Acordam no Supremo Tribunal de Justiça
Relatório
AA e BB intentaram ação declarativa de condenação com forma de processo comum contra C. SANTOS – VEÍCULOS E PEÇAS, S.A., pedindo a sua condenação a proceder à substituição do veículo ... ..., matrícula ...-RQ-... e, cumulativamente, a pagar a soma de € 4500,00, referentes ao dano da privação do uso, à razão de € 100,00/dia, assim como € 3000,00 a título de danos não patrimoniais, num total de € 7500,00; e a pagar o valor referente às despesas dos processos, assim como referente à desvalorização do veículo a liquidar em execução de sentença.
Foi proferida sentença que condenou ré a entregar aos autores um veículo novo de marca ..., ..., em substituição do veículo de marca ..., ..., com a matrícula ...-RQ-..., e a pagar aos autores a quantia de € 1000,00, a título de indemnização por danos não patrimoniais, acrescida dos respetivos juros de mora, à taxa legal, vencidos e vincendos, desde a presente data até integral pagamento.
Inconformada, a ré interpôs recurso e o Tribunal da Relação veio a julgar a apelação totalmente procedente e revogou a sentença, absolvendo a ré dos pedidos contra a mesma formulados pelos autores.
Desta decisão interpõem agora os autores recurso de revista concluindo que:
“A) No âmbito do Acórdão proferido pelo Tribunal da Relação ... datado de 07/10/2021, foi revogada a decisão proferida em primeira instância e, em consequência, a Ré foi absolvida dos pedidos contra si formulados, mais concretamente, em proceder á entrega aos AA de um veículo novo de marca ... – ..., em substituição do veículo adquirido pelos AA.
B) O Tribunal da Relação ..., não só, procedeu à reapreciação e alteração da matéria de facto, como também, procedeu à alteração do mérito da decisão, fundamentando a mesma, nos seguintes itens: (i) a colocação do veiculo automóvel na oficina da Ré, constitui um facto concludente que permite concluir que os AA optaram por exigir a reparação dos defeitos em detrimento da sua substituição; (ii) tendo os AA optado pelo direito à reparação do bem, não lhes assiste mais o direito a invocar tais defeitos ou a falta de conformidade do bem como fundamento para exigir a substituição do bem; (iii) os AA não fizeram prova de que a reparação foi feita contra a sua vontade e, ainda que, aquando da receção do automóvel, informaram a Ré de que não prescindiam da faculdade de, em alternativa, exigirem a substituição do bem;
C) Não obstante a intervenção do Supremo Tribunal de Justiça ser residual no que respeita á decisão sobre a matéria de facto, a mesma pode ser sindicada quando esteja em causa a violação da lei adjetiva, quando se verifique alguma das situações previstas no art. 674º nº 3, ou, no artigo 682º nº 3 do CPC e, ainda, para exercer o controlo de presunções judiciais, quando as mesmas careçam de coerência lógica, ou esteja em falta o facto base;
D) Sendo assim, nos termos e ao abrigo dos referidos poderes, requer-se a V. Exªs a reapreciação da matéria de facto nos termos e ao abrigo do disposto no art. 682º nº 3 do CPC (ampliação da matéria de facto a verificação das contradições existentes) e, ainda que seja exercido por V. Exªs a análise e o controlo de determinadas presunções judiciais utilizadas pelo Tribunal da Relação ...;
E) efetivamente, salvo o devido respeito, os ora AA consideram que deverá ser ampliado o teor do artigo 11º da matéria de facto dado como provada, passando o mesmo a ter a seguinte redação: “o Autor enviou à Ré um mail em 4 de Abril de 2018 e uma carta em 12 de Abril de 2018, na qual, não só, solicitou a substituição do veículo, como também, comunicou expressamente que já não estavam interessados na reparação do veículo, nem na receção da viatura e, ainda, que rejeitavam a proposta apresentada pela Ré, no sentido de procederem ao pagamento de € 12.000,00 para obterem a substituição do veículo”;
F) De facto, se tivermos em consideração o teor das referidas comunicações, resulta expressamente comprovado que:
(i) Os AA comunicaram à Ré que já não estavam interessados na reparação do veículo;
(ii) Os AA comunicaram à Ré que não estavam interessados na receção da viatura (cfr. facto já provado com o nº 16);
(iii) Os AA comunicaram à Ré que pretendiam obter a sua substituição;
(iv) Os AA vem rejeitar a proposta apresentada pela Ré, no sentido de que, para obterem a substituição do veículo por um carro novo teriam de proceder ao pagamento de € 12.000,00 (doze mil euros);
G) Por outro lado, considera-se igualmente que deverá ser ampliada a resposta dada ao facto provado nº 14, passando o mesmo a ter o seguinte teor: “A proposta de substituição de veículo foi rejeitada pela Ré, sendo que, na reunião realizada em 18 de Março de 2018, um representante da Ré, CC, transmitiu que a resolução da questão passaria pelo pagamento de 12.000,00€ adicionais para a obtenção de um carro novo equivalente, o que foi recusado pelos Autores”.
H) Isto porque, atendendo à prova carreada para os presentes autos, resulta inequivocamente comprovado que a proposta apresentada pela Ré e não aceite pelos AA (pagamento da quantia de € 12.000,00 para obtenção de um carro novo equivalente á mesma gama), foi apresentada na sequência da rejeição do pedido de substituição apesentado pelos AA;
I) Tal factualidade encontra-se perfeitamente comprovada através dos seguintes meios probatórios: (i) O referido mail em 4 de Abril de 2018 e a carta e 12 de Abril de 2018 juntos aos presentes autos com a pi como Docs. nºs 2 e 3; (ii) pelos factos dados como provados e assentes nos artigos 16º e 17º e, (iii) ainda, pelo depoimento das propiás testemunhas arroladas pela Ré, nomeadamente, pelo Sr. DD e pelo Sr. CC;
J) Ainda, no que concerne à matéria de facto, considera-se existir uma notória contradição entre o atual artigo 38º, o qual veio a considerar que “o problema ficou resolvido” (não obstante, ter sido eliminada a expressão “definitivamente” que constava do facto não provado na sentença) e os factos dados como provados nos artigos 10º, 13º, 34º e 35º do Acórdão que ora se submete á apreciação de V. Exªs;
L) Efetivamente, não é possível conceber como se pode considerar que o problema do veículo ficou resolvido, quando a Ré nunca procedeu à junção aos autos de quaisquer relatórios técnicos ou outros elementos que permitissem aferir com a certeza exigível, quais as origens das avarias e se as mesmas ficaram definitivamente resolvidas, não obstante, ter sido interpelada sucessivamente para tal;
M) Quando o referido veículo automóvel nunca foi objeto de nenhuma inspeção por parte da MBP, nem tão-pouco, submetido a qualquer prova pericial e, ainda, quando através dos depoimentos das testemunhas da Ré, não foram indicados quais os motivos / origens dos problemas, nem os defeitos ou desconformidades existentes no veículo e que vieram a determinar a necessidade de proceder à substituição do motor;
N) De facto, conforme mui acertadamente se refere na sentença proferida em primeira instância: “Os ditos elementos transmitidos pela Ré, que terão sido objeto de análise remota pela MBP e pelo fabricante ..., não foram trazidos ao conhecimento dos autos. Todas as explicações que resultarão desses elementos nunca foram dadas e, em bom rigor, continuam os mesmos em “segredo”, não podendo a prova basear-se (apenas) na referência a elementos que, existindo, não foram dados a conhecer, nem em sede judicial, nem anteriormente”.
O) Sendo assim, em face do exposto, é por demais evidente que, para além da referida contradição entre artigos, não foi produzida qualquer prova nos presentes autos, seja de que natureza fosse, que permitisse concluir que os problemas do referido veículo automóvel ficaram resolvidos, e a verdade é que, não ficaram, dado que, o veículo automóvel continua a demonstrar a existência de problemas;
P) Em face do exposto, carece de todo e qualquer fundamento a presunção em que se baseou o Tribunal da Relação ..., no sentido de que, os AA optaram pelo direito à reparação do bem em detrimento do direito à sua substituição e, ainda, que não fizeram prova de que a reparação foi feita contra a sua vontade, não comunicando que não prescindiam, da substituição do bem;
Q) Tais argumentos não só padecem de falta de coerência lógica, como também, tais “factos base” não podem ser considerados como provados; aliás, muito pelo contrário, a factualidade que se encontra provada demonstra claramente o contrário do invocado e decidido pelo Tribunal da Relação;
R) Assim, e também num patamar de direito, quanto à alegada “declaração tácita” referida pelo Tribunal da Relação, sempre se sublinhe que não existiu qualquer aceitação tácita das reparações efetuadas, tendo os aqui Recorrentes feito a sua oposição, em cada momento, da não conformidade do veículo:
S) De facto, os Recorrentes não só aceitaram as reparações, nem que de forma tácita, como, ainda, vieram mesmo a exigir de forma expressa a substituição da viatura;
T) Sendo que, a Recorrida agiu sempre sem o consentimento dos Recorrentes, não lhes apresentando quaisquer esclarecimentos sobre as reparações que efetuavam e os motivos inerentes, razões pelas quais os Recorrentes nunca aceitaram efetivamente essas reparações;
U) Ainda assim, a não conformidade também resultou do facto de continuarem a surgir defeitos no veículo mesmo após a intervenção da(s) diversa(s) intervenções da Recorrida, desconformidade esta que mesmo após estas reparações se mantiveram e se deram como devidamente provadas;
V) Salientando que, como defendido e provado na 1.ª instância, os Recorrentes, oportunamente, já tinham manifestado a sua intenção de substituição do bem e não existindo qualquer efetiva reparação, sempre os Recorrentes têm o direito, subsistindo a não conformidade do veículo, a qualquer outro dos mecanismos de proteção e tutela do consumidor previstos no artigo 4.º, número 1 do DL 63/2003 – como a dita e exigível substituição;
W) Os Recorrentes, que faziam a utilização diária do veículo principalmente para transporte dos seus netos e outros familiares, não conseguiram nunca restabelecer a confiança na viatura desenvolvendo-se um constante estado de híper vigília, ansiedade e receio de circular com o veículo, nomeadamente à noite e fora da sua área de residência, coibindo-se de sair ou desenvolver outras atividades familiares, especialmente com os seus netos, em que seja necessária a utilização do dito veículo, por receio de colocar em causa a sua segurança e a dos demais.
X) Portanto e finalmente, decidiu erroneamente o Tribunal da Relação ao não aceitar nem se pronunciar sobre o pedido de indemnização feito pelos AA. e, como tal, deve também essa parte ser revogada e reinstada a posição do Tribunal de 1.ª instância no sentido de reconhecer aos recorrentes o direito à quantia de 1.000,00 (mil euros) a título de danos não patrimoniais acrescida dos respetivos juros de mora, à taxa legal, vencidos e vincendos, desde a presente data até integral pagamento.
Nestes termos, nos melhores de direito e com o sempre mui douto suprimento de V. Exªs deve ser concedido provimento ao presente recurso de revista e, consequentemente, deverá proceder-se à revogação do Acórdão proferido pelo Tribunal da Relação ..., confirmando, a sentença proferida em primeira instância.
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Nas contra-alegações a ré recorrida contra-alegou defendendo a confirmação da decisão recorrida contrapondo as razões apresentadas pelos recorrentes para a reapreciação da matéria de facto, a sua ampliação, assim como a invocada contradição ou diversa decisão de direito da apelação não têm fundamento.
Colhidos os vistos, cumpre decidir.
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Fundamentação
Encontram-se julgados como provados os seguintes factos:
“1. Os Autores adquiriram à Ré, em 15 de julho de 2016, o veículo de marca ..., ..., com a matrícula ...-RQ-....
2. Em 21 de dezembro de 2017, o veículo dos Autores deu entrada, com reboque, nas instalações da Ré com uma avaria do sistema “turbo” que implicou a sua substituição, assim como dos sensores de temperatura do sistema de escape, sensores NOX dianteiros e traseiros, sensores do tubo dpf, sondas de temperatura e catalisadores, ao abrigo da garantia do produtor.
3. Em 08 de janeiro de 2018, o veículo “não pegava à primeira”, a 7.ª velocidade “não entrava”, “não desenvolvia” e a engrenagem das mudanças era feita com dificuldade e só a partir das 3000 rotações, o que foi imediatamente comunicado à Ré.
4. No dia 19 de janeiro de 2018, o motor do veículo deixou de desenvolver, novamente, aparecendo uma mensagem do líquido de refrigeração e uma luz vermelha no manómetro de temperatura, o que foi imediatamente comunicado à Ré.
5. Em 14 de fevereiro de 2018, os Autores queixaram-se de “ruído de motor”, o que foi imediatamente comunicado à Ré.
6. Além de todas estas situações, os Autores, em diferentes momentos, foram denotando um cheiro a “queimado”, tendo levado o veículo às instalações da Ré, onde foram informados que isso não seria um problema.
7. Na sequência da última intervenção, foi identificada a necessidade de substituição do motor do veículo.
8. O automóvel tinha feito menos de 30 000 km.
9. O Autor sempre entregou o veículo nas instalações da Ré, consentindo que esta fizesse as reparações que entendesse por pertinentes e justificadas.
10. No entanto, nunca a Ré informou quais as reparações que teria levado a cabo, em cada um dos momentos/situações suprarreferidos, sendo certo que aos Autores, apesar de solicitado, nunca foi fornecido qualquer tipo de relatório técnico que ateste as intervenções levadas a cabo.
11. O Autor enviou à Ré um e-mail, a 04 de abril de 2018, e uma carta, em 12 de abril de 2018, na qual solicitou a substituição imediata do veículo, aos quais não logrou obter qualquer resposta.
12. O Autor expôs a situação junto da marca, ..., que respondeu nos seguintes termos: “(…) verificou-se um atraso pontual no fornecimento do motor necessário para reparar a sua viatura, situação que garantimos ser excecional uma vez que não é de todo representativa dos padrões de qualidade preconizados pelo fabricante ..., e para a qual apelamos à sua melhor compreensão. (…) “Pelo exposto, salientamos que todas as obrigações decorrentes da garantia têm sido cumpridas pelo que, quanto à pretensão da troca da viatura,
informamos que deverá articular a mesma diretamente junto da C. Santos V.P. - ..., sendo esta a entidade indicada e competente para o efeito. (…)”.
13. A Ré procedeu à troca do motor, sem explicar a razão.
14. Em reunião havida em março de 2018, um representante da Ré, CC, transmitiu que a resolução da questão passaria pelo pagamento de € 12 000,00 adicionais para a obtenção de um carro novo equivalente, o que foi recusado pelos Autores.
15. A 15 de julho de 2018, foi solicitada a intervenção do serviço 24 horas por “anomalia na programação dos injetores”, tendo o veículo sido entregue, desta vez, na “StarSul – Comércio de Automóveis, S.A.”, em ..., concessionário da Marca ..., tendo sido feita a reprogramação dos injetores (codificação dos injetores / calibração da compensação do volume da injeção).
16. Aquando da última intervenção da Ré (substituição do motor), entenderam os Autores não proceder ao levantamento do veículo.
17. Entretanto, os Autores levantaram o veículo e procederam à entrega do veículo de substituição quando a Ré os avisou que, caso não o fizessem, começaria a ser cobrada uma taxa de utilização diária.
18. O veículo é utilizado especialmente pela Autora como forma de transporte diário dos netos.
19. A Autora não confia que o veículo esteja com os patamares mínimos de segurança, o que se traduz num constante estado de híper vigília, ansiedade e receio.
20. A Autora desenvolveu receio em circular com o veículo, mormente à noite e fora da sua área de residência, coibindo-se de sair ou desenvolver outras atividades familiares, nomeadamente com os seus netos, em que seja necessário a utilização do mesmo, uma vez que receia estar a colocar em causa a sua segurança, assim como a dos demais.
21. Os Autores fizeram a revisão do veículo em julho de 2017, com msg para reabastecer “ADBlue”.
22. Aos Autores foi sempre entregue um veículo de substituição, de marca, modelo e características idênticas, nomeadamente durante todo o período de espera pelo novo motor e no período de reparação.
23. Os Autores realizaram “manutenções” ao veículo, em agosto de 2018 e em setembro de 2019, nas instalações da Ré.
24. O veículo continuou a circular após a última intervenção.
25. O motor a aplicar no veículo demorou algum tempo a ser fornecido pelo fabricante.
26. A M... é uma sociedade comercial anónima que tem como objeto:
a) importação e/ou comercialização de veículos automóveis, respetivos motores, peças, acessórios e produtos com os mesmos relacionados;
b) indústria de reparação de veículos automóveis e serviços conexos e a
comercialização de produtos relacionados com essa indústria e serviços;
c) qualquer atividade relacionada com ou de apoio ao comércio de veículos automóveis, conforme certidão permanente com o código de acesso 0418-54....
27. No exercício da sua atividade comercial, a M... importa para Portugal produtos das marcas ... e ..., produzidos pela sociedade de direito alemão, ..., com sede em ..., na ....
28. Os veículos importados pela M... são, posteriormente, distribuídos pela rede de concessionários autorizados ... e ..., em que se integra a Ré, C. Santos Veículos e Peças, S.A..
29. A M... não presta assistência técnica a veículos, de forma direta, sendo, tal atividade desenvolvida pela rede de oficinas autorizadas ..., em que também se integra a Ré.
30. No exercício da sua atividade, a M... vendeu o veículo dos autos à Ré, em 14 de junho de 2016.
31. Apenas em 19 de fevereiro de 2018, através de uma consulta técnica realizada pela Ré, a M... teve conhecimento das intervenções realizadas em dezembro de 2017 e da situação de fevereiro de 2019.
32. A Ré transmitiu à M... que o veículo dos autos havia tido uma avaria, em dezembro de 2017, tendo, na sequência dessa avaria, sido substituído o turbo, o intercooler e a linha de escape, bem como os respetivos sensores.
33. De acordo com os elementos transmitidos pela Ré, a avaria ocorrida em dezembro de 2017 terá sido causada por passagem de óleo para o sistema de escape.
34. A avaria ocorrida em fevereiro de 2018 foi objeto de análise remota pela M... e pelo fabricante, ..., no âmbito da consulta técnica colocada pela Ré.
35. Da análise às informações prestadas pela Ré (a M... não inspecionou o veículo) resultou que o veículo apresentava sinais de falta de lubrificação e que havia danos no motor que aconselhavam a sua substituição.
36. O motor veio a ser substituído, tendo a reparação ficado concluída em abril de 2018.
37. A substituição do motor foi feita ao abrigo da garantia de bom funcionamento do veículo.
38. O problema ficou resolvido.
39. Perante a avaria detetada entendeu a ré ser de substituir o motor do veículo.
40. A reprogramação dos injetores (codificação e calibração da compensação do volume da injeção) é feita automaticamente, sem assistência técnica habitual, e está relacionada com a necessidade da gestão eletrónica em garantir a constante otimização da combustão.
41. A adaptação/codificação ao nível do sistema de injeção não tem qualquer relação com a avaria que determinou a necessidade de substituição do motor”.
Foi julgada como não provada a seguinte matéria de facto:
“a) (apenas) no âmbito do último momento de entrega do veículo para reparação nas oficinas da Ré foi facultado um veículo de substituição aos Autores;
b) procedendo ao seu levantamento a 11 de junho de 2018, quando já não era sustentável para o seu agregado familiar continuar sem a utilização daquele veículo;
c) o veículo foi entregue aos Autores em perfeitas condições de funcionamento, não apresentando qualquer falha mecânica ou eletrónica;
d) os Autores foram sempre informados de todos os trabalhos realizados no veículo e de quais as peças substituídas ou intervencionadas;
e) a Ré informou os Autores de que ia substituir o motor do veículo;
f) a Ré cometeu um erro na montagem dos componentes que tiveram de ser desmontados para que fosse possível realizar-se a intervenção realizada a 21 de dezembro de 2017, o que reconduziu a um mau contacto elétrico que originou a uma perda ligeira de líquido refrigerante, objeto da reparação de 09 de janeiro de 2018.
… …
O objeto do recurso é delimitado pelas conclusões das Recorrentes, não podendo este Tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que sejam de conhecimento oficioso, conforme prevenido nos arts. 635º n.º 4 e 639º n.º 1, ex vi, art.º 679º, todos do Código de Processo Civil.
O conhecimento das questões a resolver na presente Revista, delimitadas pelas conclusões, remete para decidir se existe contradição na matéria de facto julgada como provada ou se tal matéria carece de ampliação que imponha a remessa dos autos ao tribunal recorrido; se o tribunal recorrido extraiu facto por presunção judicial em violação com a lei e se existiu declaração tácita por parte dos autores no sentido de terem pretendido (ou aceite) a reparação do veículo e não a sua substituição.
… …
Apreciando as questões enunciadas, constitui princípio e regra do direito processual que o Supremo Tribunal de Justiça conhece do direito, cabendo-lhe aplicar definitivamente o regime jurídico que julgue adequado, estando-lhe vedado apreciar a matéria de facto fixada pelas instâncias recorridas - art. 682 nº 1 do CPC. Porém, nos casos taxativamente previstos no art. 674 nº 3 do CPC, o STJ pode sindicar a ofensa de disposição legal expressa que exija determinada espécie de prova para a existência do facto ou que fixe a força de lei de determinado meio de prova. Estes são ainda casos em que a sua apreciação envolve a verificação do cumprimento da lei e não qualquer atividade de convicção sobre a prova produzida, o que ocorre igualmente quando se admite a apreciação do cumprimento dos ónus de impugnação da matéria de facto do art. 640 do CPC que se inscreve nos fundamentos da revista por violação ou errada aplicação das leis de processo e na previsão do art. 674 nº 1 al. b) do CPC.
A intervenção do STJ no apuramento da factualidade relevante da causa é assim residual, restringindo-se a fiscalizar a observância das regras de direito probatório material, a determinar a ampliação da matéria de facto ou o suprimento de contradições sobre a mesma existentes - art. 682 nº 3 do CPC - na imperativa coerência de, em todas essas situações, estar em causa apreciar e decidir se a Relação, ao proceder da forma como o fez, se conformou, ou não, com as normas que regulam tal matéria (direito probatório), o que resume conhecimento de direito que cai na esfera de competência própria do STJ.
Um outro domínio em que têm sido produzidas decisões sobre a extensão da apreciação da matéria de facto pelo STJ é o do uso das presunções pela Relação, as quais não se reconduzem a um meio de prova próprio, consistindo antes, como se alcança do art.º 349º do Cód. Civil, em ilações que o julgador extrai a partir de factos conhecidos (factos de base) para dar como provados factos desconhecidos (factos presumidos). A presunção traduz-se e concretiza-se num juízo de indução ou de inferência extraído do facto de base ou instrumental para o facto essencial presumido, à luz das regras da experiência - Cfr., sobre a noção de prova por presunção Manuel de Andrade, Noções Elementares de Processo Civil, Coimbra Editora, 1976, pág. 214, e Antunes Varela e outros, Manual de Processo Civil, Coimbra Editora, 1985, págs. 500 e 501 - sendo admitida nos casos e termos em que é admitida a prova testemunhal (art.º 351º do Cód. Civil). Daí que, face à competência alargada da Relação em sede da impugnação da decisão de facto (art. 662 nº 1 do Cód. Proc. Civil), é lícito à 2ª instância, com base na prova produzida constante dos autos, reequacionar a avaliação probatória feita pela 1ª instância, nomeadamente no domínio das presunções judiciais, nos termos do nº 4 do art. 607, aplicável por via do art.º 663º, n.º 2, ambos do Cód. Proc. Civil.
Todavia, em sede de recurso de revista, a sindicância sobre a decisão de facto das instâncias em matéria de presunções judiciais suscita reservas. Não sendo do controlo do STJ a prova sujeita à livre apreciação do julgador, cujo valor não é, por definição, tarifado por um preceito legal e que só a 1ª instância e, em recurso, a Relação podem concretamente determinar, independentemente da exata construção dogmática da figura, a prova por presunção judicial como exercício de convicção presidido exclusivamente pelas regras de experiência comum é difícil de enquadrar. Efetivamente, como ilação extraída a partir de factos julgados provados com prova não sujeita ao conhecimento do STJ, que tornam provados factos presumidos, resulta de alguma dificuldade a justificação para que os factos de onde se realiza a extração não serem sindicáveis pelo STJ mas que a própria ilação já o seja – veja-se neste sentido e com uma resposta restritiva à admissibilidade do conhecimento do STJ das presunções judiciais o ac. do STJ de 5-5-2005 no proc. 817/05 - 7.ª Secção.
Rastreada a dificuldade, ainda que com controvérsia tem sido admitido, de forma muito circunscrita, que o STJ possa sindicar o uso de tais presunções pela Relação mas apenas se este uso ofender qualquer norma legal, se padecer de evidente ilogicidade ou se partir de factos não provados - neste sentido, vide, entre outros, o acórdão do STJ, de 25/11/2014, proferido no processo n.º 6629/04. 0TBBRG.G1.S1, o acórdão 24/11/2016, proferido no processo n.º 96/14.8TBSPS.C1.S1, e o acórdão de 19-1-2017 no proc. 841/12.6TBMGR.C1.S1, in dgsi.pt e ainda Abrantes Geraldes - Recursos no novo Código de Processo Civil, 6ª ed. pp. 464 a 469. E na apreciação da ilogicidade que admite a intervenção do STJ deve atender-se a que “só muito raramente a prova é direta. É-o quando o próprio julgador é confrontado com o facto a provar (necessariamente presente por ter natureza duradoira, que perdura na fonte de prova). Fora desses casos, toda a prova se faz segundo um iter dedutivo que permite inferir a realidade do facto a provar da realidade de um outro, que perante ele é probatório” – Lebre de Freitas, Controlo pelo STJ do uso das presunções judiciais, Revista Ordem dos Advogados I-II 2019 p. 149. Acrescentando este mesmo autor que para lá dos factos essenciais, que cabe às partes alegar e provar e diferentemente destes, os factos instrumentais podem ser probatórios ou acessórios (art. 5 nº 2 al. a) do CPC), sendo da existência dos primeiros tiradas ilações para a existência do facto principal, ao qual, no campo da prova livre, estão ligados por regras de experiência, que têm na sua base uma convenção social ou uma lei natural. E por sua vez, os segundos, também no campo da prova livre, aumentam ou diminuem a probabilidade dessa ilação – Introdução ao Processo Civil nº II6 4.3.
O núcleo da ilogicidade que é permitido ao STJ conhecer no âmbito das presunções judiciais é assim muito limitado, exigindo-se que da decisão de facto constem os factos instrumentais a partir dos quais o tribunal tenha extraído ilações em sede de factos essenciais, nos termos do art. 349 do CC e 607 do nº 4 do CPC, ou até algum julgamento probatório decisivo, que permitam nessa base objetiva, aferir a manifesta ilogicidade – ac. STJ de 17-10-2019 proc. 1703/16 in dgs.pt, por oposição ao entendimento de Lebre der Freitas Lebre de Freitas, que defende que essa jurisprudência ao admitir a ilogicidade como fundamento sindicável vai longe de mais na aplicação do conceito de questão de direito porque no art. 674 nº 3 do CPC dificilmente cabe o ilogismo da ilação sem prejuízo de o STJ poder mandar ampliar a decisão de facto da Relação quando ela encerre contradições nos termos do art. 682 nº 3 do CPC – in Controlo pelo STJ do uso das presunções judiciais, cit. p. 148.
Exposto o quadro de referência em que se situa a possibilidade de conhecimento do STJ no julgamento da matéria de facto deixa-se ainda nota de na apelação interposta pela ré C..., S.A.. Veículos e Peças Lda., apenas esta impugnou (a matéria de facto) e circunscrita às alíneas c), e), f), g), h), i) e j dos factos não provados, não tendo os ora recorrentes (recorridos na apelação) ampliado o recurso nos termos do art. 636 nº 1 e 640 nº 3 do CPC. Isto é, não requereram a ampliação da apelação para conhecimento de qualquer matéria de facto provada ou não provada que não aceitassem e só agora, na revista, vêm esgrimir relativamente aos factos julgados como provados quatro situações:
- o facto 11 dos provados na decisão recorrida deve ser alterado no sentido da sua ampliação porque o documento (um mail) em que a prova de tal facto se baseou determinava a inclusão de outra matéria que nele não figurou;
- o facto 14 dos provados na decisão recorrida deve também ser alterado no sentido da sua ampliação porque um documento (um mail), os factos dados como provados nos artigos 16º e 17º e o depoimento das testemunhas arroladas pela Ré impunham essa alteração;
- existe contradição entre o facto 38 dos provados na decisão recorrida e os aí também julgados provados com número 10, 13, 34 e 35;
- a presunção judicial que a decisão recorrida retirou, considerando que os autores optaram pelo direito à reparação do bem em detrimento do direito à sua substituição e, ainda, de que não fizeram prova de que a reparação foi feita contra a sua vontade, não comunicando que não prescindiam, da substituição do bem, é errónea contraditória e é de incoerência lógica total.
Na apreciação das duas primeiras situações enunciadas os recorrentes defendem que o facto 11 dos provados que tem como redação “O Autor enviou à Ré um e-mail, a 04 de abril de 2018, e uma carta, em 12 de abril de 2018, na qual solicitou a substituição imediata do veículo, aos quais não logrou obter qualquer resposta.” deveria constar como “O Autor enviou à Ré um mail em 4 de Abril de 2018 e uma carta em 12 de Abril de 2018, na qual, não só, solicitou a substituição do veículo, como também, comunicou expressamente que já não estavam interessados na reparação do veículo, nem na receção da viatura e, ainda, que rejeitavam a proposta apresentada pela Ré, no sentido de procederem ao pagamento de € 12.000,00 para obterem a substituição do veículo”.
E, de igual modo que o facto 14 em que as instâncias consideraram provado que “Em reunião havida em março de 2018, um representante da Ré, CC, transmitiu que a resolução da questão passaria pelo pagamento de € 12 000,00 adicionais para a obtenção de um carro novo equivalente, o que foi recusado pelos Autores.” deveria conter como redação “A proposta de substituição de veículo foi rejeitada pela Ré, sendo que, na reunião realizada em 18 de Março de 2018, um representante da Ré, CC, transmitiu que a resolução da questão passaria pelo pagamento de 12.000,00€ adicionais para a obtenção de um carro novo equivalente, o que foi recusado pelos Autores”.
Conforme resulta da expressa alegação dos recorrentes, o motivo para proporem esta alteração resume-se à pretensão de que o STJ aprecie os elementos de prova em que a convicção de tais factos se sustentou para, segundo a convicção (do STJ) fazer constar as alterações que são pedidas. Efetivamente, dizendo os recorrentes que do mail e carta que destacam deveria resultar uma outra expressão do facto provado 11, ou que desse mesmo mail e carta, agregado ao depoimento de testemunhas, também o facto 14 deveria ser alterado, o que se reclama do STJ é uma atividade que não pode ser realizada. Por um lado, porque essa matéria poderia e deveria ter sido suscitada na ampliação do recurso de apelação e não foi, não se tendo pronunciado o Tribunal da Relação sobre esses factos, o que impede que agora, na revista, se queira realizar uma impugnação da natureza e nos termos do art. 640 do CPC que em apelação se não realizou. Por outro lado, em qualquer caso, mesmo que não existisse o óbice antes afirmado e o Tribunal da Relação se tivesse pronunciado sobre essa matéria, sempre seria improcedente a pretensão dos recorrentes nesta parte porque a alteração pretendida convoca a apreciação de documentos e prova testemunhal (que os recorrentes até transcrevem) de livre apreciação subtraída à previsão do art. 674 nº 3 do CPC.
Quanto à terceira situação enunciada, consistente na contradição entre os factos provados 38 e 10, 13, 34 e 35, a descrição de todos eles permite desde logo uma mais fácil abordagem.
No facto 38 fez-se constar que “o problema ficou resolvido” e nos 10, 13, 34 e 35 que:
“No entanto, nunca a Ré informou quais as reparações que teria levado a cabo, em cada um dos momentos/situações suprarreferidos, sendo certo que aos Autores, apesar de solicitado, nunca foi fornecido qualquer tipo de relatório técnico que ateste as intervenções levadas a cabo.”
“A Ré procedeu à troca do motor, sem explicar a razão.
“A avaria ocorrida em fevereiro de 2018 foi objeto de análise remota pela M... e pelo fabricante, ..., no âmbito da consulta técnica colocada pela Ré.
“Da análise às informações prestadas pela Ré (a M... não inspecionou o veículo) resultou que o veículo apresentava sinais de falta de lubrificação e que havia danos no motor que aconselhavam a sua substituição.”
Porque quanto a esta questão se entende que o obstáculo de os ora recorrentes não terem antes impugnado a matéria de facto já não impede a sua invocação, uma vez que ela pretende confortar-se na previsão do art. 682 nº 3 do CPC protestando contradição que inviabilizaria a decisão jurídica, objetivamente, com os critérios de lógico raciocínio e segurança, que sempre subsidiam o senso comum do homem médio referente, não cremos que exista contradição alguma entre os factos enumerados. Julgar-se provado que o problema suscitado pelos recorrentes a propósito das anomalias da viatura foi resolvido e, em simultâneo, provada a restante matéria sinalizada não padece de contradição porque, a falta de informação prestada sobre as reparações a fazer, para resolver o problema, os sinais de falta de lubrificação e danos no motor que aconselhavam a sua substituição (que veio a ter lugar), não põe em causa o facto provado certificativo de o problema ter sido resolvido. A afirmação da resolução do problema que consta no facto 38 significa, no seu conteúdo útil, que com a substituição do motor foram resolvidos os sinais de falta de lubrificação e restantes danos que (o motor) apresentava e que depois de substituído deixou de apresentar. A não apresentação de relatório técnico da intervenção realizada para substituir o motor ou a falta de informação sobre os concretos problemas que existiriam (e mesmo não ter a M... inspecionado o veículo) podendo situar-se ao nível da comunicação entre as partes não ferem com contradição mas são matéria coerente com o facto de se ter julgado provado que o problema técnico concreto do motor foi resolvido, o que a decisão fundamentou com base “em depoimentos de parte e testemunhal, conjugado com a prova documental” de livre apreciação.
Na análise da quarta situação enunciada, uma primeira observação é a de o facto provado (nº38) segundo o qual o problema ficou resolvido não poder considerar-se uma presunção judicial mas sim um facto expresso, atenta a motivação da decisão recorrida referida no parágrafo anterior. Por outro lado, saber se constitui presunção judicial o Tribunal da Relação, na decisão de direito, ter considerado que os autores optaram pelo direito à reparação do bem em detrimento do direito à sua substituição ou que não fizeram prova de que a reparação foi efetuada contra a sua vontade, não comunicando que não prescindiam, da substituição do bem, impõe uma observação distintiva.
No que se refere à expressão da decisão recorrida quanto a não terem os autores feito prova de a reparação ter sido realizada contra a sua vontade ou a não terem comunicado que não prescindiam da substituição do veículo temos por manifesto não estarmos perante qualquer presunção judicial. Se a afirmação é no sentido de não se ter feito prova de um facto, é absolutamente incoerente e ilógico que se pretenda configurar esta conclusão como presunção pela óbvia razão de não se estar a extrair qualquer facto (presumido) mas, pelo contrário, a declarar que não há qualquer facto (expresso ou presumido) sobre determinada matéria. Pretendendo os recorrentes que por presunção, dos factos provados o tribunal recorrido deveria ter julgado provado que comunicaram à ré que não queriam a reparação, mas sim a substituição do veículo, tal matéria excede os poderes de apreciação do STJ porque, como antes dissemos, não existe nenhuma presunção que o tribunal recorrido tenha retirado e cumpra fiscalizar, e só perante presunções judiciais que tenham sido retiradas e não sobre aquelas que se proteste não terem sido retiradas se pode pronunciar (nos limites em que o pode) este STJ.
Por último, abordando a questão de saber se constitui presunção judicial o Tribunal da Relação ter considerado que os autores optaram pelo direito à reparação do bem em detrimento do direito à sua substituição e, na afirmativa, se a mesma deve ser excluída por ilogicidade, tem-se atenção a que essa conclusão foi inscrita na decisão recorrida na parte referente ao conhecimento do direito e, mais concretamente, para decidir que tacitamente “ a vontade dos autores foi de exigir a reparação dos defeitos, em alternativa à possibilidade de exigir a substituição do bem, ou a redução do preço, ou a resolução do contrato”. Porém, como decorre do art. 217 nº 1 do CC, sendo a declaração tácita a que se deduz de factos que, com toda a probabilidade a revelem e bastando “que o declarante haja praticado factos dos quais se possa deduzir, com segurança, a vontade provável de ele emitir certa declaração” - Carvalho Fernandes, Teoria Geral do Direito Civil, II, 3ª ed., 226 – esta incidência normativa coloca a problemática da presunção (judicial) num domínio que extravasa o da perceção do ilogismo de um facto que o tribunal recorrido tenha presumido, estendendo-a ao da apreciação dos factos provados para decidir se deles se pode concluir ter existido declaração tácita de escolha pela reparação em detrimento da substituição do veículo.
Na indagação da vontade (tácita) dos autores, os factos de que essa vontade se deduz são os concludentes ou significativos, “no sentido de se poder afirmar que, segundo os usos da vida, há toda a probabilidade de que o sujeito tenha querido, realmente, o negócio jurídico cuja realização deles se infere” – vd. I. Galvão Teles, Manual dos Contratos em Geral, 4ª ed., 136. Isto é, “Na declaração tácita, entre os factos concludentes e a declaração há um nexo de presunção, juridicamente lógico-dedutivo. A declaração não é formada pelos factos concludentes, deduz-se deles” – vd. Castro Mendes, Teoria Geral do Direito Civil, Vol. II, 60. É precisamente neste sentido que esta presunção, na declaração tácita propriamente dita (excluindo a declaração presumida e a declaração ficta), é judicial, sendo-lhe aplicável todo o respetivo regime legal, pelo qual “cabe ao juiz apurar se, de certo comportamento, se pode deduzir, de modo indireto, mas com toda a probabilidade, certa vontade negocial” - vd. ac. STJ de 9-7-2014 no proc. 299709/11.0YIPRT.L1S1 in dgsi.pt e, ainda Castro Mendes, op.cit p. 61 e Carvalho Fernandes, op. cit. p. 328.
Ora, repetindo o antes afirmado na explicação de as presunções judiciais pressuporem a existência de um facto conhecido (base da presunção), cuja prova incumbe à parte que a presunção favorece e pode ser feita pelo meios probatórios gerais de forma que provado esse facto, o julgador pode concluir dele a existência de outro facto (presumido), servindo-se, para esse fim, de regras deduzidas da experiência da vida - Vaz Serra, RLJ 108-352. Cfr. também Antunes Varela, RLJ 122-213 e segs. – é jurisprudência constante ser " lícito aos tribunais de instância tirarem conclusões ou ilações lógicas da matéria de facto dada como provada, e fazer a sua interpretação e esclarecimento, desde que, sem a alterarem, antes nela se apoiando, se limitem a desenvolvê-la" - ac. STJ de 9-7-2014 citado – estando vedado ao STJ o uso de presunções judiciais para dar como assentes factos deduzidos de outros factos julgados provados ( art. 674º nº 3 do CPC) - acs. STJ de 9-7-2014 no proc. 2999709/11; de 30.09.2010 no proc. 414/06 e de 9-7-2014, antes citado, todos in dgsi.pt.
Com este enunciado sobre a articulação do regime da fiscalização das presunções judiciais pelo STJ em sede de matéria de facto com a problemática da verificação de existência de declaração tácita, cabe agora resumir que, se no primeiro caso (o da fiscalização da matéria de facto) o mais que o Supremo está autorizado a fazer é suprimir o facto presumido e só no caso de haver sido violada pelo Tribunal da Relação qualquer norma legal disciplinadora do instituto, diferentemente, a jurisprudência e com sufrágio da doutrina sustenta ser “questão de direito afirmar a existência de uma declaração tácita, uma vez que «ela se deduz de factos que com toda a probabilidade a revelam», sendo um tal juízo de probabilidade e a correspondente dedução questões de direito" – ac. STJ de 9-7-2014 citado e Menezes Cordeiro, Tratado de Direito Civil Português, I, Tomo I, 286.
Como se sublinha no ac. do STJ de 9-7-2014 antes citado, já na decisão proferida por este mesmo tribunal em 09.03.95 (in BMJ 445-423) “apesar do non liquet da decisão de facto sobre se teria havido acordo quanto à alteração da retribuição devida ao autor (num contrato de agência), as instâncias entenderam, face ao circunstancialismo provado, que este teria aceitado tacitamente a nova retribuição.
O Supremo, porém, apesar de reconhecer que formalmente poderia ser seguido esse caminho, entendeu que esse juízo – para mais "em matéria gravemente danosa para o pretenso declarante" – não assentava em factos concludentes, isto é, significantes, positivos e inequívocos. Recusou, por isso, a existência da declaração tácita de aceitação pelo autor.
Como parece evidente, esta decisão insere-se ainda no âmbito de intervenção do STJ que acima se admitiu – constituindo nessa medida questão de direito da competência deste Tribunal – de sindicar se o juízo dedutivo e presuntivo (sobre a concludência dos factos considerados) "ofende qualquer norma legal, se padece de alguma ilogicidade ou se parte de factos não provados.
No fundo, o Supremo limitou-se a afastar ou suprimir o facto presumido pelas instâncias, por os factos em que assenta não serem suficientemente significativos, isto é, concludentes, como se determina no art. 217º nº 1 do CC.”
Colocada nestes termos a questão suscitada pelos recorrentes, no sentido de a apreciação dos factos provados não permitirem a conclusão de qualquer declaração tácita da sua parte preferente da reparação do veículo à sua substituição, cremos não sofrer contestação o que a decisão recorrida expõe a propósito das exigências de requisito certificativas de tal declaração e que replica Menezes Cordeiro quando afirma que “só será legítimo descobrir declarações negociais, ainda que tácitas, quando haja verdadeira vontade, dirigida aos efeitos e minimamente exteriorizada, ainda que de modo indireto" - Op. loc. cit. e ainda Evaristo Mendes – Fernando Sá, Comentário ao Código Civil – Parte Geral, Universidade Católica Editora, p. 489, Pedro Pais de Vasconcelos, Teoria Geral do Direito Civil, 8ª edição, p. 409 e ac. Ac. STJ 17-12-2015 in dgsi.pt. – Esta exteriorização, indireta, deve concretizar-se em factos, os factos concludentes, que permitam inferir com toda a probabilidade que os autores expressaram tacitamente, mas sem equivocidade, a vontade de aceitarem a reparação em vez da substituição do veículo. Este raciocínio dedutivo deve assentar em factos provados, inequivocamente significativos, que permitam concluir, com toda a probabilidade, pela verificação daquele facto invocado (a preferência da reparação pela substituição) não em simples elementos de prova, sujeitos a livre apreciação (e que na decisão recorrida foram objeto de impugnação apenas pela ré e somente quanto aos factos não provados) e permitir a conclusão de que existe ou não existe nos autos qualquer documento ou qualquer palavra ou atitude da ré nesse sentido.
Na indagação concreta dos factos provados a decisão recorrida destacou os seguintes: – Em 21 de dezembro de 2017, o veículo dos Autores deu entrada, com reboque, nas instalações da Ré com uma avaria do sistema “turbo” que implicou a sua substituição, assim como dos sensores de temperatura do sistema de escape, sensores NOX dianteiros e traseiros, sensores do tubo dpf, sondas de temperatura e catalisadores, ao abrigo da garantia do produtor – facto provado nº 2.
– Em 08 de janeiro de 2018, o veículo “não pegava à primeira”, a 7.ª velocidade “não entrava”, “não desenvolvia” e a engrenagem das mudanças era feita com dificuldade e só a partir das 3000 rotações, o que foi imediatamente comunicado à Ré – facto provado nº 3.
– No dia 19 de janeiro de 2018, o motor do veículo deixou de desenvolver, novamente, aparecendo uma mensagem do líquido de refrigeração e uma luz vermelha no manómetro de temperatura, o que foi imediatamente comunicado à Ré – facto provado nº 4.
– Em 14 de fevereiro de 2018, os Autores queixaram-se de “ruído de motor”, o que foi imediatamente comunicado à Ré – facto provado nº 5.
– Além de todas estas situações, os Autores, em diferentes momentos, foram denotando um cheiro a “queimado”, tendo levado o veículo às instalações da Ré, onde foram informados que isso não seria um problema – facto provado nº 6.
– Na sequência da última intervenção, foi identificada a necessidade de substituição do motor do veículo – facto provado nº 7.
– O Autor sempre entregou o veículo nas instalações da Ré, consentindo que esta fizesse as reparações que entendesse por pertinentes e justificadas – facto provado nº 9.
– A Ré procedeu à troca do motor, sem explicar a razão – facto provado nº 13.
– Os Autores realizaram “manutenções” ao veículo, em agosto de 2018 e em setembro de 2019, nas instalações da Ré – facto provado nº 23.
– O veículo continuou a circular após a última intervenção – facto provado nº 24.
– A substituição do motor foi feita ao abrigo da garantia de bom funcionamento do veículo – facto provado nº 37.
– O problema ficou resolvido – facto provado nº 38.
Na apreciação desta matéria que é também aquela que serve a decisão a proferir nesta revista, a decisão recorrida concluiu que para um declaratário normal colocado na posição dos autores – vd. Paulo Mota Pinto, Declaração Tácita e Comportamento Concludente no Negócio Jurídico, Coimbra, 1995, págs. 754-755 - o sentido juridicamente relevante do comportamento dos autores foi o de exigirem a reparação das deficiências do veículo, em alternativa ao exercício de qualquer outro direito.
As sucessivas pretensões de reparação do automóvel foram aceites pela ré que suportou o seu custo; o autor ter entregue sempre o veículo nas instalações da Ré, consentindo que esta fizesse as reparações que entendesse por pertinentes e justificadas; as avarias no veículo terem sido todas reparadas, sendo que à data em que foi interposta a ação, todas se encontravam reparadas, reparação essa que os autores aceitaram, ao rececionarem o veículo e com ele continuarem a circular, e não enfermando a viatura de qualquer vício ou desconformidade conduziram a decisão recorrida à conclusão de poder presumir a declaração tácita dos autores de aceitação das reparações e de não terem escolhido preferentemente a substituição do veículo. Esta conclusão do tribunal recorrido, assentando em factos provados que se enunciaram, tem no seu iter construtivo e conclusivo total logicidade e coerência de raciocínio que não merece censura nos termos em que como sobredito tal (presunção) poderia ser censurado pelo STJ nos termos antes enunciados.
Na articulação desta presunção, que confirma a declaração tácita dos recorrentes, com o direito aplicado ao caso e cujo enquadramento as partes não questionam, o DL 67/2003, de 8 de Abril, aplicável aos contratos de compra e venda celebrados entre profissionais e consumidores estabelece que o vendedor tem o dever de entregar ao consumidor bens que sejam conformes com o contrato de compra e venda – art. 2º, nº 1; o vendedor responde perante o consumidor por qualquer falta de conformidade que exista no momento em que o bem lhe é entregue – art. 3º nº 1; em caso de falta de conformidade do bem com o contrato, o consumidor tem direito a que esta seja reposta sem encargos, por meio de reparação ou de substituição, à redução adequada do preço ou à resolução do contrato – art. 4º nº 1- e o consumidor pode exercer qualquer dos direitos referidos nos números anteriores, salvo se tal se manifestar impossível ou constituir abuso de direito, nos termos gerais – art. 4º nº 5. Tendo o consumidor direito a que seja resposta sem encargos, por meio de reparação ou de substituição, redução adequada do preço ou resolução do contrato – David falcão, Lições de Direito do Consumo, p. 149 - a escolha por um desses direitos não tem hierarquia nem prioridade e apenas se encontra limitada pela impossibilidade ou pelo abuso de direito – Jorge Morais de Carvalho, Manual de Direito do Consumo, 6ª ed., p. 318.
No quadro normativo enunciado e por subsunção dos factos provados, se por um lado os autores apresentaram nas diversas vezes o carro à ré que o reparou tendo aceitado essas reparações e a viatura quando depois de reparada lhes foi devolvida, cabendo aos ora recorrentes fazer a prova de que a reparação fora feita contra as suas vontade e de que, aquando da receção do automóvel, informaram a ré, de que relativamente a essas reparações escolhiam e pretendiam não a reparação mas um dos três direitos previstos no art. 4º, nº 1, do Decreto-Lei nº 67/2003, máxime a substituição do veículo, tal prova não foi feita. Como se conclui com razão na decisão recorrida com abono em Jorge Morais de Carvalho - op.cit p. 322 - “No caso de o consumidor ter denunciado a falta de conformidade do bem e o vendedor, sem oposição, ter reposto a conformidade através de reparação, o consumidor deixa de poder exercer qualquer outro direito, uma vez que o bem voltou a estar em conformidade com o contrato” só não sucedendo tal “se no momento da denúncia da falta de conformidade, o consumidor tivesse optado imediatamente por um dos outros direitos”, o que não se verificou no caso.
Em resumo havendo declaração tácita por parte dos autores no sentido de terem pretendido a reparação do veículo e não havendo prova (não tendo os autores realizado) alguma que contrarie esta declaração, nomeadamente, que tenham declarado na entrega do veículo à ré que reclamavam a substituição deste e/ou que a reparação pela ré tenha sido realizada contra essa vontade, improcedem na totalidade as conclusões de recurso, devendo ser negada a revista.
… …
Síntese conclusiva
- O Supremo Tribunal de Justiça conhece do direito, cabendo-lhe aplicar definitivamente o regime jurídico que julgue adequado, estando-lhe vedado, por regra, apreciar a matéria de facto fixada pelas instâncias recorridas - art. 682 nº 1 do CPC, sem embargo de em caso de insuficiência ou contradição da decisão de facto que inviabilize a decisão de direito poder devolver os autos ao tribunal recorrido.
- Nos casos taxativamente previstos no art. 674 nº 3 do CPC o STJ pode sindicar a ofensa de disposição legal expressa que exija determinada espécie de prova para a existência do facto ou que fixe a força de lei de determinado meio de prova bem como pode fiscalizar o cumprimento dos ónus de impugnação da matéria de facto do art. 640 do CPC, que se inscreve nos fundamentos da revista por violação ou errada aplicação das leis de processo e na previsão do art. 674 nº 1 al. b) do CPC.
- O STJ apenas pode fiscalizar o uso das presunções judiciais por parte do Tribunal da Relação para verificar se da mesma decorre ofensa de qualquer norma legal, se padece de evidente ilogicidade ou se partiu de factos não provados.
- Estando provado que o autor entregou por diversas vezes o seu veículo à ré, consentindo que esta fizesse as reparações que entendesse por pertinentes e justificadas, tendo-o reparado e devolvido ao autor que o aceitou, não sofre censura a presunção judicial retirada pelo tribunal recorrido de que existiu declaração tácita dos autores escolhendo a reparação e não a substituição do veículo no contexto normativo do art. 4º nº 1 do Dec. Lei 67/2003.
… …
Decisão
Pelo exposto, acordam os juízes que compõem este tribunal em julgar improcedente a revista e, em consequência, confirmar a decisão recorrida.
Custas pelos recorrentes.
Lisboa, 3 de Fevereiro de 2022
Relator: Cons. Manuel Capelo
1º adjunto: Sr. Juiz Conselheiro Tibério Silva
2º adjunto: Sr.ª Juiz Conselheira Maria dos Prazeres Pizarro Beleza