Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
4165/21.0T8OER-A.L1.S1
Nº Convencional: 7.ª SECÇÃO
Relator: FÁTIMA GOMES
Descritores: RECURSO DE REVISTA
OBJETO DO RECURSO
QUESTÃO NOVA
CONTRATO DE COMODATO
PROCURAÇÃO
VALIDADE
PODERES DE REPRESENTAÇÃO
CONHECIMENTO OFICIOSO
TÍTULO EXECUTIVO
OPOSIÇÃO À EXECUÇÃO
Data do Acordão: 05/28/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA
Sumário :
I. Se no recurso de apelação não é colocada a questão da validade e poderes de uma procuração, que esteve na base da assinatura de um contrato de comodato, mas apenas se há título executivo, não pode aquela questão ser considerada no recurso de revista, porque este incide sobre recurso o acórdão da Relação, proferido sobre decisão da 1.ª instância, que conheça do mérito da causa ou que ponha termo ao processo, absolvendo da instância o réu ou algum dos réus quanto a pedido ou reconvenção deduzidos” – art.º 671.º do CPC.

II. A falta ou excesso de poderes do procurador não é questão de conhecimento oficioso.

Decisão Texto Integral:
Acordam no Supremo Tribunal de Justiça


I. RELATÓRIO

1. Por apenso à execução para entrega de coisa certa, que Operação Nariz Vermelho – Associação de Apoio à Criança move a AA, veio o executado deduzir oposição à execução, por meio de embargos, visando a respectiva procedência e a consequente extinção da execução.

Alegou, em síntese, que a exequente não possui título executivo porque o contrato de comodato, que lhe faculta o gozo gratuito do anexo do imóvel, apesar de datado de 01/01/2012, apenas foi assinado em 2019, já após o óbito da proprietária do imóvel. Reside no anexo desde 2010 porque a então proprietária, BB, acordou verbalmente com o ora embargante que poderia ali viver, gratuitamente, enquanto fosse vivo; apenas assinou o contrato porque o CC, arrogando-se procurador da BB, ameaçou que o despejaria porque não tinha título válido para ali residir.

2. Admitidos liminarmente os embargos, foi a exequente notificada e apresentou contestação.

Pugnou pela improcedência dos embargos dizendo que o contrato de comodato dado à execução é título executivo válido, à luz do acórdão do TC nº 408/2015, de 14/10/2015, porque assinado anteriormente à entrada em vigor do actual CPC. Nesse contrato, celebrado a .../.../2012, prevê-se, na cláusula 3ª, a respectiva caducidade automática um ano após o óbito da comodante, BB, que ocorreu a .../12/2019, pelo que o imóvel deveria ter sido entregue, pelo embargante, até ao dia 31/12/2020. Nessa altura o ora embargante solicitou autorização para permanecer no imóvel por mais três meses; porém, decorrido esse prazo, recusa-se a sair do imóvel.

3. Teve lugar a audiência prévia com saneamento do processo, indicação do objecto do litígio e temas de prova.

4. Foi realizada a audiência final em duas sessões e, com data de 31/05/2023, foi proferida sentença com o seguinte teor decisório:

“Pelo exposto, julgam-se procedentes os embargos, e declara-se extinta a execução.”

5. Inconformada, a exequente/embargada interpôs recurso de apelação, conhecido pelo Tribunal da Relação de Lisboa, que decidiu:

“Em face do exposto, acordam neste colectivo da 6ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Lisboa, julgar o recurso procedente e, em consequência, revogam a sentença sob impugnação, julgando os embargos à execução improcedentes, com o consequente prosseguimento da execução.”

6. Desse aresto veio interposto recurso de revista pelo embargante/executado, no qual são formuladas as seguintes conclusões (transcrição):

1º) O Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, datado de 21.12.2023 que revogou a Sentença Judicial proferida em Tribunal de 1ª Instância em 01.06.2023, deve ser revogado e manter-se a a Sentença Judicial proferida em Tribunal de 1ª Instância datada de 01.06.2023 que declarou procedente os Embargos de Executado

2º) O Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, datado de 21.12.2023, admitiu a impugnação da matéria dada como provada conforme invocado pela Exequente Embargante e procedeu á alteração da matéria dada como provada no sentido de considerar que o contrato de comodato foi assinado na data aposta no referido documento ou seja em 01 de Janeiro de 2012 que constitui título executivo, nos termos do artº 46º nº 1, al. c) do Código anterior (CPC/95), norma em vigor no momento da assinatura do documento

3º) Ocorre no entanto que a Sentença Judicial proferida em Tribunal de 1ª Instância em 01.06.2023, considerou igualmente inexistir poderes por parte do Procurador da Exequente, Senhor CC, para assinar tal contrato de comodato quando refere que a procuração cível (ponto 1) é bastante taxativa, não prevê contratos de comodato, e exclui expressamente contratos (venda e hipoteca) relativos ao imóvel ora em causa em contraposição ao remanescente do Património da Mandante.

4º) O Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, datado de 21.12.2023, aqui recorrido é omisso e não pronuncia-se sobre a validade ou nulidade do contrato de comodato que serve de base ao título executivo em face da inexistência de poderes por parte do Procurador da Exequente, Senhor CC.

5º) Para o efeito a procuração Cível junta aos Autos a favor do Procurador Senhor CC com base na qual assinou o contrato de comodato não lhe confere os poderes ao aludido Procurador para dar tal imóvel, sito na Rua ..., ..., ..., em comodato a terceiros, sendo que a referida procuração Cível é bastante taxativa, prevendo todos os actos para o genérico do património mas restringindo não prevendo contratos de comodato, e excluindo expressamente contratos (venda e hipoteca) relativos ao imóvel comodatado ora em causa que fica excluido do resto de poderes conferidos.

6º) O Contrato de Comodato junto aos autos, assinado pelo Procurador Senhor CC, constitui um acto de administração extraordinária, sendo pois um contrato gratuito, pelo que o comodatário não fica vinculado a alguma prestação correlativa da entrega da coisa móvel ou imóvel com vista ao respectivo uso, Cfr. Acórdão. do Supremo Tribunal de Justiça de 29/11/2005, no rec. nº 05B3775.

7º) A consequência da representação sem poderes, como resulta do disposto no art. 268º, nº. 1, do Cód. Civil, é a de ineficácia em relação à pessoa em nome de quem o negócio é celebrado, a menos que por ela seja ratificado – O que não aconteceu.

8º) O Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, datado de 21.12.2023, aqui recorrido nunca se pronunciou-se sobre a validade ou nulidade/ineficacia do contrato de comodato que serve de base ao título executivo em face da inexistência de poderes por parte do Procurador da Exequente, Senhor CC – Ao contrario do Tribunal de 1ª Instância, em violação ostensiva ao preceituado no artigo art.º 268º, nº. 1, do Cód. Civil

9º) Nestes termos não existe qualquer título executivo contra o Executado, e a Execução deverá ser declarada improcedente por falta de título executivo, absolvendo o executado da Instância Executiva por violação do referido contrato de comodato do artigo art. 268º, nº. 1, do Cód. Civil e do artigo 703º nº 1 alínea d) do CPC.”

Pede:

“Termos em que nos melhores de Direito mas sempre com o Muito douto suprimento de V. Exª deve o acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 21.12.2023 ser revogado por violação do artigo art. 268º, nº. 1, do Cód. Civil e do artigo 703º nº 1 alínea d) do CPC e mantendo-se a Sentença Judicial de 1ª Instancia datada de 01.06.2023 com a ressalva de absolvição da instância executiva ocorrer por violação do artigo art. 268º, nº. 1, do Cód. Civil no respeitante ao contrato de comodato e do artigo 703º nº 1 alínea d) do CPC.”

7. Foram apresentadas contra-alegações no qual são formuladas as seguintes conclusões (transcrição):

“A. Face ao Recurso de Apelação interposto pela Recorrida (ora, recorrente) e às contra-alegações apresentadas pela Recorrente (ora, recorrida), cumpria ao Tribunal a quo apreciar e decidir sobre:

a. A impugnação da matéria de facto, deduzida pela Recorrida, mais concretamente, os Pontos 5 dos Factos Provados e 8 dos Factos Não Provados da decisão proferida pelo Tribunal de Primeira Instância; e,

b. Em consequência da alteração da matéria de facto – data da assinatura do Contrato de Comodato – a validade mesmo, enquanto título executivo, nos termos e para os efeitos da alínea b) do Artigo 703.º do CPC.

B. O Recurso de Revista interposto pela Recorrente assenta apenas e exclusivamente no alegado erro de apreciação da prova e fixação da matéria em causa, incorrido pelo Tribunal a quo, na medida em que este último, não se pronunciou, em concreto, sobre a validade do Contrato de Comodato, em virtude da alegada invalidade da Procuração utilizada pelo Senhor CC para a celebração do mesmo.

C. Ora, não se discutia nem se discute, em concreto, a validade da aludida Procuração, mas sim a data em que o Contrato de Comodato foi assinado – ou mais rigorosamente, os instrumentos provatórios concludentes à prova da data da sua assinatura – e, por inerência a tal data, a validade do Contrato de Comodato enquanto título executivo.

D. Não poderá, pois, ser admissível o Recurso de Revista interposto pela Recorrente considerando que “o erro na apreciação das provas e na fixação dos factos materiais da causa não pode ser objeto de recurso de revista (…)” e ainda que “a decisão proferida pelo tribunal recorrido quanto à matéria de facto não pode ser alterada, salvo o caso excecional previsto no n.º 3 do artigo

E. Bem andou, desde logo, o Tribunal a quo em suprir a deficiência de que a decisão do Tribunal de Primeira Instância padecia, no que diz respeito à insuficiente – senão inexistente – especificação com precisão, dos factos provados e não provados.

F. Bem andou, também, o Douto Tribunal em providenciar pela apreciação de toda a prova junta autos – isto é, prova documental, testemunhal e depoimento do Recorrente – para a determinação da materialidade provada e não provada ao contrario do logrado pelo Tribunal de Primeira Instância.

G. De facto, o Tribunal a quo analisou os depoimentos de todas as testemunhas bem como do Recorrente, tendo concluído e bem, que o depoimento do Senhor CC Senhor CC foi tranquilo, coerente e lógico, esclarecendo o Tribunal a respeito de todos de todos os elementos cruciais e determinantes para a conclusão da data da assinatura do Contrato de Comodato: o “porquê”, o “momento em que foi assinado”, a “quem deveria a casa ser entregue”.

H. Face à prova documental junta aos autos (Contrato de Comodato datado de .../.../2012 e Certificação de Fotocópia do mesmo, pela Dr.ª DD, com a Cédula Profissional n.º ...24-L, com respetivo registo no site da Ordem dos Advogados, em ... de ... de 2020) e ao depoimento – coerente e lógico – do Senhor CC Senhor CC em clara contraposição dos prestados pelas demais testemunhas e pelo próprio Recorrente – inverosímeis, incoerentes e confusos – sempre se concluiria, com mais probabilidade, que o Contrato de Comodato foi assinado na data nele aposta e não depois do óbito da proprietária do imóvel, isto é, após o dia .../12/2019.

I. Assim, bem andou o Douto Tribunal ao julgar o Recurso de Apelação procedente e alterar a matéria de facto impugnada, passando a constar como Facto Provado o Ponto 8 dos Factos Não Provados da decisão do Tribunal de Primeira Instância, ou seja, que o “Contato de Comodato foi assinado na data nele aposta”.

J. Concluindo, assim, o Douto Tribunal – sem que outra conclusão pudesse ser legalmente admissível – pela validade do Contrato de Comodato enquanto título executivo, ao abrigo do disposto na alínea b) do Artigo 703.º do CPC, e na alínea c) do n.º 1 do artigo 46.º do Código de Processo Civil de 1961 (em vigor à data da sua assinatura).

K. Apesar de nos presentes autos não estar em causa a qualidade (procurador) em que o Senhor CC assinou o Contrato de Comodato, muito menos para efeitos da matéria de facto em que consiste a decisão aqui em discussão, sempre se dirá que a mesma não padece de qualquer vício, nem tampouco daquele que a Recorrente, agora, se pretende fazer valer.

L. O elemento literal e gramatical da aludida Procuração é claro: a sua autora, Sra. BB, concedeu ao Sr. CC, “poderes para, com livre e geral administração civil, reger e gerir todos os bens dela outorgante” vedando-o expressamente à celebração de quaisquer negócios de venda ou hipoteca em que o imóvel em causa fosse objeto.

M. Ora, se a Procuração em causa fosse taxativa como alega a Recorrente e a sua autora não pretende que o mandatário celebrasse, nomeadamente, Contratos de Arrendamento, sempre tê-lo-ia previsto expressamente, à semelhança do que fez relativamente à venda e hipoteca sobre o imóvel em causa.

N. Concluir-se pela taxatividade da Procuração, significaria que a interpretação levada a cabo pelo Tribunal se pautou numa manifesta e abrupta violação dos normativos legais constantes no n.º 1 dos Artigos 236.º, 237.º, 238.º, 239.º e 262.º do Código Civil e n.º 1 do Artigo 154.º e n.º 5 do Artigo 607.º, ambos do CPC, em plena revelia das circunstâncias de tempo e modo em que a mesma foi emitida – e que assumiram, in casu, extrema relevância.

O. Perante as presentes contra-alegações e os fundamentos supra expostos e sem prejuízo do demais que V. Exas entendam por conveniente, é da mais elementar Justiça pugnar pelo indeferimento do requerimento de Recurso de Revista apresentado pela Recorrente.

P. No entanto e caso assim não se entenda – o que por mera cautela de patrocínio se equaciona – mantém-se a necessidade da mais elementar Justiça, pugnando-se pela improcedência do Recurso de Revista apresentado.

Q. A representação sem poderes, prevista no art. 268.º do CC e alegada pelo Recorrente, não contende com a validade do negócio jurídico celebrado, mas tão só com a sua eficácia relativa, dado que o negócio celebrado por representante sem poderes é simplesmente ineficaz, e apenas relativamente ao representado, vício que apenas poderia ser invocado pela Comodante (ou respetivos herdeiros), porque só a ela o negócio é inoponível e não ao Recorrente.

R. Não existe quaisquer indícios nos autos de que o Recorrente tenha (i) notificado a representada ou os seus herdeiros para ratificação do negócio, concedendo um prazo para o efeito ou (ii) procedido à revogação do negócio, tendo, ao invés, o Recorrente aceite plenamente o Comodato celebrado entre as Partes e usado esse Comodato para se manter, ilegal e abusivamente, no Imóvel objeto dos autos.

S. O racional do Recorrente é aberta e expressamente atentatório da lei e da boa-fé: invocar agora uma potencial falta de poderes do Procurador não para anular o negócio e devolver o Imóvel mas sim para invocar uma pretensa falta de título executivo para se manter ilegalmente no Imóvel por um período bastante superior ao já decorrido, o que ofende os princípios gerais de direito e a jurisprudência deste Douto Tribunal.

T. Neste quadro, o regime de invocação da ineficácia do contrato de arrendamento – caso aplicável, o que não se concede - por parte do Recorrente deverá ficar paralisado, por abuso de direito, em conformidade com o disposto no artigo 334.º do CC, porque, se assim não fosse, o exercício de tal direito, nos termos pretendidos pelo Recorrente, consubstanciaria uma atuação manifestamente abusiva, face ao que um procedimento conforme à boa fé lhe imporia e que conduziria a um resultado esdrúxulo e iníquo.”

Pede:

“Nestes termos e nos melhores de Direito, mas sempre com o Mui Douto suprimento de V. Exas, Juízes Conselheiros deste Tribunal:

a. O Requerimento de Recurso de Revista apresentado pela Recorrente deverá ser indeferido, nos termos do disposto no Artigo 641.º e para os efeitos do disposto no n.º 3 do Artigo 674.º e o n.º 2 do Artigo 682.º, ambos do CPC.

Caso assim não se entenda, o que por mera cautela de patrocínio se equaciona: a) Deverá o presente Recurso de Revista ser declarado improcedente, mantendo-se integralmente a decisão proferida pelo Tribunal a quo.”

8. O recurso foi admitido com a prolação do seguinte despacho:

Porque admissível em função da lei (artº 854º, última parte, do CPC) e do valor da causa e do decaimento/sucumbência (artº 629º nº 1), o recorrente ter legitimidade (artº 631º nº 1) e o recurso ser tempestivo (artº 638º nº 1, 1ª parte), admite-se o recurso interposto pelo embargante/executado, o qual é de Revista, sobe nos autos e com efeito meramente devolutivo (artºs 854º, 671º nº 1, 675º nº 1 e, 676º nº 1). Notifique e remeta ao Supremo Tribunal de Justiça.”

II. Fundamentação

9. De facto

Factos Provados (conforme definidos no acórdão recorrido, após conhecimento da impugnação da matéria de facto):

1 - Em ...-10 BB outorgou a “PROCURAÇÃO” junta a fls 25 a 28, constituindo seu procurador CC, a quem concedeu (…) poderes para, com livre e geral administração civil reger e gerir todos bens dela outorgante (…) dar e tomar de arrendamento quaisquer prédios (…) representá-la em quaisquer reuniões ou assembleias de condóminos (…) para receber quaisquer importâncias em dinheiro (…) nomeadamente pensões, reformas ou quaisquer outros subsídios (…) junto de qualquer banco ou instituição de crédito, abrir, movimentar e cancelar quaisquer contas, à ordem ou a prazo (…) nas estações de correio levantar valores declarados, cartas registadas, encomendas postais (…) junto (…) Instituto de Gestão do Crédito Público, IP, tratar de quaisquer assuntos respeitantes a certificados de aforro (…) solicitar qualquer informação, movimentar, resgatar os mesmos, procedendo ao seu levantamento (…) representá-la junto de quaisquer Repartições de Finanças (…) comprar, proceder à divisão de coisa comum, hipotecar quaisquer bens ou direitos, móveis ou imóveis, excepto a casa onde tiver residência, designadamente, a casa onde habita actualmente, situada Rua ... (antigo lote 9) ... (…) outorgar autos de expropriação amigável (…) representá-la nas Câmaras Municipais e Serviços Municipalizados. Junto de quaisquer instituições de crédito contrair empréstimos, pelos montantes, juros, prazos, condições e obrigações que entender (…) e em segurança dos mesmos empréstimos constituir hipoteca sobre quaisquer bens ou direitos prediais, excepto a casa onde habita actualmente, situada Rua ... (antigo lote 9) ... (…) aceitar doações (…) com os demais interessados ou co-herdeiros, proceder a quaisquer partilhas judiciais ou extrajudiciais (proceder a quaisquer actos de registo (…) apresentar queixas de qualquer tipo (…) representá-la em juízo…”

2 - Em ...-12 BB fez o “Testamento” junto com o requerimento executivo, pelo qual “… revogando expressamente, qualquer outro, anteriormente feito, lega à associação de solidariedade social denominada “Operação Nariz Vermelho – Associação de Apoio à Criança” … o prédio urbano sito no bairro da ..., Lote nove, freguesia e concelho de ..., descrito na primeira Conservatória do Registo Predial de ... sob o número onze mil e trita e nove, da dita freguesia, inscrito na respectiva matriz sob o artigo 3511.”

3 - BB faleceu em ...-19.

4 - Em 15-I-20 foi certificada a fotocópia do “CONTRATO DE COMODATO” (datado de ...-12, do qual consta “BB…como comodante, doravante designada por 1º contraente, neste acto representada pelo Sr. CC…na qualidade de Procurador Privado. AA… domiciliado na Rua ..., Anexo…portador do passaporte nº B.....75, emitido aos .../.../2009 pela República da ..., como comodatário, doravante designado por 2º contraente… Cláusula 1ª O 1º contraente é proprietária…do prédio urbano sito na ..., freguesia de ..., Rua ... (antigo lote 9)… Cláusula 2ª Pelo presente contrato, o 1º Contraente cede gratuitamente ao 2º contraente o anexo do prédio referido na cláusula anterior, para que este resida/habite nele, no entanto fica obrigado a conservar o imóvel, garantir e zelar, pela sua segurança e a manter o jardim limpo e em bom estado de conservação. Cláusula 3ª O prazo do presente contrato é de 5 (cinco) anos a contar da data da assinatura do mesmo, sendo prorrogável por períodos sucessivos de 1 (um) ano após a minha morte, devendo o mesmo ser entregue á Dra. EE, ... da Operação Nariz Vermelho, uma vez que irei fazer segundo a minha vontade pessoal o testamento a favor desta instituição, para ser a sede desta em .... Cláusula 4ª 1.O presente contrato caduca automaticamente no decurso do prazo referido na cláusula 3ª independentemente de quaisquer comunicações nesse sentido. 2.O presente contrato cessa com a comunicação do 1º Contraente ao 2º Contraente feita por carta registada com aviso de recepção e com uma antecedência mínima de 6 (seis) meses relativamente ao fim do contrato. ..., ... de 2012

O 1º Contraente, seguindo-se a assinatura manuscrita de CC

O 2º Contraente, seguindo-se a rubrica do AA”

5 - O “CONTRATO DE COMODATO” foi assinado na data nele aposta. * (alterado em consequência da impugnação da matéria de facto).

6 - Em 23-XI-20 foi registada a favor da ora embargada a aquisição do prédio descrito na 1ª C.R.P. de ... com o nº ...39.

7 - Em data incerta (cerca de I-21) o embargante entregou as chaves da casa à embargada, ficando com as do ‘anexo’ – tendo sido autorizada a sua permanência por mais três meses.

Factos não provados

8 - O documento supra foi assinado depois de 5-XII-19. * (alterado em consequência da impugnação da matéria de facto);

9 – Em 2010 BB acordou verbalmente com o embargante que poderia viver no anexo até à morte deste, sem pagar qualquer quantia.

De Direito

10. O objeto do recurso é delimitado pelas conclusões do Recurso apresentado pelo recorrente – embargante – não podendo este Tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que sejam de conhecimento oficioso e devendo limitar-se a conhecer das questões e não das razões ou fundamentos que àquelas subjazam, conforme previsto no direito adjetivo civil - arts. 635º n.º 4 e 639º n.º 1, ex vi, art.º 679º, todos do Código de Processo Civil.

Tendo em conta as conclusões da revista, a única questão que aí se suscita é a de saber se a procuração que esteve na base da assinatura do título executivo comportava os poderes necessários à outorga do contrato de comodato e se este seria válido.

11. Antes de entrar na análise da questão suscitada no presente recurso, façamos um enquadramento do modo como o processo se desenvolveu nas instâncias, nomeadamente após a prolação da sentença que julgou os embargos procedentes por falta de título executivo.

Esta decisão foi fundamentada nos seguintes termos:

“Importa começar por notar que o embargante sabe que não tem título para ocupar o imóvel (ou parte dele): ainda que tivesse sido demonstrada a existência de um comodato vitalício (verbal), este ter-se-ia extinguido com a morte da titular do direito de propriedade (CC 1130º/1); no entanto, a questão aqui a decidir é a de saber se o documento apresentado constitui título executivo – e a resposta não pode deixar de ser negativa. Tendo o documento sido assinado após a morte da proprietária, são aplicáveis as regras do artigo 703º do CPC, aprovado pela Lei 41/13 de 26-VI – pelo que só constituiria título executivo se estivesse autenticado. Assim sendo, a execução não pode prosseguir (CPC 726º/2a)) – sendo necessária a instauração de acção declarativa para obter a condenação do ora embargante na restituição da coisa.”

Seguindo-se à sentença o recurso é natural que a questão suscitada estivesse reportada à questão decidida e com a qual o recorrente não se conformasse – sendo recorrente a exequente/embargada – que era a parte a quem a decisão era desfavorável.

É até duvidoso que a sentença contenha uma verdadeira decisão sobre a validade da procuração, como indica o recorrente, porquanto aí se disse apenas o seguinte, no âmbito do apuramento dos factos provados e não provados e para justificar a opção do tribunal:

“Quanto ao ponto 5, CC declarou que o documento foi assinado (por si) na data nele aposta – mas esta declaração é inverosímil, uma vez que não tinha poderes para o fazer: a procuração (ponto 1) é bastante taxativa, não prevê contratos de comodato, e exclui expressamente contratos (venda e hipoteca) relativos ao imóvel ora em causa.”

E sobre a questão a sentença não disse mais nada, nem retirou qualquer ilação com reflexo na decisão dos embargos.

Por outro lado, sendo a apelação delimitada pelas questões nela apresentadas, o tribunal considerou que as mesmas eram (nas palavras do tribunal):

“Assim, em face das conclusões apresentadas pela recorrente, são as seguintes as questões que importa analisar e decidir:

a. - A Impugnação da Matéria de Facto;

b. - A revogação da sentença, com a improcedência dos embargos à execução.”

E foi sobre essas questões que o tribunal se debruçou, até porque não existiam motivos para conhecer de outras, não suscitadas, apesar de o embargante ter contra-alegado, sem que essa contra-alegação tenha efeitos no alargamento do objecto do recurso.

12. Assim, na apelação a questão decidida foi a de saber se havia título executivo, questão associada à impugnação da matéria de facto e em que se questionava a data em que o contrato de comodato havia sido assinado, uma vez que a embargada/apelante impugnou a decisão sobre a matéria de facto dada aos pontos 5º dos factos provados e 8º dos factos não provados, defendendo que o contrato foi assinado na data nele aposta (01/01/2012).

13. No referido recurso de apelação o embargante não ampliou o objecto, nem recorreu subordinadamente com vista a ver apreciada a questão de saber se o procurador tinha poderes para assinar o contrato (o requerimento indicou: “AA, solteiro, contribuinte nº ... ... .42, titular do cartão de cidadão nº ........ 4 ZY9, válido até ........2028, residente na Rua ..., Anexo A, ..., ..., Executado, Embargante e Recorrido nos Autos notificado da interposição de Recurso de Apelação da Sentença Judicial proferida nos presentes Autos de Embargos de Executado efectuada pela Exequente, Embargada e Recorrente vem apresentar as suas contra Alegações1).

O teor da contra-alegação do embargante foi assim concluída:

“1º) A Sentença Judicial recorrida deve ser mantida nos exactos termos em que foi proferida.

2º) O contrato de comodato junto pela Exequente como título executivo, apesar de ser datado de 2012 na verdade foi dado a assinar ao aqui executado em data posterior a .../12/2019 já após a morte da Sra. BB.

3º) As declarações de Parte do Executado Embargante Senhor AA prestadas na sessão de Julgamento de 02 de Fevereiro de 2023, vertidas no Ficheiro: 20230525102754_4555878_2871357 com a duração de 00:24:46, juntas aos Autos como Doc. nº 1 do Recurso de Apelação da Exequente, embargada e Recorrente, confirmam que o contrato de comodato ora junto pela Exequente como título executivo, apesar de referir ser datado de 2012 na verdade foi dado a assinar ao aqui executado em data posterior a 05/12/2019 já após a morte da Sra. BB.

4º) O depoimento da Testemunha FF, prestada na sessão de Julgamento de 02 de Fevereiro de 2023, vertidas no Ficheiro: 20230202142226_4555878_2871357 com a duração de 00:12:48, juntas aos Autos como Doc. nº 1 do Recurso de Apelação da Exequente, embargada e Recorrente, confirma por sua vez que o contrato de comodato ora junto pela Exequente como título executivo, apesar de referir ser datado de 2012 na verdade foi dado a assinar ao aqui executado em data posterior a 2012 II- Da inexistência de título executivo nos termos do artigo 703º nº 1 alínea b) do CPC por inexistência de contrato de comodato exarado por notário ou autenticado por notário ou entidades com competência para tal

5º) Ficou provado que o contrato de comodato ora junto pela Exequente apesar de referir ser datado de 2012 na verdade foi dado a assinar ao aqui executado em 2019 já após a morte da Sra. BB.

6º) O contrato de comodato ora junto pela Exequente apesar de referir ser datado de 2012 na verdade foi dado a assinar ao aqui executado após a reforma do Processo Civil de 2013

7.º) Os simples documentos particulares foram desqualificados como títulos executivos pela reforma do Processo Civil de 2013.

8º) O contrato de comodato ora junto pela exequente, assinado após reforma do Processo Civil de 2013., não cumpre, pois, os requisitos próprios de um título executivo conforme previsto nos termos do artigo 703º nº 1 alínea b) do CPC

9º) Não existe um título executivo contra o Executado, sendo correcta a decisão do tribunal recorrido que decidiu a Execução improcedente por falta de título executivo, absolvendo o executado da Instância Executiva por violação do artigo 703º nº 1 alínea b) do CPC –

iii- Da ausência de Poderes do Procurador CC para celebrar o Contrato de Comodato junto aos autos

10º) O Contrato de Comodato junto aos autos, assinado pelo Procurador Senhor CC, constitui um acto de administração extraordinária, sendo contrato gratuito, em que o comodatário não fica vinculado a alguma prestação correlativa da entrega da coisa móvel ou imóvel com vista ao respectivo uso, Cfr. Ac. do STJ de 29/11/2005, no rec. nº 05B3775

11º) A procuração Cível junta aos Autos a favor do Procurador Senhor CC com base na qual assinou o contrato de comodato não confere os poderes ao aludido Procurador para dar tal imóvel, sito na Rua ..., ..., ..., em comodato a terceiros,

12º) A referida procuração Cível é bastante taxativa, não prevendo contratos de comodato, e excluindo expressamente contratos (venda e hipoteca) relativos ao imóvel comodatado sito na Rua ..., ..., ..., que fica excluído e excepcionado do resto de poderes conferidos na aludida Procuração.

13º) O contrato de comodado sempre seria nulo por falta de poderes do outorgante

14) Não existe qualquer título executivo contra o Executado, e o Tribunal decidiu bem declarando a Execução improcedente por falta de título executivo, absolvendo o executado da Instância Executiva por violação do artigo 703º nº 1 alínea b) do CPC

Termos em que nos melhores de Direito, mas sempre com o Muito Douto Suprimento de V. Exª deve o recurso interposto ser julgado improcedente e em consequência a Sentença Judicial recorrida ser mantida.”

14. Na apelação o Tribunal disse:

“O tema jurídico essencial que se colocam nestes embargos reside na questão de saber se o contrato de comodato dado à execução constitui, ou não, título executivo. Se o contrato foi celebrado em data posterior à da entrada em vigor do CPC de 2103 (01/09/2013), a resposta é negativa visto que os documentos particulares, assinados pelo devedor, que reconheçam a obrigação de entrega de coisa, deixaram de ser títulos executivos face ao que dispõe o artº 703º do CPC/2013. Já se o documento é assinado em data anterior à da entrada em vigor do CPC/2013, então, face à doutrina que resulta do acórdão do Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 408/2015, de 14/10/2015, publicado no DR I Série, nº 201/2015 de 2015-10-14 que decidiu “Julgar, com força obrigatória geral, a inconstitucionalidade da norma que aplica o artigo 703.º do Código de Processo Civil, aprovado em anexo a Lei n.º 41/2013, de 26 de junho, a documentos particulares emitidos em data anterior a sua entrada em vigor, então exequíveis por força do artigo 46.º, n.º 1, alínea c), do Código de Processo Civil de 1961, constante dos artigos 703.º do Código de Processo Civil e 6.º, n.º 3, da Lei n.º 41/2013, de 26 de junho.”, então, esse contrato constitui título executivo. De resto, a doutrina alinha pelo mesmo diapasão. Rui Pinto (A Ação Executiva, AAFDL, 2018, pág. 206 a 211) menciona a defesa da inconstitucionalidade da supressão da norma semelhante à prevista no artº 46º nº 1, al. c) do Código anterior e, refere a evolução jurisprudencial que culminou com a prolação do acórdão do TC de 14710/2015, que declarou essa inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, baseando-se na necessidade de garantir o princípio da protecção da confiança previsto no artº 2º da CRP. No mesmo sentido, Marco Carvalho Gonçalves (Lições de Processo Executivo, 5ª edição, págs. 124 a 128). Pois bem, tendo em conta a alteração da matéria de facto, que levou a que se considerasse provado que o contrato foi assinado na data nele aposta (01/01/2012) e, à luz daquela jurisprudência constitucional e da doutrina que dela emergiu, temos de concluir que, no caso dos autos, o Contrato de Comodato apresentado à execução, porque datado e celebrado em 01/01/2012 e, no qual consta a assinatura do executado/embargante e, onde é reconhecida a obrigação de entrega de coisa, constitui título executivo.

De resto, a doutrina alinha pelo mesmo diapasão. Rui Pinto (A Ação Executiva, AAFDL, 2018, pág. 206 a 211) menciona a defesa da inconstitucionalidade da supressão da norma semelhante à prevista no artº 46º nº 1, al. c) do Código anterior e, refere a evolução jurisprudencial que culminou com a prolação do acórdão do TC de 14710/2015, que declarou essa inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, baseando-se na necessidade de garantir o princípio da protecção da confiança previsto no artº 2º da CRP. No mesmo sentido, Marco Carvalho Gonçalves (Lições de Processo Executivo, 5ª edição, págs. 124 a 128). Pois bem, tendo em conta a alteração da matéria de facto, que levou a que se considerasse provado que o contrato foi assinado na data nele aposta (01/01/2012) e, à luz daquela jurisprudência constitucional e da doutrina que dela emergiu, temos de concluir que, no caso dos autos, o Contrato de Comodato apresentado à execução, porque datado e celebrado em 01/01/2012 e, no qual consta a assinatura do executado/embargante e, onde é reconhecida a obrigação de entrega de coisa, constitui título executivo. Sem necessidade de outros considerandos conclui-se que o recurso procede.”

15. Quer isto dizer que a questão da procuração – validade e poderes – não foi questão resolvida na apelação, nem aí suscitada.

E como tal, não pode igualmente ser questão a tratar na revista, em que o recurso incide sobre o acórdão do Tribunal da Relação – art.º671.º, n.º1 do CPC – e não sobre a sentença.

Acresce que a questão da validade da procuração ou utilização da mesma fora dos poderes conferidos pelo procurador não é questão de conhecimento oficioso – art.º 268.º do CC – gerando apenas ineficácia – pelo que também aqui não se vê como pode este tribunal conhecer do ponto.

16. Sendo esta a única questão que é suscitada na revista - a validade ou nulidade/ineficácia do contrato de comodato que serve de base ao título executivo em face da inexistência de poderes por parte do Procurador da Exequente, Senhor CC – a revista deve improceder.

17. No que se reporta à decisão sobre a existência de título executivo, tal como a mesma veio decidida pelo tribunal recorrido, e porque o mesmo tribunal procedeu a uma alteração da matéria de facto sobre a qual o STJ aplica o direito, nada há a apontar no sentido de a mesma violar a lei.

III. Decisão

Pelos fundamentos indicados é negada a revista e confirmado o acórdão recorrido.

Custas pelo recorrente, sem prejuízo do apoio judiciário.

Lisboa, 28 de Maio de 2024


Relator:
Fátima Gomes

1ª adjunta - Maria dos Prazeres Pizarro Beleza

2º adjunto - Sousa Lameira

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1. Sublinhado nosso.