Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
2774/17.0T8STR.E1.S1
Nº Convencional: 6.ª SECÇÃO
Relator: GRAÇA AMARAL
Descritores: CASO JULGADO
EXCEPÇÃO DILATÓRIA
EXCEÇÃO DILATÓRIA
CAUSA DE PEDIR
DIREITO DE PROPRIEDADE
INDEMNIZAÇÃO
PEDIDO RECONVENCIONAL
ENRIQUECIMENTO SEM CAUSA
PRINCÍPIO DA CONCENTRAÇÃO DA DEFESA
ÓNUS DE ALEGAÇÃO
PRINCÍPIO DA PRECLUSÃO
Data do Acordão: 06/02/2020
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: CONCEDIDA A REVISTA.
Indicações Eventuais: TRANSITADO EM JULGADO.
Sumário :
I - A identificação do direito que se pretende fazer valer em juízo passa necessariamente pela sua causa ou fonte (acto ou facto constitutivo) e esta (causa de pedir) tem de ser especificada e concretizada. Nessa medida, a eficácia da excepção do caso julgado, caracterizada pela identidade subjectiva e objectiva, encontra-se em estreita conexão com a natureza e definição do direito, sendo essa definição que torna irrefutável, no futuro, a solução concreta dada ao litígio.
II - A identidade de efeito jurídico para efeitos de caso julgado não se esgota na identidade formal, mas circunscreve-se à coincidência entre o objectivo fundamental em que se apoia o êxito de cada uma das acções em causa.
III - Não ocorre repetição de acções entre o pedido reconvencional deduzido em acção anterior quanto à pretensão de ver reconhecido o direito de indemnização, por violação do direito de propriedade pela exploração ilícita do prédio com base em responsabilidade civil (pedido que foi julgado improcedente por não demonstração de culpa do agente), e o pedido subsidiário na presente acção interposta pelos autores (réus naquela acção), agora fundados no enriquecimento sem causa, pedindo a restituição de quantia correspondente aos proventos que os réus retiraram da exploração da pedreira existente no prédio sem a autorização e/ou consentimento dos respectivos proprietários.
IV - Embora a presente acção parta de uma realidade fáctica comum (ocupação ilegítima de imóvel alheio) encontram-se invocados (no pedido subsidiário) factos constitutivos de um título jurídico diverso, inexistindo, por isso, identidade objectiva entre as duas acções.
V - Enquanto réus/reconvintes (na primeira acção) não lhes cumpria qualquer ónus de concentração relativamente à alegação de factos integradores de enriquecimento sem causa e, nessa medida, não se verifica a preclusão dessa factualidade não alegada para efeitos de acolhimento da excepção de caso julgado.
Decisão Texto Integral:

Acordam na 6ª Secção Cível do Supremo Tribunal de Justiça,

I – Relatório

1 AA, BB e mulher, CC[1], instauraram acção de condenação com processo comum, contra DD, EE, FF e GG, pedindo a condenação dos Réus (na qualidade de únicos sucessores de HH e em nome individual a partir da morte deste, em 2005):

- a pagar-lhes 1.729.660€ (calculado à data entrega do prédio, ocorrida em Maio de 2015) e nos juros legais vincendos a partir da citação, a título de indemnização pelos prejuízos sofridos com a abusiva exploração e venda a terceiros de pedra no prédio rústico sito em ... (identificado no artigo1º da petição), por ofensa do direito de propriedade dos AA.

Subsidiariamente:

– a restituírem-lhes o valor correspondente ao seu enriquecimento (por intervenção), sem causa justificativa, à custa dos Autores, calculado em 909.661,00 €, bem como nos juros legais vincendos a partir da citação.

2. Após citação os Réus apresentaram contestação onde impugnaram os factos alegados pelos Autores excepcionando a ilegitimidade destes, o caso julgado relativamente aos pedidos principal e subsidiário, bem como a prescrição relativamente ao pedido subsidiário.

3. No saneador foram julgadas improcedentes as excepções de ilegitimidade dos Autores e da prescrição julgando procedente a excepção de caso julgado (de ambos os pedidos, principal e subsidiário).

4. Inconformados, os Autores apelaram tendo o Tribunal da Relação de Guimarães proferido acórdão (datado de 12-06-2019) que julgou a apelação improcedente, confirmando a decisão recorrida.

5. Os Autores interpuseram recurso de revista concluindo nas suas alegações (transcrição):
1, O douto Acórdão em recurso não fez, como devia, uma análise crítica das conclusões das Alegações de Apelação, mormente relativamente ao enquadramento ou leitura que o Acórdão do Tribunal da Relação de 27/2/2014 fez da causa de pedir e dos seus reflexos na presente acção, deixando de pronunciar-se sobre questões que foram colocadas ao Tribunal (artº. 615, nº 1, al. d) do C.P.C.).
2. Nem sequer teve em atenção toda a factualidade alegada na presente acção (pedido subsidiário), pois olvidou a matéria alegada respeitante à causa de pedir: o enriquecimento.
3. E confunde a causa de pedir da presente acção (o enriquecimento dos RR.) com prejuízos dos AA..
4. Bem como confunde os pedidos de uma (reconvenção na acção 404/2001) e outra acção (pedido subsidiário da presente), considerando que os efeitos prático-jurídicos são os mesmos (naquela, a indemnização por danos; na presente, a restituição pelos RR. do seu enriquecimento).
5. Para que se verifique caso julgado é necessário que se verifique uma tríplice identidade: de sujeitos, de causa de pedir e do pedido (efeito prático-jurídico).
6. Ora, apenas os sujeitos são os mesmos nas duas acções.
7. O nosso legislador optou pelo sistema de individualização ou substanciação da causa de pedir, implicando para o autor a necessidade de articular factos de onde deriva a sua pretensão (na acção 404/2001, os factos de onde derivava a sua pretensão de indemnização dos danos) formando-se o objecto do processo e, por arrastamento, o caso julgado, apenas relativamente aos factos integradores da causa de pedir invocada (a necessária, como foi, para a determinação da responsabilidade civil extracontratual).
8. Assim, a delimitação objectiva do caso julgado na acção 404/2001 é fixada pela individualização que os RR./Reconvintes aí fizeram da causa de pedir e pela leitura que dela fez o Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 27/2/2014 – causa de pedir que foi única e exclusivamente baseada nos factos atinentes à responsabilidade civil extra-contratual por factos ilícitos e assim considerados (lidos) pelo Tribunal.
9. A tutela jurídica pretendida na acção 404/2001 era a indemnização dos prejuízos dos Reconvintes (ora AA.) por violação ilícita da propriedade e, por isso,
10. O quadro normativo aplicável era, pois, a responsabilidade extra-contratual por factos ilícitos (artº. 483 do C.C.).
11. E é a previsão de uma regra jurídica que fornece os elementos para a construção de uma causa de pedir.
12. Os factos que constituem a causa de pedir devem preencher uma determinada previsão legal, isto é, devem ser subsumíveis a uma regra jurídica, eles não factos “brutos”, mas factos “institucionais”, isto é, factos construídos como tal por uma regra jurídica. Isto demostra que o recorte da causa de pedir é realizado pelo direito material: são as previsões das regras materiais que delimitam as causas de pedir, pelo que, em abstracto, há tantas causas de pedir quantas as previsões legais.
13. Sendo o pedido e a causa de pedir conceitos de matriz e função processual, a sua densificação ou concretização, em termos de determinar em concreto cada causa de pedir, só poderá ser feita com base nas normas substantivas aplicáveis à situação litigiosa singular.
14. Ora, a situação litigiosa que estava em causa na acção 404/2001 era a violação ilícita da propriedade, os danos e a indemnização dos AA. (aí RR./Reconvintes) dos danos e não o enriquecimento dos Reconvindos (ora RR.) e a restituição desse enriquecimento.
15. Assim, na presente acção, a causa de pedir tem a ver com o enriquecimento dos RR. (a sua fatispécie constitutiva, o núcleo essencial da causa de pedir é o enriquecimento dos RR. (jamais alegado sequer na acção 404/2001), respeitando a substanciação adequada à individualização da relação material controvertida, como singularidade ontológica, garantia de base do contraditório e de que deriva ulterior delimitação de caso julgado.
16. O quadro normativo aplicável na presente acção, em função da espécie de tutela jurídica pretendida (restituição do enriquecimento) é o quadro normativo dos artºs. 473 e 1305 do C.C..
17. E, por isso, nem a causa de pedir na presente acção (enriquecimento dos RR.) é a mesma que na acção 404/2001, nem o pedido (restituição do enriquecimento) é o mesmo que na acção 404/2001.
18. Mesmo que por hipótese (que se não admite) se tratasse da mesma factualidade (da causa de pedir na acção 404/2001 e da causa de pedir do pedido subsidiário na presente), o Tribunal da Relação de Évora em seu acórdão de 27/2/2014 (pelo qual está definitivamente julgada a acção 404/2001), não fez “outra qualificação jurídica” da factualidade alegada naquela acção, que não fosse a aí alegada, integrante da responsabilidade civil extracontratual, como expressamente do douto Acórdão de 27/2/2014 consta: “Quanto ao pedido de indemnização, por responsabilidade extracontratual, não emergiu da discussão da causa um dos pressupostos – a culpa”.
19. Admitindo, em teoria, que o Tribunal da Relação de Évora, no Acórdão de 27/2/2014 (acção 404/2001) pudesse ter tomado a liberdade de “qualificação jurídica diferente” da factualidade alegada, o certo é que não o fez.
20. E não o fez certamente por entender que a “convolação qualitativa” conduziria a um modo de tutela de conteúdo essencialmente diferente do visado pelo autor (RR./Reconvintes), extravasando o limite da condenação previsto no artº. 609, nº 1 do C.P.C., a qual atentaria contra os princípios do dispositivo e do contraditório, em função dos quais as partes pautaram a configuração do litígio e a discussão da causa.
21. Mas o certo é que, mesmo que o pudesse ter feito, não o tendo feito, o caso julgado não abrange a solução que não perfilhou: “se o juiz não reconhecer a si próprio a alternativa de solução entre a condenação a título de responsabilidade e condenação da restituição do enriquecimento sem causa, basta que absolva com base na responsabilidade civil, sem tomar em atenção a outra possibilidade, para que o caso julgado não abranja a solução que não perfilhou”.
22. Pelo que não se verifica caso julgado.
23. E nem os RR./Reconvintes (ora AA.) estavam sujeitos a qualquer ónus de concentração de todas as causas de pedir na acção 404/2001, pois: “Os efeitos preclusivos decorrentes da primeira acção, ao contrário do que sucede com o R. (que deve concentrar toda a defesa na contestação – artº. 573, nº 1 do C.P.C. – ou em momento posterior nos termos do nº 2 do mesmo artigo), quanto ao A. (e os RR./Reconvintes tinham a posição de A. na reconvenção da acção 404/2001) tal não ocorre, visto que não está sujeito a qualquer ónus de concentração de todas as causas de pedir na acção proposta, o que está de acordo com o princípio do dispositivo”.
24. É lícito ao Autor, em processo civil, formular n vezes a mesma pretensão desde que a basei em n causas de pedir.
25. O caso julgado não preclude a possibilidade de invocar diferentes causas de pedir para o mesmo pedido, tal como não impede a formulação de outros pedidos com relação à mesma causa de pedir.
26. É, pois, pela leitura que o Acórdão que a Relação de Évora de 27/2/2014 fez da causa de pedir na reconvenção da acção 404/2001 -movendo-se apenas dentro da factualidade atinente à responsabilidade civil extra-contratual e não do enriquecimento sem causa – que ficaram o objecto da sentença e o objecto do processo definitivamente configurados nos termos dessa decisão.
27. Mesmo que se tratasse de uma situação de concurso aparente de normas – dado que o pedido reconvencional deduzido pelos RR./Reconvintes (posição de AA.) na açcão 404/2001 foi julgado improcedente e não foi alegada a fatispécie constitutiva do enriquecimento sem causa nessa acção – o caso julgado nela formado quanto à não indemnização dos danos dos ora AA., não é invocável na presente acção.
28. Jamais, pois, se verifica a excepção de caso julgado.
29. Violou, pois, o douto Acórdão em recurso o disposto nas seguintes disposições legais: artºs. 473 e 1305 do C.C. e 581, 609 e 615, nº 1, al. d) do C.P.C.”.

6. A interveniente, II recorreu também do acórdão, concluindo nas suas alegações (transcrição):

1 – Vem o presente recurso interposto da decisão que confirmou a decisão proferida pelo Tribunal de 1ª

Instância quanto à procedência da exceção de caso julgado relativamente ao pedido subsidiário, fundado

no instituto do enriquecimento sem causa.

2 - Tal decisão não foi acompanhada pela Exma. Senhora Juíza Desembargadora que lavrou o seguinte voto de vencido: “Vencida, porquanto considero não se verificar a excepção de caso julgado quanto ao pedido subsidiário. Com efeito, quer o pedido, quer a causa de pedir não foram objecto da acção anterior.”, pelo que é admissível o recurso para o supremo Tribunal de Justiça.

3 – Salvo o devido e muito respeito, entende a Recorrente, estar errada a decisão, que obteve vencimento, proferida pelo Tribunal da Relação de Évora, ao considerar verificada a exceção de caso julgado por entender, como entendeu o Julgador a quo, que o núcleo factual é o mesmo na presente ação e na ação 404/2001, concluindo ser a mesma a causa de pedir quanto ao pedido subsidiário fundado no instituto do enriquecimento sem causa.

4 – A decisão que mereceu vencimento no acórdão recorrido considera, tal como o Tribunal de 1ª Instância, que na presente ação estamos perante uma repetição da causa de pedir, em relação à ação que correu termos sob o nº 404/2001, por “os factos essenciais concretos, temporal e espacialmente localizados, que servem de fundamento, quer à pretensão principal, quer à pretensão subsidiária já tinham sido alvo de abordagem em consonância com a pretensão indemnizatória que havia sido feita pelos autores no âmbito da ação 404/2001”.

5 – Admite a Recorrente que existe identidade de sujeitos nas duas ações, mas considera, salvo o devido e muito respeito pelo tribunal recorrido, que não se verifica a identidade de causa de pedir, assim como não se verifica a identidade do pedido.

6 – Na presente ação, o núcleo essencial dos factos que a alegante invocou na posição de A., relativamente ao pedido subsidiário de condenação dos RR. por enriquecimento sem causa, reporta-se à vantagem patrimonial (ao enriquecimento) dos RR. à custa dos AA. através da ingerência no prédio propriedade da apelante e demais AA. (bem alheio), usando-o e fruindo-o, sem consentimento dos seus proprietários, independentemente da existência de dano patrimonial do lesado.

7 - O que a Recorrente alega é que os RR. tiraram vantagens do prédio e dessa forma obtiveram um enriquecimento à custa dos titulares do direito de propriedade, na medida em que se apropriaram de utilidades que “a ordem jurídica, segundo o direito da ordenação dos bens, reservava exclusivamente a este último", ou seja, alega que a "deslocação patrimonial" - também prevista no artigo 473º do C.C. é auferida à custa do seu património e dos demais AA..

8 – Na ação que correu termos com o nº 404/2001, a causa de pedir foi integrada por factos relativos à ilicitude do comportamento dos ora RR. que ao utilizarem o prédio dos agora AA., nele instalando e explorando uma pedreira, a estes causaram prejuízos que deverão ser reparados.

9 – Nos presentes autos a causa de pedir, no que respeita ao pedido subsidiário, é integrada por factos relativos ao acréscimo patrimonial para os RR. conseguido com essa utilização do prédio.

10 – Na presente ação não são invocados os mesmos factos que foram alegados na ação nº 404/2001.

11 - Para além dos factos invocados naquela ação (para formulação do pedido principal), foram na presente ação alegados factos diversos: a vantagem patrimonial para os RR. da utilização do prédio dos AA., sem autorização destes.

12 – Se a intromissão em bens alheios não envolve responsabilidade civil ou falta algum dos seus elementos (como já decidido na ação nº 404/2001, em que o Tribunal considerou não estarem preenchidos os pressupostos da responsabilidade civil extracontratual por não emergir da discussão da causa a culpa dos aí AA./reconvindos aqui RR.), mas havendo enriquecimento sem causa, o carácter subsidiário da obrigação de restituir nele fundada não impede a sua aplicabilidade e, consequentemente não impede que os lesados intentem nova ação alegando, como no caso dos autos, factos integradores do instituto do enriquecimento sem causa, na vertente de enriquecimento por intervenção, até porque naquela primeira ação não foram invocados os factos integradores do enriquecimento dos RR., alegados agora.

13 – Enquanto na ação nº 404/2001 a causa de pedir foi integrada por factos relativos à atuação ilícita e culposa do aí AA./Reconvindos e os prejuízos causados aos aí RR./Reconvintes e aqui AA., ou seja, por factos relativos à perda verificada no seu património, na presente ação, no que respeita ao pedido subsidiário, a causa de pedir é integrada por factos relativos à obtenção pelos RR. de um enriquecimento (vantagem patrimonial/aumento do património) pela utilização do prédio da alegante, sem autorização desta (vantagem injustificada) e o montante desse enriquecimento correspondente ao valor obtido pela utilização do prédio, ou seja, aos proveitos da exploração da pedreira que ali instalaram (os lucros da venda e comercialização dos blocos de pedra mármore (moca-creme) que dele extraíram - artigo 12º da p.i..

14 – Pelo que, se conclui no sentido de que nas duas ações não verifica a identidade de causa de pedir a que se reporta o nº 4 do artigo 581º do Código de Processo Civil.

15 – Quanto aos pedidos formulados nas duas ações, também não se verifica a identidades de pedidos exigida para que se verifique a exceção de caso julgado.

16 – O conceito de pedido envolve a formulação pelo autor, ou pelo réu reconvinte, de determinada pretensão ou efeito jurídico.

17 – Ora, o efeito jurídico pretendido pela apelante na ação nº 404/2001 foi o da condenação dos aí AA./reconvindos e agora RR. no pagamento de uma indemnização pela exploração ilícita do prédio, por ofensa do direito de propriedade, enquanto que na presente ação o efeito pretendido, a titulo subsidiário, é a da restituição à apelante do montante do enriquecimento sem causa que os RR. obtiveram à sua custa e dos demais AA. pelo uso sem autorização do seu prédio.

18 – Com o pedido de condenação dos RR. por enriquecimento sem causa surge o dever de restituição do valor obtido com esse enriquecimento, ao passo que quando se invoca um dano em sede de responsabilidade civil (como na ação nº 404/2001) pede-se a reparação do mesmo.

19 – A restituição e reparação são efeitos jurídicos distintos: a reparação tende a colocar o lesado na situação em que estaria se o evento danoso não tivesse ocorrido, ao passo que a restituição opera apenas o regresso de um bem ao seu património de origem.

20 – Não havendo nem identidade de causa de pedir, nem de pedido não se verifica a exceção de caso julgado, devendo ser alterada a decisão recorrida negando-se a existência desta exceção invocada pelos RR. quanto ao pedido subsidiário.

21 – A decisão proferida objeto de recurso ao confirmar a decisão proferida pelo Julgador a quo de procedência da exceção dilatória de caso julgado quanto ao pedido subsidiário fundado no instituto do enriquecimento sem causa e, em consequência, absolver os RR. da instância, violou os artigos 576º, nºs 1 e 2, 577º, al. i), 580º e 581º, todos do C.P.C..”

7. Em contra-alegações os Réus defendem a inadmissibilidade da revista e a improcedência do recurso.

II – APRECIAÇÃO DO RECURSO

De acordo com o teor das conclusões das alegações (que delimitam o âmbito do conhecimento por parte do tribunal, na ausência de questões de conhecimento oficioso – artigos 608.º, n.º2, 635.º, n.4 e 639.º, todos do Código de Processo Civil – doravante CPC) mostram-se submetidas à apreciação deste tribunal as seguintes questões:
ü Da admissibilidade do recurso (questão prévia)
ü Da (in)existência de caso julgado

1. Os factos

O tribunal a quo fixou a seguinte factualidade:

1 - Em Junho de 2001 HH (entretanto falecido) e a ora 1.ª Ré DD instauraram no Tribunal Judicial da Comarca de ... ação de reivindicação contra os ora autores, à qual foi atribuído o n.º 404/2001 do 3.º Juízo Cível do Tribunal Judicial de ... e, posteriormente, o n.º 973/14.6T8STR do Juízo Local Cível de ... – Juiz 1.

2 - Nessa ação n.º 404/2001 os seus autores, ora réus na presente ação, peticionaram, além do mais, que os ali réus, ora autores, fossem “condenados a reconhecer que os AA são donos e legítimos possuidores, por compra verbal e também por o terem já adquirido por usucapião, o prédio identificado no artigo 1º (“Rústico composto de pastagem, sito em … ou ... – ..., com a área de 8.320 metros quadrados (…), inscrito na predial rústica sob o nº 173 da Secção B a B17, da freguesia de ..., e descrito na Conservatória do Registo Predial de ... sob o nº 5016 – ...” .

3 - Os ali Réus, ora autores apresentaram uma contestação, na qual defenderam a improcedência total da ação, com a sua inerente absolvição do pedido, e, em reconvenção, afirmaram-se proprietários do mesmo prédio rústico, peticionando nessa sede que:

            «(…) deve a presente Reconvenção ser julgada procedente e os Reconvindos condenados a reconhecer o direito de propriedade dos Reconvintes, e ao pagamento de uma indemnização pela exploração ilícita do seu prédio, em montante a liquidar em execução de sentença» .

4 - Na pendência do processo n.º 404/2001, na sequência do falecimento do Autor HH, a ação prosseguiu com os seus herdeiros DD (já Autora), EE, FF e GG e na sequência do falecimento da Ré JJ, a ação prosseguiu com os seus herdeiros, BB e II (já demandados).

5 - Em 25/02/2013 foi proferida sentença no processo n.º 404/2001 que julgou totalmente procedente, por provada, a presente ação e totalmente improcedente, por não provada, a reconvenção.

6 - Os ali réus, ora autores, interpuseram recurso da sentença tendo o TRE por acórdão de 27 de Fevereiro de 2014, julgado improcedente o pedido principal, e julgado procedente o pedido reconvencional “mas apenas na parte referente ao reconhecimento de propriedade do mesmo prédio, por parte dos referidos demandantes reconvindos, atenta a circunstância dos mencionados demandados/reconvintes beneficiarem de registo do dito prédio. Quanto ao pedido de indemnização, por responsabilidade civil extracontratual, não emergiu da discussão da causa um dos seus pressupostos – a culpa. A este respeito importa realçar que o Réu/Reconvinte, AA trabalhou, no prédio em causa durante vários anos, por conta do falecido Autor HH, sendo certo ainda que apenas em 2001, os demandados/ reconvintes chegaram à conclusão que o mesmo lhes pertencia, promovendo, em consequência o registo vigente. Além disso, os demandantes/reconvindos beneficiam do contrato promessa de compra e venda de 8 de maio de 1991, onde se alude a tradição do prédio inscrito na matriz predial sob o artigo 173, secção B a B17

7 - Neste acórdão do TRE consta o seguinte da parte decisória:

Pelo exposto, acordam os Juízes desta Relação, julgando a apelação parcialmente procedente, em revogar a sentença recorrida, condenando, em consequência, os

Autores/reconvindos DD, EE, FF e GG apenas em reconhecer a propriedade, por parte dos reconvintes/demandados AA, BB, CC, KK e LL da propriedade do prédio rústico descrito na Conservatória do Registo Predial de ..., sob o n.º 5016/170501, e inscrito na matriz predial sob o artigo 173, secção B a B17”.

8 - Deste acórdão do TRE, recorreram ambas as partes para o STJ, tendo o recurso de revista dos ali autores, ora réus, sido julgado improcedente por acórdão de 19/02/2015, que confirmou o acórdão do TRE, mantendo a condenação dos mesmos a reconhecerem a propriedade, por parte dos réus-reconvintes, do identificado prédio rústico inscrito na matriz predial sob o artigo 173, secção B a B17.

9 - Por seu turno, os então réus-reconvintes, ora autores, no recurso respetivo recurso insurgiram-se quanto à decisão de improcedência do seu pedido reconvencional de “pagamento pelos AA.- reconvindos de indemnização pela exploração ilícita do seu prédio” alegando, designadamente,  que “de acordo com o douto Acórdão ora em apreço, entenderam os Exmos. Desembargadores que não emergiu da discussão da causa um dos pressupostos da responsabilidade civil extracontratual – a culpa – e, por isso, segundo se deduz, improcede este pedido: o pagamento dos danos. Os recorrentes não se podem conformar com tal entendimento, porquanto, por um lado, se verifica a culpa e, mesmo que se não verificasse, o instituto da responsabilidade civil e o instituto do enriquecimento sem causa podem concorrer e concorrem na qualificação da mesma situação jurídica.”

10 - No STJ foi decidido por decisão singular confirmada por acórdão em conferência de 04/12/2014 que o recurso dos Réus para o STJ, na parte em que os mesmos decaíram, não é admissível, por falta de valor que o permita.

11 - No despacho Saneador proferido no âmbito da presente ação foi decidido no que respeita à exceção do caso julgado invocada, quer no âmbito do pedido principal, quer nodo pedido subsidiário, o seguinte:

(relativamente ao pedido principal)

-  “julgo procedente a exceção dilatória de caso julgado arguida pelos réus (…) e, em consequência, absolvo-os desde pedido, julgando parcialmente extinta a instância no que tange ao pedido principal formulado pelos autores (…) (pedido de condenação dos réus no pagamento de uma indemnização pelos prejuízos que alegadamente lhes terão sido causados pela exploração, pelos réus, do prédio rústico, inscrito na matriz sob o art.º 173 da Secção B a B17 e descrito na Conservatória do Registo Predial de ... sob o n.º 5016, com ofensa ao seu direito de propriedade)”;

(relativamente ao pedido subsidiário)

- “Sendo, como se considera ser, que o núcleo factual é o mesmo e que, na primeira ação, os réus/reconvintes consideraram que os factos (causa de pedir) integravam responsabilidade civil extracontratual do autores/reconvindos e, na presente ação, a título subsidiário (o pedido principal era, igualmente, fundado em responsabilidade civil extracontratual) consideraram o mesmo núcleo factual como substrato para formular pretensão ancorada no instituto do enriquecimento sem causa, concluímos  ser a mesma a causa de pedir, e como tal, verifica-se, igualmente, quanto a este pedido subsidiário a exceção de caso julgado.

Neste conspecto, julgo procedente a exceção dilatória de caso julgado arguida pelos réus (…) e, em consequência, absolvo-os da instância relativamente ao pedido subsidiário de condenação dos mesmos por enriquecimento sem causa.”

12 - A pretensão reconvencional na ação 404/2001 assentava essencialmente nos seguintes factos que o Julgador a quo descreveu na seguinte formulação:

- Os autores não têm, nem nunca tiveram, qualquer título que consubstancie o direito de propriedade (artigo 91.º da contestação/reconvenção);

- Os autores sabem e sempre souberam, e não podiam desconhecer a identidade dos legítimos proprietários do prédio (artigo 92.º da contestação/reconvenção);

- (…) mesmo que se admitisse a existência da posse, a mesma teria de ser considerada de má-fé porque os autores bem sabiam estar a lesar o direito de propriedade dos réus (artigo 95.º da contestação/reconvenção);

- Os autores vêm explorando o referido prédio, dele retirando blocos de pedra e procedendo à sua venda, desde 1991 (artigos 82.º e 96.º da contestação/reconvenção);

- Utilizando máquinas de grandes dimensões, cortando, deslocando e carregando grandes quantidades de pedra (artigo 97.º da contestação/reconvenção);

- Alteraram de forma irreversível a topografia do solo (artigo 98.º da contestação/reconvenção);

- Sem que os reconvintes tenham dado autorização para tal conduta (artigo 99.º da contestação/reconvenção), em manifesta violação do seu direito de propriedade (artigo 100.º da contestação/reconvenção);

- Provocando avultados prejuízos que os reconvintes querem ver reparados (artigo 101.º da contestação/reconvenção);

- Não estando, por isso, em condições, de quantificar os prejuízos daí resultantes (artigo 102.º da contestação/reconvenção);

- Pelo que relegam para a execução de sentença a liquidação do montante indemnizatório dos prejuízos decorrentes da exploração ilícita do seu prédio (artigo 103.º da contestação).

13 -Na presente ação os autores, reconvintes na ação 404/2001, como núcleo essencial de factos, quer ao pedido principal, quer ao pedido subsidiário alegam o seguinte:

- Na década de 1990 do século passado, HH e esposa DD, pais dos restantes réus, entraram abusivamente, sem autorização dos seus donos, dentro do prédio supra referido e começaram, sem autorização dos autores ou seus antecessores, a explorar a pedra (moca-creme) que nele existia, estabelecendo aí uma pedreira, pedra que foram vendendo, ao longo dos anos, a terceiros (artigo 2.º da petição inicial);

- HH e esposa DD, após invadirem o prédio dos autores iniciaram a exploração industrial de pedra (moca-creme), com recurso a máquinas, e, a partir do falecimento de HH, ocorrido em 22.02.2005, a ré EE e os restantes réus continuaram, ininterruptamente, a exploração da pedreira, extraindo milhares de m3 de pedra, exaurindo por completo a pedra existente no prédio, até à entrega ou restituição que dele fizeram aos autores, em Maio de 2015 ( artigo 11.º da petição inicial);

- Colhendo os proveitos de tal exploração, embolsando os lucros da venda e comercialização dos blocos de pedra mármore (moca-creme) que dele extraíram (artigo 12.º da petição inicial);

- Quando sabiam que tal prédio não lhes pertencia, por pertencer aos autores, como, aliás, foi reconhecido nos autos de ação com processo ordinário n.º 404/2001, já referida, julgando procedente a reconvenção (artigo 13.º da petição inicial);

- Violando, assim, o direito de propriedade dos AA. de forma reiterada e ininterrupta desde os primeiros anos da década de noventa do século passado até Maio de 2015.

2. O direito

2.1 Da admissibilidade da revista
Os Réus/Recorridos colocam em causa a admissibilidade da revista defendendo que a declaração de voto por parte de um dos Juízes do colectivo que proferiu o acórdão recorrido não consubstancia um efectivo voto de vencido válido e eficaz (por não conter o mínimo de fundamentação exigida para se concluir pela divergência do colectivo) por forma a ultrapassar a situação de dupla conformidade de julgados impeditiva da revista nos termos do artigo 671.º, n.º3, do CPC.
Ao invés do defendido pelos Recorridos, o voto de vencido em causa cumpre as exigências determinadas pelo n.º1 do artigo 663.º do CPC, pois que a Exma. Desembargadora ao declarar-se vencida quanto à decisão proferida consignado “porquanto considero não se verificar a excepção de caso julgado quanto ao pedido subsidiário. Com efeito, quer o pedido, quer a causa de pedir não foram objecto da acção anterior” indicou, sucintamente, mas plenamente perceptível (tendo presente o contexto da fundamentação do aresto e bem como as considerações que no caso se colocam tendo em atenção a questão a apreciar) as razões da discordância do sentido da decisão que fez vencimento quanto ao pedido subsidiário.

Assim, considerando o disposto no artigo 671.º, n.ºs 1 e 3, do CPC, mostrando-se a revista admissível cabe conhecer do objecto da mesma.

2.2 Da (in)existência de caso julgado

De acordo com o disposto no n.º1 do artigo 619.º do CPC, a decisão (transitada em julgado) sobre a relação material controvertida tem força obrigatória dentro e fora do processo, constituindo assim o caso julgado material.

A função do caso julgado é a de evitar que o tribunal seja colocado na alternativa de contradizer ou de reproduzir decisão anterior – artigo 580.º, n.º2, do CPC. Nesta medida e em princípio, só se forma caso julgado relativamente à decisão contida na decisão, e não quanto aos fundamentos da mesma[2], sendo certo que a relevância da motivação para efeitos de caso julgado ocorre sempre que se imponha a indispensabilidade de reconstruir e fixar o conteúdo da decisão.

É pois admissível a extensão dos efeitos do caso julgado relativamente aos fundamentos que lhe constituem pressuposto lógico necessário e indispensável à decisão.

Porém, a projecção extraprocessual (e processual) da eficácia da decisão apenas ocorre no âmbito da decisão de mérito e o seu duplo efeito processual é consequência do efeito substantivo do caso julgado

No acórdão recorrido considerou-se que a presente acção (quer no que toca ao pedido principal, quer quanto ao pedido subsidiário, que é o que se encontra em causa neste âmbito) constituía uma repetição do pedido reconvencioanl deduzido pelos aqui Autores (Réus no Processo n.º 404/2001) quanto à pretensão de ver reconhecido o direito de indemnização pela violação do direito de propriedade que na referida acção lhes foi reconhecido por ocorrer identidade do efeito jurídico pretendido (reconhecimento de um direito de indemnização pela actuação dos Réus na exploração da pedreira no prédio que ocupavam), alicerçado numa identidade da causa de pedir.

Refere o acórdão a tal respeito:

- “Com a decisão transitada em julgado que não reconheceu aos autores, aí réus reconvintes, o direito de indemnização, fica afastada a possibilidade de virem exigir (nova) indemnização com invocação de outro fundamento jurídico, assente essencialmente nos mesmos factos, até porque tal como emerge da posição dos autores afirmada no âmbito do recurso que, enquanto réus reconvintes interpuseram para o STJ, no âmbito da 1ª ação, impunha-se-lhes que nessa ação em que foram demandados, via reconvenção, com vista a fazerem valer o seu direito indemnizatório, perante os factos que articularam tivessem invocado para além, da responsabilidade civil extracontratual, também, a título subsidiário, o enriquecimento sem causa, como o fazem na presente, atendendo a que o núcleo essencial dos factos que subjaz, às pretensões formuladas em qualquer das ações é o mesmo, o que como é evidente proporciona agora invocação de caso julgado.

Se é verdade que a improcedência de uma ação de responsabilidade civil, em princípio, não obsta a que se possa pedir, noutra ação, a condenação do mesmo réu na restituição do que for devido a título de enriquecimento sem causa, tal só é possível se os factos essenciais integradores da pretensão forem diversos dos anteriormente invocados, atendendo a que “a qualificação jurídica dada aos factos na primeira ação nunca é elemento identificador do caso julgado, estando vedada nova ação em que aos mesmos factos se atribua uma nova qualificação.

(…) Não basta apresentar um «novo» fundamento jurídico ou, como no caso, uma «diferente» ou «nova» forma de alicerçar o direito indemnizatório, para transformar num sentido positivo uma decisão judicial que denegou o reconhecimento de determinada situação jurídica e consequente direito indemnizatório.

Na realidade, haveremos de concluir que ofenderia o princípio do caso julgado admitir uma «reconfiguração» ou uma «reponderação» de uma sentença judicial já transitada em julgado, com a mera invocação de um novo argumento jurídico, mantendo-se a essencialidade do mesmo quadro factual que esteve na base da decisão proferida e que conformou definitivamente aquela relação material controvertida.

Efetivamente, embora os recorrentes o não queiram admitir os factos essenciais concretos, temporal e espacialmente localizados, que servem de fundamento, quer à pretensão principal, quer à pretensão subsidiária já tinham sido alvo de abordagem em consonância com a pretensão indemnizatória que havia sido feita pelos ora autores no âmbito da ação 404/2001”.

Transcrevendo um excerto da sentença concluiu o acórdão recorrido que “(…) o núcleo factual é o mesmo e que, na primeira ação, os réus/reconvintes consideraram que os factos (causa de pedir) integravam responsabilidade civil extracontratual dos autores/reconvindos e, na presente ação, a título subsidiário (o pedido principal era, igualmente, fundado em responsabilidade civil extracontratual) consideraram o mesmo núcleo factual como substrato para formular pretensão ancorada no instituto do enriquecimento sem causa, concluímos ser a mesma a causa de pedir, e como tal, verifica-se, igualmente, quanto a este pedido subsidiário a exceção de caso julgado”.

Insurgem-se os Recorrentes sustentando não ocorrer identidade de causa de pedir e de pedido. Defendem nesse sentido que no processo n.º 404/2001, a causa de pedir foi integrada pela actuação ilícita e culposa dos ali Autores (aqui Réus) e o efeito pretendido o pagamento de uma indemnização pelos danos decorrentes da exploração ilícita do prédio por ofensa do direito de propriedade, na presente acção, o facto jurídico de que emerge a pretensão deduzida (causa de pedir) é a vantagem patrimonial (acréscimo patrimonial) dos Réus à custa dos Autores usando e fruindo um prédio sem o consentimento dos seus proprietários, constituindo o pedido a restituição do montante do enriquecimento que os Réus obtiveram.

Consideram, por isso, que reparação de dano (visando colocar o lesado na situação em que estaria se o evento danoso não tivesse ocorrido) e restituição (regresso de um bem ao seu património de origem) constituem efeitos jurídicos distintos.

Invocam ainda que enquanto Reconvintes (Autores) na acção n.º 404/2001 não se encontravam sujeitos a qualquer ónus de concentração de todas as causas de pedir.

Vejamos.

2.2.1 Atento ao disposto no artigo 581.º, do CPC, a lei prevê como requisitos do caso julgado, a identidade de sujeitos, de causa de pedir e de pedido.

No caso em apreciação a determinação da existência de caso julgado coloca-se relativamente ao processo n.º 404/2001, acção proposta pelos aqui Réus em que os Autores deduziram pedido reconvencional.

Não ocorrendo dúvidas quanto à existência de identidade de sujeitos em ambas as acções, a questão que se coloca reporta-se à (in)verificação de identidade de causa de pedir e de pedidos conforme pugnam os Recorrentes.

Conforme vimos, o tribunal a quo fez assentar a sua decisão no facto de os Autores aspirarem, na presente acção e perante a mesma factualidade essencial, a mesma pretensão indemnizatória que no âmbito da acção n.º 404/2001 formularam no pedido reconvencional deduzido contra os aqui Réus e que o tribunal julgou improcedente por decisão transitada em julgado.

Sabendo-se que o objecto da acção reside na pretensão que o autor pretende ver tutelada e identificando-se esta através do direito a ser protegido por esse meio, a individualização do mesmo consubstancia-se não só através do seu próprio conteúdo e objecto (o pedido) como por meio do acto ou facto jurídico que se considere que lhe deu origem (causa de pedir)[3]. Consequentemente, a sentença a proferir nesses termos declarando determinado direito apenas tomará em conta o acto ou facto jurídico donde provenha.

Está em causa a denominada teoria da substanciação que assume assento no nosso ordenamento jurídico e que, ao invés da teoria da individualização, exige sempre a indicação do título em que se fundamenta o direito afirmado pelo autor.

Uma vez que a identificação do direito que se pretende fazer valer em juízo passa necessariamente pela sua causa ou a fonte (acto ou facto constitutivo), esta (causa de pedir) tem de ser especificada, concretizada ou determinada e consiste em factos ou circunstâncias concretas e individualizadas, representando na acção o substrato material a que o juiz reconhecerá ou não força jurídica bastante para desencadear as consequências jurídicas adequadas.

Nessa medida, a eficácia de caso julgado encontra-se em estreita conexão com a natureza e definição do direito, sendo essa definição que torna irrefragável, no futuro, a solução concreta dada ao litígio.

Na avaliação da identidade de causa de pedir para efeitos de caso julgado e para o que aqui poderá assumir relevância, importa ter presente as situações em que os mesmos factos podem integrar a previsão de normas constitutivas diversas sempre que o concurso seja aparente, isto é, quando as normas aplicáveis se excluem podendo dar lugar à dedução de pedidos em relação de subsidiariedade[4]. Em tais casos, mostra-se à partida excluída a admissibilidade de acção posterior sempre que a primeira acção tenha sido julgada procedente[5]. Sendo aquela improcedente só haverá identidade de causa de pedir se o núcleo essencial dos factos integradores da previsão das várias normas concorrentes tiver sido alegado no primeiro processo, permitindo nele identificar as normas aplicáveis; não sendo assim, só terá constituído causa de pedir a respeitante à norma ou normas identificadas, sendo admissível nova acção em que se aleguem os factos identificadores em falta[6]. Entendemos que é neste âmbito que se pode enquadrar a situação configurada nos autos.

No processo n.º 404/2001 os Réus/Reconvintes fundamentaram o pedido de indemnização pela exploração ilícita do prédio em montante a liquidar em execução de sentença na responsabilidade civil dos Autores por violação do direito de propriedade (artigo 483.º, do Código Civil), pedido que foi julgado improcedente por inverificação de um dos pressupostos da responsabilidade civil (culpa dos Autores) – cfr. pontos 3, 4, 5, 6 e 7 dos factos provados.

Alegaram para o efeito a factualidade indicada no ponto 12 da matéria de facto provada.[7]

Na presente acção, agora Autores, em pedido subsidiário e fundados no enriquecimento sem causa por parte dos Réus, pediram que lhes fosse restituída quantia (que indicaram de 909 661,00€) correspondente aos proventos que estes retiraram da exploração da pedreira existente no prédio (lucros da venda e comercialização dos blocos de pedra mármore – moca creme) sem a autorização e/ou consentimento dos respectivos proprietários, bem sabendo que o prédio não lhes pertencia (cfr. artigos 11.º, 12.º e 13.º da petição).

Evidencia-se pois que embora a presente acção parta de uma realidade fáctica comum (ocupação ilegítima de imóvel alheio) encontram-se invocados no pedido subsidiário factos constitutivos de um título jurídico diverso.

Com efeito, a ocupação ilegítima do imóvel pelos Réus mostra-se na presente acção configurada com uma utilização não autorizada e gratuita que os mesmos fizeram do prédio consubstanciando uma vantagem patrimonial (enriquecimento decorrente dos lucros da comercialização da pedra que extraiam do imóvel) à custa dos Autores proprietários traduzida na privação de aumento do respectivo património através da rentabilização do imóvel em causa através da exploração da pedreira.

Desta forma, não obstante a via legal utilizada pelos Autores no pedido subsidiário redundar num idêntico resultado prático (pagamento pelos Réus de determinada quantia), assume relevância para efeitos de admissibilidade de nova acção a circunstância de se encontrarem invocados outros factos identificadores das normas aplicáveis que não foram alegados na primeira acção (que como vimos se cifrava na exploração ilícita de prédio alheio e nos prejuízos decorrentes para os respectivos proprietários[8]) nem objecto de conhecimento por parte do tribunal.[9]

Cabe, por isso, excluir a existência de identidade das causas de pedir.

2.2.2 No que se reporta à questão da identidade do pedido, importará atender, como é salientado por Lebre Freitas[10], não só ao objecto da sentença, mas também às relações de implicação que a partir dele se estabelecem.

Deste modo, há que ter em conta nessa apreciação que a decisão exclui as situações contraditórias com a que por ela é definida, desde logo as que se consubstanciam em possibilidades de solução do litígio que com a decisão proferida possam constituir alternativa.

Acresce ainda que, embora e à partida, conforme já referido, o caso julgado não seja extensivo aos fundamentos da decisão, para a identidade de efeito jurídico prevista no n.º3 do artigo 581.º do CPC, basta uma identidade relativa abrangendo “o efeito preciso obtido no primeiro processo como qualquer outro que nesse processo houvesse estado implicitamente, mas necessariamente em causa[11]

Desta forma, considerando que a identidade de efeito jurídico para efeitos de caso julgado não se esgota na identidade formal, mas circunscreve-se à coincidência entre o objectivo fundamental em que se apoia o êxito de cada uma das acções em causa, somos de entender que na situação sub judice, não ocorre uma efectiva identidade (ainda que relativa) do efeito jurídico pretendido pois que na presente acção o que se encontra fundamentalmente submetido à apreciação do tribunal é a restituição das vantagens obtidas com a utilização da exploração da pedreira e não o ressarcimento de qualquer indemnização.

Assim sendo e ainda que se tenha presente que a identidade do efeito jurídico prescrito no n.º 3 do art.º 581.º do CPC, se basta numa identidade relativa, não podemos deixar de concluir que o núcleo essencial de que emerge a pretensão dos Recorrentes nesta e na outra acção não é o mesmo, pelo que não se poderá falar da existência da mesma tutela jurisdicional

Procedem, assim, as conclusões das alegações.

IV – Decisão

Nestes termos, acordam os juízes neste Supremo Tribunal de Justiça em julgar procedente a revista e, em consequência, revogam o acórdão recorrido, determinando o prosseguimento dos autos para apreciação do pedido subsidiário.

Custas pelos Recorridos.

Lisboa, 2 de Junho de 2020

Graça Amaral (Relatora)

Henrique Araújo

Maria Olinda Garcia

Tem voto de conformidade dos Senhores Conselheiros Adjuntos (artigo 15ºA, aditado ao DL 10-A/2020, de 13/3, pelo DL 20/2020, de 1/5).

Sumário (art. 663º, nº 7, do CPC).

_______________________________________________________


[1] Foi chamada a intervir nos autos na posição de Autora II que aderiu à acção solicitando que também fosse beneficiária da indemnização decorrente da condenação a impor aos réus
[2] O que adquire a força e autoridade de caso julgado é a posição tomada pelo juiz quanto aos bens ou direitos (materiais) litigados pelas partes e à concessão ou denegação da tutela jurisdicional para esses bens ou direitos – Manuel de Andrade, Noções Elementares de Processo Civil, Coimbra Editora, 1979, pág. 318.
[3] Atento ao preceituado no artigo 581.º, nº. 4, do CPC, é lícito definir causa de pedir como sendo o acto ou facto jurídico de que deriva o direito que se invoca ou no qual assenta o direito invocado pelo autor.

[4] Conforme sublinhado no sumário do acórdão deste tribunal de 14-09-2014 (Processo n.º 1106/08.3TJVNF.P1.S1) Não evita a verificação da excepção, do caso julgado, uma inovação que apenas se circunscreva ao plano da qualificação jurídico-normativa do elenco dos factos concretos. No mesmo sentido refere o acórdão deste tribunal de 14-05-2019 (Processo n.º 32106/15.8T8LSB.L1.S2, acessível através das Bases Documentais do ITIJ) que apresentação de uma nova qualificação jurídica dos mesmos factos não pode ser considerada como uma nova causa de pedir, para efeitos de afastamento da exceção dilatória do caso julgado.
[5] Refere, porém, Rui Pinto que ocorre “identidade de causas de pedir mesmo que a qualificação jurídica seja diversa, tanto se a primeira decisão foi de procedência, como se foi de improcedência” - Exceção e autoridade do caso julgado – Algumas notas provisórias, Revista Julgar online, Novembro 2018, p.9, citado no acórdão de 14-05-2019 acima referenciado.
[6]José Lebre de Freitas, Código de Processo Civil Anotado, Volume 2º, Coimbra Editora, p. 324.

[7] - Os autores não têm, nem nunca tiveram, qualquer título que consubstancie o direito de propriedade (artigo 91.º da contestação/reconvenção);

- Os autores sabem e sempre souberam, e não podiam desconhecer a identidade dos legítimos proprietários do prédio (artigo 92.º da contestação/reconvenção);

- (…) mesmo que se admitisse a existência da posse, a mesma teria de ser considerada de má-fé porque os autores bem sabiam estar a lesar o direito de propriedade dos réus (artigo 95.º da contestação/reconvenção);

- Os autores vêm explorando o referido prédio, dele retirando blocos de pedra e procedendo à sua venda, desde 1991 (artigos 82.º e 96.º da contestação/reconvenção);

- Utilizando máquinas de grandes dimensões, cortando, deslocando e carregando grandes quantidades de pedra (artigo 97.º da contestação/reconvenção);

- Alteraram de forma irreversível a topografia do solo (artigo 98.º da contestação/reconvenção);

- Sem que os reconvintes tenham dado autorização para tal conduta (artigo 99.º da contestação/reconvenção), em manifesta violação do seu direito de propriedade (artigo 100.º da contestação/reconvenção);

- Provocando avultados prejuízos que os reconvintes querem ver reparados (artigo 101.º da contestação/reconvenção);

- Não estando, por isso, em condições, de quantificar os prejuízos daí resultantes (artigo 102.º da contestação/reconvenção);

- Pelo que relegam para a execução de sentença a liquidação do montante indemnizatório dos prejuízos decorrentes da exploração ilícita do seu prédio (artigo 103.º da contestação).
[8] Designadamente decorrentes da alteração irreversível da topografia do solo.
[9] Cumpre realçar que uma vez que sobre os Réus/Reconvintes na acção n.º 404/2001 (aqui Autores) não impendia qualquer ónus de concentração relativamente à alegação de factos integradores de enriquecimento sem causa, não se verifica a preclusão dessa factualidade não alegada.
O princípio da preclusão é um dos princípios enformadores do processo civil que assume acolhimento nos institutos da litispendência e do caso julgado (artigo 580.º, n.º2, do CPC) e nas normas que impõem a concentração de alegação dos factos essenciais da causa de pedir e as razões de direito (artigo 552.º, n.º1, d), do CPC) e, quanto à defesa, das excepções (artigo 573.º, n.º1, do CPC). Conforme salienta Teixeira de Sousa, o âmbito da preclusão é substancialmente distinto para o autor e para o réu uma vez que para o autor “a preclusão é definida exclusivamente pelo caso julgado. Só ficam precludidos os factos que se referem ao objecto apreciado e decidido na sentença transitada. Assim, não está abrangida por essa preclusão a invocação de uma outra causa de pedir para o mesmo pedido, pelo que o autor não está impedido de obter a procedência da acção com base numa distinta causa de pedir” – Estudos Sobre o Novo Processo Civil, 2ª edição, 1997, p. 585.
[10] Obra citada, p. 320.
[11] Castro Mendes, Limites Objectivos do Caso Julgado Em Processo Civil, Edições Ática, p. 350.