fine do CC há que ter em conta que o legislador não se refere a "recursos" (plural) mas sim a "recurso" (singular).

«Também em obediência ao que dispõe aquele mesmo nº 3 do artº 9º do CC o legislador não fala em decisão "transitada em julgado".

«7ª Na tese defendida no acórdão recorrido olvida-se, salvo o devido respeito, a coerência sistemática do diploma em que se insere.

«Olvida-se também que, no RGCO, a regra é a da irrecorribilidade das decisões finais proferidas em 1ª instância quanto ao mérito/demérito do recurso de impugnação judicial, sendo certo que o legislador, na al. c) em quanto ao mérito/demérito do recurso de impugnação judicial, sendo certo que o legislador, na al. c) em análise, não faz qualquer distinção ou ressalva para os casos em que excepcionalmente é admissível o recurso para o Tribunal da Relação das decisões finais proferidas em 1ª instância.

«8ª Acaso estivesse na intenção do legislador fazer tal distinção, a mesma estaria expressa na norma em apreço, o que não é o caso.

«9ª E bem se compreende que o legislador não tenha feito tal distinção, pois a mesma é irrelevante do ponto de vista da razão que levou o legislador a erigir como causa de suspensão do prazo de prescrição a que consagrou na al. c) em apreciação.

«10ª O legislador teve claramente a intenção de estabelecer como causa de suspensão a da fase judicial do procedimento contra-ordenacional de confirmação/infirmação da decisão da autoridade administrativa, correspondendo o início e terminus de tal causa de suspensão, ao início e terminus da fase judicial de confirmação/infirmação daquela decisão administrativa.

«11ª Mas quis igualmente o legislador que tal confirmação/infirmação judicial ocorresse de modo célere, de molde a não prolongar no tempo tal fase judicial, em prejuízo da certeza jurídica a que o sistema propende, pelo que, para acautelar a possibilidade de ocorrência de atrasos inaceitáveis em tal apreciação judicial (apreciação do recurso de impugnação da decisão administrativa), se estabeleceu como tempo máximo de suspensão do prazo de prescrição o prazo de 6 meses - cfr. artº 27º-A, nº 2.

«12ª Presumiu o legislador, e bem, que tal prazo (no máximo de 6 meses) é suficiente para a prolação de uma decisão do poder judicial quanto ao mérito/demérito da decisão administrativa condenatória, objecto do recurso de impugnação.

«13ª Mais ainda, e salvo o devido respeito, no acórdão recorrido confunde-se "recurso de impugnação judicial da decisão da autoridade administrativa" com "recurso da decisão final para o Tribunal da Relação" (recurso jurisdicional).

«14ª Sucede que os referidos recursos têm natureza e objecto diferentes:

«No primeiro daqueles recursos o objecto é a decisão administrativa proferida, no segundo é a decisão judicial (sentença ou despacho proferido nos termos do disposto no artº 64º do RGCO) e não já a decisão administrativa.

«15ª Há que fazer a necessária distinção, sob pena de não fazer sentido que o legislador fale no início da norma em "recurso da decisão da autoridade administrativa que aplica a coima" e que, quando se refere à decisão final "do recurso" esteja a incluir outro que não o de impugnação da decisão administrativa...

«16ª O entendimento vertido no acórdão fundamento é, salvo melhor opinião, o que resulta da melhor interpretação da lei.

«17ª Como já se referiu, são pressupostos básicos da actividade interpretativa do jurista os que resultam do disposto no artº 9º do CC.

«18ª Partindo daqui, há que indagar, então, o que seja, para o legislador, "decisão final do recurso".

«19ª Na dinâmica do procedimento contra-ordenacional, tal como plasmado pelo legislador no RGCO, podemos distinguir duas fases distintas: a fase administrativa e a fase judicial.

«A fase judicial, que é a que para o caso interessa, inicia-se com o denominado "recurso de impugnação judicial", recurso este possibilitado pelo artº 59º, nº 1 do RGCO.

«20ª Na verdade, sabendo-se que as decisões em matéria contra-ordenacional são susceptíveis de colidir com os direitos, liberdades e garantias dos cidadãos, impunha-se que o legislador salvaguardasse tal matéria, possibilitando o recurso às instâncias judiciais, no sentido de serem as decisões das autoridades administrativas confirmadas ou infirmadas, através de processo justo, pelo poder judicial.

«21ª No diploma em análise o legislador trata tal recurso, como "impugnação judicial, "impugnação", "recurso de impugnação" ou "recurso".

«22ª Por contraponto à designação recurso da decisão judicial (cfr. artº 72º-A nº1), sendo que só nas normas subsequentes a tal designação o legislador se lhe refere como "recurso" (cfr. artºs 73º a 75º).

«23ª É, pois, do recurso de impugnação judicial, ou seja, do recurso apresentado da decisão da autoridade administrativa que o legislador trata na al. c) do nº 1 do artº 27º-A.

«24ª A decisão final proferida quanto à impugnação judicial da decisão administrativa é proferida pelo Tribunal de 1ª instância. Tal decisão é a que decide sobre a bondade ou não do recurso de impugnação judicial da decisão da autoridade administrativa.

«25ª E é decisão final porque o legislador, no RGCO, estabeleceu como regra a da irrecorribilidade das decisões proferidas no âmbito dos recursos de impugnação judicial das decisões das autoridades administrativas.

«26ª Ora se, salvo os casos excepcionais expressamente previstos, o legislador optou pela regra da irrecorribilidade das decisões proferidas quanto aos recursos de impugnação judicial das decisões das autoridades administrativas é manifesto que, para o legislador, a decisão proferida em 1ª instância é a decisão final do recurso de impugnação da decisão da autoridade administrativa.

«27ª E se dúvidas existissem, facilmente se dissipariam com a leitura de diversas normas constantes do diploma em que se insere a norma objecto do presente, resultando dessa análise que, para o legislador, a decisão final é, de facto a proferida em 1ª instância.

«28ª Isso mesmo se pode verificar lendo atentamente o nº 1 do artº 64º - O juiz decidirá do caso mediante audiência de julgamento ou através de simples despacho.

«29ª No mesmo sentido o disposto no artº 70º nº 4 - O tribunal comunicará às mesmas autoridades a sentença, bem como as demais decisões finais.

«30ª Significa isto que o legislador considera que a sentença proferida em 1ª instância quanto ao mérito do recurso de impugnação judicial (no caso de ter existido julgamento) é decisão final, considerando ainda como "decisão final" (as demais decisões finais) outras decisões como seja a que resulta do despacho judicial proferido nos termos do artº 64º (caso em que não ocorre audiência de julgamento).

«31ª Ainda como suporte da tese defendida veja-se o que dispõe o artº 71º, a propósito da retirada do recurso: O recurso pode ser retirado até à sentença em 1ª instância ou até ser proferido o despacho previsto no nº 2 do artº 64º.

«O "recurso" a que se reporta o legislador é, naturalmente, o recurso de impugnação judicial da decisão da autoridade administrativa!

«32ª Ter-se-á de concluir, no contexto da sistemática e terminologia do diploma referido, que o legislador, na al.c) do nº 1 do artº 27º-A se expressou de modo coerente.

«33ª Na realidade quando plasmou, na al.c) do nº 1 do artº 27º-A, a causa de suspensão do prazo de prescrição do procedimento fê-lo em coerência com as demais normas do diploma em que se insere.

«34ª Ou seja, a decisão final, de acordo com o modo como o legislador se expressa ao longo de todo o diploma (RGCO) é a decisão proferida em 1ª instância, pois é esta que "decide" o recurso, e o recurso em causa aqui, é o recurso de impugnação da decisão da autoridade administrativa, como decorre da parte inicial da norma em apreço.

«35ª Pese embora não seja argumento decisivo, não deixa de ter alguma relevância o facto de, além do acórdão recorrido e do acórdão da Relação do Porto para o qual remete, não conhecer a recorrente outra jurisprudência, nem doutrina, que apoie a tese aí sustentada.

«36ª Pelo contrário, no mesmo sentido da tese acolhida no acórdão fundamento, existe vasto número de acórdãos proferidos por vários Tribunais da Relação.

«37ª De acordo com as precedentes conclusões e pelas razões aí expostas, entende a recorrente que o conflito que se suscitou haverá de ser resolvido fixando-se jurisprudência no sentido que a seguir se propõe, alterando-se, em conformidade, o acórdão recorrido:

«- A causa de suspensão prevista na al. c) do nº 1 do artº 27º-A do RGCO conta-se desde a notificação do despacho que procede ao exame preliminar do recurso da decisão da autoridade administrativa que aplica a coima até à decisão final do recurso, sendo que esta ocorre com a prolação da decisão pelo Tribunal, em 1ª instância.»

4.2. O Ministério Público terminou as suas alegações com a formulação das seguintes conclusões:

«1 - Pese embora o direito penal e o direito contra-ordenacional sejam distintos, as razões que presidem ao instituto da prescrição no âmbito do primeiro valem para o último, nomeadamente a possibilidade de utilização indevida pelo agente de meios processuais (que a lei, é certo, lhe confere) para retardar o julgamento ou o trânsito em julgado de uma decisão ou até mesmo como forma de exaurir o tempo durante o qual o Estado pode persegui-lo pela prática de um facto ilícito típico.

«2 - Por via disso, e não obstante a primitiva intenção do legislador no sentido de, face ao direito penal, autonomizar o direito de mera ordenação social, as sucessivas alterações introduzidas ao Regime Geral das Contra-Ordenações e Coimas (R.G.C.O.) teve como efeito aproximá-lo de forma cada vez mais visível do direito penal, maxime em matéria de prescrição.

«3 - E isto como forma de obviar a que ficassem impunes determinados comportamentos por via da prescrição e bem assim de tornar-se ineficaz o sistema contra-ordenacional que, mercê daquelas alterações que lhe foram sendo introduzidas, aquilo que perdeu em celeridade ganhou em complexidade, esta decorrente da concessão ao arguido de garantias semelhantes às proporcionadas pelo processo penal.

«4 - Condicionalismo que determinou o legislador a alargar os prazos de prescrição, densificar as causas de interrupção e fixar um só prazo (máximo) de suspensão para o caso de haver ou não recurso, tal como sucedera afinal no domínio do direito penal, onde não se discute se no prazo (de 3 anos), previsto na alínea b) do número 1 do artigo 120º do Código Penal, se inclui o tempo de possíveis recurso para os tribunais superiores.

«5 - De onde que, à semelhança do sucedido no direito penal, não pôde o legislador do direito de mera ordenação social deixar de querer que a causa de suspensão prevista na alínea c) do número 1 do artigo 27º-A do R.G.C.O. produzisse os seus efeitos até à prolação da última decisão jurisdicional que, em definitivo, ponha termo ao processo, seja ela a proferida em primeira instância ou, havendo lugar a recurso, a prolatada pela Relação, contanto que não exceda o prazo máximo de seis meses (número 2 do artigo 27º-A do R.G.C.O.).

«6 - Prazo este que, pela sua dimensão pouco expressiva, não inviabilizando o propósito legislativo de não protelar indefinidamente a suspensão do procedimento, constitui contrapartida razoável para a perda de celeridade, decorrente de maior complexidade que caracteriza o actual processo contra-ordenacional.

«7 - É que, se essa não houvesse sido a intenção do legislador, mal se compreenderia então que, podendo usar apenas a expressão «decisão do recurso», tivesse optado por adjectivar a dita expressão com a aposição da palavra «final», numa inequívoca demonstração do seu propósito de abranger o lapso de tempo que, mercê da interposição de recurso para a Relação, decorresse até à prolação da derradeira decisão que em definitivo pusesse termo ao processo.

«8 - Para além de que sempre resultaria ilógico, contraditório e inadequado a garantir a eficácia do sistema contra-ordenacional (em que, ao invés do que sucede no sistema penal, tão só o arguido pode determinar a abertura da fase judicial) que, em caso de recurso para a Relação, o dito prazo de suspensão, previsto na alínea c) do número 1 do artigo 23º-A do R.G.C.O., não se contasse até à prolação da decisão jurisdicional que puser termo ao processo.

«9 - Termos em que, entendendo-se que o conflito que se suscita há-de ser resolvido uniformizando a jurisprudência no sentido de que

«“O prazo de suspensão da prescrição, no máximo de seis meses, previsto nos termos do disposto no artigo 27º-A, nº 1, alínea c) e número 2 do Regulamento Geral das Contra-Ordenações e Coimas, conta-se até à data da prolação da última decisão jurisdicional que puser termo ao processo contra-ordenacional”,

«10 - Deve, em consequência, manter-se o decidido no douto aresto recorrido.»

5. Foram corridos os vistos e realizou-se o julgamento, com observância do adequado formalismo.


II


1. Uma vez que a decisão tomada na secção criminal sobre a oposição de julgados não vincula o pleno das secções criminais, há que reapreciar essa matéria.

1.1. No acórdão recorrido teve-se como única questão a decidir a definição do significado, sentido e alcance que o legislador quis dar à expressão, que emprega na parte final da alínea c) do n.º 1 do artigo 27.º-A do Decreto-Lei n.º 433/82, de 27 de Outubro, “decisão final do recurso”, uma vez que, para o tribunal recorrido, a decisão referida naquele preceito reporta-se à decisão jurisdicional que põe fim ao processo contra-ordenacional enquanto que para a recorrente a “decisão final” esgota-se com a decisão do tribunal de 1.ª instância que conhece da impugnação da decisão da autoridade administrativa.

A qual foi resolvida no sentido de que a decisão final do recurso a ter em conta para os efeitos da referida alínea c) do n.º 1 do artigo 27.º-A não é a proferida pelo tribunal de 1.ª instância mas a que põe termo ao processo contra-ordenacional.

Com base nos seguintes argumentos (e apelo à fundamentação do acórdão de 19/07/2006, do Tribunal da Relação do Porto, no processo n.º 0643173 (1)

– O legislador, podendo perfeitamente ter usado a expressão “decisão do recurso”, entendeu acrescentar o adjectivo “final” precisamente porque quis vincar a ideia de que se trata da decisão última que vier a recair sobre a matéria em análise nos autos e não, propriamente, da primeira decisão jurisdicional de fundo exarada no processo. Até porque tinha perfeito conhecimento da circunstância de neste tipo de infracções, como regra, não se fazer actuar apenas um grau de recurso.

– Paralelamente é o que acontece com o preceituado na alínea b) do n.º 1 do artigo 120.º do Código Penal, relativamente à qual ninguém contesta que, no período de três anos referido no n.º 2, se inclui também o tempo de possíveis recursos para os tribunais superiores. De resto, a atestar que assim é, está o facto de, na versão originária do Código, a aprovada pelo Decreto-Lei n.º 400/82, de 23 de Setembro, aquele período ser de dois anos, se não houvesse recurso, e de três, se o houvesse, passando posteriormente a valer este último limite para todos os casos, isto é, sem e com recurso.

– Por outro lado, a vingar a tese da celeridade defendida pela recorrente (… pretendeu o legislador que essa confirmação/infirmação judicial ocorresse em modo célere, por forma a não prolongar no tempo tal confrmação/infirmação, em prejuízo da certeza jurídica a que o sistema propende [conclusão 11.ª]) surtiria efeito contrário ao que defende, já que se abriria a porta à utilização, por esta via, de todos os expedientes dilatórios de molde a que decorresse o prazo de prescrição.

No acórdão fundamento, porém, sustentou-se que a expressão “decisão final do recurso”, constante da alínea c) do n.º 1 do artigo 27.º-A do Decreto-Lei n.º 433/82, de 27 de Outubro, reporta-se à decisão proferida em 1.ª instância.

E, assim sendo, para efeitos de contagem do prazo de suspensão da prescrição há que atender ao período de tempo que decorre entre a data da notificação do despacho que tiver procedido ao exame preliminar do recurso da decisão da autoridade administrativa que aplicou a coima e a data da prolação, em 1.ª instância, da decisão do mesmo recurso.

1.2. Em função do exposto, deve reconhecer-se que os acórdãos recorrido e fundamento, no âmbito de situações de facto idênticas, que convocavam a aplicação da norma da alínea c) do n.º 1 do artigo 27.º-A do Decreto-Lei n.º 433/82, de 27 de Outubro, na redacção introduzida pela Lei n.º 109/2001, de 24 de Dezembro, manifestam julgamentos contraditórios da mesma questão de direito.

Uma vez que a recorrente tem legitimidade, que o recurso foi interposto dentro do prazo de 30 dias, contados a partir do trânsito em julgado do acórdão recorrido, e que é manifesta a oposição de julgados sobre a mesma questão de direito, em reapreciação da matéria, reafirma-se a verificação não só dos pressupostos formais mas também dos requisitos substanciais de admissibilidade do recurso de fixação de jurisprudência, âmbito em que releva a oposição de acórdãos, ou seja, verificarem-se em dois acórdãos soluções antagónicas da mesma questão fundamental de direito.

Em síntese, a questão está em saber se a suspensão da prescrição do procedimento por contra-ordenação, por força da causa prevista na alínea c) do n.º 1 do artigo 27.º-A do Decreto-Lei n.º 433/82, de 27 de Outubro, ocorrendo a partir da notificação do despacho que procede ao exame preliminar do recurso da decisão da autoridade administrativa que aplica a coima, deve contar-se até à data da prolação da decisão do recurso em 1.ª instância, ou, antes, deve contar-se até à data da última decisão jurisdicional que põe fim ao processo contra-ordenacional.


III


Definida a questão de direito que suscita a fixação de jurisprudência e enunciadas as posições em confronto, cumpre decidir.

1. Inserido no movimento da descriminalização, o ilícito de mera ordenação social foi, entre nós, pela primeira vez, legalmente consagrado pelo Decreto-Lei n.º 232/79, de 24 de Julho (2), diploma que veio a ser revogado e substituído pelo Decreto-Lei n.º 433/82, de 27 de Outubro, que instituiu o regime geral do ilícito de mera ordenação social e respectivo processo.

1.1. O ilícito de mera ordenação social surge vocacionado para cumprir funções político-criminais bem definidas. Os ilícitos contra-ordenacionais seriam a resposta sancionatória de um Estado crescentemente intervencionista em áreas em que as condutas, apesar de socialmente intoleráveis, não atingem a dignidade penal.

Afirmando-se, no preâmbulo do Decreto-Lei n.º 433/82, de 27 de Outubro (3), “a necessidade de dar consistência prática às injunções normativas decorrentes deste novo e crescente intervencionismo do Estado, convertendo-as em regras efectivas de conduta, postula naturalmente o recurso a um quadro efectivo de sanções. Só que tal não pode fazer-se, como unanimemente reconhecem os cultores mais qualificados das ciências criminológicas e penais, alargando a intervenção do direito criminal. Isto significaria, para além de uma manifesta degradação do direito penal (…), a impossibilidade de mobilizar preferencialmente os recursos disponíveis para as tarefas da prevenção e repressão da criminalidade mais grave”.

Delimitado, no mesmo preâmbulo, o campo preferencial do ilícito de mera ordenação social à acção conformadora do Estado nos domínios da economia, saúde, educação, cultura, equilíbrios ecológicos, etc., aí se esclarece, ainda, a sua articulação com o direito penal, no cumprimento do princípio da subsidiariedade, segundo o qual “o direito criminal deve apenas ser utilizado como a ultima ratio da política criminal, destinado a punir as ofensas mais intoleráveis aos valores ou interesses fundamentais à convivência humana, não sendo lícito recorrer a ele para sancionar infracções de não comprovada dignidade”.

1.2. Da autonomia material do ilícito de mera ordenação social face ao ilícito penal e da distinção essencial entre crimes e contra-ordenações e entre penas e coimas resultam diferenças sensíveis ao nível processual.

Sendo a coima uma sanção, exclusivamente patrimonial, dirigida a advertir o cumprimento de deveres e obrigações que relevam apenas de uma certa ordenação social, torna-se imediatamente compreensível que o processamento das contra-ordenações e a aplicação das coimas caibam às autoridades administrativas (artigo 33.º do Decreto-Lei n.º 433/82). O que corresponde, ainda, ao sentido e à finalidade pragmática do movimento de descriminalização que visa libertar a função judicial de todas as tarefas relativas à averiguação e sancionamento de condutas que não têm a ver com os fundamentos éticos da comunidade, mas apenas com razões – estratégicas e utilitárias – de ordenação social (4).

Ao que a Constituição vincula é que a decisão da autoridade administrativa seja susceptível de impugnação judicial.

Não só por força do artigo 20.º, n.º 1, da Constituição (5), ao assegurar a todos o acesso aos tribunais para defesa dos seus direitos, mas, ainda, por ter assento constitucional a garantia de que “nos processos de contra-ordenação são assegurados ao arguido os direitos de audiência e defesa”, constante, actualmente, do n.º 10 do artigo 32.º, da Constituição (6).

Assim, e nas palavras de Figueiredo Dias (7) , “é uma exigência constitucional do Estado de Direito que mesmo uma matéria como a das contra-ordenações e das coimas seja susceptível de controlo judicial e de que sobre ela caiba a um tribunal, não como vimos a primeira mas em todo o caso e sempre a última palavra”.

Daí, as normas relativas ao “Recurso e Processo Judiciais”, conforme epígrafe do Capítulo IV do Decreto-Lei n.º 433/82, de 27 de Outubro, compreendendo os artigos 59.º a 75.º

A decisão da autoridade administrativa que aplica uma coima é susceptível de impugnação judicial, pelo arguido ou pelo seu defensor, para o juiz do tribunal competente, e, nos casos expressamente previstos no artigo 73.º e no caso do artigo 63.º, da decisão judicial cabe recurso para a relação.

A impugnação judicial da decisão da autoridade administrativa é também apelidada pelo legislador de “recurso de impugnação” ou, simplesmente, “recurso”, sendo, aqui, nos artigos 59.º a 72.º, a expressão “recurso” usada num sentido não técnico pois antes dele (do “recurso” ao tribunal de 1.ª instância) não existe qualquer apreciação ou decisão judicial, mas apenas uma decisão da autoridade administrativa.

A decisão judicial da impugnação da decisão da autoridade administrativa – sentença, se o caso for decidido mediante audiência de julgamento, ou simples despacho, se o juiz não considerar necessária a audiência de julgamento (artigo 64.º, n.os 1 e 2) – é, nos casos previstos no artigo 73.º, passível de recurso para a relação. Também o despacho de rejeição de recurso, previsto no artigo 63.º, é passível de recurso. Aqui, nos artigos 63.º e 73.º a 75.º, a expressão “recurso” é usada em sentido técnico, ou seja, referida ao meio de impugnação de uma decisão judicial.

2. A questão que reclama a nossa análise prende-se, especialmente, com o instituto da prescrição do procedimento contra-ordenacional, importando começar por ver a evolução legislativa que sofreu e as razões que a determinaram.

2.1. Desde a sua versão originária, o Decreto-Lei n.º 433/82 contém um capítulo sobre prescrição (capítulo IV).

Na versão originária do regime geral, esse capítulo compreendia a regulação dos prazos da prescrição do procedimento por contra-ordenação (artigo 27.º), das causas da interrupção da prescrição do procedimento por contra-ordenação (artigo 28.º), dos prazos de prescrição da coima (artigo 29.º), das causas da suspensão da prescrição da coima (artigo 30.º) e da aplicação às sanções acessórias do regime previsto para a prescrição das coimas (artigo 31.º).

Tendo o artigo 28.º a seguinte redacção:


«Artigo 28.º
«(Interrupção da prescrição)

«1 – A prescrição do procedimento por contra-ordenação interrompe-se:

«a) Com a comunicação ao arguido dos despachos, decisões ou medidas contra ele tomadas ou com qualquer notificação;
«b) Com a realização de quaisquer diligências de prova, designadamente exames e buscas, ou com o pedido de auxílio às autoridades policiais ou a qualquer autoridade administrativa;
«c) Com quaisquer declarações que o arguido tenha proferido no exercício do direito de audição.
«2 – Nos casos de concurso de infracções, a interrupção da prescrição do procedimento criminal determina a interrupção da prescrição do procedimento por contra-ordenação.»

A suspensão da prescrição do procedimento por contra-ordenação não estava (pelo menos, directamente) contemplada no diploma.

2.2. Pela Lei n.º 13/95, de 5 de Maio, a Assembleia da República concedeu ao Governo autorização legislativa para rever o regime geral do ilícito de mera ordenação social, constante do Decreto-Lei n.º 433/82, de 27 de Outubro – já alterado pelo Decreto-Lei n.º 356/89, de 17 de Outubro, mas sem incidência na matéria que, agora, nos ocupa –, definindo-se o sentido da legislação a aprovar, ao abrigo dessa autorização, como sendo, nomeadamente, o de “aperfeiçoar a coerência interna do regime geral do ilícito de mera ordenação social, bem como a coordenação deste com o disposto na legislação penal e processual penal” e de “introduzir regras sobre a suspensão da prescrição do procedimento” (cfr. artigos 1.º e 2.º, alíneas c) e h), da Lei n.º 13/95, de 5 de Maio).

Na sequência, o Decreto-Lei n.º 244/95, de 14 de Setembro, veio reformar o regime geral das contra-ordenações.

Logo se advertindo, no preâmbulo do diploma, para o “crescente movimento de neopunição, com o alargamento notável das áreas de actividade que agora são objecto de ilícito de mera ordenação social e, do mesmo passo, com a fixação de coimas de montantes muito elevados e a cominação de sanções acessórias especialmente severas”. Pelo que, “compreensivelmente, não pode o direito de mera ordenação social continuar a ser olhado como um direito de bagatelas penais”. Acrescentando-se, ainda, que é, nesta perspectiva, que deve entender-se a introduzida reforma do regime geral das contra-ordenações.

Entre os objectivos visados pela reforma, como, também, se destaca no preâmbulo do diploma, estão o de “acentuar a eficácia do sistema punitivo das contra-ordenações, tão mais necessário quanto mais extenso o domínio de intervenção e a relevância daquele sistema na vida comunitária” e o de “proceder ao aperfeiçoamento da coerência interna do regime geral de mera ordenação social, bem como a coordenação deste com o disposto na legislação penal e processual penal”.

Sendo, “no plano da intensificação da coerência interna do regime geral de mera ordenação social e da respectiva coordenação com a legislação penal e processual penal”, que se insere, entre outros aspectos, “a fixação de regras sobre a suspensão da prescrição do procedimento”, como, ainda, consta do mesmo preâmbulo.

Regras estas que passaram a constar do artigo 27.º-A, com a seguinte redacção.



«Artigo 27.º-A
«Suspensão da prescrição

«A prescrição do procedimento por contra-ordenação suspende-se, para além dos casos previstos na lei, durante o tempo em que o procedimento não puder legalmente iniciar-se ou continuar por falta de autorização legal.»

2.3. Quer antes, quer depois, da entrada em vigor do Decreto-Lei n.º 244/95, de 14 de Setembro, foi questão intensamente discutida na jurisprudência a de saber se o regime geral das contra-ordenações continha um regime completo e virtualmente exaustivo do instituto da prescrição do procedimento por contra-ordenação ou se, pelo menos por força da aplicação subsidiária do Código Penal, conforme artigo 32.º do Decreto-Lei n.º 433/82 (8), tal regime é complementado subsidiariamente pelo que se encontra estabelecido para os crimes no Código Penal.

É nesta controvérsia que o acórdão de fixação de jurisprudência n.º 6/2001, de 8 de Março de 2001 (9)se insere, constituindo um marco decisivo da compreensão jurisprudencial e da evolução legislativa da matéria, como, adiante, veremos.

A questão que suscitou essa fixação de jurisprudência estava em saber se a norma do n.º 3 do artigo 121.º do Código Penal era, ou não, aplicável ao regime prescricional das contra-ordenações.

Vindo a ser fixada a seguinte jurisprudência: “A regra do n.º 3 do artigo 121.º do Código Penal, que estatui a verificação da prescrição do procedimento quando, descontado o tempo de suspensão, tiver decorrido o prazo normal da prescrição, acrescido de metade, é aplicável, subsidiariamente, nos termos do artigo 32.º do regime geral das contra-ordenações (Decreto-Lei n.º 433/82, de 27 de Outubro, alterado pelo Decreto-Lei n.º 244/95, de 14 de Setembro), ao regime prescricional do procedimento contra-ordenacional.”

Já, então, se defendeu (10) que, a ser fixada a jurisprudência no sentido em que veio a ser fixada, então, na mesma, devia ser compreendida a aplicação subsidiária das causas de suspensão da prescrição previstas no artigo 120.º do Código Penal, propondo-se, subsidiariamente, a fixação de jurisprudência da forma seguinte: “O prazo máximo de prescrição do procedimento contra-ordenacional, havendo causas de interrupção, é obtido através da aplicação subsidiária do artigo 121.º, n.º 3, do Código Penal (de 1995), ao regime geral das contra-ordenações, em conjugação com as causas de suspensão da prescrição previstas no artigo 120.º do Código Penal, também aplicáveis subsidiariamente, e com a causa de suspensão prevista no artigo 27.º-A do regime geral das contra-ordenações”.

2.4. Com efeito, mesmo depois da introdução do artigo 27.º-A ao regime geral, pelo Decreto-Lei n.º 244/95, de 14 de Setembro, continuou a ser objecto de controvérsia jurisprudencial a questão de saber se, em processo contra-ordenacional, as causas de suspensão de prescrição do procedimento eram apenas as contempladas no estrito quadro de previsão do artigo 27.º-A do Decreto-Lei n.º 433/82, de 27 de Outubro, na redacção emergente do Decreto-Lei n.º 244/95, de 14 de Setembro, ou se, ao invés, aí tinha aplicação subsidiária o regime geral das causas de suspensão do procedimento criminal constante do artigo 120.º do Código Penal, na redacção que lhe adveio do Decreto-lei n.º 48/95, de 15 de Março, e da Lei n.º 65/98, de 2 de Setembro (artigo 119.º da versão originária do diploma).

Vindo o Supremo Tribunal de Justiça, pelo acórdão n.º 2/2002, de 17 de Janeiro de 2002 (11), a fixar jurisprudência, nos seguintes termos:

“O regime da suspensão da prescrição do procedimento criminal é extensivo, com as devidas adaptações, ao regime de suspensão prescricional das contra-ordenações, previsto no artigo 27.º-A do Decreto-Lei n.º 433/82, de 27 de Outubro, na redacção dada pelo Decreto-Lei n.º 244/95, de 14 de Setembro.”

Convindo, a propósito, recordar que o artigo 119.º do Código Penal, na versão originária, prescrevia:


«Artigo 119.º
«(Suspensão da prescrição)

«1. A prescrição do procedimento criminal suspende-se, para além dos casos especialmente previstos na lei, durante o tempo em que
«a) o procedimento criminal não possa legalmente iniciar-se ou não possa continuar por falta de uma autorização legal ou de uma sentença prévia a proferir por tribunal não penal, ou por efeito da devolução de uma questão prejudicial para o juízo não penal;
«b) o procedimento criminal esteja pendente, a partir da notificação do despacho de pronúncia ou equivalente, salvo no caso do processo de ausentes;
«c) o delinquente cumpra no estrangeiro uma pena ou uma medida de segurança primitiva da liberdade.
«2. No caso previsto na alínea b) do número anterior, a suspensão não pode ultrapassar 2 anos, quando não haja lugar a recurso ou a 3 anos, havendo-o.
«3. A prescrição volta a correr a partir do dia em que cessa a causa de suspensão.»

Em consequência das alterações introduzidas pelo Decreto-Lei n.º 48/95, de 15 de Março, a matéria da suspensão da prescrição passou a ser regulada no artigo 120.º do Código Penal, com a seguinte redacção:


«Artigo 120.º
«Suspensão da prescrição

«1 – A prescrição do procedimento criminal suspende-se, para além dos casos especialmente previstos na lei, durante o tempo em que:
«a) o procedimento criminal não puder legalmente iniciar-se ou continuar, por falta de autorização legal ou de sentença a proferir por tribunal não penal, ou por efeito da devolução de uma questão prejudicial a juízo não penal;
«b) o procedimento criminal estiver pendente a partir da notificação da acusação ou, não tendo esta sido deduzida, a partir da notificação da decisão instrutória que pronunciar o arguido ou do requerimento para a audiência em processo sumaríssimo;
«c) vigorar a declaração de contumácia;
«d) o delinquente cumprir no estrangeiro pena ou medida de segurança privativas da liberdade.
«2 – No caso previsto na alínea b) do número anterior a suspensão não pode ultrapassar 3 anos.
«3 – A prescrição volta a correr a partir do dia em que cessar a causa de suspensão.»
A actual redacção do artigo resulta de alterações, introduzidas pela Lei n.º 65/98, de 2 de Setembro, que substituiu a expressão da alínea b) «requerimento para a audiência em processo sumaríssimo» por «requerimento para a aplicação de sanção em processo sumaríssimo» e introduziu uma nova alínea d) – passando a anterior alínea d) a alínea e) – do seguinte teor: «A sentença não puder ser notificada ao arguido julgado na ausência.»

A jurisprudência fixada pelo referido acórdão n.º 2/2002 está intimamente conexionada com a jurisprudência fixada pelo acórdão n.º 6/2001, como, aliás, a fundamentação daquele acórdão evidencia, quando, nela, se afirma: “haverá de convir-se que, decretado que está, em consideração, essencialmente, aos direitos de defesa do arguido, que o prazo prescricional, mesmo relativo a contra-ordenações, não pode, em caso algum, ir além do previsto no artigo 121.º, n.º 3, do Código Penal, nula ou pouca eficácia conseguiria um sistema que, para além disso, limitasse ao mínimo possível – no caso, à previsão do artigo 27.º-A do Decreto-Lei n.º 433/82, na redacção então vigente (12) – as hipóteses de suspensão daquela causa extintiva do procedimento, já que nem sequer a notificação da acusação ou acto equivalente teria essa força suspensiva, o que, por direitas contas, tornaria a aplicação de qualquer coima vulnerável a toda a espécie de manobras dilatórias, em suma, dependente em último termo, da vontade do acusado.

“Neste contexto a aplicação subsidiária do artigo 120.º, n.º 1, do Código Penal ou do seu antecessor constitui, numa óptica plausível de equilíbrio estatutário, a contribuição mínima a exigir do arguido, a quem a interpretação fixada no Acórdão n.º 6/2001, inegavelmente outorgou um substancial benefício processual, porventura alheio à original intenção do legislador contra-ordenacional, mas, como se viu, não desdenhado pelo reformador.”

2.5. A referência ao reformador compreende-se por, à data da prolação do acórdão n.º 2/2002, já ter entrado em vigor a Lei n.º 109/2001, de 24 de Dezembro, que alterou a redacção dos artigos 27.º, 27.º-A e 28.º do Decreto-Lei n.º 433/82, de 27 de Outubro.

Embora o acórdão não a tenha considerado na resolução do conflito, pois, como se esclareceu, “a solução do problema, à luz do novo quadro legislativo, ultrapassa o objecto do presente recurso extraordinário, pelo que, àquele se terá de cingir o veredicto deste Supremo Tribunal”, não deixou de ponderar que “a nova redacção do artigo 27.º-A do regime geral, conferida pela citada Lei n.º 109/2001, de 24 de Dezembro, ao aditar à anterior duas novas causas de suspensão da prescrição do procedimento dá corpo à ideia de que o legislador assumiu, explicitamente, a reposição daquele equilíbrio”.

Com a alteração introduzida pela Lei n.º 109/2001, passou a redacção do artigo 27.º-A, a ser a seguinte:


«Artigo 27º-A
«Suspensão da Prescrição

«1 – A prescrição do procedimento por contra-ordenação suspende-se, para além dos casos excepcionalmente previstos na lei, durante o tempo em que o procedimento:
«a) Não puder legalmente iniciar-se ou continuar por falta de autorização legal;
«b) Estiver pendente a partir do envio do processo ao Ministério Público até à sua devolução à autoridade administrativa, nos termos do artigo 40.º;
«c) Estiver pendente a partir da notificação do despacho que procede ao exame preliminar do recurso da decisão da autoridade administrativa que aplica a coima, até à decisão final do recurso.
«2 – Nos casos previstos nas alíneas b) e c) do número anterior, a suspensão não pode ultrapassar seis meses.»
Por seu lado, o artigo 28.º ficou com a seguinte redacção:


«Artigo 28º
«Interrupção da Prescrição

«1 – A prescrição do procedimento por contra-ordenação interrompe-se:
«a) Com a comunicação ao arguido dos despachos, decisões ou medidas contra ele tomados ou com qualquer notificação;
«b) Com a realização de quaisquer diligências de prova, designadamente exames e buscas, ou com o pedido de auxílio às autoridades policiais ou a qualquer autoridade administrativa;
«c) Com a notificação ao arguido para exercício do direito de audição ou com as declarações por ele prestadas no exercício desse direito;
«d) Com a decisão da autoridade administrativa que procede à aplicação da coima.
«2 – Nos casos de concurso de infracções, a interrupção da prescrição do procedimento criminal determina a interrupção da prescrição do procedimento por contra-ordenação.
«3 – A prescrição do procedimento tem lugar quando, desde o seu inicio e ressalvando o tempo de suspensão, tiver decorrido o prazo de prescrição acrescido de metade.»

2.6. Na génese da Lei n.º 109/2001, de 24 de Dezembro, está a Proposta de Lei n.º 82/VIII (13), que o Governo apresentou à Assembleia da República, com vista à alteração do Decreto-Lei n.º 433/82, de 27 de Outubro.

Sendo relevante, para a solução da questão que nos ocupa, conhecer a respectiva exposição de motivos.

Dela consta:

“O regime da prescrição no Direito de Mera Ordenação Social é matéria particularmente importante, em relação à qual se verificou a existência de divergências jurisprudenciais significativas e que foi objecto do recente Acórdão n.º 6/2001 de fixação da jurisprudência pelo Supremo Tribunal de Justiça. O entendimento consagrado nesta jurisprudência obrigatória, segundo o qual há um prazo máximo de prescrição no procedimento contra-ordenacional, é agora expressamente consagrado. Assim, passa a dispor-se que a prescrição do procedimento tem sempre lugar quando, desde o seu início e ressalvado o tempo de suspensão, tiver decorrido o prazo de prescrição acrescido de metade.

“Todavia, se é compreensível que por razões de justiça material e de igualdade se transponha do regime penal para o contra-ordenacional este prazo máximo de prescrição, também é justo que por razões de eficácia do sancionamento se alarguem os prazos prescricionais e se tratem de forma mais detalhada as causas de suspensão e de interrupção do procedimento. Ou seja: ao reconhecermos que no procedimento contra-ordenacional pode estar em causa a aplicação de uma sanção gravemente limitadora dos direitos fundamentais de quem a ela é sujeito – pelo que se deve prever um prazo limite para a duração desse estado subjectivo de incerteza –, também temos de reconhecer que a possibilidade de fixação de coimas de montantes muito elevados e de sanções acessórias particularmente severas veio acompanhada por um adensamento das garantias processuais que se repercutiram na maior complexidade do procedimento.”

O alargamento dos prazos de prescrição do procedimento contra-ordenacional e a densificação das suas causas de suspensão e de interrupção mostra-se justificada, na mesma exposição de motivos, não “como um convite à lentidão da Administração” mas, antes, como imposição decorrente de que “o alargamento do direito das contra-ordenações a um conjunto de novas realidades se traduziu na agravação das suas sanções, na importação de garantias semelhantes às do processo penal e, consequentemente, na maior complexidade do procedimento”.

Onde, ainda, se adverte que “há que ter em conta a possibilidade de interposição de recursos de despachos e medidas da Administração durante a primeira fase do procedimento, a impugnação judicial para o tribunal da 1.ª instância da decisão administrativa de aplicação de uma coima, o eventual recurso desta sentença para o tribunal da relação. O que, pela própria natureza deste procedimento e pelas especificidades das infracções em causa, poderá acarretar uma perda de celeridade por vezes superior à que existe em alguns processos penais simples”.

Para, à laia de conclusão, se afirmar:

“Tem-se, portanto, em conta esta realidade que o regime jurídico da prescrição no procedimento contra-ordenacional não pode ignorar, sob pena de funcionar como uma carta de impunidade manifestamente injusta, pelo que se alargam os prazos de prescrição do procedimento e se densificam as suas causas de suspensão e de interrupção.”

Ideias que foram reafirmadas, na intervenção do, então, Ministro da Justiça, na discussão na generalidade da proposta de lei (14).

Esclareceu, nessa intervenção, que as alterações propostas procuravam “o ponto de equilíbrio” entre dois objectivos só aparentemente divergentes mas igualmente importantes. De um lado, a consagração de um prazo máximo de prescrição, de outro, o alargamento dos prazos prescricionais e das suas causas de suspensão e de interrupção.

Chamou a atenção para que a crescente complexidade do procedimento contra-ordenacional o tornou, também, muitas vezes mais moroso, pelo que, sob pena de se inviabilizar em muitos casos a justa punição, havia que adequar os prazos prescricionais a essa nova realidade. Salientou que, se “numa primeira análise, pode parecer estranha a existência de prazos de prescrição para o processo contra-ordenacional superiores àqueles consagrados para os processos criminais relativos às infracções mais graves”, “a verdade é que as especificidades do processo contra-ordenacional e as especificidades das próprias infracções em apreciação podem acarretar uma perda de celeridade por vezes superior à que existe em alguns processos penais mais simples”.

E apelou a que se recordasse “que o processo contra-ordenacional pode ter duas fases: uma, administrativa e, outra, judicial”, “que há que ter em conta a possibilidade de interposição de recursos de despachos e medidas da Administração durante a primeira fase do procedimento”, “que é possível a impugnação judicial da decisão administrativa para o tribunal de 1.ª instância” e “que, em muitos casos, é ainda possível a interposição de recurso desta sentença, provocando-se a intervenção do Tribunal da Relação”.

Para concluir, dizendo que “se tornou fundamental ter em conta a complexidade real de muitos destes processos, sob pena de, caso ignoremos tal realidade, aceitando um prazo máximo de prescrição sem um alargamento corrector dos prazos prescricionais, estarmos a outorgar a muitos uma carta de impunidade manifestamente injusta”.

Restará acrescentar que na Lei n.º 109/2001, de 24 de Dezembro, foi transposta, sem qualquer alteração, a proposta de lei do Governo.

3. Feito este excurso sobre a evolução legislativa da matéria da prescrição do procedimento contra-ordenacional, no regime geral das contra-ordenações, e razões que lhe subjazem, interessará completá-lo com uma nota breve sobre o instituto da prescrição, no âmbito do ilícito contra-ordenacional.

3.1. Na discussão sobre a natureza jurídica da prescrição, centrada na prescrição do procedimento criminal, domina, actualmente, uma concepção mista que vê na prescrição um instituto jurídico tanto substantiva como processualmente relevante e fundado (15).

Por um lado, a limitação temporal da perseguibilidade do facto liga-se a exigências político-criminais fundadas nas finalidades das penas – o decurso de um largo período de tempo sobre a prática do crime apazigua ou frustra a necessidade da pena, de um ponto de vista da prevenção geral positiva, e torna sem sentido as finalidades de socialização – e, por outro lado, o decurso do tempo torna mais difícil e de resultados duvidosos a investigação e a consequente prova do facto.

Reconhece-se, todavia, que o decurso do tempo, que constitui a essência mesma do instituto da prescrição, não deve favorecer o agente quando a pretensão punitiva do Estado e as suas exigências de punição são confirmadas através de certos actos de perseguição ou quando a situação é uma tal que exclui mesmo a possibilidade daquela perseguição. Aqui radicando a razão de ser dos institutos da interrupção e da suspensão da prescrição do procedimento criminal (16).

Enquanto a interrupção da prescrição tem como efeito que comece a correr um novo prazo de prescrição no dia em que se produz o acto interruptivo – estabelecendo-se, porém, um prazo-limite, findo o qual o procedimento prescreverá, independentemente de todas as interrupções que possam ter tido lugar, sob pena de se “eternizar” a interrupção da prescrição e, assim, se frustrarem os fundamentos do instituto da prescrição –, a suspensão da prescrição impede o decurso do prazo da prescrição. Significa que, consoante as causas, se paralisam o começo e o decurso do prazo de prescrição.

3.2. À consagração do instituto da prescrição do procedimento contra-ordenacional e à previsão de causas de interrupção da prescrição logo na versão originária do regime geral das contra-ordenações não são alheios os fundamentos da consagração dos institutos no direito penal.

Ligam-se, com efeito, à necessidade de autolimitação do Estado face ao decurso do tempo, no pressuposto do esquecimento do ilícito pela comunidade e na consideração de que se tornam progressivamente sem sentido os efeitos úteis da punição. Numa outra perspectiva, no aspecto do desinteresse do Estado em prosseguir com o procedimento relevam as dificuldades probatórias que se relacionam com decurso do tempo na medida em que quanto mais tempo decorre desde a prática do facto mais elas aumentam.

Também a consagração de causas de interrupção do procedimento contra-ordenacional se liga à ideia de que o decurso do tempo não deve levar à prescrição do procedimento quando o Estado, pela prática de actos processuais relevantes, segundo a concreta estruturação do processo contra-ordenacional, objectivamente afirma a sua pretensão sancionatória.

Especialmente com a Lei n.º 109/2001, de 24 de Dezembro, revela-se, no âmbito do instituto da prescrição consagrado no regime geral das contra-ordenações, a plena adesão do legislador às soluções do direito penal, desde logo, com a importação de um prazo-limite findo o qual o procedimento contra-ordenacional prescreverá, independentemente de todas as causas de interrupção que se tenham verificado e com a regulamentação, agora completa e exaustiva, do instituto da suspensão moldada nas soluções tradicionais do direito penal.

No plano do instituto da prescrição do procedimento contra-ordenacional, a Lei n.º 109/2001, de 24 de Dezembro, como já antes, e mais amplamente, a reforma de 1995 (Decreto-Lei n.º 244/95), são expressão da tendência de aproximação e dependência do ilícito de mera ordenação social das categorias e regimes formais do direito penal e do direito processual penal.

Na verdade, não obstante o projecto inicial de autonomia, nos planos dogmático, sancionatório e processual do ilícito de mera ordenação social em relação ao ilícito penal, vem-se reconhecendo que ele tem sido juridicamente hipotecado pela experiência, pela evolução legislativa e pela grande heterogeneidade e crescente complexidade das matérias que este sector foi abrangendo (17).

4. Numa sumária incursão pela fase do recurso do processo contra-ordenacional, no quadro do regime geral, releva destacar alguns aspectos.

É através desta fase do processo que se permite não apenas uma reapreciação da decisão proferida pela autoridade administrativa mas um verdadeiro julgamento dos factos imputados ao arguido e que motivaram a sua condenação. Assim, a decisão condenatória proferida pela autoridade administrativa só adquire eficácia se obtiver a adesão por parte do condenado, já que este, e só este, pode sempre provocar a reapreciação dos factos, agora perante um tribunal.

Esta reapreciação é provocada, pelo arguido, através de impugnação judicial da decisão da autoridade administrativa, a qual deve ser apresentada à autoridade administrativa para que esta tenha, desde logo, a possibilidade de tomar posição sobre o respectivo objecto, podendo revogar a decisão (artigos 59.º e 62.º, n.º 2, do regime geral (18).

Se não revogar a decisão, a autoridade administrativa remete o processo ao Ministério Público. E sempre que o Ministério Público apresente os autos ao juiz, este acto vale como acusação (artigo 62.º, n.º 1).

Apresentados os autos ao juiz, impõe-se que este profira despacho liminar de aceitação ou de rejeição do recurso de impugnação.

Com efeito, o recurso de impugnação deverá ser rejeitado, por meio de despacho, se for feito fora de prazo ou sem respeito pelas exigências de forma (artigo 63.º, n.º 1).

Deste despacho de rejeição da impugnação há recurso (artigo 63.º, n.º 2).

Admitido o recurso de impugnação, o juiz decide logo se vai conhecer do mesmo por meio de simples despacho ou mediante audiência de julgamento (artigo 64.º, n.º 1), embora a opção pela decisão por simples despacho pressuponha a não oposição do arguido e do Ministério Público (artigo 64.º, n.º 2).

Ao aceitar o recurso, e se entender não decidir dele por simples despacho ou se não obtiver a concordância para dele decidir por simples despacho, o juiz marca a audiência (artigo 65.º).

Nos termos do artigo 73.º, n.º 1, pode recorrer-se para a relação da sentença ou do despacho judicial proferidos nos termos do artigo 64.º, quando:

– for aplicada ao arguido uma coima superior a € 249,40 [alínea a)];

– a condenação do arguido abranger sanções acessórias [alínea b)];

– o arguido for absolvido ou o processo for arquivado em casos em que a autoridade administrativa tenha aplicado uma coima superior a € 249,40 ou em que tal coima tenha sido reclamada pelo Ministério Público [alínea c)];

– a impugnação judicial for rejeitada [alínea d)];

– o tribunal decidir através de despacho não obstante o recorrente se ter oposto a tal [alínea e)].

Para além destes casos, a relação poderá, a requerimento do arguido ou do Ministério Público, aceitar o recurso da sentença quando tal se afigure manifestamente necessário à melhoria da aplicação do direito ou à promoção da uniformidade da jurisprudência (artigo 73.º, n.º 2).

Finalmente, e como já salientámos, nas normas que se inserem na capítulo IV do Decreto-Lei n.º 433/82, de 27 de Outubro, relativas à fase de recurso do processo contra-ordenacional, o legislador utiliza o termo “recurso” para se referir tanto à impugnação judicial da decisão da autoridade administrativa como ao recurso, propriamente dito, das decisões judiciais de 1.ª instância.

5. Aqui chegados, será de relembrar a norma da alínea c) do n.º 1 do artigo 27.º-A do regime geral, que reclama a nossa apreciação.

A prescrição do procedimento por contra-ordenação suspende-se durante o tempo em que o procedimento “estiver pendente a partir da notificação do despacho que procede ao exame preliminar do recurso da decisão da autoridade administrativa que aplica a coima, até à decisão final do recurso”.

Não podendo a suspensão ultrapassar seis meses, nos termos do n.º 2 do mesmo artigo.

O mencionado despacho que procede ao exame preliminar do recurso da decisão da autoridade administrativa que aplica a coima é: ou o despacho previsto no artigo 63.º que rejeita o recurso, ou o despacho proferido nos termos do n.º 2 do artigo 64.º que ordena a consulta dos intervenientes processuais para saber se estes se opõem a que o recurso venha a ser decidido por simples despacho, ou o despacho previsto no artigo 65.º que designa dia para julgamento (19).

O que fica para interpretar é, portanto, o segmento final da norma “decisão final do recurso”.

Como já referimos, o legislador, quando se quer referir à impugnação judicial da decisão da autoridade administrativa, utiliza, indiferentemente, as expressões “impugnação da decisão da autoridade administrativa” (artigos 60.º, n.º 1,), “impugnação judicial (artigo 59.º, n.º 1, e alínea d) do n.º 1 do artigo 73.º), “recurso de impugnação” (artigo 59.º, n.º 2) ou, simplesmente, “recurso” (artigos 59.º, n.º 3, 61.º, 62.º, 63.º, 65.º, 71.º).

Mas, como a decisão judicial da impugnação da decisão da autoridade administrativa é passível de recurso, nos casos do artigo 73.º, e ainda o é a decisão de rejeição da impugnação judicial, nos termos do artigo 63.º, n.º 2, o legislador também se serve da palavra “recurso”, num sentido técnico-jurídico rigoroso, para designar o meio de impugnação das decisões judiciais suscitadas pela impugnação judicial da decisão da autoridade administrativa (artigos 63.º, n.º 2, 73.º, 74.º. 75.º).

Por conseguinte, não é em razão de o legislador usar a palavra “recurso” para se referir à impugnação judicial da decisão condenatória da autoridade administrativa que se apresenta sustentável a tese interpretativa do acórdão fundamento. Bem pelo contrário, todos os factores hermenêuticos a rejeitam.

Desde logo, o elemento gramatical.

Começar-se-á por destacar que, quando a mesma norma se refere tanto à impugnação judicial como ao recurso da decisão judicial, a sua formulação é de molde a que, claramente, se distingam os dois “recursos”. Do que é exemplo o artigo 72.º-A, n.º 1: “Impugnada a decisão da autoridade administrativa ou interposto recurso da decisão judicial somente pelo arguido, ou no seu exclusivo interesse, não pode a sanção aplicada ser modificada em prejuízo de qualquer dos arguidos, ainda que não recorrentes”.

Na dúvida sobre a que “recurso” o legislador se quis referir quando, na causa de suspensão do procedimento da alínea c) do n.º 1 do artigo 27.º-A, fez coincidir o seu termo com a decisão do recurso, deve ter-se presente que “o intérprete deve optar em princípio por aquele sentido que melhor e mais imediatamente corresponde ao significado natural das expressões verbais utilizadas e, designadamente, ao seu significado técnico-jurídico, no suposto (nem sempre exacto) de que o legislador soube exprimir com correcção o seu pensamento” (20). Ora, numa acepção técnico-jurídica rigorosa a palavra recurso tem de ser entendida como meio de impugnação de uma decisão judicial.

Mas o legislador não se limitou a referir a decisão do recurso. Adjectivou-a, acrescentando-lhe uma característica: “final”.

E “final” significa o que constitui o último ponto, o extremo, derradeiro, que põe termo (a algo), que conclui (21).

Em função do que deve ponderar-se que se a decisão judicial que recai sobre a impugnação judicial da decisão administrativa pode ser a decisão final da fase de recurso do processo contra-ordenacional, só o é quando ela não admita recurso ou, admitindo-o, dela não seja interposto recurso, e já não o é em todos aqueles casos em que dela seja interposto recurso. Nesta última hipótese, a decisão final da fase de recurso do processo contra-ordenacional é a decisão do recurso interposto da decisão judicial que recaiu sobre a impugnação judicial da decisão da autoridade administrativa.

Neste ponto, convém ter presente que a Lei n.º 109/2001, de 24 de Dezembro, é a reprodução, sem qualquer alteração, da proposta de lei n.º 82/VIII, não havendo, por isso, razão ou motivo para duvidar de que o legislador foi inspirado pelos fins e pelas circunstâncias que motivaram o Governo a apresentar essa proposta de lei e de que os acolheu nas soluções contidas na Lei.

Começando por convocar o elemento histórico de interpretação, recordar-se-á que o legislador, quando consagrou a causa de suspensão do procedimento contra-ordenacional da alínea c) do n.º 1 do artigo 27.º-A do regime geral, estava bem ciente da específica regulamentação processual da fase de recurso do ilícito de mera ordenação social. E isto porque, quer na exposição de motivos da proposta de lei n.º 82/VIII, quer na intervenção do Ministro da Justiça, durante a discussão na generalidade da proposta de lei – que, no essencial, já deixamos transcritas – foi bem vincada a possibilidade de recurso para a relação da decisão judicial da impugnação da decisão da autoridade administrativa.

O que leva a compreender a formulação adoptada (“decisão final do recurso”) como a expressão da opção do legislador de estabelecer o termo do prazo de suspensão com a última decisão judicial da fase de recurso do processo contra-ordenacional.

E são, ainda, essa exposição de motivos e essa intervenção do Ministro da Justiça que relevam decisivamente para apurar o fim visado pelo legislador com a consagração dessa causa de suspensão da prescrição.

Porque, como elas informam, a densificação das causas de suspensão da prescrição (e também de interrupção, bem como o alargamento dos prazos prescricionais) são o natural contraponto da consagração de um prazo-limite da interrupção do procedimento contra-ordenacional, justificadas “por razões de eficácia do sancionamento”, na consideração da cada vez “maior complexidade do procedimento”, a implicar uma “perda de celeridade por vezes superior à que existe em alguns processos penais simples”, tendo-se em conta, designadamente, “que é possível a impugnação judicial da decisão administrativa para o tribunal de 1.ª instância” e “que, em muitos casos, é ainda possível a interposição de recurso desta sentença, provocando-se a intervenção do Tribunal da Relação”.

Sendo a finalidade do legislador, na procura do ponto de equilíbrio entre a aceitação de um prazo máximo de prescrição e a complexidade real do procedimento contra-ordenacional, densificar e alargar as causas de suspensão do procedimento (e também as de interrupção, bem como alargar os prazos de prescrição) de modo a que o regime jurídico da prescrição do procedimento contra-ordenacional não funcione “como uma carta de impunidade manifestamente injusta”, advertindo-se, expressamente, para o risco de “estarmos a outorgar uma carta de impunidade manifestamente injusta” caso ignoremos a real complexidade de muitos dos processos contra-ordenacionais.

Ter-se-á de convir que uma interpretação da norma da alínea c) do n.º 1 do artigo 27.º que passasse por entender que o segmento final se reportava à decisão judicial de 1.ª instância suscitada pela impugnação judicial da decisão condenatória da autoridade administrativa – sentença ou despacho de mérito, proferido nos termos do artigo 64.º, n.º 2, ou despacho de rejeição da impugnação, nos termos do artigo 63.º – desprezaria a razão de ser da lei. Não seria racionalmente concebível que o legislador, conhecedor da possibilidade de, “em muitos casos”, ser interposto recurso para a relação da decisão judicial de 1.ª instância, quisesse que a causa de suspensão cessasse com a decisão de 1.ª instância.

Tanto mais quanto, ao contrário do que pretende a recorrente, não são raros nem excepcionais os casos em que a decisão judicial de 1.ª instância é passível de recurso para a relação.

Bastará ter presentes os casos de recorribilidade da sentença ou do despacho judicial proferidos nos termos do artigo 64.º, das alíneas a) e b) do n.º 1 do artigo 73.º – o valor da coima aplicada como pressuposto do recurso (quando for aplicada uma coima superior a € 249,40) é, actualmente, tendo-se em conta os crescentes aumentos dos valores mínimos e máximos das coimas, pouco expressivo e, independentemente do valor da coima aplicada, é pressuposto exclusivo de recorribilidade a condenação abranger sanções acessórias.

De lembrar, também, que, no caso de despacho de rejeição da impugnação, nos termos do artigo 63.º, há sempre recurso. Dando-se ainda a particularidade de, neste caso, se se reportasse a expressão “decisão final do recurso” à decisão de 1.ª instância, a causa de suspensão da alínea c) do n.º 1 do artigo 27.º-A ser absolutamente inoperante, pela perfeita justaposição do início e do termo do prazo da suspensão.

Não se deve desconsiderar, ainda, a possibilidade de recurso, para além dos casos assinalados, conferida pelo n.º 2 do artigo 73.º

O conhecimento do fim visado pelo legislador e das circunstâncias que motivaram a decisão legislativa, habilitam a definir o exacto sentido da expressão “decisão final do recurso” como sendo a última decisão judicial que vier a ser proferida na fase de recurso do procedimento contra-ordenacional.

Interpretação que é, finalmente, confortada pelo elemento sistemático. A consideração das disposições do Código Penal que regulam a matéria da suspensão do procedimento criminal – e que constituem a genealogia ou linhagem jurídico-sistemática (22) da norma do artigo 27.º-A do regime geral das contra-ordenações, nomeadamente, da alínea c) do n.º 1, e da fixação, no n.º 2, de uma duração máxima para essa causa –, demonstra que a causa de suspensão da alínea b) do n.º 1 do artigo 119.º (versão primitiva) e do artigo 120.º (versão actual), iniciada com determinada fase do procedimento não cessa com a prolação da decisão da 1.ª instância, abrangendo, antes, a fase de recurso e com independência dos graus de recurso admissíveis, sem prejuízo, embora, da fixação de um prazo máximo de duração da suspensão (n.º 2 do artigo 119.º, na versão primitiva, e do artigo 120.º, na versão actual) (23) .


IV


Com base no exposto, o Pleno das Secções Criminais do Supremo Tribunal de Justiça decide:

1. Fixar jurisprudência nos seguintes termos:

A suspensão do procedimento por contra-ordenação cuja causa está prevista na alínea c) do n.º 1 do artigo 27.º-A do Decreto-Lei n.º 433/82, de 27 de Outubro, inicia-se com a notificação do despacho que procede ao exame preliminar da impugnação judicial da decisão da autoridade administrativa e cessa, sem prejuízo da duração máxima imposta pelo n.º 2 do mesmo artigo, com a última decisão judicial que vier a ser proferida na fase prevista no Capítulo IV da Parte II do Regime Geral das Contra-Ordenações.

2. Manter a decisão recorrida por ser conforme com a jurisprudência fixada.

Custas pela recorrente, com 3 UC de taxa de justiça (artigos 513.º, n.º 1, e 514.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, 8.º, n.º 5, do Regulamento das Custas Processuais, e respectiva tabela III, anexa).


***

Cumpra-se, oportunamente, o disposto no artigo 444.º, n.º 1, do Código de Processo Penal.

***


Supremo Tribunal de Justiça, 13 de Janeiro de 2011

Isabel Pais Martins (relatora)

Manuel Braz

Pereira Madeira

Santos Carvalho

Henriques Gaspar

Rodrigues da Costa

Santos Monteiro

Arménio Sottomayor

Santos Cabral

Oliveira Mendes

Souto de Moura

Maia Costa

Pires da Graça

Raul Borges

Noronha Nascimento

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1)- Disponível em http://www.dgsi.pt):

2)- Porém, após a publicação do Decreto-Lei n.º 411-A/79, de 1 de Outubro, o regime das contra-ordenações introduzido pelo Decreto-Lei n.º 232/79, de 24 de Julho, ficou desprovido de qualquer eficácia directa e própria.

3)- Ao qual, daqui em diante, também nos referiremos como regime geral das contra-ordenações ou pela simples designação de regime geral.

4)- Assim, Jorge de Figueiredo Dias, «O movimento da descriminalização e o Ilícito de mera ordenação social», Jornadas de Direito Criminal», Centro de Estudos Judiciários, p. 335.

5)- Conforme alteração da Lei Constitucional n.º 1/89, de 8 de Julho, que procedeu à segunda revisão constitucional.

6)- A norma foi introduzida pela Lei Constitucional n.º 1/89, de 8 de Julho, constituindo um novo n.º 8 aditado ao artigo 32.º, e, com a Lei Constitucional n.º 1/97, de 20 de Setembro, que procedeu à quarta revisão constitucional, o anterior n.º 8 passou a n.º 10, sendo aditada a expressão «bem como em quaisquer processos sancionatórios» entre «contra-ordenação» e «são assegurados». Sendo, assim, a actual redacção do n.º 10 do artigo 32.º a seguinte: «10. Nos processos de contra-ordenação, bem como em quaisquer processos sancionatórios, são assegurados ao arguido os direitos de audiência e defesa.»

7)- Ibidem.

8)- Com a seguinte redacção: «Em tudo o que não for contrário à presente lei aplicar-se-ão subsidiariamente, no que respeita à fixação do regime substantivo das contra-ordenações, as normas do Código Penal.»

9)- Publicado no Diário da República, I Série-A, n.º 76, de 30 de Março de 2001, p. 1808 e ss.

10)- Nas alegações da Comissão do Mercado de Valores Mobiliários, entidade que tinha aplicado a coima no processo que deu origem ao acórdão recorrido.

11)- Publicado no Diário da República, I Série-A, n.º 54, de 5 de Março de 2002, p. 1815 e ss.

12)- A do Decreto-Lei n.º 244/95, de 14 de Setembro.

13)- Disponível no Diário da Assembleia da República, II série A, n.º 67/VIII/2, de 09/06/2001

14)- Disponível no Diário da Assembleia da República, n.º 103/VIII/2, de 29/06/2001.

15)- Assim, v.g., Hans-Heinrich Jescheck, Tratado de Derecho Penal, Parte General, tradução e adições de Direito espanhol por S. Mir Puig e F. Muñoz Conde, Volume Segundo, Bosch, Casa Editorial, p. 1238 e ss., Jorge de Figueiredo Dias, Direito Penal Português, Consequências Jurídicas do Crime, Aequitas, Editorial Notícias, 1993, 20.º Cap., §§ 1125 a 1127, pp. 699-670.

16)- Assim, Figueiredo Dias, ob. cit. na nota anterior, §1142, p. 708.

17)- V.g., Frederico de Lacerda da Costa Pinto, «O ilícito de mera ordenação social», Revista Portuguesa de Ciência Criminal, Ano 7, Fasc. 1.º, Janeiro-Março de 1997, p. 7 e ss., designadamente, pp. 15, 16, 95 a 100.

18)- A que pertencerão todos os a seguir indicados, sem outra menção.

19)- Neste sentido, António Beça Pereira, O Regime Geral das Contra-Ordenações e Coimas, 8.ª edição, Almedina, p. 86.

20)- João Baptista Machado, Introdução ao Direito e ao Discurso Legitimador, 12.ª reimpressão, Almedina, p. 182.

21)- Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa, Círculo de Leitores, Lisboa, 2003.

22)- Na expressão de Baptista Machado, ob. cit., p. 183.

23)- Poderá ter algum interesse referir que, tendo o instituto da suspensão da prescrição do procedimento criminal sido introduzido, entre nós, com o Código Penal de 1982, o projecto previa, no artigo 110.º, que a “prescrição suspende-se durante o tempo em que”, designadamente, segundo o n.º 2, “o processo penal se desenvolve, a partir da notificação do despacho de pronúncia e até à sentença final e seu trânsito em julgado, salvo no caso do processo de ausentes”, contendo, porém, no § 1.º, um limite para a suspensão, do seguinte teor: “A suspensão, no caso do n.º 2, não poderá, porém, ultrapassar mais do que dois anos, quando não haja recurso, e três, havendo-o”. E contra este § 1.º levantaram-se vozes (a de Maia Gonçalves), acusando-o de poder acarretar um benefício de impunidade para delinquentes que de nenhuma forma o merecem: os que, pela constante chicana, conseguem que um processo-crime se arraste durante inúmero tempo, pelo que tal disposição viria a revelar-se odiosa na prática, uma vez que favoreceria precisamente os réus chicaneiros, que podem dispor de fortuna e de posição influente. Advertência que, contudo, não se reflectiu em alteração de redacção da norma e isto porque, como salientou, então, o Autor do projecto a norma do § 1.º do artigo 110.º “assume o verdadeiro carácter de alargamento, antes que de encurtamento do prazo”, para observar, ainda, em resumo, “todos os Códigos modernos são unânimes em considerar que tem de haver um prazo máximo findo o qual o processo penal já não pode ter lugar; e a maioria nada mais diz. Mas porque se achou a solução demasiado dura, temperou-se mandando descontar o prazo de suspensão. Mal se vê como possa querer-se mais do que isso. Claro que há chicaneiros que alguma coisa acabam por ganhar com a chicana; mas disso há-de haver sempre, por mais estreitas que se tornem as malhas da lei” (Actas das 32.ª e 33.ª Sessões da Comissão Revisora do Código Penal, de 28/04/1964 e de 04/05/1964, respectivamente).