Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça | |||
Processo: |
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Nº Convencional: | 1.ª SECÇÃO | ||
Relator: | ANTÓNIO MAGALHÃES | ||
Descritores: | IMPUGNAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO ÓNUS DE ALEGAÇÃO AMPLIAÇÃO DO ÂMBITO DO RECURSO ANULABILIDADE EXCESSO DE PRONÚNCIA OMISSÃO DE PRONÚNCIA NULIDADE AUTORIDADE DO CASO JULGADO SOCIEDADE COMERCIAL ADMINISTRADOR ALEGAÇÕES DE RECURSO REJEIÇÃO DE RECURSO NEGÓCIO CONSIGO MESMO | ||
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Data do Acordão: | 11/16/2021 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
Privacidade: | 1 | ||
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Meio Processual: | REVISTA | ||
Decisão: | NEGADA A REVISTA | ||
Indicações Eventuais: | TRANSITADO EM JULGADO | ||
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Sumário : | I - O juízo de procedência das questões suscitadas pelo recorrente, para os efeitos do art. 636º, nº 2 do CPC, deve ser feito logicamente antes da apreciação da impugnação da decisão proferida sobre pontos determinados da matéria de facto; II - No entanto, se esse juízo de prognose não for feito, nada obsta a que, para efeitos de apreciação da nulidade por excesso de pronúncia suscitada na Relação, o Supremo aprecie a pertinência da impugnação através da interpretação do acórdão recorrido no seu conjunto; III - Confrontada com uma omissão objectiva de factos relevantes (indispensáveis) para a decisão, a Relação pode ordenar a ampliação da matéria de facto, podendo, se os elementos probatórios estiverem acessíveis, proceder à sua apreciação e introduzir na matéria de facto as modificações que forem consideradas oportunas; IV - Se, apesar de a recorrida/apelada, na impugnação de facto deduzida na ampliação do recurso, não tiver indicado, com exactidão, as passagens da gravação em que funda a sua impugnação e não tiver transcrito os depoimentos de duas testemunhas que indicou, a apelante tiver procedido, na resposta, à transcrição dos depoimentos daqueles depoimentos ( breves) e tiver exercido o contraditório sem dificuldade relevante, não se justifica, de acordo com o princípio da proporcionalidade a rejeição liminar do recurso de impugnação de facto (art 636º, nº 2, 640º, nº 1, b) e nº 2, al. a) e nº 3 do CPC); V - A autoridade do caso julgado pressupõe a identidade completa de sujeitos entre as duas acções (em que se pretende impor a decisão ou algum dos fundamentos de uma delas como pressuposto indiscutível da decisão da outra); VI - Para os efeitos do conceito de” interposta pessoa” art. 397º, nº 2 do CSC, não bastava que a ré, que invoca a nulidade do contrato, provasse a existência, à data do negócio, de um Fundo Fiduciário (Trust), que detinha a maioria do capital da sociedade autora e contraparte e do qual o administrador da ré e a sua mulher eram os primeiros beneficiários: VII - Conhecidas as características da figura do trust (que envolve a existência de um administrador), importava, ainda, que a ré (que não provou que o seu administrador fosse administrador de facto da autora) alegasse e provasse que o administrador ou o seu cônjuge tinham a possibilidade de condicionar ou influenciar a administração do trust (relativamente à gestão e disposição das acções), mediante o acto constitutivo respectivo (que podia prever, por exemplo, a indisponibilidade das acções) ou através da influência directa sobre a pessoa do administrador do trust (que podia ter sido designado pelos beneficiários) e que, por essa via, tinham capacidade para condicionar ou influenciar a administração da sociedade relativamente aos seus actos de gestão concreta (designadamente, ao da celebração do negócio em causa). | ||
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Decisão Texto Integral: | Acordam no Supremo Tribunal de Justiça: * Corbário–Minerais Industriais, S.A., intentou procedimento de injunção a prosseguir como acção declarativa sob a forma de processo comum contra Mota II Soluções Cerâmicas, S.A., alegando ter fornecido à ré, no âmbito das respetivas atividades, bens e serviços que se não mostram pagos, pedindo, em consequência, a condenação da Ré no montante de € 314 878,37, correspondente ao capital em dívida de € 300.978,55 €, acrescido de juros de mora vencidos até à presente data no valor de € 13.696,82, da taxa de justiça paga com o presente requerimento, no valor de € 153,00 e do valor que tem direito a receber ao abrigo do disposto no artigo 7.º do D.L. n.º 62/2013 de 10 de maio. A Ré contestou, invocando a nulidade, nos termos do art. 397.º, n.º 2 do CSC, ou a anulabilidade, nos termos do artigo 287.º, n.º 2, in fine do CC, e artigos 576.º, n.º 3 e 579.º do CPC, do contrato de prestação de serviços por se tratar de um negócio celebrado entre a Requerida e o Sr. AA, sendo que o Sr. AA, para além de ser administrador de direito da Requerida, é também administrador de facto da Requerente, assinalando-se, ainda, que a celebração do contrato de prestação de serviços dos autos nunca mereceu o consentimento do Conselho de Administração da Requerida, nem obteve qualquer parecer favorável do Conselho Fiscal. Concluiu pela improcedência da acção. A A. respondeu, pugnando pela improcedência das invocadas exceções de nulidade e anulabilidade dos contratos em causa. Após julgamento, veio a ser proferida sentença que culminou com o seguinte dispositivo: “Pelo exposto, julgo improcedentes as invocadas exceções, julgo totalmente procedente a ação e condeno a ré a pagar à autora a quantia de € 314 878,37 (trezentos e catorze mil, oitocentos e setenta e oito euros e trinta e sete cêntimos). “ Não se conformando com tal sentença, interpôs a ré recurso de apelação. A Autora apresentou contra-alegações, concluindo: “a) Deve o presente recurso ser julgado totalmente improcedente e mantida, na íntegra, a decisão recorrida; b) Na eventualidade de obter vencimento o fundamento do presente recurso, requer-se desde já que seja admitida a ampliação do âmbito do recurso, devendo ser reapreciada a matéria de facto elencada nos pontos 10 e 11 dos factos considerados provados, alterando-se para não provada e mantendo-se a condenação da Recorrente.” A Ré respondeu à ampliação do objeto de recurso, pugnando pela rejeição da ampliação do recurso por incumprimento dos ónus do artigo 640º CPC ou pela improcedência da impugnação deduzida aos pontos 10 e 11, invocando a autoridade de caso julgado relativamente aos factos de o AA ser detentor e administrador da autora, face à decisão proferida no âmbito da ação nº 4039/….. A apelação foi julgada improcedente e a sentença confirmada. Não se conformou a ré que interpôs recurso de revista normal, com o pedido subsidiário de revista excepcional e, ainda, com o pedido de atribuição de efeito suspensivo, tendo a Relação admitido o recurso, indeferindo, embora, o requerido efeito suspensivo. Rematou a respectiva alegação com as seguintes conclusões: “DO OBJETO DE RECURSO E DA ADMISSIBILIDADE DA INTERPOSIÇÃO DO PRESENTE RECURSO DE REVISTA “(1) O presente recurso vem interposto do Acórdão Recorrido proferido pelo Tribunal da Relação de Coimbra datado de 13.04.2021, no âmbito do qual o Douto Tribunal julgou improcedente o recurso apresentado pela ora Recorrente. (2) Não se conformando com o teor doAcórdãoRecorrido,considera a Recorrente que este padece de vários vícios, tanto a nível processual como substantivo, devendo ser revisto no sentido da procedência da exceção de nulidade por si invocada e consequente absolvição integral do pedido condenatório formulado, com fundamento no n.º 2 do artigo 397.º do CSC (3) No presente caso, os fundamentos de recurso não se encontram sujeitos à limitação recursória imposta pela dupla conforme. (4) Em primeiro lugar, o argumento da nulidade por excesso de pronúncia nos termos da alínea d) do artigo 615.º e artigo 666.º do CPC que será densificado infra não foi, naturalmente, alvo de qualquer decisão, pelo que se encontram verificados todos os requisitos para a interposição do presente recurso de revista – cfr. artigos 671.º, n.º 1 e 674.º, n.º 1, alínea a) do CPC. (5) Em segundo lugar, em relação à decisão do Tribunal a quo no sentido de que se encontra verificado o ónus a cargo do recorrente que impugne a decisão relativa a matéria de facto, constante do artigo 640.º do CPC, esta decisão foi a primeira sobre o tema, não existindo, naturalmente,duasdecisõesconformesdeduasinstânciasdiferentes,peloque,umavez mais, se encontram verificados todos os requisitos para a interposição do presente recurso de revista. (6) O mesmo se diga quanto à questão da autoridade do caso julgado detalhada infra. Também aqui não há ”dupla conforme”, tendo ambas as instâncias decidido em sentidos diametralmente opostos - relevado pelo Tribunal da Primeira Instância e desconsiderado pelo Tribunal a quo. (7) Quanto à questão substancial da subsunção do presente caso ao disposto no n.º 2 do artigo 397.º do CSC, a verdade é que não estamos perante uma situação de “dupla conforme”, nos termos e para os efeitos do n.º 3 do artigo 671.º do CPC, que impeça a admissibilidade do presente recurso de revista. (8) Importa, desde logo, esclarecer que, no caso sub judice, muito embora o Tribunal a quo tenha julgado improcedente a apelação deduzida pela Recorrente, confirmando a decisão proferida pelo Tribunal de Primeira Instância, fê-lo com base em fundamentação essencialmente diferente – cfr. Sentença e Acórdão Recorrido. (9) Em primeiro lugar, porque o Tribunal a quo procedeu à alteração da matéria de facto fixada pelo Tribunal de Primeira Instância, dando afinal como não provados factos de excecional relevância para a subsunção do presente caso ao disposto no n.º 2 do artigo 397.º do CSC. (10) Em segundo lugar, porque ambos os tribunais excluíram a aplicabilidade do n.º 2 do artigo 397.º do CSC com base em fundamentos de Direito claramente diferentes, tendo o Tribunal e Primeira Instância julgado improcedente a exceção de nulidade baseada no n.º 2 do artigo 397.º do CSC e o Tribunal da Relação de Coimbra julgado improcedente a referida exceção de nulidade, mas por entender que estamos perante negócios enquadráveis nos termos do n.º 5 do artigo 397.º do CSC, com isso, excluindo a aplicação do n.º 2 da referida norma. (11) O que significa, sem margem para dúvidas, que estamos perante uma nova decisão com fundamentos essencialmente diferentes, não só no plano factual, mas necessariamente também no plano jurídico – cfr. jurisprudência supra citada. (12) Conclui-se assim pela inexistência de uma situação de “dupla conforme” quanto à questão de fundo, porquanto estamos perante duas decisões com fundamentações essencialmente distintas. (13) Pelo exposto, é perfeitamente admissível a interposição de um recurso de revista “normal” relativamente às questões supra referidas, já que se encontram preenchidos todos os pressupostos legais (designadamente, os que respeitam à natureza da decisão, ao valor da causa e da sucumbência, ao termo da causa, à legitimidade da Recorrente e aos fundamentos da revista) – cfr. artigos 629.º, n.º 1, 631.º, n.º 1, 671.º, n.º 1 e 674.º, alíneas a) a c) todos do CPC. DA NULIDADE POR EXCESSO DE PRONÚNCIA (14) Por força da alínea c) do n.º 1 do artigo 674.º do CPC, a revista pode ter por fundamento as nulidades previstas nos artigos 615.º e 666.º do CPC, designadamente, a vertida na alínea d) doartigo615.ºdoCPC,da qual, no entendimento da recorrente, o Acórdão Recorrido enferma. (15) A Recorrida apresentou as suas contra-alegações de recurso de apelação requerendo a ampliação do objeto do recurso, resultando claro das próprias contra-alegações da Recorrida, o pedidopara queoTribunala quo apreciasse a ampliação do objetodorecursoera meramente subsidiário à procedência do recurso interposto pela aqui Recorrente. Mas mesmo que tal clareza não resultasse das contra-alegações, sempre resultaria a mesma diretamente da lei – cfr. doutrina e jurisprudência supra citadas e n.º 2 do artigo 636.º do CPC. (16) A lei, a jurisprudência e a doutrina são claras: a apreciação da ampliação de recurso apenas deverá ter lugar nos casos em que procedam os argumentos alegados pelo recorrente e o recurso interposto pelo mesmo,ficando,pelo contrário, no caso de improcedência,prejudicada a ampliação de recurso em causa. (17) No entanto, contrariando o que acaba de se expor, não apenas o Tribunal a quo conheceu da ampliação do objeto do recurso como o fez, inclusivamente, ainda antes de apreciar o mérito do recurso e fundamentos deduzidos pela Recorrente – cfr. pág. 19 do Acórdão Recorrido. (18) Uma leitura atenta do Acórdão Recorrido permite alcançar que toda a sua fundamentação, incluindo, a respeitante aos fundamentos do recurso da Recorrente, tiveram por base a alteração da matéria de facto que apenas subsidiariamente – e portanto, posteriormente ao conhecimento daqueles fundamentos – deveria ter sido conhecida. (19) Assim se percebe que ao inverter a ordem pela qual haveria de ter apreciado o recurso de apelação, o Tribunal a quo prejudicou a correta apreciação da matéria de recurso contida nas alegações da Recorrente e incorreu numa patente nulidade por excesso de pronúncia – cfr. artigos 608.º, n.º 2, 615.º, n.º 1, alínea d) e 666.º do CPC. (20) Conclui-se, assim, pela nulidade do Acórdão Recorrido, nos termos do disposto na alínea d) do n.º 1 do artigo 615.º e 666.º do CPC. DA VIOLAÇÃO DO ÓNUS CONSTANTE DO ARTIGO 640.º DO CPC (21) Paralelamente, e ainda que se considere que o Acórdão Recorrido não padece da nulidade por excesso de pronúncia supra referida – o que apenas por extrema cautela de patrocínio se equaciona – sempre se dirá o seguinte: (22) A Recorrida requereu a ampliação de recurso, tendo a mesma por objeto a impugnação da matéria de facto dada como provada pelo Tribunal de Primeira Instância, designadamente, os seus pontos 10. e 11., alegando para o efeito que a prova produzida nos autos não poderia levar à inserção daqueles nos factos provados, devendo antes ser pelo Tribunal a quo dados como não provados. (23) Como iremos ver, a apreciação da ampliação do objeto do recurso era legalmente inadmissível, em virtude da inobservância do ónus consagrado no artigo 640.º do CPC, não devendo nunca, por essa razão, ter sido sequer conhecida pelo Tribunal a quo. (24) Com efeito, salvo o devido respeito, o Tribunal a quo fez “letra morta” do disposto no artigo 640.º, n.º 1, alínea b) e n.º 2, alínea a) do CPC, ignorando por completo os ónus consagrados e as legais consequências da sua inobservância. (25) Como tem sido unanimemente reconhecido pela nossa doutrina e jurisprudência, os requisitos constantes do artigo 640.º do CPC aplicam-se, naturalmente, aos casos em que o recorrido requer a ampliação do recurso com base no n.º 2 do artigo 636.º do CPC – cfr. doutrina e jurisprudência supra citadas. (26) Uma mera leitura pelas contra-alegações da Recorrida permite alcançar que aquela se limitou, simplesmente, a alegar que o Tribunal de Primeira Instância deveria ter considerado certa prova testemunhal e que da prova documental não resulta aquilo que a Sentença proferida deu como provado nos pontos 10. e 11., fazendo-se valer de afirmações genéricas e não concretizadas com recurso a meios de prova constantes do processo – como a lei exigia que o tivesse feito. (27) Basta uma rápida leitura sobre o teor da ampliação do objeto do recurso para perceber que aquela ficou muito aquém do ónus imposto pela alínea b) do n.º 1 e alínea a) do n.º 2 do artigo 640.º do CPC. É aliás o próprio Tribunal a quo que o reconhece expressamente – cfr. pág. 21 do Acórdão Recorrido. (28) Aliás o Tribunal claramente equivocado refere: “embora procedendo, de seguida, à transcrição dos respetivos depoimentos”. Para que dúvidas não existam: a Recorrida não o fez, isto é, não indicou as passagens das gravações da prova testemunhal a que se refere, nem tão pouco procedeu à transcrição de qualquer depoimento. (29) O dever atribuído aos Tribunais da Relação no n.º 1 do artigo 662.º do CPC não substitui o impulso processual dos recorrentes, refletido no ónus que lhes é atribuído por força do artigo 640.º do CPC – cfr. doutrina e jurisprudência supra citadas. (30) Por tudo o que se vem expondo, a nossa jurisprudência tem unanimemente reconhecido que, nos casos em que seja inobservado este ónus, a consequência será a imediata rejeição do recurso naquele segmento, sem possibilidade sequer de convite ao aperfeiçoamento – cfr. jurisprudência supra citada. (31) Não pode, por isso, deixar de se concluir no sentido de que, salvo o devido respeito, mal andou o Tribunal a quo ao conhecer da impugnação da matéria de facto deduzida pela Recorrida, também por esta razão, o que não poderá deixar de ter como consequência a revogação do Acórdão Recorrido nesse mesmo segmento. DA VIOLAÇÃO DA AUTORIDADE DO CASO JULGADO (32) Ainda que se considere que o Acórdão Recorrido não padece da nulidade por excesso de pronúncia equeo ónus constante doartigo640.º do CPC se encontra verificado –o que apenas por extrema cautela de patrocínio se equaciona – sempre se dirá o seguinte (33) A Recorrente juntou uma série de decisões onde foram provados e reconhecidos, a título definitivo, (i) quer o facto de o Sr. AA ser o dono e beneficiário efetivo da Recorrida, (ii) quer o facto de o Sr. AA ser administrador de facto da Recorrida – cfr. Documentos n.ºs 9 a 11 juntos com a Oposição à Injunção e Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, datado de 28.11.2012, junto por Requerimento da Recorrente datado de 21.01.2019. (34) Atendendo ao teor daquelas decisões, designadamente do Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 28.11.2018, proferido no âmbito do processo n.º 4039/..., tendo, naturalmente, em vista a salvaguarda da coerência das decisões proferidas pelos nossos tribunais, e a prova testemunhal produzida, o Tribunal de Primeira Instância deu como provados tais factos – cfr. factos Provados n.os 10. e 11. da Sentença. (35) Sucede que, posteriormente, o Tribunal a quo veio – a nosso ver, mal (com todo o respeito) – reverter a decisão do Tribunal de Primeira Instância no que a este ponto respeita, dando antes como não provados, através da alteração, no Acórdão Recorrido, dos pontos 10. e 11. da matéria de facto. (36) A Recorrente não pode conformar-se com tal segmento do Acórdão Recorrido que, como fica patente pelo que se expôs e infra se desenvolverá, viola flagrantemente o princípio da eficácia do caso julgado, designadamente, o seu efeito positivo ou de autoridade. (37) Releva no caso concreto a autoridade do caso julgado, cuja relevância e fim têm sido amplamente salientados pelos nosso tribunais e doutrina – cfr. doutrina e jurisprudência supra citadas. (38) A autoridade de caso julgado importa a aceitação de uma decisão proferida em ação anterior, que se insere, quanto ao seu objeto, no da segunda, visando assim obstar a que a relação ou situação jurídica material definida por sentença possa ser validamente definida de modo diverso por outra sentença – cfr. jurisprudência supra citada. Ora, é precisamente o que se pretende evitar in casu. (39) Tanto a nossa doutrina como a nossa jurisprudência têm unanimemente entendido que, para que opere a autoridade do caso julgado não é necessário que se verifique a referida tríplice identidade – cfr. doutrina e jurisprudência supra citadas. (40) É que, ainda que assim não se entendesse – i.e., ainda que se seguisse o entendimento sufragado pelo Tribunal a quo no sentido em que não pode a autoridade de caso julgado prescindir da identidade dos sujeitos –, o que não se concede, mas por mera cautela de patrocínio se equaciona, tal identidade de partes sempre poderia ser parcialmente obtida por meio de uma desconsideração da personalidade jurídica da Recorrida. (41) Com efeito, o Sr. AA, enquanto beneficiário efetivo e administrador de facto da Recorrida controlava-a por detrás da capa da personalidade jurídica desta última. Por essa razão, deve ser desconsiderada a personalidade jurídica da Recorrida, de molde fazer-se revelar os que estão por detrás da autonomia ficcionada da sociedade que controlam – cfr. jurisprudência supra citada. (42) Assim sendo, pelas razões expostas, considera-se que existe uma identidade de partes, ainda que parcial, entre as referidas ações, designadamente com o processo n.º 4039/…, e o presente pleito, no que diz respeito à aqui Recorrida, porquanto, na realidade,não se verifica qualquer distinção de relevo entre o Sr. AA e a sua filha, a Sr. BB, e a ora Recorrida, sendo sempre a mesma contraparte, embora sob distintas e ficcionadas “capas” de personalidade jurídica. (43) Questão diferente desta é a de saber a extensão com que deve operar o efeito positivo da autoridade do caso julgado, designadamente, se engloba ou não a sua fundamentação de facto. (44) A decisão dos presentes autos encontra-se numa situação de prejudicialidade em relação àqueles processos, designadamente, em relação ao processo n.º 4039/..., tendo em conta que entre estas duas ações existe uma especial conexão relativamente aos factos essenciais de cada uma delas. (45) Em concreto, a especial conexão que existe entre as referidas ações, diz respeito ao facto de em ambas se discutir, como facto essencial, se o Sr. AA é administrador de facto e beneficiário efetivo da Recorrida. (46) Com efeito, negar relevo àqueles factos já dados como provados a título definitivo, é negar a base factual que serviu de fundamento a todas aquelas decisões já transitadas em julgado, incluindo, as proferidas pelo Tribunal a quo. É colocar em causa, tudo aquilo que, como supra se expôs, o efeito da autoridade de caso julgado pretende evitar (47) Verifica-se, assim, pelo que ficou supra exposto, a necessária conexão e interdependência entre a presente ação e as supra referidas, para fazer operar a autoridade de caso julgado. Como tal, não poderá deixar de se concluir, para além dos argumentos supra aduzidos, que mal andou o Tribunal a quo ao alterar a decisão sobre a matéria de facto, também por este motivo, pelo que deverá, nessa medida, o Acórdão Recorrido ser revogado e serem considerados como provados os pontos 10. e 11. da matéria de facto considerada provada constante da Sentença. ERRO NA INTERPRETAÇÃO E APLICAÇÃO DOS N.ºS 2E 5DO ARTIGO 397.º DO CSC (48) Atendendo à necessária reversão do Acórdão Recorrido no segmento que alterou a matéria de facto, impor-se-á também, naturalmente, a sua reversão em tudo aquilo que o pressuponha. Designadamente, terá o Acórdão Recorrido de ser revogado no segmento em que trata da aplicabilidade do n.º 5 do artigo 397.º do CSC e consequente afastamento do n.º 2 domesmo, e substituído por outro que conclua pela aplicabilidade deste último (49) Como a Recorrente deixou claro na sua Oposição à Injunção, bem como, nas suas alegações de recurso de apelação, o presente caso é um caso-escola da nulidade de negócio consigo mesmo, tal como sancionado pelo n.º 2 do artigo 397.º do CSC. (50) Atendendo a que nas situações de negócios celebrados entre a sociedade e um seu administrador o risco de conflito de interesses é elevadíssimo, o legislador optou por estabelecer um mecanismo de controlo preventivo ou ex ante da validade destes negócios, acautelando a ocorrência de conflitos de interesses. Dada a suspeição e a gravidade da celebração de tais negócios jurídicos, a invalidade dos mesmos é encarada como necessária e natural – cfr. doutrina e jurisprudência supra citadas, incluindo um acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, num caso em tudo semelhante a este (envolvendo, inclusivamente, o Sr. AA). (51) A sanção de nulidade consagrada naquele preceito só é afastada quando a sociedade aprova a transação por intermédio do conselho de administração e do conselho fiscal – cfr. parte final do n.º 2 do artigo 397.º do CSC – ou quando se está perante uma das situações a que se refere o n.º 5 do mesmo – o que, como infra bem se exporá, não sucede in casu. (52) Com a finalidade de evitar a fraude à lei, o princípio da proibição da celebração de negócios entre o administrador e a sociedade, previsto no n.º 2 do artigo 397.º do CSC abarca os negócios jurídicos celebrados, direta ou indiretamente (por interposta pessoa) entre a sociedade e o seu administrador, sendo que nas últimas décadas, toda a doutrina defende que o conceito de interposta pessoa deve incluir todos os entes jurídicos que o sujeito possa influenciar diretamente, isto é, deverá incluir, entre outros, os trusts, as sociedades e outras pessoas coletivas que o administrador domine – cfr. doutrina supra citada. (53) Assim sendo, no presente caso, e perante a factualidade que aqui se tem por dever ser considerada, é claro e evidente que estamos perante um caso de interposição de pessoas, uma vez que o Sr. AA, em conjunto com a sua esposa, era detentor da sociedade veículo denominado Pinto Investment Trust. Um veículo fiduciário que, por sua vez, detinha 95% da Recorrida – cfr. ponto 10. da matéria de facto considerada provada pela Sentença. (54) Pelo que, atendendo à inexistência de prévia autorização por deliberação do conselho de administração e parecer favorável do conselho fiscal não poderá se não concluir-se pela nulidade destes negócios à luzdon.º2doartigo397.ºdoCSC,deforma a puniroelevadíssimo risco de atuação em conflito de interesses. (55) Mesmo que este Colendo Tribunal entenda não ser de revogar o Acórdão Recorrido no segmento em que alterou a matéria de facto – o que apenas por extrema cautela de patrocínio se equaciona –, sempre haverá de se concluir pela aplicabilidade do n.º 2 do artigo 397.º do CSC ao presente caso. (56) Com efeito, foi o próprio Tribunal a quo que reconheceu que, ainda que com a alteração da matéria de facto que operou, os pressupostos de que depende a cominação com nulidade dos negócios ao abrigo do n.º 2 do artigo 397.º do CSC estariam, em qualquer caso, verificados, encontrando-se tal entendimento em absoluta consonância com a ratio dopreceito, bem como, com a doutrina e jurisprudência relevantes – cfr. doutrina e jurisprudência supra citadas. (57) Pelo exposto resulta claro, independentemente da revogação do Acórdão Recorrido quanto à matéria de facto, que se aplica, no presente caso, sem margem de dúvidas, o n.º 2 do artigo 397.º do CSC. (58) Por tudo o exposto, e verificados que estão, em qualquer caso, os requisitos previstos no n.º 2 do artigo 397.º do CPC, cumpre apenas esclarecer da inaplicabilidade do n.º 5 do artigo 397.º do CPC ao presente caso, assim evidenciando o claro erro em que incorreu o Tribunal a quo. (59) A interpretação deste preceito não pode ser desligada da ratio subjacente e já supra identificada do artigo 397.º do CSC como um todo – recordando-se: pretende este consagrar uma antecipação da tutela, em abstrato, nas situações em que o risco de atuação do administrador em conflito de interesses é mais elevado, excluindo-se daquele âmbito os casos em que, pela natureza e circunstâncias da transação, tal risco deixa claramente de poder existir – são estes, e apenas estes, os casos que o n.º 5 do artigo 397.º do CSC, pretende subtrair à nulidade prevista no n.º 2, ou seja, casos em que o risco deixa de ser tão flagrante e evidente. (60) Tais casos não são, salvo o devido respeito, naturalmente, quaisquer casos, pois tal entendimento desproveria o n.º 2 do artigo 397.º do CSC, praticamente, da totalidade do seu efeito útil – cfr. doutrina supra citada. (61) Com a consagração do n.º 5 do artigo 397.º do CSC, o legislador teve em vista única e exclusivamente os casos nítidos e óbvios em que o negócio,estando“compreendidono próprio comércio da sociedade”, não poderia nunca conceder ao contraente administrador uma “vantagem especial”. (62) São inúmeros os autores que, debruçando-se sobre o mesmo, enunciaram exemplos das situações em que não existe nulidade por via do negócio consigo mesmo, devido à ausência de uma atuação em conflito de interesses – cfr. doutrina supra citada. (63) Nos casos indicados pela doutrina não há risco de conflito de interesses porque o administrador adquire bens a preços fixos. No caso em apreço, muito pelo contrário, o preço das matérias-primas era volátil e negociado, existindo precisamente o enorme risco de conflito de interesses pelo facto de o Sr. AA ser indiretamente a contraparte no negócio, podendo dessa forma condicionar a seu favor a negociação do preço. (64) Mais: ao contrário do que é defendido pelo Acórdão Recorrido, a aplicação do n.º 2 do artigo 397.º do CSC não depende da existência, muito menos, da alegação a cargo da Recorrente, de qualquer “vantagem especial” – cfr. doutrina e jurisprudência supra citadas, incluindo um acórdão do Supremo Tribunal de Justiça num caso em tudo semelhante a este, envolvendo, inclusivamente, o Sr. AA. (65) Uma leitura sistemática de ambos os preceitos (n.os 2 e 5 do artigo 397.º do CSC), permite alcançar que este último constitui uma exceção àquele primeiro. Quer isto, portanto, dizer que, verificados os pressupostos do n.º 5 do artigo 397.º do CSC – a saber: (i) tratar-se de um “ato compreendido no próprio comércio da sociedade”, (ii) que nenhuma “vantagem especial” tenha concedido ao contraente administrador –, fica afastado o n.º 2 daquele artigo. (66) Mas como mandam as mais básicas regras relativas ao ónus de alegação das partes (cfr.artigo 5.º do CPC), a alegação (e a prova) daqueles requisitos caberão, tão-só, a quem do n.º 5 do artigo 397.º do CSC pretenda prevalecer-se. Melhor dizendo, só aquele que pretenda afastar, por força do n.º 5, o disposto no n.º 2 do artigo 397.º do CSC, e só a ele, caberá alegar (e provar), se disso se quiser fazer valer, o preenchimento daqueles requisitos – cfr. doutrina supra citada. (67) A Recorrente alegou (e provou) os factos constitutivos da exceção de nulidade invocada, a saber: (i) tratar-se de um contrato celebrado “entre a sociedade e os seus administradores, diretamente ou por interposta pessoa”,(ii)não ter o mesmo sido previamenteautorizadopordeliberaçãodoconselhodeadministração,e(iii)nãoteromesmorecolhidooparecerfavorável do conselho fiscal ou da comissão de auditoria. (68) São estes, e só estes, os factos constitutivos da exceção que invocou, e por isso são estes, e só estes, os factos cujo ónus de alegação lhe cabia. Não podendo, naturalmente, a Recorrente ver-se onerada com o ónus de alegar a não aplicabilidade da exceção ao preceito cuja aplicabilidade invoca. (69) Como supra se aflorou, o n.º 5 do artigo 397.º do CSC constitui uma exceção impeditiva do efeito cominatório previsto no n.º 2 daquele preceito, que tomaria in casu, se tivesse sido alegada, a forma de uma contra exceção cujo ónus de alegação e prova, enquanto tal, só poderia recair sobre a aqui Recorrida, se dela tivesse querido prevalecer-se – cfr. artigo 5.º do CPC e 342.º do CC. (70) Sucede que, como resulta claro dos presentes autos, tal não sucedeu. Não tendo sido nunca alegados e muito menos provados pela Recorrida quaisquer factos ilustrativos da inexistência daquela “vantagem”. Isto é, a Recorrida nunca alegou e provou que os preços negociados para os fornecimentos de matéria-prima não eram preços vantajosos para si, em detrimento da Recorrente. O que é o mesmo que dizer que a Recorrida nunca alegou e provou que não beneficiou do facto de o Sr. AA ser ocultamente o seu dono e beneficiário efetivo e de ter a possibilidade, enquanto administrador da Recorrente, de determinar a fixação de preços em benefício da sua Recorrida. (71) O não preenchimento do ónus da prova pela Recorrida, de resto, está manifestamente evidenciado pelo facto de o n.º 5 do artigo 397.º do CSC ter sido pela primeira vez chamado à colação nestes autos em sede de recurso de apelação pelo Tribunal da Relação de Coimbra, em claro detrimento do princípio da controvérsia, segundo o qual cabe às partes o monopólio da alegação dos factos principais da causa – cfr. doutrina e jurisprudência supra citadas. (72) Tendo em conta tudo o que ficou supra exposto, não poderá, se não concluir-se que mal andou o Tribunal a quo ao desaplicar o n.º 2 do artigo 397.º do CSC. Assim sendo, deverá o Acórdão Recorrido ser revogado nesse segmento, e substituído por outro que determine, atendendo a tudo quanto ficou exposto, a aplicabilidade do referido preceito e que, consequentemente, declare a nulidade nele consagrada e julgue procedente a exceção pela aqui Recorrente invocada. ALEGAÇÕES DE RECURSO DE REVISTA EXCECIONAL (73) Prevenindo a hipótese de se entender que estamos perante uma situação de “dupla conforme”, em relação à questão substancial da subsunção ao presente caso do disposto no n.º 2 do artigo 397.º do CSC, que obste à interposição do presente Recurso de Revista ao abrigo do disposto nos artigos 671.º, n.º 1, alínea a) e 674.º, n.º 1 do CPC – o que apenas por extrema cautela de patrocínio se equaciona – a Recorrente vem interpor, a título subsidiário, RECURSO DE REVISTA EXCECIONAL, nos termos dos artigos 671.º, n.º 1, 672.º, n.º 1, alínea c) e n.º 2 alínea c), 675.º, n.º 1 e 676.º, todos do CPC, a subir imediatamente nos próprios autos e com efeito suspensivo nos termos explicados no Capítulo I supra. (74) Em concreto, para que seja legalmente admissível um recurso de revista excecional, importa que (i) estejam preenchidos os pressupostos gerais de acesso ao terceiro grau de jurisdição, (ii) que estejamos perante um caso de “dupla conforme”, e (iii) que se verifique, pelo menos, uma das condições elencadas no n.º 1 do artigo 672.º do CPC – cfr. jurisprudência supra citada. (75) Já ficou bem explicitado supra que se encontram preenchidos todos os pressupostos legais para a interposição de recurso de revista “normal” – cfr. artigos 629.º, n.º 1, 631.º, n.º 1 e 671.º, n.º 1, todos do CPC. Pelo que, o primeiro requisito há de se considerar verificado. (76) Por outro lado, caso o Colendo Tribunal entenda que estamos perante uma situação de “dupla conforme” – o que não se aceita, mas apenas por cautela de patrocínio se equaciona –, então o segundo requisito terá também de se ter por verificado. (77) Acresce que nos termos da alínea c) do n.º 1 do artigo 672.º do CPC, o recurso de revista excecional é admitido quando o acórdão do Tribunal da Relação esteja em contradição com outro já transitado em julgado, proferido por qualquer Tribunal da Relação ou pelo Supremo Tribunal de Justiça, no domínio da mesma legislação e sobre a mesma questão fundamental de Direito, salvo se tiver sido proferido acórdão de uniformização de jurisprudência sobre a mesma. É o que sucede in casu, como explicaremos infra. (78) O Acórdão Fundamento que a Recorrente apresenta encontra-se em contradição com o Acórdão Recorrido quanto aos requisitos de aplicação dos n.os 2 e 5 do artigo 397.º do CSC, em concreto, sobre a necessidade de existência e alegação(no entender do Acórdão recorrido) de uma “vantagem especial” para efeitos de aplicação daquele n.º 2. (79) Em traços gerais, o Acórdão Recorrido e o Acórdão Fundamento divergem em termos gerais, na medida em que consagram soluções diametralmente opostas quanto à aplicabilidade dos n.os 2 e 5 doartigo397.º do CSC sobre matérias de facto praticamente idênticas(literalmente, pois estão em causa duas situações referentes a litígios que envolvem o Sr. AA) e, (ii) em concreto, no sentido em que o Acórdão Recorrido entendeu que aquele n.º 2 depende da prévia alegação de uma “vantagem especial”,aopasso que o Acórdão Fundamento entende que a sua aplicação se basta com as condições expressamente nele referidas. (80) A contradição dos dois julgados assenta no facto de o Acórdão Recorrido – erradamente, com todo o respeito – entender que, para a aplicação do n.º 2 do artigo 397.º do CSC, é necessária a prévia alegação da verificação dos requisitos nele expressamente consagrados e ainda da não verificação dos requisitos consagrados no n.º5 daquele artigo.Ou seja, entende o Tribunal a quo, contra a mais elementar regra do ónus de alegação consagrado no artigo 5.º do CPC, que a aqui Recorrente teria de alegar, não apenas os factos constitutivos da exceção que invocou, mas também, que não estavam verificados os factos constitutivos de um eventual direito da Recorrida. Salvo o devido respeito, como seria de esperar, esse não é o entendimento do Acórdão Fundamento. (81) Como se indiciou, o Acórdão Recorrido e o Acórdão Fundamento assentam num núcleo factual praticamente idêntico. Esta identidade é tanto mais ampliada quanto se tem em conta que, à semelhança das inúmeros outras ações que sobre este tema correm termos nos nossos tribunais, têm como base os comportamentos ilícitos, desleais e fraudulentos praticados pelo Sr. AA desde há anos e que têm vindo a lesar os interesses das sociedades do Grupo Mota, sociedade onde se insere a aqui Recorrente-. (82) Existe, portanto, uma coincidência dos factos subjacentes aos dois processos que, enquanto tal, tornam tanto mais evidente a contradição de julgados entre o Acórdão Recorrido e o Acórdão Fundamento. (83) Com efeito, e como se adiantou, em geral, a divergência dos acórdãos assenta no facto de, perante tão semelhante factualidade, os dois terem, sobre a mesma questão de Direito (diga-se sobre os n.os 2 e 5 do artigo 397.º do CPC), adotado posições tão díspares. (84) Com efeito, para além do já supra exposto, em ambas as ações relevam os factos de (i) estar em causa um negócio celebrado com uma sociedade detida maioritariamente pelo Sr. AA e pelo seu cônjuge, (ii) esse negócio ter sido celebrado por uma sociedade da qual o Sr. AA é administrador e (iii) o facto de esses negócios fazerem parte da “(…) espécie daqueles em que tipicamente se traduz a atividade que constitui o objeto da sociedade”. (85) Por tudo quanto ficou supra exposto, é possível asseverar que, analisados ambos os Acórdãos (o Recorrido e o Fundamento), constata-se que um (praticamente) idêntico núcleo factual é julgado, com base na mesma regra de Direito, em sentido diametralmente oposto num e noutro. (86) Mais se refira que, até ao momento, não foi proferido qualquer acórdão uniformizador de jurisprudência sobre a questão em apreço. (87) Em face do exposto, deverá considerar-se verificado o requisito da alínea c) do n.º 1 do artigo 672.º do CPC relativamente à questão em análise no presente recurso. (88) Assim, terá que se concluir que se encontram verificados todos os requisitos para a admissibilidade do presente recurso de revista excecional. (89) Quanto ao mérito do recurso, a Recorrente já supra se pronunciou convenientemente sobre a aplicabilidade do n.º 2 do artigo 397.º do CSC, designadamente, sobre os seus requisitos e desnecessidade de alegação da inexistência de qualquer “vantagem” para a cominação dos negócios jurídicos celebrados naqueles termos com o vício da nulidade. (90) De igual modo, já a Recorrente deixou claros os casos para os quais está pensada a aplicabilidade do n.º 5 do artigo 397.º do CSC. Casos estes que, como se viu, em momento em algum se confundem com o caso dos presentes autos. (91) Assim, em relação ao mérito do presente recurso excecional, interposto a título subsidiário, por uma questão de economia processual, e sob pena de repetição desnecessária, dá-se aqui por integralmente reproduzidas as considerações aduzidas no Capítulo II.3.D. supra, concluindo-se nos mesmo termos” Pede, a final. que o recurso de revista normal seja admitido e dado provimento ao mesmo e, por conseguinte:- o acórdão recorrido seja declarado nulo, por excesso de pronúncia, nos termos da alínea d) do n.º 1 do artigo 615.º do CPC; paralelamente, seja revogado o acórdão recorrido por inobservância por parte da recorrida do ónus constante do artigo 640.º do CPC com a consequente rejeição da ampliação de recurso requerida pela recorrida; subsidiariamente, seja revogado o acórdão recorrido na parte em que alterou a matéria de facto dada como provada pela sentença; e que seja o presente recurso de revista considerado procedente por provado e, por sua vez revogado o acórdão recorrido, o qual, entende, deverá ser substituído por outro que absolva a recorrente do pedido formulado pela recorrida, declarando nulos os negócios jurídicos; e subsidiariamente, pede que o recurso de revista excepcional seja considerado procedente por provado e, por sua vez, revogado o acórdão recorrido e substituído também por outro que que absolva a recorrente do pedido. Contra-alegou a recorrida/autora, pugnando pela improcedência do recurso. Por despacho do ora relator, foi admitido o recurso de revista-regra e indeferido o requerido efeito suspensivo, mantendo-se, assim, o efeito meramente devolutivo atribuído ao recurso. Cumpre decidir. A matéria de facto dada como provada pela Relação é a seguinte: “1. A autora é uma sociedade que se dedica essencialmente à extração e exploração de argilas especiais, comercialização de matérias-primas para cerâmicas, compra e venda de imóveis, bem como prestação e serviços de transporte rodoviário nacional e internacional. 2. No âmbito da sua atividade, a autora celebrou com a ré contrato de prestação de serviços. 3. Na sequência desse contrato a ré obrigou-se a pagar o respetivo preço, tendo sido emitidas as seguintes faturas: - FA …/669, emitida a 23/06/2017, com vencimento a 21/09/2017, no valor de € 16.137,56; (…) 4. O que totaliza a quantia de € 301.989,51. 5. Ao longo do período supra descrito foi ainda emitida a seguinte nota de crédito: - NCV …/64, no valor de € 1.010,96. 6. A autora procedeu ainda ao pagamento do montante devido de € 153,00 (cento e cinquenta e três euros) referente à taxa de justiça paga com o requerimento de injunção. 7. Após o vencimento das faturas e interpelada para o efeito, a ré não efetuou o seu pagamento. 8. A ré pertence a um grande grupo empresarial da indústria da cerâmica portuguesa e internacional – o denominado “Grupo CCM” –, que é liderado pela sociedade holding Carlos Cardoso da Mota – Sociedade Gestoras de Participações Sociais, S.A. (“CCM”). Embora, até 2013, o Sr. AA tenha sido o sócio único da CCM, deixou de o ser a partir de então, pois a CCM foi objeto de uma Restruturação Financeira, protagonizada pelo Fundo de Reestruturação Empresarial, FCR (“FRE”), que se dedica à reestruturação de empresas sobreendividadas e que, através de uma sociedade por si detida, a Argitop, SGPS, S.A. (“Argitop”), adquiriu 50% do capital social da CCM. Por sua vez, a CCM é titular da totalidade do capital social da ré. 9. Até ao passado dia 2 de outubro de 2017, momento em que foram destituídos com justa causa, o Sr. AA, em conjunto com a sua filha BB, eram membros do Conselho de Administração da ré. O Sr. AA e a sua filha BB eram os membros executivos do Conselho de Administração, sendo que a gestão corrente da ré – e também do Grupo CCM – estava concentrada, essencialmente, no Sr. AA. 10. Por seu lado, a autora é integralmente detida pela Corbário Group, S.A. (“Corbário Group”), sociedade constituída de acordo com as leis do Luxemburgo; 10.a. Aquando da sua constituição, a 28 de fevereiro de 2012, o capital social da Corbário Group foi subscrito pela seguinte forma: i) por CC, com uma participação de 95%, por DD com uma participação de 1,6 %, por EE, com uma participação de 1,6 % e por BB, com uma participação de 1,6% (doc.5 junto com a P.I, fls. 22 a 41) 10.b. A 14 de agosto de 2012 por AA e sua mulher CC foi constituído um Fundo Fiduciário – Pinto Investments Trust, com uma contribuição em dinheiro de 5.000 € por parte de AA e por 95% das ações da Corbário Group, S.A., por parte da sua mulher, Fundo este do qual AA e CC eram os Primeiros Beneficiários (fundadores), sendo os seus filhos os beneficiários finais. 10.c. Extinto o Fundo em 2017, as 95% das ações da Corbario Group (1.663.678 ) detidas por tal Fundo passaram a ser detidas pela seguinte forma: a) p1.488.553 ações pela CC ; b) 58.375 ações pela BB; c) 58.375 ações por EE; d) 58.375 ações da Corbário por DD; 10.d. AA é casado com CC sob o regime de comunhão de adquiridos, desde 19 de setembro de 1981. 11. (eliminado) 12. Na ação n. 4434/…. a aqui ré, conjuntamente com outras sociedades, pede a condenação da aqui autora no pagamento de quantias devidas pelo fornecimento, entre 31.5.2017 e 20.10.2017, de matérias primas.” 13. A Ré Mota II – Soluções Cerâmicas, S.A., tem por objeto a preparação de argilas e matérias primas para cerâmica.” Da nulidade por excesso de pronúncia: A recorrida apresentou as suas contra-alegações de recurso de apelação requerendo a ampliação do objecto do recurso para a eventualidade de obter vencimento o “fundamento” do recurso da apelação. Pediu que, nesse caso, fosse reapreciada a matéria de facto elencada nos pontos 10 e 11 dos factos considerados provados e a mesma dada como não provada, mantendo-se a condenação da recorrente. Porém, a Relação - com o fundamento de que a afirmação final do ponto 10 era completamente conclusiva e que não era indiferente saber se AA, administrador da ré, era detentor de 10% do capital da sociedade autora ou detentor de uma posição maioritária, tal como era relevante saber se a titularidade de tal capital recaía sobre a sua mulher e filhos, por serem situações que eram objecto de distinto tratamento ao nível do direito, sendo que a questão de facto de saber se o AA era ou não administrador da autora tinha, também, relevância para a decisão - avançou, desde logo, para a apreciação da impugnação de facto, subsidiariamente deduzida, sem fazer, à luz do nº 2 do art. 636º do CPC, um juízo de prognose relativamente à procedência das questões suscitadas tendo por base a matéria de facto anteriormente dada como provada nos pontos 10 e 11 da sentença. Cremos, no entanto, que nada impedirá a posterior avaliação da pertinência dessa impugnação de facto, verificando-se se, perante a matéria de facto fixada pela sentença, o acórdão da Relação decidiria de maneira diferente, dando procedência às questões suscitadas pela recorrente: se o juízo que estava subjacente era esse justificava-se a apreciação da impugnação; se não era, se, independentemente da modificação da matéria de facto, a Relação teria decidido as questões da mesma forma, então terá procedido injustificadamente a essa apreciação. Os factos 10 e 11 tinham, na sentença, a seguinte redacção: “10. Por seu lado, a autora é integralmente detida pela Corbário Group, S.A. (“Corbário Group”), sociedade constituída de acordo com as leis do Luxemburgo; 95% do capital social da Corbário Group era detido por um veículo fiduciário- o Pinto Investment Trust- desde 14.9.2012, o que permite que o Sr. AA, possa ser, como é, de forma oculta, um dos detentores deste grupo empresarial. 11. O Sr. AA é também administrador de facto da requerente.” Considerou a sentença que, apesar de AA e esposa serem membros do conselho de administração da ré (9) e de AA ser também administrador de facto da autora (11), não se verificava a previsão do art. 397º, nº 2 do CSC, dado que os autos revelavam apenas que o contrato tinha sido celebrado não entre qualquer sociedade e o seu administrador mas entre as duas sociedades, ainda que com administradores comuns, que não eram sequer únicos, motivo por que não existia também qualquer negócio consigo mesmo previsto no art. 261ºdo CC. Dessa sentença apelou a ré insistindo que os fornecimentos eram nulos nos termos do nº 2 do art. 397º do CSC uma vez que AA detinha e administrava a autora de forma oculta, assim actuando “por interposta pessoa”, seja através da mulher, seja através de uma sociedade holding e de um trust, cujos beneficiários efectivos eram AA e esposa, podendo dizer-se, assim, que AA era indirectamente- por interposta pessoa - contraparte nos contratos de fornecimento. A tese da apelante apoiava-se, pois, nos factos 10 e 11, através dos quais pretendia demonstrar que AA era dono e beneficiário efectivo da autora e seu administrador de facto. Nas contra-alegações a apelada/autora contestou esses factos e, requerendo a ampliação, pediu que ficasse apenas provado que a autora é integralmente detida pela Corbário Group. Foi neste quadro que o acórdão ponderou como atrás já se referiu, em passagem que aqui se transcreve: “Sendo a afirmação final constante do ponto 10. – (…) o que permite que o Sr. AA possa ser, como é, de forma oculta, um dos detentores deste grupo empresarial” – completamente conclusiva, deixa-nos sem saber qual a efetiva participação que o mesmo possa ter na sociedade autora, sendo que, não é irrelevante ele ser detentor de 10% do capital ou de uma posição maioritária, assim como, não será indiferente que a titularidade de tal capital recaia sobre a sua mulher e filhos ou sobre si próprio, situações que serão objeto de distinto tratamento ao nível do direito. Por outro lado, também a questão de facto sobre se o AA era, ou não administrador da autora, assumirá relevância para a decisão em apreço. Ora, a Apelada/Autora, em sede de Ampliação de recurso e para a hipótese de procedência das alegações da Apelante, vem deduzir impugnação à decisão proferida precisamente quanto à matéria contida em tais pontos. Como tal, por facilidade de raciocínio e por se tratar de matéria de facto central para a questão da nulidade/anulabilidade dos fornecimentos em causa, começaremos por apreciar a impugnação deduzida pela Apelada/Autora.” E foi dentro do mesmo quadro que, procedendo à apreciação da impugnação de facto subsidiariamente deduzida, a Relação alterou a redacção do facto 10 para a seguinte: “10. Por seu lado, a autora é integralmente detida pela Corbário Group, S.A. (“Corbário Group”), sociedade constituída de acordo com as leis do Luxemburgo; 10.a. Aquando da sua constituição, a 28 de fevereiro de 2012, o capital social da Corbário Group foi subscrito pela seguinte forma: i) por CC, com uma participação de 95%, por DD com uma participação de 1,6 %, por EE, com uma participação de 1,6 % e por BB, com uma participação de 1,6% (doc.5 junto com a P.I, fls. 22 a 41); 10.b. A 14 de agosto de 2012 por AA e sua mulher CC foi constituído um Fundo Fiduciário – Pinto Investments Trust, com uma contribuição em dinheiro de 5.000 € por parte de AA e por 95% das ações da Corbário Group, S.A., por parte da sua mulher, Fundo este do qual AA e CC eram os Primeiros Beneficiários (fundadores), sendo os seus filhos os beneficiários finais; 10.c. Extinto o Fundo em 2017, as 95% das ações da Corbário Group (1.663.678 ) detidas por tal Fundo passaram a ser detidas pela seguinte forma: a) p1.488.553 ações pela CC ; b) 58.375 ações pela BB; c) 58.375 ações por EE; d) 58.375 ações da Corbário por DD; 10.d. AA é casado com CC sob o regime de comunhão de adquiridos, desde 19 de setembro de 1981.” Deixou sublinhado, ainda, o seguinte: “A afirmação contida no ponto 10 “o que permite que o Sr. AA possa ser, como é, de forma oculta, um dos detentores deste grupo empresarial”, sendo meramente conclusiva sempre seria de eliminar, sendo que, por ambas as partes, foram alegados os factos concretos dos quais se poderá concluir quem será o detentor do capital social da autora”. Ou seja: tendo em conta que o ponto 10 teria de ser expurgado da expressão “… o que permite que o Sr. AA possa ser, como é, de forma oculta, um dos detentores deste grupo empresarial”, o acórdão não teria dado procedência à questão suscitada pela recorrente no sentido de dar como assente que o administrador da ré era o beneficiário efectivo da autora e que, por isso, agia por intermédio dela, motivo por que haveria que apreciar, subsidiariamente, a impugnação do facto 10. Sucede, porém, que “pode revelar-se uma situação que exija a ampliação da matéria de facto, por ter sido omitida dos temas da prova matéria de facto alegada pelas partes que se revele essencial para a resolução do litígio, na medida em que assegurem enquadramento jurídico diverso do suposto pelo tribunal a quo. Trata-se de uma faculdade que nem sequer está dependente da iniciativa do recorrente, bastando que a Relação se confronte com uma omissão objectiva de factos relevantes” (Abrantes Geraldes, Recursos no Novo Código de Processo Civil, 5ª edição pág. 308). Isto é: o Tribunal da Relação pode ordenar a ampliação da matéria de facto quando a considere, pois indispensável; e ela é indispensável quando se revele necessária/imprescindível à decisão de direito que se vai tomar na Relação e àquela que pode vir a ser tomada, eventualmente, pelo Supremo (Ac. STJ de 19.5.2020, proc. 22172/17.5T8PRT.L1.L1.S1, em www.dgsi.pt) : o que nem sempre implica a anulação da decisão da 1ª instância, pois, se os elementos probatórios relevantes estiverem acessíveis, a Relação deve proceder à sua apreciação e introduzir na decisão da matéria de facto as modificações que forem consideradas oportunas (Abrantes Geraldes, ob. cit. pág. 309). É, portanto, nessa perspectiva que a iniciativa da Relação deve ser aproveitada, em virtude de atenta a supressão parcial do facto 10, se ter visto confrontada com a omissão objectiva de factos relevantes para a decisão da causa. Improcede, assim, a suscitada nulidade por omissão de pronúncia. Já relativamete ao facto 11, a recorrente também fundou a sua pretensão de que o administrador da ré agiu através da autora na demonstração de que o seu administrador era, além de detentor do capital, administrador de facto da recorrida. O tribunal apreciou a impugnação com o fundamento de que o facto de saber se o AA era ou não administrador da autora tinha relevância para a decisão em apreço . É certo que a Relação não fez também o acima referido juízo de prognose relativamente à relevância do facto 11 e, com base naquele facto, a apreciação da procedência da questão da aplicação do nº 2 do art. 397º do CSC. Porém, atendendo aos termos da decisão, não podemos ignorar que essa questão se apresentava como relevante para a procedência da questão (na medida em que o acórdão acolheu para efeitos do art. 397º, nº 2 o critério mais lato, segundo o qual se deveriam incluir não apenas as pessoas referidas no art. 579º, nº 2 do CC, mas ainda outros sujeitos, singulares ou colectivos, próximos dos administradores, ou seja, todos os sujeitos que os administradores possam influenciar directamente; e que essa questão da aplicação do art. 397º, nº 2 do CSC só não conduziu à procedência do recurso, na sua globalidade, porque no acórdão se considerou o caso integrado no nº 5 do art. 397º do CSC Portanto, a Relação não incorreu também em qualquer nulidade do acórdão por excesso de pronúncia quando apreciou a impugnação do facto 11 (relevante para a aplicação do nº 2), na medida em que acolheu parcialmente um dos fundamentos de direito (que a prova desse facto favorecia) apresentados pelo recorrente, com repercussão na modificação da decisão recorrida (Abrantes Geraldes, ob. cit., págs 126 e 127). Da violação do ónus constante do artigo 640º do CPC: A recorrente coloca, subsidiariamente, a questão da violação do ónus constante do art. 640º do CPC relativamente à impugnação de facto deduzida pela recorrida. No entanto, não se coloca essa questão relativamente ao facto 10, uma vez que, como se disse, ocorreu uma ampliação de facto da iniciativa do Tribunal. Apenas se suscita, pois, relativamente ao facto 11. Pugnava a apelante, na resposta à ampliação do objecto do recurso, pela rejeição da impugnação por incumprimento do ónus imposto pela al. b) do nº 1 do art. 640º do CPC. No acórdão da Relação, embora se tenha reconhecido que a apelada/impugnante invocou o depoimento das testemunhas FF e GG para contraprova do facto dado como provado sem a indicação precisa das passagens da gravação, considerou-se, porém, que era desnecessária a análise do depoimento das referidas testemunhas, dado que, apreciados os elementos de prova de que o tribunal a quo se tinha socorrido (depoimento de HH), deles não resultava a prova de tal facto, pelo que sempre o incumprimento dos ónus do art. 640º do CPC se tornaria irrelevante para a reapreciação da matéria em apreço. Insiste a recorrente, apontando a violação dos nº 1, al. b) e al. a) do nº 2 do art. 640º do CPC e do nº 2 do art. 636º do mesmo diploma. Em primeiro lugar, para a satisfação da al. b) do nº 1 basta a indicação dos meios probatórios, que imponham decisão diversa, o que foi feito na ampliação do objecto do recurso, através da indicação das duas testemunhas, acompanhada das razões pelas quais o facto 11 devia ter sido alterado. A questão, mais delicada, que se coloca, é outra: a de saber se a recorrida/apelada devia ter indicado com exactidão as passagens da gravação em que fundava a sua impugnação, como decorreria aparentemente de uma primeira leitura da al. a) do nº 2 do art. 640º do CPC, aplicável por força do nº 3 do art. 636º do CPC, sendo certo que nem os depoimentos das testemunhas ela transcreveu, como lhe era possível fazer. Sucede, no entanto, que a apelante, na resposta à ampliação do recurso, veio proceder à transcrição dos depoimentos daquelas testemunhas. Ora, “a razão de ser do requisito de impugnação estabelecido na alínea a) do n.º 2 do artigo 640.º do CPC tem em vista o delineamento, por parte do recorrente, do campo de análise probatória sobre o teor dos depoimentos convocados de modo a proporcionar, em primeira linha, o exercício esclarecido do contraditório, por banda do recorrido, e a servir de base ao empreendimento analítico do tribunal de recurso, sem prejuízo da indagação oficiosa que a este tribunal é legalmente conferida, em conformidade com o disposto nos artigos 5.º, n.º 2, alínea a), 640.º, n.º 2, alínea b), 1.ª parte, e 662.º, n.º 1, do mesmo Código; nessa conformidade, a decisão de rejeição do recurso com tal fundamento não se deve cingir a considerações teoréticas ou conceituais, de mera exegética do texto legal e dos seus princípios informadores, mas contemplar também uma ponderação do critério legal nas circunstâncias e modo como os depoimentos foram prestados e colhidos, bem como face ao grau de dificuldade que a indicação das passagens da gravação efetuada acarrete para o exercício do contraditório e para a própria análise crítica por parte do tribunal de recurso” (cfr. Ac. STJ de 15.2.2018, proc. 134116/13.2YIPRT.E1.S1, em www.dgsi.pt). Dito de outra maneira, e por contraponto ao ónus primário ou fundamental de delimitação do objecto, que decorre da al. a) do nº 1, o ónus, secundário, de indicação exacta das passagens relevantes dos depoimentos gravados, “tendente, não propriamente a fundamentar e delimitar o recurso, mas a possibilitar um acesso mais ou menos facilitado pela Relação aos meios de prova gravados relevantes” deve ser “interpretado em termos funcionalmente adequados e em conformidade com o princípio da proporcionalidade “ (Ac. STJ de 29.10.2015, 233/09.4TBVNG.G1.S1, no mesmo site). A indicação dos concretos meios probatórios convocáveis pelo recorrente, nos termos da alínea b) do mesmo artigo, “já não respeita propriamente à delimitação do objeto do recurso, mas antes à amplitude dos meios probatórios a tomar em linha de conta, sem prejuízo, porém, dos poderes inquisitórios do tribunal de recurso de atender a meios de prova não indicados pelas partes, mas constantes dos autos ou das gravações realizadas” (Ac. STJ de 17.3.2016, proc. n.º 124/12.1TBMTJ.L1.S1; v. ainda, o Ac. STJ de 22.10.2015, proc n.º 212/06.3TBSBG.C2.S1, ambos em www.dgsi.pt. Por isso se escreve no Ac. STJ de 9.2.2015 proc. 299/05.6TBMGD.P2.S1 :”… no que respeita à falta ou imprecisão da indicação das passagens da gravação dos depoimentos, a sua inobservância não se mostra, sempre, assim tão pertinente, tendo em conta o processo técnico dessas gravações e o modo como ficam registadas nos respetivos suportes magnéticos, com o indicação do início e fim da gravação em relação a cada depoimento. Acresce que a indicação parcelada de determinadas passagens dos depoimentos convocados só raramente dispensam o tribunal de recurso de ouvir todo o depoimento, na medida em que os interrogatórios sobre determinado ponto de facto e as respetivas instâncias da parte contrária e do tribunal não são sequenciais, encontrando-se disseminadas ao longo de todo o depoimento. Em face disso, afigura-se que a sanção prescrita no n.º 2, alínea a), do art.º 640.º do CPC deverá ser aplicada com algum tempero, em termos de só se justificar quando, perante extensos depoimentos a abarcar matéria bastante diversificada - a maior parte dela não impugnada - a omissão ou inexactidão na indicação das passagens tidas por relevantes dificulte, gravemente, o exercício do contraditório pela parte contrária e/ou o exame por banda do tribunal de recurso. “ Ora, revertendo ao caso sub judice, verifica-se que, com a transcrição pela recorrente nas contra-alegações dos depoimentos (aliás, breves) das testemunhas indicadas pela recorrida, não existem elementos que nos permitam concluir que da ausência de transcrição dos depoimentos das testemunhas indicadas pela recorrida tenha resultado para o exercício do contraditório - ou pudesse resultar para a análise crítica do tribunal de recurso (se acaso a eles recorresse) - qualquer dificuldade relevante. Como assim, cremos que, de acordo com o princípio da proporcionalidade, não se justificava, in casu, a rejeição liminar do recurso. E, por isso, podia o tribunal recorrer, como recorreu, aos seus poderes de investigação oficiosa que decorrem do disposto nos art. 640º, nº º2, al. b) e 662º do CPC, reapreciar a prova produzida em 1ª instância e daí retirar a sua convicção.
Da violação da autoridade do caso julgado: A Relação considerou que a matéria de facto do ponto 10 é uma mera reprodução do teor do ponto 25 da matéria de facto do acórdão proferido na acção nº 4039/…. E que a decisão neste processo de dar esse facto como provado não fazia caso julgado extraprocessual que se impusesse nos presentes autos. Relativamente ao facto 11, considerou que não existia qualquer autoridade do caso julgado constituído pela sentença proferida no referido processo ou na acção 1281/… (por inexistência de identidade de sujeitos) ou por qualquer fundamento de facto (por inexistência de qualquer relação de prejudicialidade entre os objectos das duas acções). Insiste a recorrente na violação da autoridade do caso julgado, designadamente, na do acórdão proferido na acção nº 4039/…, entendendo que não é necessário que se verifique a tríplice identidade, incluindo a identidade de sujeitos. Porém, “se é verdade que se vem considerando que a autoridade de caso julgado dispensa a exigência da tríplice identidade (de sujeitos, de pedidos e de causas de pedir) estabelecida no artigo 581º do CPC (cfr. Ac. STJ de 28.3.2019, proc. nº 6659/08.3TBCSC.L1.S1, Ac. STJ de 30.3.2017, proc. 1375/06.3TBSTR.E1.S1, Ac. STJ de 04.06.2015, proc. nº 177/04.6TBRMZ.E1.S1, todos em www.dgsi.pt), também se vem entendendo que esta dispensa tem de ser entendida com limitações, designadamente aquela que resulta da inexistência de identidade de sujeitos, pois, se se entendesse de outro modo, estaria a desvirtuar-se a figura do caso julgado e a fazer repercutir numa acção que corre entre determinados sujeitos os efeitos decorrentes de sentença proferida noutro processo que correu entre outros sujeitos, o que representaria uma violação do princípio do contraditório (v. Ac. STJ de 18.06.2014, proc. nº 209/09.1TBPTL.G1.S1, em www.dgsi.pt): o efeito de caso julgado só vinculará quem tenha sido parte na respetiva acção ou quem, não sendo parte, se encontre legalmente abrangido por via da sua eficácia direta ou reflexa, consoante os casos (assim, o citado ac. STJ 28.3.2019)”(cfr. Ac. STJ de 4.5.2021, proc. 1051/18.4R8CHV.G1.S1). Ora, não existe, no caso, qualquer identidade de sujeitos entre a presente acção nº 4039/… (de destituição de administrador), proposta por uma sociedade denominada Argitrop SGPS contra AA e BB. Considera a recorrente que, mesmo que se siga o entendimento no sentido de que não pode a autoridade do caso julgado prescindir da identidade dos sujeitos, tal identidade sempre poderia ser parcialmente obtida por meio de uma desconsideração da personalidade jurídica da recorrida, uma vez que o AA, enquanto beneficiário efectivo e administrador de facto da recorrida, a controlava por detrás da personalidade jurídica desta última, não havendo, por isso, distinção entre AA e BB e a ora recorrida autora. Porém, como melhor se verá adiante, não está demonstrado que AA “controlasse” a autora, à data do negócio em causa. Além disso, mesmo que tal se verificasse, seria de exigir ainda assim não uma identidade parcial mas uma identidade completa de sujeitos (acções entre os mesmos sujeitos), o que não se verifica (cfr. Ac. STJ de 25.3.2021, proc. 12191/18.0T8LSB.L1.S1). Considera, ainda, a recorrente, em relação à extensão da autoridade do caso julgado, que esta deve englobar a fundamentação de facto, uma vez que existe entre as acções uma especial conexão relativamete aos efeitos essenciais de cada uma, que diz respeito ao facto de se discutir como facto essencial se AA é administrador de facto e beneficiário efectivo da recorrida. Em primeiro lugar, a autoridade de caso julgado, em relação a fundamentos de facto ou de direito, teria de pressupor a identidade de sujeitos entre as acções, que, como se disse, não existe (Ac. STJ de 28.3.2019, proc. 6659/08.3TBCSC.L1.S1; e o citado Ac. STJ de 4.5.2021). Em segundo lugar, ainda que aquela identidade existisse, não estaria demonstrada qualquer relação de prejudicialidade entre o objecto da acção 4039/…. e o objecto desta acção, que permitisse concluir que o fundamento da primeira decisão e seu pressuposto lógico indispensável condicionava a apreciação do objecto da presente acção (cfr. Ac. STJ de 25.3.2021, proc. 453/14.0TBVRS-A.L1.S1, em www.dgsi.pt). Com efeito, não se verifica que se tenha dado como provado na primeira acção que o AA era “beneficiário” da autora e que actuava como como administrador de facto do Grupo Corbário, e que, por isso, qualquer desses factos tenha constituído fundamento lógico e indispensável da decisão proferida na acção 4039/…. Não existe, pois, qualquer conexão entre esta e a acção 4039/… (ou qualquer das outras acções identificadas), relativamente aos factos 10 e 11, que permita concluir por qualquer violação da autoridade do caso julgado. Erro na interpretação e aplicação dos nº s 2 e 5 do art. 397º do Código das Sociedades Comerciais: Encontrando-nos perante o fornecimento de materiais argilosos por parte da autora, Corbário – Minerais Industriais, S.A., (no âmbito da sua atividade de extração e exploração de argilas especiais, comercialização de matérias-primas para cerâmicas), à Ré, Motta II Soluções Cerâmicas, S.A., a decisão recorrida considerou não se tratar de um negócio entre a sociedade Ré e um seu administrador, mas apenas de um contrato celebrado entre as duas sociedades, ainda que com administradores comuns, sendo que um deles o é apenas de facto, não sendo, sequer, administradores únicos. Porém a Relação entendeu que, sendo a sociedade autora detida, à data, por um Fundo de que eram beneficiários o administrador da ré AA e o seu cônjuge, ou detida maioritariamente pelo cônjuge (uma vez que se desconhece a data exacta da transmissão das acções do Fundo para o dito cônjuge e filhos, facto 10 c)), se devia considerar preenchido o requisito previsto no art. 397º, nº 2 do CSM, uma vez que o negócio dos autos foi celebrado entre a sociedade ré e o seu administrador, AA e respectivo cônjuge (detentores do trust) ou então por “pessoa interposta”, isto é, através do cônjuge de AA, que depois da extinção do Fundo passou a deter uma posição maioritária no capital da autora. Todavia, não acompanhou a posição da apelante ré, por entender que se deveria aplicar o nº 5 do art. 397 do CSC. Assim, entendeu que o negócio estava compreendido no próprio comércio da sociedade e que nenhuma vantagem especial proporcionou ao administrador da ré AA. Considerou, ainda, que competia à ré alegar (independentemente da questão posterior do ónus da prova) que a transacção tinha envolvido uma vantagem especial para a contraparte (leia-se o administrador da ré), o que não fez, não alegando que tinha havido qualquer irregularidade relacionada com a contratação dos fornecimentos e que a ré tivesse sido prejudicada com os mesmos por não respeitarem as condições correntes do mercado. Quanto à anulabilidade por se tratar de um negócio consigo mesmo, previsto no art. 261º do Código Civil, referiu que não só não ficou demonstrado que o AA fosse administrador de facto da autora como, ainda que o fosse, tratando-se de sociedade anónima, se desconhece se o referido AA teve intervenção directa em algum dos lados da contratação, sem que algo indicie que estes fornecimentos tenham tido alguma particularidade que os distinga dos fornecimentos que a autora efectuava aos demais clientes. Insurge-se a recorrente contra a aplicação do nº 5 do art. 397º do CSC, em virtude de a autora não ter alegado e provado, como lhe competia, os requisitos respectivos, isto é, que o negócio se tratava de acto compreendido no próprio comércio da sociedade e que nenhuma vantagem especial tivesse sido concedida ao administrador. Não concorda, portanto, com o acórdão na parte em que este faz recair sobre a ré o ónus da alegação de que o negócio envolveu a concessão de vantagens ao outro contraente, sem a qual seria ilegítima a invocação da nulidade. Em primeiro lugar, cumpre verificar se concordamos com o acórdão na parte em que, sem contestação da recorrente, mas com a oposição da autora, começa por enquadrar a situação na previsão do nº 2 do art. 397º do CSC. Também aqui, e para melhor esclarecimento, se nos afigura conveniente transcrever, como se fez no Ac. STJ de 10.9.2020, proc. 1872/18.8T8LRA.C1.S1, publicado em www.dgsi.pt, parte do artigo de Mafalda Miranda Barbosa ( “A proscrição do conflito de interesses no direito civil - Considerações acerca do artigo 261.º, CC”, in Revista da Ordem dos Advogados, Vol. I/II, Jan.-Jun. 2019, págs. 157 a 188), que nos fornece uma síntese útil das diversas posições doutrinais acerca da aplicação do art. 397º do CSC: “ (…) No tocante aos negócios previstos no n.º 2 do art. 397.º, CSC, o regime é diverso. não são sempre proibidos, mas considerados nulos quando não haja prévia deliberação do conselho de administração, na qual o administrador interessado não pode votar, e parecer favorável do conselho fiscal. A nulidade que contamina os negócios celebrados entre a sociedade e um dos seus administradores estende-se aos negócios celebrados por interposta pessoa, solução que se percebe para se evitarem fraudes à lei e prisões formalistas que atentem contra a intencionalidade da disciplina. Importa, portanto, determinar quem são as interpostas pessoas de que fala o preceito. entre essas interpostas pessoas estão, de acordo com a posição de Coutinho de Abreu, as pessoas referidas no art. 579.º/2, CC, e todas as outras, singulares ou coletivas, que o administrador possa influenciar diretamente, como, por exemplo, uma sociedade de que seja sócio maioritário (68 Coutinho de Abreu, “Negócios entre sociedades e partes relacionadas (administradores, sócios) - sumário às vezes desenvolvido”, p. 15; Coutinho de Abreu, Responsabilidade civil dos administradores de sociedades, p. 42, ss. no sentido de interpretar a interposição de pessoas de acordo com o art. 579.º, CC, v., igualmente, Raul Ventura, Sociedades por quotas, III, Almedina, Coimbra, 1991, p. 57, referindo-se ao art. 254.º, CSC.). Para Soveral Martins, a interposição de pessoas significa tão só que o contrato foi celebrado indiretamente através de outrem, podendo estar em causa a interposição fictícia, o mandato sem representação, uma relação fiduciária, e podendo ainda aplicar-se o art. 579.º/2, CC, por analogia (69 Alexandre Soveral Martins, “a aplicação do artigo 397.º, CSC, às sociedades por quotas”, p. 561.). Já para Sousa Gião, a interposição de pessoas implica a interposição de interesses dos administradores, de tal modo que remete para o quadro do art. 397.º/2 CSC todos os casos em que exista um conflito de interesses. esta posição, necessariamente amplificadora do âmbito de relevância subjetiva do preceito, não é aceite sem mais pela generalidade da doutrina, que remete os casos de conflito de interesses para além daqueles previstos para o art. 261.º, CC (70 Alexandre Soveral Martins, “A aplicação do artigo 397.º, CSC, às sociedades por quotas”, p. 561. Veja-se, a este propósito, Menezes Cordeiro, “artigo 397.º”, Código das Sociedades Comerciais anotado, 2.ª ed., almedina, Coimbra, 2011, p. 1061.). (…) Percebe-se, então, independentemente das críticas que possam dirigir-se contra este regime (73 (…)), que a intenção é, uma vez mais, evitar que a pessoa coletiva sociedade anónima (e terceiros) possa(m) ser prejudicada(os) por um negócio celebrado com um seu administrador. o eventual prejuízo presume-se como certo a partir do momento em que o conflito de interesses esteja latente (74 (…)). Nessa medida, parece haver uma linha de continuidade entre o preceito em análise e o art. 261.º, CC. há, contudo, diferenças assinaláveis entre ambos: desde logo, os termos da proibição não são absolutamente idênticos; por seu turno, a consequência jurídica da celebração do negócio em contravenção com o disposto na lei é também outra, com o art. 397.º, CSC, a falar de nulidade e o art. 261.º, CC, a cominar a anulabilidade como sanção. Vejamos: mesmo deixando de lado os negócios que o administrador nunca poderá celebrar, a eventual celebração de um negócio nos termos do n.º 2 do art. 397.º, CSC, fica dependente da aprovação prévia pelo conselho de administração e de parecer favorável do conselho fiscal. Significa isto que não está apenas em causa a simples autorização por parte do representado para a celebração de negócios consigo mesmo, por forma a acautelar-se contra um eventual prejuízo decorrente de um conflito de interesses, mas o controlo acerca do impacto que aquele contrato possa ter no património da pessoa coletiva. Daí a exigência de parecer favorável do conselho fiscal. Percebe-se, por isso, que o regime diga respeito não especificamente aos negócios consigo mesmo, embora os possa abranger. A intencionalidade é outra e a proscrição do conflito de interesses latente ocorre não porque o administrador representa a sociedade — que pode não representar — mas porque o administrador pode condicionar a gestão da pessoa coletiva em seu favor, prejudicando-a e prejudicando terceiros. Por outro lado, há outros factores a ter em conta para justificar a cominação da nulidade como sanção: em primeiro lugar, ao nível do n.º 1 do art. 397.º, CSC, ela está em linha com a previsão do mesmo tipo de consequência pela violação do princípio da especialidade do fim — é que os negócios em questão podem envolver um benefício injustificado para o administrador, a apontar para uma ideia de liberalidade que quadra mal com a teleologia da pessoa coletiva em questão; em segundo lugar, e já também no que tange às hipóteses do n.º 2, as especificidades da representação orgânica podem determinar a necessidade de um regime mais favorável no que respeita à desvinculação da sociedade, em sintonia, aliás, com a sanção que é prevista no caso do art. 1939.º, CC, para algumas hipóteses de representação legal; em terceiro lugar, parece estar aqui em causa a concretização do dever de lealdade dos administradores para com os sócios (75 Sobre o ponto, cf. Coutinho de Abreu, “Corporate governance em Portugal”, Miscelânias do IDET, 6, Almedina, Coimbra, 2010; A. Menezes Cordeiro, “A lealdade no direito das sociedades”, Revista da Ordem dos Advogados, 66-III, 2006.); por último, entra em cena a necessidade de proteção do património da sociedade e, portanto, de todos os sócios e credores da sociedade, devendo garantir-se um expediente para que também estes possam invalidar o negócio (76 A este propósito, cf. o art. 412.º, CSC. Os credores sociais não poderão invocar a invalidade de uma deliberação junto do conselho de administração. A invocação da anulabilidade dos negócios celebrados pela sociedade não será possível nos termos do art. 287.º, CC.). (…) Para além destas situações, questiona-se se outras podem ser assimiladas pelo âmbito de relevância do art. 397.º, CSC, designadamente quando em causa estejam negócios celebrados por uma sociedade com outra que seja dominada pelo seu administrador ou gerente (83 Alexandre Soveral Martins, “A aplicação do artigo 397.º, CSC, às sociedades por quotas”, p. 567, ss., considerando que é necessário mais do que o domínio para se poder aplicar o art. 397.º, CSC. Para que ele fosse chamado a depor seria necessário que o sujeito utilizasse as sociedades que domina como um “alter ego”, falando-se de interposição de pessoas.). Por outro lado, atenta a teleologia do regime e os interesses subjacentes, poderia ser importante ponderar se o mesmo se deve ou não aplicar aos negócios celebrados entre a sociedade e outras partes relacionadas por vínculos de socialidade, designadamente os acionistas controladores, as sociedades em relação de domínio ou de grupo (84 (…)).” [negritos nossos] Escreve-se, ainda, no Ac. STJ de 10.9.2020, relativamente aos critérios orientadores: “Tendo em conta os subsídios doutrinais recolhidos, são assim sintetizáveis os critérios orientadores para a resolução da questão que ora nos ocupa: - O regime do nº 2 do art. 397º do CSC, ainda que com afinidades com o regime do art. 261º do CC, tem como finalidade específica impedir que o administrador de uma determinada sociedade condicione as decisões de gestão da mesma sociedade em sentido que lhe seja pessoalmente favorável, prejudicando a sociedade, os sócios ou os credores; - Em consequência da teleologia da norma em causa compreende-se que a lei comine os negócios celebrados em sua violação com a sanção da nulidade e não com a sanção da simples anulabilidade prevista no art. 261º do CC; - Sendo o conceito de “pessoa interposta” – previsto no referido nº 2 do art. 397º do CSC (“São nulos os contratos celebrados entre a sociedade e os seus administradores, directamente ou por pessoa interposta (…).”) – um conceito indeterminado, discute-se na doutrina como deverá ser preenchido. Sem dúvida que nele se incluem, com as devidas adaptações, as pessoas indicadas no art. 592º, nº 2, do CC (norma que define o que seja pessoa interposta para efeitos da proibição da cessão de direitos litigiosos: “o cônjuge do inibido, a pessoa de quem este seja herdeiro presumido e o terceiro, de acordo com o inibido, para o cessionário transmitir a este a coisa ou direito cedido”). Mas, para além destas, não se pode deixar de incluir nesse conceito outras hipóteses em que os interesses do administrador inibido se identificam ou se (con)fundem com os interesses da pessoa (ou entidade) com a qual a sociedade por ele administrada contrata; - Ainda que não seja fácil concretizar todas as hipóteses em que isso pode suceder, afigura-se indubitável ser relevante – para efeitos de qualificação como interposta pessoa – aquela situação em que um negócio é celebrado entre a sociedade administrada e outra sociedade totalmente dominada, directa ou indirectamente, pelo sujeito inibido, desde que, cumulativamente, se verifique que esse mesmo sujeito utiliza a sociedades que domina como um autêntico alter ego (na feliz expressão de Alexandre Soveral Martins, convocada por Mafalda Miranda Barbosa). Esta orientação interpretativa da norma do nº 2 do art. 397º do CSC encontra apoio reforçado no instituto do levantamento ou desconsideração da personalidade colectiva, que – de acordo com a lição de Menezes Cordeiro (Tratado de Direito Civil, Vol. IV – Pessoas, Almedina, Coimbra, 2017, pág. 709) – assume uma das suas justificações típicas quando se verifique “o atentado a terceiro e o abuso de personalidade”. Desenvolvendo este ponto, afirma o mesmo autor (ob. cit., pág. 175): “O atentado a terceiros verifica-se sempre que a personalidade coletiva seja usada, de modo ilícito ou abusivo, para os prejudicar. Como resulta da própria fórmula encontrada, não basta uma ocorrência de prejuízo, causada a terceiros através da pessoa coletiva; para haver levantamento será antes necessário que se assista a uma utilização contrária a normas ou princípios gerais, incluindo a ética dos negócios. // Sub-hipótese particular é a do recurso a “testas-de-ferro”, numa situação que autorizaria a procurar o real sujeito das relações criadas. Entende-se ser de subsumir aqui a situação em que um sujeito, estando pessoalmente inibido de contratar com uma sociedade x, por nesta exercer funções de administração, se serve objectivamente (i.e. independentemente de qualquer intuito subjectivo) de uma sociedade y que o mesmo sujeito domina, directa ou indirectamente, e com cujos interesses se (con)fundem os seus interesses pessoais, como veículo para ultrapassar tal inibição legal, vindo o contrato ou negócio jurídico a ser celebrado entre a sociedade x e a sociedade y.” Revertendo ao caso sub judice, embora a doutrina (que atrás se citou) não preveja especificamente a hipótese do controlo da sociedade autora (interposta pessoa) pelo administrador da ré, através do cônjuge, que detém a posição maioritária dessa sociedade (aludindo, como se viu, separadamente, à figura do cônjuge como pessoa interposta ou à sociedade contraparte detida maioritariamente pelo administrador da ré), tendemos a concordar com a posição da Relação que figura como pessoa interposta a sociedade controlada pelo cônjuge do administrador da ré, uma vez que também aqui o administrador pode condicionar a administração da sociedade através da influência que exerce sobre o seu cônjuge, detentor da maioria do capital da sociedade interposta. A possibilidade de influenciar a pessoa interposta também aqui se verifica (porventura, de forma menos nítida e mais atenuada). Porém, se na sequência da corrente mais alargada, podemos admitir essa hipótese, isto é, que no conceito de interposta pessoa se deve incluir uma sociedade, na qual o cônjuge do administrador tem uma posição esmagadoramente maioritária (facto 10 c)), já consideramos que nos escasseiam elementos para poder concluir que nesse conceito se deve incluir uma sociedade cuja maioria das acções ( que pertenciam ao cônjuge do administrador da ré) foram transferidas para um trust, do qual o administrador da ré e o seu cônjuge são apenas beneficiários (facto 10 b)). Vejamos: Dos elementos trazidos para os autos verifica-se que, a 14 de Agosto de 2012, o AA e cônjuge constituíram – o primeiro com uma contribuição em dinheiro de 5.000 € e a segunda com 95% das acções da Corbário - um Fundo denominado Fundo Fiduciário- Pinto Investement Trust, de que AA e mulher eram os primeiros beneficiários. Constituíram, portanto, um fundo denominado “trust”. Ora, o trust é “uma figura jurídica, própria do direito anglo-saxónico, que se define, no essencial, como uma relação fiduciária através da qual os bens são transmitidos a uma pessoa (trustee) para que esta os administre em benefício de um terceiro (beneficiário) e em conformidade com o objectivo estabelecido no acto constitutivo” (Ac. R.P. de 28.11.2017, proc. 1050/06.9TVPRT.P1, em www.dgsi.pt). Porém, se o administrador pode ser designado pelos disponentes (fundadores), a verdade é que as suas obrigações são, em primeiro lugar, estabelecidas no acto constitutivo do trust (Maria João Tomé e Diogo Leite Campos, A propriedade fiduciária, 2014, págs. 43, 97 e 101). Não existe, em regra, um vínculo obrigacional entre o settlor (fundador) e o trustee (administrador): o settlor não pode dar instruções ou ordens ao fiduciário, ficando este apenas obrigado a seguir as directrizes explanadas no acto constitutivo; mas também não existe um vínculo obrigacional entre o trustee e o beneficiário, pelo que também este sujeito não pode dar ou instruções ao fiduciário, com excepção da imposição da transmissão dos bens para a sua esfera jurídica e apenas nos casos em que semelhante direito lhe seja reconhecido (A. Barreto, Menezes Cordeiro Trust no Direito Civil, 2014, pág. 1018); o administrador pode portanto administrar os bens do trust sem necessidade de obter o consentimento dos beneficiários (Maria João Tomé e Digo Leite Campos, ob. cit. pág. 97). O settlor (fundador) e os beneficiários perdem, assim, os poderes de administração e de disposição sobre os bens transferidos para o trustee (administrador), sendo que, em regra, o trustee tem o poder de livremente dispor dos bens constituídos em trust ( cfr.. ob. cit., págs. 96 e 101) Neste quadro, se é possível conjecturar a influência directa na administração de uma sociedade terceira (interposta pessoa) cujo capital é maioritariamente (em cerca de 84%) detido pelo cônjuge do administrador da sociedade, já não se mostra tão evidente a influência dos beneficiários na administração do trust, atento o perfil de independência da figura do administrador nem, por essa via, o condicionamento da administração da sociedade autora. Daí que, atendendo aos traços característicos da figura do trust, competisse à ré alegar e provar que o AA e/ou a mulher – que nem como disponentes ou settlors (fundadores) nem como beneficiários, podiam, em regra, condicionar os actos de administração do trust - tinham a possibilidade de influenciar a administração do trust (relativamente à gestão e à disposição das acções), mediante o acto constitutivo respectivo (que podia prever, por exemplo, a indisponibilidade das acções) ou através da influência directa sobre a pessoa do administrador do trust (que podia ter sido designado pelos beneficiários), em termos de, por essa via, se revelarem com capacidade para condicionar a administração da sociedade relativamente aos seus actos de gestão concreta, designadamente ao da celebração do negócio em causa. Ora, a ré não demonstrou que, à data do negócio, o administrador da sociedade ré ou o seu cônjuge, apesar da sua posição de beneficiários do trust, pudessem, através desse veículo fiduciário, condicionar a administração do trust e, desse modo, a da sociedade autora. Tal como não demonstrou que, à data do negócio, AA pudesse influenciar a sociedade autora, através do cônjuge, pelo facto de este deter uma participação maioritária do capital, uma vez que se desconhece a data da transmissão das acções do Fundo para CC e filhos. Dos elementos colhidos resulta, portanto, que, nas duas situações possíveis (a da titularidade do Fundo ou a da posição maioritária do cônjuge no capital da sociedade autora) a ré não logrou provar o traço comum essencial entre as duas: a possibilidade de condicionamento da administração da sociedade autora através do cônjuge do administrador da ré, como beneficiária do Fundo ou como detentora maioritária do capital da autora. Não estão, assim, reunidos os requisitos do art. 397º, nº 2 do CSC, deste modo ficando prejudicada a questão de saber se impendia ou não sobre a autora o ónus de provar os requisitos constantes do nº 5 do art. 397º do CSC. Sumário (art. 663º, nº 7 do CPC): “I- O juízo de procedência das questões suscitadas pelo recorrente, para os efeitos do art. 636º, nº 2 do CPC, deve ser feito logicamente antes da apreciação da impugnação da decisão proferida sobre pontos determinados da matéria de facto; II- No entanto, se esse juízo de prognose não for feito, nada obsta a que, para efeitos de apreciação da nulidade por excesso de pronúncia suscitada na Relação, o Supremo aprecie a pertinência da impugnação através da interpretação do acórdão recorrido no seu conjunto; III- Confrontada com uma omissão objectiva de factos relevantes (indispensáveis) para a decisão, a Relação pode ordenar a ampliação da matéria de facto, podendo, se os elementos probatórios estiverem acessíveis, proceder à sua apreciação e introduzir na matéria de facto as modificações que forem consideradas oportunas; IV- Se, apesar de a recorrida/apelada, na impugnação de facto deduzida na ampliação do recurso, não tiver indicado, com exactidão, as passagens da gravação em que funda a sua impugnação e não tiver transcrito os depoimentos de duas testemunhas que indicou, a apelante tiver procedido, na resposta, à transcrição dos depoimentos daqueles depoimentos ( breves) e tiver exercido o contraditório sem dificuldade relevante, não se justifica, de acordo com o princípio da proporcionalidade a rejeição liminar do recurso de impugnação de facto (art 636º, nº 2, 640º, nº 1, b) e nº 2, al. a) e nº 3 do CPC); V- A autoridade do caso julgado pressupõe a identidade completa de sujeitos entre as duas acções (em que se pretende impor a decisão ou algum dos fundamentos de uma delas como pressuposto indiscutível da decisão da outra); VI- Para os efeitos do conceito de” interposta pessoa” art. 397º, nº 2 do CSC, não bastava que a ré, que invoca a nulidade do contrato, provasse a existência, à data do negócio, de um Fundo Fiduciário (Trust), que detinha a maioria do capital da sociedade autora e contraparte e do qual o administrador da ré e a sua mulher eram os primeiros beneficiários: VII- Conhecidas as características da figura do trust (que envolve a existência de um administrador), importava, ainda, que a ré (que não provou que o seu administrador fosse administrador de facto da autora) alegasse e provasse que o administrador ou o seu cônjuge tinham a possibilidade de condicionar ou influenciar a administração do trust (relativamente à gestão e disposição das acções), mediante o acto constitutivo respectivo (que podia prever, por exemplo, a indisponibilidade das acções) ou através da influência directa sobre a pessoa do administrador do trust (que podia ter sido designado pelos beneficiários) e que, por essa via, tinham capacidade para condicionar ou influenciar a administração da sociedade relativamente aos seus actos de gestão concreta (designadamente, ao da celebração do negócio em causa). Pelo exposto, acordam os Juízes desta Secção em negar a revista e confirmar o acórdão recorrido. Custas pela recorrente. * Lisboa, 16 de Novembro de 2021 António Magalhães (relator) Jorge Dias Isaías Pádua |