Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
518/07.4YYPRT-C.P1.S1
Nº Convencional: 2.ª SECÇÃO
Relator: RIJO FERREIRA
Descritores: PARTILHA DA HERANÇA
OPONIBILIDADE
EXECUÇÃO
PENHORA
CITAÇÃO
CÔNJUGE
NULIDADE
EXCESSO DE PRONÚNCIA
ADMISSIBILIDADE DE RECURSO
OPOSIÇÃO DE JULGADOS
OPOSIÇÃO DE ACÓRDÃOS
QUESTÃO FUNDAMENTAL DE DIREITO
Data do Acordão: 09/23/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: CONCEDIDA
Indicações Eventuais: TRANSITADO EM JULGADO
Sumário :
I. A partilha constitui um acto de disposição.

II. A partilha de bens penhorados realizada depois da penhora, não havendo lugar à suspensão decorrente da citação nos termos do art.º 740º do CPC, sem intervenção do exequente, não é oponível à execução, nos termos do art.º 819º do CPC.

Decisão Texto Integral:

ACORDAM NO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA





NO RECURSO DE REVISTA INTERPOSTO NOS AUTOS DE ACÇÃO EXECUTIVA

ENTRE

AA


[de quem foram habilitados como cessionários, BB e CC]

(aqui patrocinados por LL, adv.)

Exequente / Apelado / Recorrente





CONTRA

DD


[de quem foram habilitados como sucessores EE (Cônjuge do Executado / Apelante / Recorrida), FF, GG, HH e II (Filhos do Executado)

(a primeira aqui patrocinada por JJ, adv.)

Executado




I – Relatório


 Não obstante ser patente não conterem quer o expediente em suporte físico posto à nossa disposição quer a versão electrónica do processo (nas diversas partes em que está dividido e a que logramos acesso) a integralidade do processado e a dificuldade da compreensão lógica do seu desgarrado conteúdo, deles se extrai:


 O Exequente intentou, em 05JAN2007, contra o (primitivo) Executado, execução para pagamento da quantia de 75.000,00 € referente a letra do seu aceite.

 Pela Ap. 37/…… foi inscrita a aquisição, por meação e sucessão, de 1/3 do U-1309/…, ... a favor do Executado, no estado de viúvo, e de FF, no estado de casada em comunhão de adquiridos.

 Pela Ap. 1/……. foi inscrita a penhora, para garantia da quantia exequenda, do direito do Executado sobre o referido imóvel (1/6).

 Pela Ap. 2502/……. foi averbada a actualização da Ap.37/…… no sentido de que o Executado era casado, no regime da comunhão geral.

 Por notificação de 07NOV2013 foi penhorada a parte do crédito do Executado (renda) sobre o arrendatário do imóvel penhorado.

  Em 20MAR2014 foi o cônjuge do Executado citado nos termos do artº 740º do CPC.

 Em 09ABR2014 veio o cônjuge citado informar encontrar-se pendente inventário por óbito do primitivo executado, solicitando prorrogação de prazo para apresentação da correspondente certidão, a qual veio a juntar em 23OUT2014, requerendo a suspensão da execução.

 Por despacho judicial de 08JUN2015 foi aquela junção de certidão considerada extemporânea, indeferindo-se a reclamação do despacho do AE que não suspendeu a execução.

 Veio, entretanto (requerimentos de 14DEZ2017 e 18JAN2017), o Cônjuge do Executado informar que no processo de inventário por óbito daquele (165/…) lhe foi adjudicado o prédio penhorado (conforme cópia da acta da conferência de interessados que junta), requerendo a cessação da penhora do prédio e das respectivas rendas, bem como a devolução das já penhoradas.

  Por despacho de 05NOV2019, considerando que o cônjuge do Executado recebeu de herança um bem onerado e o disposto no art.º 819º do CCiv, foi indeferido o requerido levantamento da penhora.

   Inconformado, apelou o Cônjuge do Executado.

A Relação, considerando que tratando-se de dívida da responsabilidade exclusiva do Executado a execução só poderia prosseguir sobre bens que não extravasassem a meação do Executado, independentemente de ter ocorrido ou não a citação do cônjuge do executado nos termos do art.º 740º do CPC, e mostrando-se o imóvel penhorado adjudicado ao Cônjuge do Executado por conta da sua meação (sendo que a partilha não se considera acto de oneração ou disposição), julgou a apelação procedente, determinando «o levantamento imediato da penhora incidente sobre o prédio adjudicado à Recorrente e bem assim a restituição das rendas (indevidamente) penhoradas desde a comunicação da adjudicação».

  Agora irresignado, veio o Exequente interpor recurso de revista concluindo, em síntese, por nulidade do acórdão por excesso de pronúncia, nulidade da adjudicação do imóvel ao Cônjuge do Executado, e erro de direito por precludida a possibilidade de obter a separação de bens sendo a partilha inoponível ao exequente nos termos do art.º 819º CCiv, subsidiariamente, constituir a pretensão do Recorrido abuso de direito.

  Notificado para se pronunciar sobre a eventualidade de não admissão da revista veio o Exequente invocar que interpunha o recurso ao abrigo do disposto nos artigos 629º, nº 2, al. d) – por contradição com o acórdão da Relação do Porto de 29JAN2015, proc. 164/03.1TABGC-C.G1.P1 – e 671º, nº 2, al. a), todos do CPC.

II – Da admissibilidade e objecto do recurso


A situação tributária mostra-se regularizada.

 O requerimento de interposição do recurso mostra-se tempestivo (artigos 638º e 139º do CPC) e foi apresentado por quem tem legitimidade para o efeito (art.º 631º do CPC) e se encontra devidamente patrocinado (art.º 40º do CPC).

Tal requerimento, tendo em conta os esclarecimentos introduzidos na sequência ao convite pra se pronunciar sobre a admissibilidade do recurso, está devidamente instruído com alegação e conclusões (art.º 639º do CPC).

  O acórdão impugnado não é susceptível de revista ao abrigo do art.º 671º, nº 2, al. a), do CPC porquanto a sua aplicação aos autos está excluída pela norma especial do art.º 854º do CPC.

 Vejamos se, porém, se verifica a condição específica de admissibilidade prevista no art.º 629º, nº 2, al. d), do CPC.

O conceito de ‘contradição de acórdãos’ a que se reporta tal normativo é, segundo entendimento estabilizado, o mesmo utilizado no recurso para uniformização de jurisprudência, cujos requisitos são:

a) Que entre o acórdão recorrido e o acórdão fundamento ocorra:

i. Relativamente à mesma questão fundamental, por essencial à resolução do caso, de direito;

ii. Oposição directa (não implícita ou pressuposta);

iii. Tendo por base uma similitude de situações factuais;

iv. No domínio da mesma base normativa;

b) Que a orientação perfilhada no acórdão recorrido não esteja coberta por jurisprudência uniformizada do STJ.

No acórdão recorrido estava em causa a oponibilidade à penhora de bem comum do casal, em face do art.º 819º do CCiv, da adjudicação dos bens penhorados ao cônjuge não executado em inventário ocorrido depois deste ter sido citado para a execução e de ter sido judicialmente declarado o efeito não suspensivo dessa mesma citação.

No acórdão fundamento estava em causa a oponibilidade à penhora de quinhão hereditário, em face do art.º 819º do CCiv, do preenchimento desse quinhão hereditário em inventário posterior àquela penhora sem intervenção do exequente.

Embora não idênticas as situações factuais são similares (adjudicação através de inventário posterior à penhora, sem intervenção do exequente) e está em causa a mesma questão fundamental (oponibilidade dessa adjudicação à execução), dentro do mesmo quadro normativo (o art.º 819º do CCiv).

Tendo merecido soluções opostas: enquanto no acórdão recorrido se considerou não ser aplicável o art.º 819º do CPC por o mesmo ter em vista actos de disposição ou oneração a favor de terceiro e a partilha não ser um actos de disposição ou oneração, e que a execução só podia prosseguir sobre bens que não extravasem a meação do executado, ordenando o levantamento da penhora; no acórdão fundamento considerou-se dever ser a partilha um acto de disposição ou oneração e, consequentemente, inoponível à execução, determinando-se o prosseguimento da mesma relativamente ao penhorado.

Não se conhece jurisprudência uniformizada sobre a matéria.

Tem-se assim por verificada a invocada oposição de acórdãos e, por conseguinte, admissível a revista, mas restrita, conforme entendimento estabilizado, ao fundamento da admissibilidade da revista.

Em função do disposto nos artigos 675º e 676º do CPC o recurso sob nos próprios autos com efeito meramente devolutivo.

   Destarte, o recurso merece conhecimento.

   Vejamos se merece provimento.           


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Consabidamente, a delimitação objectiva do recurso emerge do teor das conclusões do recorrente, enquanto constituam corolário lógico-jurídico correspectivo da fundamentação expressa na alegação, sem embargo das questões de que o tribunal ad quem possa ou deva conhecer ex officio.

 De outra via, como meio impugnatório de decisões judiciais, o recurso visa tão só suscitar a reapreciação do decidido, não comportando, assim, ius novarum, i.e., a criação de decisão sobre matéria nova não submetida à apreciação do tribunal a quo.

Por outro lado, ainda, o recurso não é uma reapreciação ‘ex novo’ do litígio (uma “segunda opinião” sobre o litígio), mas uma ponderação sobre a correcção da decisão que dirimiu esse litígio (se padece de vícios procedimentais, se procedeu a ilegal fixação dos factos, se fez incorrecta determinação ou aplicação do direito). Daí que não baste ao recorrente afirmar o seu descontentamento com a decisão recorrida e pedir a reapreciação do litígio (limitando-se a repetir o que já alegara nas instâncias), mas se lhe imponha o ónus de alegar, de indicar as razões por que entende que a decisão recorrida deve ser revertida ou modificada, de especificar as falhas ou incorrecções de que em seu entender ela padece.

 Ademais, também o tribunal de recurso não está adstrito à apreciação de todos os argumentos produzidos em alegação, mas apenas – e com liberdade no respeitante à indagação, interpretação e aplicação das regras de direito – de todas as “questões” suscitadas, e que, por respeitarem aos elementos da causa, definidos em função das pretensões e causa de pedir aduzidas, se configurem como relevantes para conhecimento do respectivo objecto, exceptuadas as que resultem prejudicadas pela solução dada a outras.

 Assim, em face do que se acaba de expor e das conclusões apresentadas, são as seguintes as questões a resolver:

 - da nulidade por excesso de pronúncia;

- se a adjudicação decorrente da partilha realizada posteriormente à penhora é ou não oponível à execução.

III – Os factos

A factualidade relevante é a constante do relatório deste acórdão, para o qual se remete.          

IV – O direito

O Recorrente imputa ao acórdão recorrido o vício de nulidade por excesso de pronúncia (art.º 615º, nº 1, al. d), do CPC) porquanto ordenou o levantamento da penhora sobre o imóvel e sobre o crédito de rendas quando apenas este último integrava o objecto do recurso.

 Tal alegação só é possível em função da ambiguidade e imprecisão que os intervenientes processuais têm utilizado nas respectivas peças processuais.

  Apreciando o pedido formulado pelo cônjuge do executado para que fosse dada sem efeito a penhora de rendas e se cancelasse a penhora sobre o imóvel a 1ª instância considerou não estar demonstrada a adjudicação do imóvel, mas que, para além disso, toda a aquisição em função do inventário seria sempre inoponível à execução; termina indeferindo a pretensão de cancelamento da penhora de rendas.

 Não obstante os termos literais da decisão resulta do pedido formulado e da fundamentação de tal apreciação que a decisão se referia a ambas as penhoras.

 E assim foi entendido pela requerente que no seu recurso de apelação veio concluir pela cessação da penhora do prédio e a restituição das rendas indevidamente penhoradas (conclusão P); não obstante terminar pedindo acórdão que ordene o cancelamento da penhora do imóvel.

 A Relação, por seu turno, identificando a questão a resolver como limitada à subsistência da penhora do crédito de rendas, analisa na sua fundamentação a subsistência quer da penhora do imóvel quer do crédito de rendas e termina determinando o levantamento da penhora sobre o imóvel e a restituição das rendas indevidamente penhoradas.

  Do exposto resulta que o que foi conhecido e decidido está dentro dos limites daquilo que foi a pretensão formulada, não ocorrendo a invocada nulidade de excesso de pronúncia.


Como se refere no acórdão fundamento, «a partilha põe termo a uma certa posição jurídica de que o herdeiro [leia-se, igualmente, cônjuge meeiro] é titular na comunhão hereditária [leia-se, igualmente, comunhão conjugal] e faculta-lhe o ingresso noutra diversa – a de sucessor e titular dos direitos ou bens concretos da herança por ela repartidos e atribuídos.

Por isso, nessa operação jurídica o herdeiro, estando penhorado o seu direito, não pode livremente decidir, actuar e acordar sobre os respectivos termos e formar o seu quinhão, à revelia do processo executivo, tanto mais que tal direito e correspondente acção dependem do destino que, naquele, designadamente por impulso do exequente, lhe venha a ser dado.

Seria, aliás, paradoxal ou sistematicamente incoerente que o legislador permitisse a penhora da quota hereditária na execução (enquanto direito integrante do património do executado apto a responder pela satisfação das suas dívidas), sujeitando-a, como qualquer bem, ao regime e fins do processo executivo, inclusive o da sua colocação à ordem do Agente respectivo, e não quisesse também considerar o acto de partilha da herança – apesar das peculiaridades, quiçá de natureza teórica ou doutrinária, que o exercício, aí, do direito sucessório, pelo herdeiro executado, desencadeia – também como acto de disposição susceptível de dificultar ou até frustrar aquele interesse e desígnio e, assim, o excluísse do alcance do art.º 819º, sabido como é que, independentemente da qualificação dogmática que a tal acto se dê, o seu resultado concreto pode em muito afastar-se das normais e esperadas garantias com que, ao penhorar tal direito, o credor contou.

Ainda que de uma verdadeira e própria alienação ou oneração se não trate e, para certos efeitos, se possa até dizer – e há quem diga – que o direito do herdeiro e executado, após partilha, é o mesmo, a verdade é que a sua substância se modificou e transformou, pela acordada divisão, adjudicação e preenchimento da respectiva quota, em termos que, por alheios ao exequente, têm de se considerar como prejudiciais ou contrários aos seus interesses, mesmo que o resultado aparente ser benéfico».

Nesse contexto a partilha haverá de ter-se como um acto de disposição, conforme reconhecido nos acórdãos do STJ de 29MAI2012 (Proc. 1718/03.1TBILH.C1.S1) e, mais recentemente, 20NOV2019 (Proc. 171/17.7T8MFR.L1.S1).

O acto de disposição, como incisivamente se explica no acórdão do STJ de 28ABR1975 (Proc. 065648; BMJ, 246, pg. 114; RLJ, ano 109, pg.171, com anotação concordante de Vaz Serra) diferencia-se do de administração na medida em que aquele “implica ou a diminuição voluntária do património pela entrega duma coisa, ou, sem implicar diminuição, substitui essa coisa por outra”, enquanto que este “é apenas destinado a conservá-la ou fazê-la frutificar, não a destruindo ou alterando a sua substância”; uma vez que “Na partilha da herança cada partilhante dispõe a favor dos outros, de certas partes componentes da mesma, recebendo em troca outras que o compensam do valor que alienou”, ela “É, portanto, uma acto de disposição”.

Nessa conformidade vale quanto à partilha, quando realizada depois da penhora e sem intervenção do exequente, a inoponibilidade, relativamente a este último, estabelecida no art.º 819º do CCiv.


A única particularidade que se verifica relativamente ao cônjuge meeiro quando haja penhora de bens comuns do casal é a possibilidade de sustação da execução para permitir ao cônjuge não executado obter a separação de meações. Situação a que não haverá de atender nos autos uma vez que se encontra já definitivamente decidido (pelo despacho de 08JUN2015, que considerou extemporânea a junção da certidão do inventário confirmando a decisão do AE de não suspender a execução) que a Recorrida não fez oportuno uso de tal faculdade. Ou seja, foi a Recorrida que, ao não cumprir com os ónus estabelecidos no art.º 740º do CPC, inviabilizou a oponibilidade da partilha à penhora.

E assim sendo temos que a partilha efectuada após as penhoras, não havendo lugar à suspensão decorrente da citação nos termos do art.º 740º do CPC, e porque ela consubstancia um acto de disposição, é ‘res inter alius’ relativamente ao exequente, nos termos do disposto no art.º 819º do CCiv, devendo a execução prosseguir relativamente aos bens penhorados.

V – Decisão

Termos em que, concedendo a revista, se revoga o acórdão recorrido, indeferindo o pedido de levantamento da penhora do imóvel (rectius, do quinhão de comproprietário do primitivo executado no imóvel) e da penhora das rendas (rectius, do crédito do primitivo executado relativamente às rendas do imóvel).

  Custas, aqui e nas instâncias, pela Recorrida.

           

Lisboa, 23SET2021


Rijo Ferreira (relator)

[Com voto de conformidade do Exmo. Juiz Conselheiro Cura Mariano,

conforme o disposto no art.º 15º-A do DL 10-A/2020, 13MAR, com

a redacção introduzida pelo DL 20/2020, 01MAI]

Cura Mariano

Vieira e Cunha