Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
86/22.7T8PTL.G1.S1
Nº Convencional: 6.ª SECÇÃO
Relator: LUIS CORREIA DE MENDONÇA
Descritores: DESERÇÃO DA INSTÂNCIA
PRINCÍPIO DO CONTRADITÓRIO
DECISÃO SURPRESA
NULIDADE DA DECISÃO
ARGUIÇÃO DE NULIDADES
SUSPENSÃO DA INSTÂNCIA
FALECIMENTO DE PARTE
EXTINÇÃO DA INSTÂNCIA
DESERÇÃO
IRREGULARIDADE
ANULAÇÃO DA DECISÃO
Data do Acordão: 03/19/2024
Votação: UNANIMIDADE COM * DEC VOT
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: REVISTA PROCEDENTE.
Sumário :
I- Suspensa a instância por falecimento de uma parte, o tribunal não tem de alertar as partes para as consequências da suspensão. 2. Não se pode, à luz do artigo 3.º, 3 CPC, proferir despacho a declarar extinta a instância por deserção, sem previamente ouvir a parte sobre o elemento subjectivo da sua inactividade. 3. Ao não fazer actuar o contraditório, o primeiro grau comete uma irregularidade, causa de anulação da decisão impugnada.
Decisão Texto Integral:

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça


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AA instaurou acção declarativa, com processo comum, contra BB, CC, DD e EE, pedindo que seja reconhecido como filho biológico de FF, ordenando-se o correspondente averbamento no seu registo de nascimento.

Os réus CC, DD e EE informaram de que a co-ré BB faleceu no dia ... de Outubro de 2022. Juntaram certidão de óbito e requereram a suspensão imediata da instância.

Em 2.11.2022 foi proferido despacho a declarar suspensa a instância até serem habilitados os sucessores de BB.

Em 12.5.2023 foi proferido despacho nos seguintes termos: “Julgo extinta a instância por deserção, por negligência das partes, pois o processo encontra-se a aguardar impulso processual há mais de seis meses, - artigos 277º al. c) e 281º n. 1 do CPC. Custas pela A”.

O autor reclamou, sem êxito, dessa decisão. Inconformado com a decisão de 12.5.2023 o autor interpôs competente apelação, a qual foi julgada improcedente pela Relação de Guimarães.

De novo inconformado, o autor interpôs revista excepcional para este terceiro grau, admitida pela formação a que alude o artigo 672.º, 3 do Código de Processo Civil (serão deste código os artigos ulteriormente citados, sem diferente menção).

São as seguintes as conclusões da minuta do recurso do autor:

1- Vem o presente recurso interposto do douto acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães que julgou totalmente improcedente o Recurso de Apelação interposto pelo A., por entender que “o Juiz não tem de advertir as partes das consequências da inacção em promover o incidente de habilitação de herdeiros, por duas ordens de razões: a) o facto de o decurso de 6 meses sem a prática do acto necessário levar à deserção da instância não é uma opção aberta ao Juiz do processo, é a única consequência possível, e é imposta por lei; b) as partes estão representadas por Advogado nos autos, pelo que o argumento de que o Juiz do processo devia explicar às partes o regime legal em causa revela uma visão distorcida e paternalista do processo civil.”

2- Entende o A.que malandou odouto Tribunal daRelação de Guimarães naparte em que não julgou nulo o despacho de suspensão da instância, datado de 2/11/2022, proferido pela Mma. Juiz do Tribunal de 1ª instância o qual declarou “suspensa a instância até que sejam habilitados os sucessores de BB”, sem que a Meritíssima Juiz de 1.ª Instância tenha efectuado qualquer alusão ao artigo 281º do CPC nem às graves consequências legais da suspensão da instância.

3- Não se trata de explicar às partes o regime legal em causa, mas sim de tão somente alertar as partes para as consequências da suspensão, fazendo alusão no despacho de suspensão para os efeitos previstos no artigo 281º do CPC, ficando assim as partes cientes da possibilidade de deserção após o decurso dos 6 meses.

4- O douto Tribunal Recorrido fez uma errada interpretação e aplicação do art.281ºdoCPC na medida em que considerou que a deserção da instância opera sem necessidade de qualquer advertência às partes quanto aos efeitos da suspensão da instância nomeadamente, considerou que o tribunal não tem que alertar as partes para a possibilidade da deserção da instância, ainda que apenas por mera alusão ao artigo 281º do CPC no referido despacho de suspensão.

5- A sentença de deserção da instância, gerou uma verdadeira decisão surpresa para o A.

6- Por discordar desse entendimento, por existirem Acórdãos da Relação e do próprio STJ em contradição com o recorrido, e com vista a uma melhor aplicação do direito, nos termos do n.º 2 do artigo 672º, al. a) e al. c), vem o Autor interpor o presente Recurso de Revista Excecional.

- Da Nulidade:

7- No despachoque decretaasuspensãodainstância aMeritíssima Juiz a quo não advertiu as partes quanto ao efeito do decurso do prazo previsto no artigo 281º n.º 1 do CPC.

8- Adeserçãodainstânciaconstuicausadeextinçãodainstânciadaacçãooudosrecursos – artigo 277.º, alínea c), do CPC – regendo quanto aosseus pressupostos o artº 281º.

9- Omissis.

10- Ou seja, no despacho proferido no dia 2/11/2022, a Meritíssima Juiz da 1ª instancia não advertiu as partes de que a sua inércia em promover o Incidente de Habilitação de Herdeirosdafalecida1ªRédeterminariaadeserçãodainstânciaeconsequenteextinção do processo.

11- Mais concretamente, com o despacho referido datado de 2/11/2022, o A. não ficou consciente de que estava onerado com a iniciativa de dinamizar a instância e que a sua inércia processual por mais de 6 meses conduziria à deserção da instância.

12- Pelo que, o A. foi surpreendido com o despacho de deserção da instância, proferido no dia 12/5/2023, no qual é decretada a deserção da instância, sem contraditório prévio das partes.

13- Efectivamente, verificando-se a omissão de advertência para o regime da deserção no despacho que decretou a suspensão, tal omissão apenas pode ser salvaguardada ou superada mediante a notificação prévia das partes para pronúncia, tal como decorre aliás, do artigo 3º n.º 3 do CPC.

14- Ou seja, a apreciação da negligência justificativa da deserção deve ser feita face aos concretos elementos constantesdosautos,não bastando o mero decurso do prazo, pelo que deve ser operado o contraditório prévio quanto aos requisitos da deserção se no despacho que decreta a suspensão não foi feita advertência de que a inércia determinará a deserção.

15- Nem tão pouco decorre do processo, que o A. pretenda a declarada extinção do processo, pois sempre agiu de forma responsável, cumprindo todos os prazos que lhe foram impostos, cumprindo de forma zelosa o impulso processual que como A. lhe compete promover.

16- Pelo que, a prolação do despacho que decretou adeserção da instância sem advertência prévia, consubstancia-se assim na omissão de um acto que a lei impõe, com influência na decisão da causa, enquadrável na previsão do artigo 195.º, n.º 1, do CPC.

17- E nada obsta, a que a mesma seja invocada em sede de recurso, em caso, como o que está em análise, em que é o conteúdo do acto subsequente que “revela” a omissão, ou seja,aomissãonãoépatentenodespachoquedecretouasuspensãosemadvertir,antes se revela face ao conteúdo do despacho que decretou a deserção, pelo que, a reacção adequada é a do recurso deste despacho, do qual ora se recorre.

18- De tudo se conclui verificar-se nulidade do despacho datado de 12/5/2023, que decretou a deserção, por omissão de acto que a lei prescreve, devendo o mesmo ser pois declarado nulo com todos os efeitos legais.

19- Tal posição é larga e amplamente perfilhada pelo STJ, conforme se pode verificar em diversos acórdãos já proferidos sobre esta matéria: Acórdão de 22 de Maio de 2018, proferido no processo 3368/06.1...; Acórdão de 9 de Novembro de 2017 proferido no processo 6277/09.1...; a contrario “Acórdão de 18 de Setembro de 2018 proferido no processo 2096/14.9....

20- Igualmente, o TRLisboa partilha da mesma opinião, no Acordão datado de 07-05-2020 proferido no processo 3820/17.3... – conforme cópia do referido que ora se junta.

21- Acresce ainda que, segundo José Lebre de Freitas, é necessário e essencial que previamente ao despacho de deserção as partes sejam alertadas para os efeitos da suspensão: “A norma do art. 281.º-1, CPC, tem assim sete requisitos, dos quais seis evidenciados na letra do seu texto e o último decorrente da sua interpretação à luz dos referidos princípios gerais:

1. que lei especial, ou o tribunal por despacho de adequação formal do processo, imponha à parte um ónus de impulso processual subsequente;

2. que o ato que a parte deva praticar seja por ela omitido;

3. que o processo fique parado em consequência dessa omissão;

4. que a omissão se prolongue durante mais de seis meses;

5. que o processo se mantenha, por isso, parado durante este período de tempo;

6. que a omissão seja imputável à parte, por dolo ou negligência;

7. queo juiz alerte aparteonerada para a deserção da instância que ocorrerá se o ato não for praticado (segundo a corrente mais exigente, só a partir da fixação deste despacho de advertência se contando os seis meses).” In “Da nulidade da declaração de deserção da instância sem Precedência de advertência à parte”, com o SUMÁRIO: 1. no CPC de1961.2. no CPC de 2013.3. os princípios gerais na interpretaçãodoart.281.º-1, CPC. 4. a consequência da nulidade. Conforme cópia que se anexa.

22- Termos em que, deve o acórdão recorrido ser substituído por outro que declare nulo o despachoproferidoem1ªinstânciadatadode12/5/2023,prosseguindoosautososseus tramites legais, nomeadamente sendo admitida a Habilitação de Herdeiros já junta aos autos e sendo agendado o respectivo julgamento.

Em todo o caso, deverá a ação prosseguir quanto aos demais RR filhos do pretenso pai do A, porquanto são estes os seus herdeiros legitimários e não quaisquer outros, tendo apenasfalecidoaRé,cônjugedopretensopaidoA.,peloquenostermosdoartigo1819º doCCsãoagoraestesRR,filhosdopretensopaidoA.aúnicapartelegitimanapresente acção.

Assim decidindo farão V. Exas, Srs. Juízes Conselheiros, inteira e devida Justiça».

Não foram oferecidas contra-alegações.


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Constitui questão decidenda saber se o despacho proferido em 1.ª instância no dia 12 de Maio de 2023 e que decretou a extinção da instância por deserção, deve ser anulado, por falta de advertência às partes quanto aos efeitos da suspensão da instância e por preterição do contraditório prévio.

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A matéria relevante para o conhecimento do recurso consta do relatório supra para o que se remete.

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Falecida uma das partes, a instância suspende-se (artigo 269º,1,a), do Código de Processo Civil; serão deste código os artigos ulteriormente citados sem diferente menção).

Preceitua o artigo 270º,1 que junto ao processo documento que prove o falecimento ou a extinção de qualquer das partes, suspende-se imediatamente a instância, salvo se já tiver começado a audiência de discussão oral ou se o processo já estiver inscrito em tabela para julgamento. Neste caso a instância só se suspende depois de proferida a sentença ou o acórdão.

Quando a suspensão da instância ocorre por virtude de falecimento de uma das partes, ela cessa quando for notificada a decisão que considere habilitado o sucessor da pessoa falecida ou extinta (artigo 276º,1,a)).

O que acontece se a parte interessada no retomar da instância nada fizer?

Preceituava o artigo 292.º do CPC 39 que a instância extingue-se pela deserção. Acrescentava o artigo 296.º: considera-se deserta a instância quando estiver interrompida durante cinco anos, sem prejuízo do que vai disposto no artigo seguinte.

Verificado o facto previsto neste artigo, deve a secretaria fazer o processo concluso, a fim de ser declarada extinta a instância.

Este artigo deve conjugar-se com o artigo 290.º que dispunha que a instância interrompe-se quando o processo estiver parado por mais de um ano em consequência da inércia da parte.

Ao comentar este regime José Alberto dos Reis explicava: «A ocorrência que lhe dá causa [à deserção] é a interrupção da instância durante cinco anos. E como a interrupção pressupõe a paralização do processo, por inércia das partes, durante mais de um ano, segue-se que a instância fica deserta se o processo estiver parado durante mais de seis anos, em consequência de inactividade das partes» (Comentário ao Código de Processo Civil, Vol 3.º, Coimbra Editora, Coimbra, 1946:433).

Este autor indicava a existência de duas doutrinas quanto ao fundamento da deserção: subjectiva e objectiva.

«Para alguns a deserção tem uma base meramente subjectiva, porque assenta na vontade presumida das partes de renunciar à demanda, de abandonar o processo; para outros o fundamento é de carácter objectivo pois consideram a perempção como consequência de um facto puramente objectivo: a inércia das partes durante certo período de tempo, independentemente da causa ou da significação da inércia» (ibidem:435).

José Alberto dos Reis considerava o nosso sistema pertencente à corrente objectiva, não só porque a declaração da deserção não depende da iniciativa do réu, antes o juiz deve decretá-la oficiosamente, mas também porque tal decorre dos trabalhos preparatórios e da vontade do legislador de atender não à presunção de abandono, mas ao interesse do serviço (ibidem:438/439).

O processualista defendia que a deserção não se produz automaticamente, ope legis, depende de acto do juiz, ope judicis, pelo que se as partes promoverem o andamento do processo, mesmo depois de decorridos os cinco anos sobre a interrupção deve admitir-se o seguimento dos autos (ibidem:439/440). Esta opinião não era seguida por todos.

A reforma do código de processo de 1961 removeu dúvidas sobre o carácter constitutivo ou declarativo da intervenção do juiz, ao determinar a deserção da instância, tendo querido optar por esta segunda solução.

O artigo 291.º passou a ter a seguinte redacção: Considera-se deserta a instância, independentemente de qualquer decisão judicial, quando esteja interrompida durante cinco anos, sem prejuízo do que vai disposto no artigo seguinte.

A chamada reforma de 1995/1996 procedeu à reorganização dos dois artigos que na reforma de 61 tratavam separadamente da deserção da instância e dos recursos, fundindo-os, e diminuiu para dois anos o prazo de interrupção.

O artigo 291.º, 1, passou a dizer: Considera-se deserta a instância, independentemente de qualquer decisão judicial, quando esteja interrompida durante dois anos.

E assim chegamos ao actual artigo 281.º, 1: considera-se deserta a instância quando, por negligência das partes, o processo, se encontre a aguardar o impulso processual há mais de seis meses.

Acrescenta o número 4 que a deserção é julgada no tribunal onde se verifique a falta, por simples despacho do juiz ou do relator.

Assinalam-se três relevantes diferenças do actual regime em relação ao decorrente da reforma de 1961: 1. A deserção não pressupõe a interrupção da instância, figura que foi eliminada. 2. O prazo de deserção reduziu-se para seis meses.3. O requisito da negligência das partes em promover o impulso processual transitou do regime da interrupção para a deserção.

Actualmente são requisitos da deserção:

1.º O decurso de seis meses;

2.º A inactividade negligente da parte durante esse tempo;

3.º A declaração judicial.

A inactividade da parte divide-se em dois sub-requisitos: i) a prática de actos tendentes a fazer andar o processo, pela parte onerada com o impulso processual (ibidem:329); ii) a negligência dessa parte.

O que significa, de acordo com Miguel Teixeira de Sousa, «que a deserção da instância pressupõe um elemento objectivo (falta de impulso do processo pela parte) e um elemento subjectivo (negligência da parte na falta do impulso do processo) (MTS,CPC, ONLINE: 173).

Dado que a «negligência da parte» é um sintagma cuja verificação depende das circunstâncias do caso, o juiz, antes de se decidir pela deserção, deve ouvir as partes, ex artigo 3.º, 3, o qual preceitua: O juiz deve observar e fazer cumprir, ao longo de todo o processo, o princípio do contraditório, não lhe sendo lícito, salvo casos de manifesta desnecessidade, decidir questões de direito ou de facto, mesmo que de conhecimento oficioso, sem que as partes tenham tido a possibilidade de sobre elas se pronunciarem.

Não levanta dúvidas o núcleo essencial da proposição normativa: a indicação às partes das questões a decidir constitui uma obrigação do juiz e não uma mera faculdade, um simples dever deontológico; o juiz deve observar o princípio do contraditório.

Por outro lado, a lei é expressa ao dizer que esta obrigação vincula o juiz ao longo de todo o processo e não apenas numa fase dele, o que já resultaria da inclusão do preceito nas disposições e princípios gerais, aplicáveis portanto a todos os processos e suas fases.

A norma vincula o juiz à prévia audição das partes quando tiver de «decidir questões de direito ou de facto» o que abrange todas as decisões, qualquer que seja a sua forma, mediante as quais o juiz toma conhecimento ou decide de uma questão, de um incidente ou de uma causa, desde que verificados os demais condicionalismos legalmente exigidos.

Neste artigo 3.º, 3 o termo questão refere-se aos temas de decisão que podem ser objecto de uma pronúncia por parte do juiz, seja ela de facto ou de direito, de natureza substancial ou processual, não abrangendo, porém, os meros motivos, argumentos, considerações ou juízos de valor constantes dos fundamentos da decisão.

Maioritariamente, as questões que devem ser previamente sujeitas ao contraditório prévio, são as questões de direito e de entre estas as que são de conhecimento oficioso.

Não há dúvida que a decisão que decreta a extinção da instância por deserção preenche estes elementos da referida factispecie abstracta.

Mas, em contrapartida e ao contrário do que defende o recorrente, o tribunal não está obrigado, aquando do despacho de interrupção da instância, a advertir a parte de que a sua inacção durante seis meses e um dia importará a deserção.

Estamos, quanto a esta interrupção, diante de uma vicissitude prevista na lei, sujeita a determinados pressupostos, cuja verificação, essa sim, está sujeita a prévia audição da parte, não estando em lado algum previsto um dever assistencial do juiz em ordem a avisá-lo das consequências jurídicas da sua inacção, bem sabidas, aliás, de qualquer advogado que patrocine diligentemente a causa.

Mas será mesmo necessário, antes do despacho que decreta a deserção, e só neste caso, ouvir o autor? Trata-se efectivamente de uma decisão de terceira via, ou melhor dito de uma decisão que possa considerar-se, sem essa audição, uma decisão surpresa?

São duas as teses que, entre nós, se confrontam quanto ao que se deve entender por uma decisão-surpresa. Para uma primeira corrente, que se pode chamar antiformalista, por defender que não se pode abstrair do conteúdo da decisão a proferir, a decisão-surpresa não se confunde com a suposição ou expectativa que as partes possam ter feito ou acalentado quanto à decisão; não se pode falar em decisão-surpresa quando as decisões, de facto ou de direito, devam ser conhecidas pelas partes como viáveis, como possíveis; só há decisão surpresa «quando se trate de apreciar questões jurídicas susceptíveis de se repercutirem, de forma relevante e inovatória, no conteúdo da decisão e quando não for exigível que a parte interessada a houvesse perspectivado durante o processo, tomando oportunamente posição sobre ela» (Carlos Francisco de Oliveira Lopes do Rego, Comentários ao Código de Processo Civil, Vol. I, 2.ª ed., Almedina, Coimbra, 2004:33).

Para uma outra corrente, garantista, o escopo principal do princípio do contraditório «é a influência, no sentido positivo de direito de incidir ativamente no desenvolvimento e no êxito do processo» (José Lebre de Freitas, Introdução ao Processo Civil, Conceito e princípios gerais à luz do novo código, 3.ª ed., Coimbra Editora, Coimbra, 2013:125); consequentemente deve garantir-se a «participação efectiva das partes no desenvolvimento de todo o litígio, em termos de, em plena igualdade, poderem influenciar todos os elementos (factos, provas, questões de direito) que se encontrem em ligação, directa ou indirecta, com o objecto da causa e em qualquer fase do processo apareçam como potencialmente relevantes para a decisão» (Ibidem:125).

Toda a decisão que não passe por este crivo deverá ser considerada decisão surpresa ou solitária do juiz.

Julgamos que esta segunda tese é a que mais se adequa ao nosso sistema jurídico-processual.

O princípio do contraditório é uma das traves mestras do direito processual civil e além de uma vertente horizontal, clássica, tem também uma vertente vertical, mais moderna, co-envolvendo as partes no processo decisório.

Na obra Introdução ao Processo Civil, Lebre de Freitas inicia a análise do princípio, sublinhando que à concepção restritiva do contraditório se substituiu «uma noção mais lata da contraditoriedade, com origem na garantia constitucional do rechtliches Gehör germânico, entendida como garantia da participação efectiva das partes no desenvolvimento de todo o litígio, mediante a possibilidade de, em plena igualdade, influírem em todos os elementos (factos, provas, questões de direito) que se encontrem em ligação com o objeto da causa e que em qualquer fase do processo apareçam como potencialmente relevantes para a decisão. O escopo principal do princípio do contraditório deixou assim de ser a defesa, no sentido negativo de oposição ou resistência à atuação alheia, para passar a ser a influência, no sentido positivo de direito de incidir ativamente no desenvolvimento e no êxito do processo» (Ibidem: 124/125; José Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, Código de Processo Civil, Anotado, Vol 1.º, 3.ª ed., Coimbra Editora, Coimbra, 2014:7).

Concretizando: se nenhuma das partes tiver suscitado questões de direito material ou de direito processual, que o tribunal deva conhecer, com concessão à parte contrária do direito de resposta, o juiz – ou o relator do tribunal de recurso- que entenda decidir ex officio de determinada questão nova, isto é, não discutidas no processo, deve previamente convidar ambas as partes a sobre ela tomarem posição, só estando dispensado de o fazer em casos de manifesta desnecessidade (art. 3-3).

O termo manifesta deve ser interpretado como «não haver dúvidas», «saltar aos olhos», «resultar claramente dos autos», que é de resto o sentido comum, e o termo desnecessidade não pode transformar-se, na prática, no seu contrário, a excepção não pode transmutar-se em regra, como se o preceito estipulasse que só no caso de ter de proferir uma decisão insólita ou imprevisível, o tribunal estaria obrigado a fazer actuar o contraditório.

Sobrecarregar as partes com o encargo de procurarem antecipar as questões que vêm a ser ou podem vir a ser importantes para a decisão que virá a ser tomada não é razoável, porquanto nem todas as questões de conhecimento ofícioso resultam do material do processo, especialmente no caso de um diverso delineamento em direito da controvérsia com a eventual ponderação de factos não alegados.

Acresce que só gozando de faculdades divinatórias, poderá a parte antecipar o raciocínio que fará o juiz e, em consequência, tomar posição adequada.

Por fim, o princípio da auto-responsabilidade não pode transmutar-se em princípio de autolesionismo: a parte não é obrigada a «sangrar em saúde» e dar antecipadamente atenção e discutir uma questão que é contrária aos próprios interesses.

Isto dito, importa ver com atenção o caso sujeito.

Tendo chegado aos autos a informação do falecimento, em ... de Outubro de 2022, da co-ré BB, o tribunal proferiu despacho, em 2 de Novembro de 2022, a declarar suspensa a instância até serem habilitados os sucessores de BB.

Nada de anómalo se pode apontar a esse despacho. O artigo 270º,1 CPC é terminante: junto ao processo documento que prove o falecimento ou a extinção de qualquer das partes, suspende-se imediatamente a instância. Já vimos que o tribunal não está obrigado a alertar a parte que a inacção por seis meses pode acarretar a deserção.

Nada tendo sido feito por qualquer das partes, no dia 12 de Maio de 2023, passados os 6 meses contados da notificação da suspensão, foi a instância julgada deserta.

Não se pode, à luz do artigo 3.º, 3, proferir despacho a declarar extinta a instância sem previamente ouvir a parte.

Não se pode antecipar que houve negligência da parte (do autor recorrente) ao não desencadear o incidente de habilitação.

Como refere Miguel Teixeira de Sousa, «a negligência da parte (elemento subjectivo de inactividade da parte) é um requisito autónomo da deserção da instância e não um requisito que esteja implícito na falta de impulso processual. De outra forma, o elemento objectivo de inactividade de parte consumiria o elemento subjectivo» (MTS.CPC, idem)

Para preenchimento deste requisito é necessário proceder a uma valoração que não deve ficar entregue unicamente à discricionariedade do julgador.

Justifica-se que a integração daquele conceito, de acordo com as circunstâncias do caso, conte com a participação dos interessados e com o seu contributo valorativo da conduta omissiva em causa.

Não basta estar prevista a figura do justo impedimento, para fazer valer eventual impossibilidade, na altura em que findou o prazo de seis meses de promover os termos do processo.

Sendo assim as coisas, que consequências tirar da violação do contraditório?

Os artigos 186.º a 202.º e 615.º não esgotam o regime das nulidades dos actos processuais.

Já Anselmo de Castro interpretava o sintagma do art. 201.º, 1 (actual 195.º, 1) — «a prática de um acto que a lei não admita» — de modo a abranger a prática de um acto que «repugna à índole ou espírito do sistema processual vigente» (Direito Processual Civil Declaratório, Vol.III, Almedina, Coimbra, 1982: 108).

Por sua vez, Alberto dos Reis refere que «a proibição, além de expressa pode ser implícita. o acto deve considerar-se proibido implicitamente ou virtualmente, quando for contrário à índole do processo ou comprometer o fim que a lei se propôs conseguir. É o que sucede com a audiência do arrestado antes de decretado e efectuado o arresto» (Comentário ao código de processo civil, Vol. 2.º, coimbra Editora, Coimbra, 1945:483, nota 1)).

Isabel Alexandre, na esteira destes autores, defende que a expressão legal abarca «tanto os actos violadores de normas processuais como de princípios jurídicos», «não apenas as normas processuais (a lei processual), mas também as normas constitucionais (a lei constitucional, por força da vinculação do juiz aos direitos fundamentais — art. 18.º, n.º 1 CRP)». Consequentemente, «quando o acto ilícito se tenha verificado na órbita processual, pode traduzir a prática de um acto que a lei (constitucional) não permite e, nessa medida, enquadrar-se na previsão do [art. 201.º, 1], gerando nulidade» (Provas ilícitas em processo Civil, Almedina, Coimbra, 1998:180).

Pois bem: o contraditório é um princípio estruturante do processo civil, mas é mais do que isso: é um direito processual fundamental.

Esta sua natureza decorre da consagração constitucional nos artigos 20.º, 1 e 202.º, 2 CRP, enquanto direito de defesa, e no artigo 32.º, 5, mas ainda do artigo 6.º da Convenção europeia de salvaguarda dos direitos do homem e das liberdades fundamentais e do artigo 47.º da Carta dos direitos fundamentais da união europeia.

O direito ao contraditório está ínsito no direito de defesa e o direito de defesa requer que o processo se estruture nas várias fases, de acordo com o princípio do contraditório. Nesta tautologia se realiza a elementar concretização da garantia do processo equitativo.

Com a audiência prévia dos interessados pretende o legislador que o tribunal e as partes discutam as questões relevantes, de facto e de direito, em função de uma decisão melhor, superando a concepção meramente subjectiva-defensiva-retórica do dever de actuação do contraditório. Como refere a doutrina, «uma questão discutida será sempre melhor decidida do que uma questão não discutida».

A falta de actuação do contraditório concretiza um mau exercício dos poderes do juiz, que se traduz na impossibilidade para as partes de exerce rem os respectivos poderes processuais.

A decisão final proferida nestas condições pode, por isso, considerar-se ferida de nulidade extraformal geneticamente derivada das garantias constitucionais.

Não parece congruente que uma violação, que constitui fundamento de anulação de uma sentença arbitral (artigo 46.º, 3, Lei da Arbitragem Voluntária), não tenha tratamento idêntico na jurisdição do Estado.

Tratando-se de vício da decisão final, este deve ser feito valer em sede de recurso, não sendo de exigir à parte interessada que alegue as concretas deduções defensivas que teria utilizado se o acto omitido (de actuação do contraditório) tivesse sido praticado e que se tivessem sido devidamente levadas em conta pelo juiz teriam podido razoavelmente conduzir a uma decisão diversa daquela que foi realmente tomada.

Tal influência deriva, em sim mesma, da circunstância de o juiz, ao decidir uma questão de direito ou de facto de conhecimento oficioso, ter violado o contraditório.

Na jurisprudência deste Supremo Tribunal defenderam posição parcialmente coincidente com esta os acórdãos do STJ de 14.12.2016, Proc. 268/12.OTBMGL.C1.S1 e de 13.10.2022, Proc. 9337/19.4T8LSB.L1.S1.

O primeiro quando considerou que a falta de audição dos menores, nos processos de adopção, afecta a validade das decisões finais dos correspondentes processos, por corresponder a um princípio geral com relevância substantiva e, por isso mesmo, processual, não sendo adequado aplicar o regime geral das nulidades processuais a essa falta de audição. O segundo, num caso em que as recorrentes reagiram contra a circunstância de ter sido ignorado pelo Juiz da 1ª instância o deferimento tácito do pedido de apoio judiciário, assim como a não verificação judicial oficiosa da renúncia à herança por parte das recorrentes nos registos da Conservatória dos Registo Centrais, quando concluiu que as nulidades invocadas não se inscrevem no segmento de desvio do formalismo processual prescrito na lei, não têm natureza procedimental ou processual, configurando-se sim como omissões ou vícios de natureza material ou substantiva, cometidos no próprio momento da decisão, corrompendo esta.

Conclui-se que, ao não fazer actuar o contraditório, o primeiro grau cometeu uma irregularidade, causa de anulação da decisão impugnada.


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As custas do recurso serão suportadas pela parte vencida a final, porquanto não é possível aplicar nesta fase critério justo de determinação de responsabilidades.

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Pelo exposto, acordamos em julgar procedente o recurso, e, consequentemente, em revogar a decisão do primeiro grau, onde os autos devem prosseguir seus termos.

Custas pela parte vencida a final.


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19.03.2024

Luís Correia de Mendonça (Relator)

Maria Amélia Ribeiro

Ricardo Costa (com a Declaração de Voto em anexo)

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Processo n.º 86/22.7T8PTL.G1.S1

Revista – Tribunal recorrido: Relação de Guimarães, 2.ª Secção

DECLARAÇÃO DE VOTO

Sem prejuízo da bondade da fundamentação e do resultado decisório, com a minha adesão ao relevo do contraditório como princípio de “influenciação”, julgo, em coerência com decisões anteriores, que o vício exposto, ao projectar-se no conteúdo da própria decisão proferida em 1.ª instância sem essa consideração, se consubstancia, por nela se consumir, em nulidade de decisão ou julgamento por “excesso de pronúncia” ilícito ou pronúncia indevida sobre questão sobre a qual, sem audição prévia das partes, não se poderia pronunciar, nos termos do art. 615º, 1, d), 2.ª parte, com aplicação restritiva da regra de substituição do art. 684º, 1, do CPC (e consequente aplicação extensiva do n.º 2 do art. 684º).

O 2.º Adjunto

STJ/Lisboa, 19/3/2024

Ricardo Costa