Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
263/22.0PQLSB.L1.S1
Nº Convencional: 5.ª SECÇÃO
Relator: CELSO MANATA
Descritores: RECURSO PER SALTUM
VIOLÊNCIA DOMÉSTICA
ABUSO SEXUAL DE CRIANÇAS
ABUSO SEXUAL DE MENORES DEPENDENTES
PORNOGRAFIA DE MENORES
IMPORTUNAÇÃO SEXUAL
QUALIFICAÇÃO JURÍDICA
REFORMATIO IN PEJUS
MEDIDA CONCRETA DA PENA
PENA PARCELAR
PENA ÚNICA
REPARAÇÃO OFICIOSA DA VÍTIMA
Data do Acordão: 06/04/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: PROVIDO EM PARTE.
Sumário :
I - O STJ pode, em recurso, alterar oficiosamente a qualificação jurídico-penal efetuada pelo tribunal recorrido, mesmo para crime mais grave, sem prejuízo, porém, da proibição da reformatio in pejus;
II - Para esse efeito e em obediência ao disposto no n.º 2 do art. 424.º do CPP, deve, previamente, dar conhecimento ao arguido dessa intenção e conceder-lhe o prazo de 10 dias para, querendo, sobre a mesma se pronunciar;
III - Na sequência da aludida alteração da qualificação jurídica pode ser aplicada ao arguido pena mais grave, uma vez que também foi interposto recurso pela assistente, o que afasta a proibição de reformatio in pejus;
IV - A introdução de dois dedos e da língua na vagina de uma criança, com menos de 14 anos, integra o crime de abuso sexual de criança, p. e p. pelo art. 171.º, n.os 1 e 2 (e não apenas pelo n.º 1), agravado pelo disposto no art. 177.º, n.º 1, al. a), todos do CP;
V - Face às molduras penais abstratamente aplicáveis, atentos os critérios de escolha e determinação da pena, p. e p. nos arts. 40.º, 70.º e 71.º do CP, confrontados com a factualidade dada como provada e subsumível a 1 crime de violência doméstica p. e p. pelo art. 152.º, n.º 1, als. d) e e) e n.º 2, a 726 crimes de abuso sexual de criança, p. e p. pelos art. 171.º, n.º 1, agravados pelo art. 177.º, n.º 1, al. a), a 4 crimes de abuso sexual de criança, p. e p. pelos arts. 171.º, n.os 1 e 2, agravado pelo art. 177.º, n.º 1, al. a), a 345 crimes de abuso sexual de menores dependentes agravados, p. e p. pelos arts. 172.º, n.º 1, als. a) e b) e 177.º, n.º 1, al. a), a 137 crimes de pornografia de menores agravado, p. e p. pelos arts. 176.º, n.º 1, als. b) e d) e 8 e 177.º, n.º 1, als. a) e b) e a 1 crime de importunação sexual, p. e p. pelo art. 170.º, todos do CP, não se consideram adequadas, com exceção para as aplicadas aos primeiro e último dos crimes supra referenciados, as penas parcelares concretamente aplicadas ao recorrente.
VI - Com efeito, dessa matéria de facto decorre, designadamente, que o arguido praticou tais crimes contra a sua filha menor (nascida a 09-12-2007) diária, persistentemente e em crescendo, durante 4 anos, através de diversas práticas sexuais, mediante ameaça, com violência física e psíquica e causando-lhe dor, sofrimento e vergonha (que inclusivamente a levou a auto-mutilar-se, por várias vezes), confessando os factos - dos quais ele próprio já tinha sido vítima quando menor - mas sem mostrar arrependimento e revelando reduzida ressonância afetiva pela menor, quadro que dificilmente encontra paralelo nas situações apreciadas pela nossa jurisprudência e que demanda penas mais severas do que as aplicadas;
VII - A apreciação global dos factos acima referidos e da personalidade do agente justificam a sua condenação, ao abrigo e nos termos do art. 77.º do CP, numa pena única de 18 anos e 6 meses de prisão;
VIII - Tais factos justificam, também, a condenação do arguido, ao abrigo do disposto no art. 82.º-A do CP, numa reparação à vítima que se fixa em € 25 000 euros.
Decisão Texto Integral:

Recurso Penal – 263/22.0PQLSB.L1.S1


5ª Secção Criminal


Relator: Celso Manata


Adjuntos: Agostinho Torres (1º) e Leonor Furtado (2º)


Tribunal Recorrido: Juízo Central Criminal de ... – Juiz ...


Acórdão recorrido: 02 de novembro de 2023


Recorrentes: AA (arguido) e BB (assistente)


Sumário:


I – O Supremo Tribunal de Justiça pode, em recurso, alterar oficiosamente a qualificação jurídico-penal efetuada pelo tribunal recorrido, mesmo para crime mais grave, sem prejuízo, porém, da proibição da reformatio in pejus;


II – Para esse efeito e em obediência ao disposto no nº 2 do artigo 424º do Código de Processo Penal, deve, previamente, dar conhecimento ao arguido dessa intenção e conceder-lhe o prazo de 10 dias para, querendo, sobre a mesma se pronunciar;


III –Na sequência da aludida alteração da qualificação jurídica pode ser aplicada ao arguido pena mais grave, uma vez que também foi interposto recurso pela assistente, o que afasta a proibição de reformatio in pejus;


IV - A introdução de dois dedos e da língua na vagina de uma criança, com menos de 14 anos, integra o crime de abuso sexual de criança, p. e p. pelo art. 171º, nºs 1 e 2 (e não apenas pelo nº 1), agravado pelo disposto no artº 177º, nº1, al. a), todos do Código Penal;


V - Face às molduras penais abstratamente aplicáveis, atentos os critérios de escolha e determinação da pena, p. e p. nos arts. 40.º, 70.º e 71.º, do Código Penal, confrontados com a factualidade dada como provada e subsumível a 1 crime de violência doméstica p. e p. pelo art.152º, nº1, als. d) e e) e nº2, a 726 crimes de abuso sexual de criança, p. e p. pelos art. 171º, nº1, agravados pelo artº 177º, nº1, al. a), a 4 crimes de abuso sexual de criança, p. e p. pelos arts. 171º, nºs 1 e 2, agravado pelo art. 177º, nº1, al. a), a 345 crimes de abuso sexual de menores dependentes agravados, p. e p. pelos arts. 172º, nº1, als. a) e b) e 177º, nº1, al. a), a 137 crimes de pornografia de menores agravado, p. e p. pelos arts. 176º, nº1, al. b) e d) e 8 e 177º, nº1, als. a) e b) e a 1 crime de importunação sexual, p. e p. pelo art. 170º, todos do Código Penal, não se consideram adequadas, com exceção para as aplicadas aos primeiro e último dos crimes supra referenciados, as penas parcelares concretamente aplicadas ao recorrente.


VI - Com efeito, dessa matéria de facto decorre, designadamente, que o arguido praticou tais crimes contra a sua filha menor (nascida a ........2007) diária, persistentemente e em crescendo, durante 4 anos, através de diversas práticas sexuais, mediante ameaça, com violência física e psíquica e causando-lhe dor, sofrimento e vergonha (que inclusivamente a levou a auto-mutilar-se, por várias vezes), confessando os factos - dos quais ele próprio já tinha sido vítima quando menor - mas sem mostrar arrependimento e revelando reduzida ressonância afetiva pela menor, quadro que dificilmente encontra paralelo nas situações apreciadas pela nossa jurisprudência e que demanda penas mais severas do que as aplicadas;


VII – A apreciação global dos factos acima referidos e da personalidade do agente justificam a sua condenação, ao abrigo e nos termos do art. 77º do Código Penal, numa pena única de 18 anos e 6 meses de prisão;


VIII – Tais factos justificam, também, a condenação do arguido, ao abrigo do disposto no art. 82º-A do Código Penal, numa reparação à vítima que se fixa em 25.000 euros.


ACÓRDÃO


Acordam, em conferência, na 5ª secção do Supremo Tribunal de Justiça:


A - Relatório


A.1. AA, arguido e ora recorrente, com a identificação dos autos, bem como a assistente - BB - interpõem recursos para este Supremo Tribunal de Justiça do acórdão proferido a 2 de novembro de 2023, pelo Juízo Central Criminal de ..., Juiz ... - Tribunal Judicial da Comarca … –, que condenou aquele nos seguintes termos (transcrição integral da parte decisória):


“9-DECISÃO


Pelo exposto, ao abrigo das disposições legais citadas, decide o Coletivo de Juízas:


Julgar a acusação procedente, por provada e, em consequência:


Condena o arguido AA:

a. Pela prática de um crime de violência doméstica, p. e p. pelo artº 152º, nº1, al .d) e e) e nº2 do C.P. na pena de quatro anos e nove meses de prisão.

b. Pela prática do crime de abuso sexual de criança, p. e p. pelos artigos 171, nº1, agravado pelo artº 177, nº1, al. a) do C.P. correspondente a 724 crimes de abuso sexual de criança agravado por ser pai da BB e consistentes na observação da vulva, suportando ter que ser fotografada – um ano e seis meses de prisão para cada um.


Pelos dois crimes em que, alem de observar a vulva e fotografar, mexeu com um cotonete nos lábios e vagina da filha - dois anos de prisão para cada um.


Pelos quatro crimes que além de observar a vulva e fotografar, meteu os dedos e a língua, protegidos com um plástico, na vagina da filha – quatro anos de prisão para cada um.

c. Pela prática de crime de abuso sexual de menores dependentes agravados, p. e p. pelo artº 172, nº1, als a) e b) e 177, nº1, al. a) do C.P. - Pelos 337 crimes em que se limitou a observar os seus órgãos sexuais fotografando-os - um ano e seis meses de prisão por cada um.


Pelas duas vezes que introduziu o cotonete na vagina da BB causando-lhe dor - dois anos e três meses de prisão para cada um.


Pela vez que além do referido lhe cortou os pelos púbicos - um ano e nove meses de prisão.


Pelas duas vezes que introduziu os dedos e a língua na vagina da BB sem o saco de plástico - quatro anos de prisão para cada um.


Pela vez que introduziu o vibrador a vibrar na vagina da BB causando-lhe dor - quatro anos e seis meses de prisão.


Pela vez que apalpou o rabo e beijou a boca da BB na presença do namorado desta - um ano e nove meses de prisão.


Pela vez que colocou a mão do CC nos seios da sua filha - um ano e nove meses de prisão.

d. Pela prática do crime de pornografia de menores agravado, p. e p. pelo artº 176, nº1, al. b) e d) e 8/177, nº1, al. a) e b) do C.P. - cento e trinta e sete crimes de pornografia de menores da pessoa da sua filha BB – dois anos para cada um dos crimes.

e. Pela prática do crime de importunação sexual, p. e p. pelo artº 170º do C.P. (na pessoa do CC) na pena de nove meses de prisão.

f. Em cúmulo jurídico, fixar em 16 (dezasseis) anos e 3 (três) meses de prisão a pena aplicar ao arguido – artº 77º do C.P.


Decide-se, ainda aplicar as seguintes sanções acessórias:

a. De proibição de contato com a vítima BB pelo período de cinco anos, com obrigação de frequência de programas específicos de violência doméstica – artº 152º, nº 4 do C.P.

b. Inibição do exercício das responsabilidades parentais pelo período de cinco anos – artº 152, nº6 do C.P.

c. proibição do exercício de funções por crimes contra a autodeterminação sexual e a liberdade sexual, por um período de dessásseis anos e três meses, nos termos do art. 69º- B do Código Penal.

d. proibição de confiança de menores e inibição de responsabilidades parentais ou do exercício de funções por crimes contra a autodeterminação sexual e a liberdade, por um período de por um período de dessásseis anos e três meses, nos termos do art. 69º- C do Código Penal.

e. Arbitrar à assistente, a quantia de € 7.500,00 (sete mil e quinhentos Euros) a título de reparação pelos prejuízos não patrimoniais sofridos - artº. 82º-A do C.P.P.

f. Condenar o arguido nas custas em 3 (três) UC, reduzidas a metade, atenta a confissão do arguido.

g. Determinar que ao arguido seja recolhida amostra para inclusão na base de dados de perfis de ADN prevista na Lei n.º 5/2008, de 12/2, e atento o disposto no artigo 8.º, n.º 2 dessa Lei. “


A.2. O arguido e a assistente - BB – não se conformam com essa decisão pelo que vieram da mesma recorrer.


São, há muito, doutrina e jurisprudência pacíficas (cfr., v.g., Germano Marques da Silva, Curso de Direito Processual Penal, III, 2ª edição revista e atualizada, Editorial Verbo, 2000, pág. 335, V e Acórdão do STJ de 28 de abril de 19991 e Acórdão do Pleno do STJ nº 7/95, de 19 de outubro de 20232) que, nos termos do disposto no artigo 412º, nº 1 do Código de Processo Penal, o âmbito do recurso é definido pelas conclusões que o recorrente extrai da sua motivação, sem prejuízo, forçosamente, da apreciação das questões de conhecimento oficioso.


A.2.1. Recurso do arguido


Assim, o arguido termina a sua motivação com as seguintes conclusões (transcrição integral):


“CONCLUSÕES

I. O presente Recurso tem por objecto, apenas, a medida da pena da pena aplicada ao arguido, entendendo-se que a Decisão recorrida, na ponderação efectuada pelo Tribunal, viola a al. d), do artº 71º, nº2, do C.P., por não terem as Mmªs Juízes valorado e considerado as “circunstâncias pessoais do arguido”, que infra se descrevem, passíveis de atenuação significativa da conduta culposa, que assumiu, através de confissão;

II. Reconhece-se, na douta Decisão que:

a. o arguido passou os primeiros anos de vida inserido no agregado familiar que se pautou por uma dinâmica familiar disfuncional, devido ao quadro de negligência vivenciado, na sequência da conduta alcoólica dos progenitores;

b. num quadro de evidente negligência parental, o arguido (e a irmã), ainda crianças, foram retirados do contexto familiar, tendo ambos sido colocados em regime de internamento, na Casa ...;

c) o arguido foi abusado, sexualmente, na Casa ..., onde cometeu duas tentativas de suicídio;

d. O arguido sofre de Perturbação de Personalidade de tipo Borderline, caracterizada, além do mais, por manifestações de impulsividade, baixa tolerância à frustração, receio extremado de abandono e rejeição e traços histriónicos de personalidade;

e. E que, como consequência, reconhecidamente o arguido revela fragilidades pessoais, de certa forma, limitantes em termos do seu funcionamento pessoal, especialmente ao nível de competências sociais,

III. Ou seja: Numa fase de formação da sua personalidade (infância e adolescência), o arguido perde a as referências parentais, num contexto de reconhecida negligência familiar, sobretudo o nível dos afectos e, num segundo momento, a institucionalização vem a revelar-se um acrescido factor de sofrimento pessoal, que originam tentativas de suicídio;

IV. Estas são, salvo melhor opinião, circunstâncias atenuantes da culpa, integrantes da previsão da citada norma (al. d), do artº 71º, nº2, do C.P.) que são vinculativas para o Tribunal, mas que não mereceram, como evidencia a sentença, qualquer tipo de valoração;

V. A ponderação e valoração destas circunstâncias, se levada a efeito, não poderia deixar de resultar numa diminuição acentuada da culpa do agente, com as inerentes consequências na fixação da pena concreta aplicada;

VI. Ponderação a que acresce o facto de o arguido ter confessado os factos (com excepção de uma das imputações), contribuindo para descoberta da verdade e não ter antecedentes criminais;

VII. Contexto em que, se entende a Decisão recorrida viola o artº 71º, nº1, e nº2, al. d), do CP devendo, ao abrigo do disposto no artº 428º, do CPP, este Tribunal reponderar a medida da pena aplicada ao arguido, decorrente da diminuição da sua culpabilidade, em consequência da comprovada verificação das circunstâncias pessoais supra descritas.”

A.2.2. Recurso da assistente


Por outro lado, a assistente termina a sua motivação com as seguintes conclusões (transcrição também integral):

EM CONCLUSÃO:

I. Vem o presente recurso, oportunamente interposto, do Acórdão proferido pelo Tribunal a quo, circunscrito às penas concretamente aplicadas ao Arguido, quer as penas parcelares (excepto quanto ao crime de violência doméstica), quer a pena aplicada em sede de cúmulo jurídico, e ainda ao valor arbitrado a título de reparação pelos prejuízos não patrimoniais sofridos.


II. A Recorrente, enquanto Assistente, tem legitimidade para recorrer do Acórdão ora colocado em crise, quanto à medida da pena concretamente aplicada ao Arguido, mesmo desacompanhada do Ministério Público.


III. Ora, os crimes praticados pelo Arguido na pessoa da Recorrente, sua filha, são eminentemente pessoais, tutelando, quanto à violência doméstica, um bem jurídico complexo e plural, visando essencialmente a saúde, entendida nas vertentes de saúde física, psíquica e/ou mental, mas abrangendo também a protecção da dignidade e liberdade pessoais e individuais, e quanto aos crimes de natureza sexual, a liberdade, desenvolvimento e autodeterminação sexuais.


IV. Nessa senda, e porque a punição, além de visar a reintegração do agente, e reforçar a confiança da comunidade na validade das normas jurídicas e do Direito Penal, visa acima de tudo tutelar e proteger os bens jurídicos, que, como se viu, são, in casu, eminentemente pessoais.


V. Assim, a Recorrente, enquanto vítima, enquanto titular dos bens jurídicos que os ilícitos praticados pelo Arguido visam proteger, tem um concreto, legítimo e real interesse na punição, que, funciona também, na perspectiva da vítima, como reconhecimento do seu sofrimento e da sua ponderação.


VI. Pois que foi a sua saúde física e psíquica, a sua dignidade e liberdade pessoais e individuais e a sua liberdade, desenvolvimento e autodeterminação sexuais que o Arguido atingiu, e de forma absolutamente vil e reiterada.


VII. Pelo que, deve ser reconhecido o interesse da Recorrente no recurso ora interposto, mesmo no que tange à discussão do acerto, ou não, das penas parcelares e da pena única aplicada ao Arguido.


VIII. As penas parcelares e a pena única aplicadas ao Arguido pecam por defeito, uma vez que a conduta do Arguido e a sua culpa impunham punição mais severa e exemplar.


IX. Considerando a relação de parentesco entre o Arguido e a vítima, pai e filha, a prática, quase diária, ao longo de praticamente quatro anos, desde os 11 anos de idade da Recorrente, dos crimes em causa, comportamentos que apenas cessaram quando e porque ao Arguido foi aplicada a medida de coação de prisão preventiva, a conduta do Arguido foi-se agravando e intensificando, levada a cabo na habitação familiar, apesar do Arguido ter sido também ele vítima de abusos sexuais, não se absteve de infligir tais condutas à própria filha, causando-lhe dor e sofrimentos ainda mais expressivos, até pela relação entre ambos, o Arguido, ao longo do processo, sempre se desresponsabilizou pelos actos praticados na pessoa da sua filha, não demonstrou perante e por esta qualquer arrependimento, empatia, preocupação ou cuidado, o Arguido demonstrou, ao longo das suas declarações em sede de julgamento, preocupação, única e exclusivamente, consigo mesmo, fruto da conduta do Arguido, a Recorrente encontra-se em instituição, ao abrigo da medida de promoção e protecção de acolhimento residencial, o Arguido praticou os actos em causa, na pessoa da Recorrente, deliberada e conscientemente, apenas para satisfação dos seus propósitos libidinosos e o distúrbio de personalidade apenas agrava e sedimenta a sua culpa, até pela ausência, deliberada, de acompanhamento e tratamento.


X. Não se poderá concordar que a culpa do Arguido é de grau médio, mas antes bastante intensa.


XI. A circunstância do Arguido ter sido vítima de abusos sexuais faz sobre o mesmo impender um dever acrescido de não sujeitar a própria filha a tais actos, jamais consistindo numa desculpa para o comportamento que adoptou, ao longo de quase 4 anos.


XII.O crime de abuso sexual de criança agravado, é punido com pena de prisão de 1 ano e 4 meses até 10 anos e 8 meses, tendo sido aplicada ao Arguido, consoantes os actos em causa, penas de 1 ano e seis meses, dois anos e 4 anos, ou seja, penas muito próximas do limite mínimo, e outras que nem se encontram no meio da moldura abstractamente aplicável.


XIII.O crime abuso sexual de menores dependentes, também agravado, é punido com pena de prisão de 1 ano e 4 meses até 10 anos e 8 meses, tendo o Tribunal a quo aplicada penas parcelares, umas, 342, muito próximas do limite máximo, de 1 ano e 6 meses, 1 ano e 9 meses e 2 anos e meses, e outras, 3, de 4 anos e 4 anos e 6 meses, ou seja, penas que nem se encontram novamente sequer no meio da moldura abstractamente aplicável.


XIV.O crime de pornografia de menores, igualmente, agravado, é punido com pena de um 1 ano e 4 meses a 6 anos e 8 meses, tendo o Tribunal a quo aplicado, a cada um dos crimes, no total de 137, a pena de 2 anos para cada um, novamente, uma pena muito próxima do limite mínimo.


XV. Face às circunstâncias acima indicadas, impõe-se a aplicação de penas concretas manifestamente superiores, assim, atenta a factualidade provada, deve ser aplicada ao Arguido, o que se requer:

a) Pela prática do crime de abuso sexual de criança,

i) correspondente a 724 crimes de abuso sexual de criança agravado por ser pai da BB e consistentes na observação da vulva, suportando ter que ser fotografada – 3 anos de prisão para cada um;

ii) Pelos dois crimes em que, alem de observar a vulva e fotografar, mexeu com um cotonete nos lábios e vagina da filha – 5 anos e 6 meses de prisão para cada um;

iii) Pelos quatro crimes que além de observar a vulva e fotografar, meteu os dedos e a língua, protegidos com um plástico, na vagina da filha – 8 anos e 6 meses de prisão para cada um.

b) Pela prática de crime de abuso sexual de menores dependentes agravados,

i) Pelos 337 crimes em que se limitou a observar os seus órgãos sexuais fotografando-os – 3 anos de prisão por cada um;

ii) Pelas duas vezes que introduziu o cotonete na vagina da BB causando-lhe dor – 5 anos e 6 meses de prisão para cada um;

iii) Pela vez que além do referido lhe cortou os pelos púbicos – 5 anos anos de prisão;

iv) Pelas duas vezes que introduziu os dedos e a língua na vagina da BB sem o saco de plástico – 9 anos de prisão para cada um;

v) Pela vez que introduziu o vibrador a vibrar na vagina da BB causando-lhe dor – 7 anos de prisão;

vi) Pela vez que apalpou o rabo e beijou a boca da BB na presença do namorado desta – 3 anos e 6 meses de prisão;

vii) Pela vez que colocou a mão do CC nos seios da sua filha – 3 anos de prisão.

c) Pela prática de 137 (cento e trinta e sete) crimes de pornografia de menores agravados – 4 anos e 6 meses para cada um dos crimes.

XVI. Por outro lado, em cúmulo jurídico, está em causa, a merecer provimento o acima peticionado, e face ao disposto no art. 77º do Código Penal, uma pena que tem como limite mínimo, 9 anos de prisão e como limite máximo, 25 anos de prisão.


XVII. Uma vez mais, considerando o acima exposto, tendo em conta os factos e a personalidade do Arguido, deverá ser aplicada ao Arguido a pena única de 25 anos de prisão, o que se requer.


XVIII. Mesmo que V. Exas., Venerandos Desembargadores, não alterem as penas parcelares aplicadas ao Arguido pelo Tribunal a quo, nos termos supra requeridos, a verdade é que, ainda assim, impõe-se igualmente a aplicação ao Arguido, em cúmulo jurídico, da pena única de 25 anos de prisão, atenta toda a factualidade dada como provada, a culpa do Arguido e as elevadas necessidades de prevenção quer geral, quer especial, o que igualmente se requer.


XIX. Por último, no que tange à quantia arbitrada à Recorrente a título de reparação pelos prejuízos sofridos, o Tribunal a quo fixou o montante de € 7.500,00, o que a Recorrente reputa de manifestamente insuficiente.


XX.O Arguido destruiu a infância da Recorrente, humilhando-a, controlando-a, agredindo-a, quer física, quer psicologicamente, desrespeitando-a,


XXI. Afectou e comprometeu o Arguido, irremediavelmente, a liberdade, desenvolvimento e autodeterminação sexual da Recorrente.


XXII. Sendo certo que haverá que ter em consideração a situação económica do Arguido, não é menos verdade que ter-se-á que ter em atenção a situação económica da própria vítima, as circunstâncias relevantes e o grau de culpabilidade do Arguido.


XXIII. Novamente, apelando à factualidade dada como provada, tendo em consideração as condutas do Arguido, o modo como foram levadas a cabo, e o crescendo das mesmas, a relação de parentesco entre agressor e vítima


perpetraram, a tenra idade da Recorrente quando aquelas se iniciaram, o local onde as condutas se realizaram, a total e absoluta não interiorização por parte do Arguido do desvalor das suas condutas, bem como o absoluto desinteresse pela sua filha e das consequências dos seus actos, a circunstância do Arguido, antes de em condições de reclusão, não ter actividade profissional por sua única e exclusiva culpa, e a circunstância da Recorrente ter apenas, actualmente, 15 anos de idade, sem, obviamente, qualquer forma de sustento, impõe-se que a quantia arbitrada a título de reparação dos prejuízos sofridos pela Recorrente seja alterada, em valor nunca inferior a € 25.000,00, o que se requer.


XXIV. Atenta as especificidades do presente caso, qualquer outra quantia, inferior a € 25.000,00, consubstancia um branqueamento do comportamento do Arguido, e, por outro lado, um desvalor dos prejuízos sofridos pela Recorrente.


XXV. Face ao exposto, deve ser dado provimento ao presente recurso, alterando-se a decisão nos termos requeridos, tudo com as legais consequências.


XXVI. Enferma, assim, o Acórdão recorrido, de incorrecta interpretação e aplicação do disposto nos arts. 40º, 71º, 77º do Código Penal, art. 82º-A do Código de Processo Penal, e arts. 494º e 496º, ambos do Código Civil.

TERMOS EM QUE E SEMPRE,

Invocando-se o DOUTO SUPRIMENTO DESSE VENERANDO TRIBUNAL deverá ser dado provimento ao presente recurso, e, em consequência, ser revogado o Acórdão recorrido, substituindo-se por douta decisão que, aplique ao Arguido,

a) Pela prática do crime de abuso sexual de criança,

i)correspondente a 724 crimes de abuso sexual de criança agravado por ser pai da BB e consistentes na observação da vulva, suportando ter que ser fotografada 3 anos de prisão para cada um;

ii)Pelos dois crimes em que, alem de observar a vulva e fotografar, mexeu com um cotonete nos lábios e vagina da filha 5 anos e 6 meses de prisão para cada um;

iii)Pelos quatro crimes que além de observar a vulva e fotografar, meteu os dedos e a língua, protegidos com um plástico, na vagina da filha 8 anos e 6 meses de prisão para cada um.

b) Pela prática de crime de abuso sexual de menores dependentes agravados,

i) Pelos 337 crimes em que se limitou a observar os seus órgãos sexuais fotografando-os 3 anos de prisão por cada um;

ii) Pelas duas vezes que introduziu o cotonete na vagina da BB causando-lhe dor 5 anos e 6 meses de prisão para cada um;

iii) Pela vez que além do referido lhe cortou os pelos púbicos 5 anos anos de prisão;

iv) Pelas duas vezes que introduziu os dedos e a língua na vagina da BB sem o saco de plástico 9 anos de prisão para cada um;

v) Pela vez que introduziu o vibrador a vibrar na vagina da BB causando-lhe dor 7 anos de prisão;

vi) Pela vez que apalpou o rabo e beijou a boca da BB na presença do namorado desta 3 anos e 6 meses de prisão;

vii) Pela vez que colocou a mão do CC nos seios da sua filha 3 anos de prisão.

c) Pela prática de 137 (cento e trinta e sete) crimes de pornografia de menores agravados 4 anos e 6 meses para cada um dos crimes,

e que, altere o quantum fixado a título de reparação pelos prejuízos sofridos pela Recorrente, de 7.500,00, para 25.000,00, tudo com as legais consequências.”


A.3. A propósito destes recursos foram apresentadas, no Tribunal a quo, respostas, nas quais se concluiu da seguinte forma:


A.3.1. Pelo Ministério Público


A.3.1.1. Ao recurso interposto pelo arguido (transcrição integral):


“CONCLUSÕES:


1. O arguido discorda da pena de 16 (dezasseis) anos e 3 (três) meses de prisão que lhe foi aplicada, defendendo que deve ser condenado em pena inferior.


2. Indica como tendo sido violado o art, 71.º CP, e fundamenta a sua pretensão na invocação do art. 18.º, n.º 2 da Constituição da República Portuguesa.


3. E alega que a sua confissão não foi valorada nem as suas condições pessoais.


4. O arguido carece de razão.


5. O Tribunal a quo analisou todas as circunstâncias do caso concreto e no que respeita à medida concreta da pena, nomeadamente a confissão do arguido,


6. A sua história de vida foi igualmente levada em consideração, com enfase nas declarações das testemunhas DD e EE, que conheceram o arguido na infância e adolescência, bem como o diagnóstico de perturbação de personalidade tipo Borderline.


7. Na fixação da medida concreta da pena, foi considerada a culpa do agente, as exigências de prevenção de futuros crimes e todas as circunstâncias gerais que, não fazendo parte do tipo de crime, depuseram a favor ou contra o arguido, concretamente o grau da ilicitude do facto, a intensidade do dolo e a conduta anterior e posterior à prática dos factos, bem como as suas condições pessoais e a sua situação económica, conforme disposto no art. 71.º do CP.


8. A culpa do arguido foi considerada de grau médio, pelo facto de ter vivenciado episódios de abuso sexual contra si, padecer de Perturbação de Personalidade de tipo Borderline, mas mantendo, agora e aquando dos factos capacidade de avaliação e discernimento entre lícito ou ilícito, da natureza e alcance dos seus atos, bem como a capacidade de autodeterminação de acordo com essa avaliação.


9. O grau de ilicitude do facto típico situa-se num grau acima da média, considerando os atos sexuais em causa, e o grau de violência a que a vítima BB foi sujeita ao longo do período vertido na matéria de facto provada.


10. E quanto ao dolo é o direto, sendo particularmente intensa a sua vontade criminosa.


11. Assim, entendeu o Tribunal a quo condenar o arguido pela prática de um crime de violência doméstica, 730 crimes de abuso sexual de criança agravado, 345 crimes de abuso sexual de menores dependentes agravado, 137 crimes de pornografia de menores agravado e 1 crime de importunação sexual.


12. A pena única sempre situou-se entre um mínimo de quatro anos e nove meses de prisão e um máximo de vinte e cinco anos de prisão, atenta a soma das penas parcelares que excede, em muito, este limite.


13. O arguido foi condenado na pena única de dezasseis anos e três meses de prisão, por força das circunstâncias referidas pelo recorrente como atenuantes, que assim se vê, foram efetivamente consideradas, afastando a pena concreta da pena máxima de 25 anos em quase 10 anos de duração.


14. Tais circunstâncias não justificam a conduta do arguido.


15. A pena aplicada é justa, necessária, adequada e proporcional carecendo o arguido e

ora recorrente de razão.”

A.3.1.2. Ao recurso interposto pela assistente (transcrição integral):


“CONCLUSÕES:


1. A assistente discorda da pena de 16 (dezasseis) anos e 3 (três) meses de prisão em que

o arguido foi condenado, defendendo que deve ser condenado na pena máxima de 25 anos de prisão.

2. Indica como tendo sido violado o art, 71.º CP.


3. E alega que a confissão do arguido não deve ser valorada, nem as suas condições pessoais, a não ser no sentido de que o arguido tinha uma obrigação acrescida de não praticar os actos pelos quais foi condenado, e ainda que não padece de qualquer doença ou perturbação da personalidade.


4. A assistente pretende que todas as circunstâncias que se impõe sejam consideradas na fixação das penas sejam valoradas em desfavor do arguido, à luz apenas da sua posição processual enquanto vítima.


5. Não se nega a gravidade do comportamento do arguido, pai da assistente nem o grau de sofrimento e as gravosas consequências para esta última, pelo contrário.


6. Mas ao Tribunal a quo cabia analisar todas as circunstâncias do caso concreto e no que respeita à medida concreta da pena, nomeadamente a declarações confessórias do arguido, e a forma como as prestou, o que fez.


7. Assim como lhe cabia igualmente levar em consideração a sua história de vida bem como o diagnóstico de perturbação de personalidade tipo Borderline, aspeto provado por relatório pericial excluído da livre apreciação da prova por parte do julgador.


8. Desta forma, foi considerada, corretamente, a culpa do agente, as exigências de prevenção de futuros crimes e todas as circunstâncias gerais que, não fazendo parte do tipo de crime, depuseram a favor ou contra o arguido, concretamente o grau da ilicitude do facto, a intensidade do dolo e a conduta anterior e posterior à prática dos factos, bem como as suas condições pessoais e a sua situação económica, conforme disposto no art. 71.º do CP.


9. A culpa do arguido foi considerada e bem como de grau médio, pelo facto de ter vivenciado episódios de abuso sexual contra si, padecer de Perturbação de Personalidade de tipo Borderline, mas mantendo, agora e aquando dos factos capacidade de avaliação e discernimento entre lícito ou ilícito, da natureza e alcance dos seus atos, bem como a capacidade de autodeterminação de acordo com essa avaliação.


10. E quanto ao grau de ilicitude do facto típico entendeu o Tribunal a quo, e bem, situar-se num grau acima da média, considerando os atos sexuais em causa, e o grau de violência a que a vítima BB foi sujeita ao longo do período vertido na matéria de facto provada.


11. E quanto ao dolo, considerou-o direto e particularmente intensa a sua vontade criminosa.


12. Assim, entendeu o Tribunal a quo condenar o arguido pela prática de um crime de violência doméstica, 730 crimes de abuso sexual de criança agravado, 345 crimes de abuso sexual de menores dependentes agravado, 137 crimes de pornografia de menores agravado e 1 crime de importunação sexual.


13. A pena única sempre situou-se entre um mínimo de quatro anos e nove meses de prisão e um máximo de vinte e cinco anos de prisão, atenta a soma das penas parcelares que excede, em muito, este limite.


14. O arguido foi condenado na pena única de dezasseis anos e três meses de prisão, pena justa, necessária, adequada e proporcional carecendo também a assistente e ora recorrente de razão.”


A.3.2. Pela assistente

“EM CONCLUSÃO:

I. Por considerar excessiva, insurge-se o Arguido contra a pena única de 16 anos e 3 meses de prisão que lhe foi aplicada pelo Tribunal a quo, pela prática de 1 crime de violência doméstica e 1213 crimes de natureza sexual contra menores, quase a totalidade contra a sua própria filha, durante cerca de 4 anos.


II. Não assiste razão ao Arguido/Recorrente.


III. As penas aplicadas, quer as concretamente aplicadas por cada um dos crimes praticados pelo Arguido/Recorrente, quer a pena única, pecam por defeito, como invocado no recurso interposto pela Assistente, mas jamais por excesso.


IV. Basta atentar que, considerando as regras estabelecidas no nº 2 do art.77º do CP, a pena única a aplicar ao Recorrente tinha como limite mínimo, 4 anos e 9 meses, e como limite máximo, 25 anos,


V. E, ao ser aplicada ao Recorrente a pena única de 16 anos e 3 meses de prisão, foi operado um “desconto” de quase 10 anos face ao limite máximo aplicável.


VI. Pelo que é por demais evidente que o Tribunal a quo teve em consideração todas as circunstâncias e factos que, no entendimento das Mªs Juízes a quo, tinham de ser consideradas a favor do Arguido e que constituíam atenuantes.


VII. A confissão e a história de vida do Arguido foram manifestamente consideradas pelo Tribunal a quo, mas daí não resulta a justificação das suas condutas,


VIII. E muito menos permitem a aplicação de qualquer pena única inferior a 16 anos e 3 meses de prisão,


IX. Constituindo a alvitrada aplicação da atenuação especial da pena, in casu, um verdadeiro atentado à Justiça.


X. Pelo que, o recurso interposto pelo Arguido não merece provimento, devendo ser negado, o que se requer, tudo com as legais consequências.”


A.4. Admissão dos recursos e tramitação no Tribunal da Relação de Lisboa


Ambos os recursos foram admitidos pelo tribunal a quo (despachos de 5 e 18 de dezembro de 2023), sendo subsequentemente enviados, a 8 de janeiro de 2024, para o Tribunal da Relação de Lisboa.


Porém, no seu parecer o Ministério Público suscitou a questão prévia da incompetência desse Venerando Tribunal que, por despacho datado de 16 de fevereiro de 2024, a julgou procedente, tendo, a esse propósito, proferido a seguinte decisão (transcrição parcial):


“Assim, nos termos dos art.º 32.º e 33.º do Código de Processo Penal, declara-se o Tribunal da Relação de Lisboa incompetente em razão da matéria para conhecer dos presentes recursos, e determina-se a remessa dos autos ao Supremo Tribunal de Justiça, por se entender ser este o competente para tanto.”


A.4. O parecer do Ministério Público junto deste Supremo Tribunal de Justiça


No seu mui douto parecer, o Digníssimo Procurador-Geral-Adjunto em funções neste Supremo Tribunal de Justiça adere às posições adotadas pelo Ministério junto da primeira instância, concluindo que, de todos pedidos formulados pelos recorrentes, só um deles merecerá provimento, o relativo ao montante atribuído vítima nos termos do artigo 82ºa do Código Penal.


Com efeito, a este propósito escreve o seguinte:


“11 – Um aspecto há do recurso da assistente que merecerá provimento.


É o que se prende com o quantum da reparação pelos prejuízos não patrimoniais sofridos oficiosamente arbitrada, estabelecida pelo Tribunal a quo em € 7.500,00, e a que a recorrente contrapõe o valor de, pelo menos, € 25.000,00.


Neste ponto, e acompanhando, aqui, as considerações tecidas pela assistente na sua motivação de recurso, afigura-se assistir razão à assistente BB.”


A.5. Devidamente notificados nos termos do disposto no artigo 417º, nº 2 do Código de Processo Penal, os recorrentes não reagiram ao parecer do Digníssimo Procurador-Geral-Adjunto neste Supremo tribunal de Justiça.


* * *


A.6. Colhidos os vistos e realizada a conferência, na mesma foi entendido que havia que alterar a qualificação jurídica dos factos dados como provados na alínea x) (Por altura dos doze/treze anos da vítima BB o arguido, além de lhe ver a vulva, tocar com o cotonete e fotografar a sua vulva, nos termos mencionados também, cerca de quatro 5 vezes, meteu os dedos dentro de um saco de plástico e introduziu, um ou dois dedos, na vagina da vítima BB e depois colocava a língua no saco e introduzia-a, igualmente, na vagina desta), ao abrigo do disposto nos artigos 358º nº 1 e 3 e 424º do Código de Processo Penal, por se considerar que os mesmos são subsumíveis ao crime de abuso sexual de criança agravado, previsto e punível pelos artigos 171º nºs 1 e 2 e 177º, nº 1 al. a) do Código Penal (e não apenas do nº 1 do referido artigo 171º) .


Assim e em obediência a essas disposições legais, decidiu-se, através de acórdão proferido a 11 de abril de 2024, notificar o arguido para, em 10 dias, se pronunciar sobre esse entendimento.


Na sequência da respetiva notificação, realizada no mesmo dia, veio o arguido tomar a seguinte posição:


“1 - A eventual alteração jurídica dos factos aludidos em A.2., determinaria uma alteração substancial dos factos, na medida em que, e nos termos da al. f), do art. 1º do C.P.P., implicaria abstratamente a "agravação dos limites máximos das sanções aplicáveis";

2. - O Ministério Público não recorreu da decisão proferida em 1ª Instância, apresentando mera resposta ao recurso interposto pelo arguido;


3 - A assistente, no recurso apresentado da douta decisão proferida em 1ª instância, e apesar da ausência de fundamentos, nos termos do art. 410º do C.P.P., cingiu-se à mera negação, e desconsideração, dos fundamentos invocados pelo arguido em sede de recurso;


4 - Assim, e salvo melhor opinião, ao ser operada a aludida alteração jurídica dos factos estaria a penalizar-se o arguido por ter feito uso do recurso relativamente ao acórdão proferido em 1ª instância, o que viola as garantias de processo penal, designadamente o nº 1, do art. 32º da Constituição da República (C.R.P.);


5. Mais, estando em causa uma alteração substancial dos factos, com abstrata agravação dos limites máximos das sanções aplicáveis, estar-se-ia perante uma manifesta colisão com o princípio de proibição de reformatio in peius, consagrado no art. 409º do C.P.P., e que consolida as mais básicas garantias do cidadão em processo penal.

Termos em que se requer a V. Exas. que improceda a alteração jurídica do facto, pelos motivos ora explanados, seguindo-se os ulteriores termos legais.

A.7. A essa posição responderam o Ministério Público e a assistente nos seguintes termos:


A.7.1. Resposta do Ministério Público

“Apreciando:

1 - Não parece que possa proceder qualquer dos argumentos opostos à anunciada intenção do Tribunal em proceder à alteração da qualificação jurídica dos factos enunciados no acórdão de 11.04.2024.


Não procede o que se prende com a invocada alteração substancial dos factos que tal acarretaria, porque o que está em causa é uma alteração da qualificação jurídica dos factos constantes da acusação, permitida pelo n.º 3 do artigo 424.º do C.P.P. (que o artigo 358.º do C.P.P. também caracteriza como alteração não substancial dos factos descritos na acusação ou na pronúncia, tal é a epígrafe deste dispositivo legal), sendo, porém, necessário que a alteração seja comunicada ao arguido para, querendo, se pronunciar no prazo de 10 dias, procedimento que foi precisamente o seguido pelo Tribunal.


Considere-se, sobre esta problemática, o acórdão de 25.03.2009 deste Supremo Tribunal de Justiça (Processo n.º 09P0314, Relator: Conselheiro Raul Borges), que se afigura, pela exemplaridade, de grande valia na perspectivação jurídica do caso em presença:


(…)


O nº 3 do artigo 358º do CPP foi aditado pela Lei 59/98, de 25 de Agosto, passando a estabelecer que “o disposto no nº 1 é correspondentemente aplicável quando o tribunal alterar a qualificação jurídica dos factos descritos na acusação ou na pronúncia”, devendo então o presidente, oficiosamente ou a requerimento, comunicar a alteração ao arguido e conceder-lhe, se ele o requerer, o tempo estritamente necessário para a preparação da defesa.


A questão entronca no problema da alteração do enquadramento da conduta imputada ao arguido em figura criminal mais grave e da necessidade ou não de dação de conhecimento ao arguido de tal alteração, a fim de que possa organizar a sua defesa em função da perspectivada modificação de tratamento subsuntivo.


Esta problemática constituiu uma vexata quaestio, que tem a ver com os poderes cognitivos do Tribunal superior quanto ao enquadramento jurídico- riminal, que já se colocava à luz dos artigos 447º e 448º do Código de Processo Penal de 1929 - ver a este propósito o acórdão do Tribunal Constitucional n.º 7/99, processo n.º 403/91-2ª secção, in DR - II Série, n.º 58, de 10-03-1999.


No domínio do Código de Processo Penal de 1987, a questão conheceu vários desenvolvimentos, ao longo de quase 8 anos, tudo a partir, na sua expressão mais nítida e conhecida, de uma decisão do Funchal, relativa a crime de tráfico de estupefacientes, em que o Supremo Tribunal de Justiça, em acórdão de 26-02-1992, alterou oficiosamente a qualificação jurídica dos factos constantes da sentença (quanto ao número de vezes em que o crime, já convolado na primeira instância, havia sido cometido, passando de crime continuado de tráfico agravado de estupefacientes para dois crimes de tráfico agravado) e consequente agravamento da punição imposta na 1ª instância, tendo a solução encontrada por base o entendimento de que não correspondia a alteração substancial dos factos descritos na acusação ou na pronúncia a simples modificação do enquadramento jurídico dos mesmos factos, quer em relação ao tipo legal do crime, quer em relação ao número de vezes em que o crime convolado havia sido cometido.


Desse acórdão do STJ de 26-02-1992 foi interposto recurso extraordinário para uniformização de jurisprudência, que deu origem ao acórdão de 27-01-1993, o incontornável Assento n.º 2/93, publicado in DR - I Série A, n.º 58, de 10-03-1993, e BMJ 423, págs. 47 e segs., estabelecendo, com efeitos obrigatórios, a doutrina de que “para os fins dos artigos 1º, alínea f), 120º, 284º, nº 1, 303º, nº 3, 309º, nº 2, 359º, nºs 1 e 2 e 379º, alínea b) do Código de Processo Penal, não constitui alteração substancial dos factos descritos na acusação ou na pronúncia a simples alteração da respectiva qualificação jurídica (ou convolação), ainda que se traduza na submissão de tais factos a uma figura criminal mais grave”.


Nesta linha, inserem-se ainda o Acórdão n.º 4/95, de 7 de Junho de 1995, proferido no processo n.º 47407-3ª, in DR - I Série - A, n.º 154, de 06-07-1995 e BMJ 448, 107, fixando jurisprudência, então obrigatória para os tribunais judiciais, no sentido de que “O tribunal superior pode, em recurso, alterar oficiosamente a qualificação jurídico-penal efectuada pelo tribunal recorrido, mesmo que para crime mais grave mais grave, sem prejuízo, porém, da proibição da reformatio in pejus”, e vários acórdãos do Tribunal Constitucional, como o Acórdão n.º 279/95, de 31-05-1995, in DR, II Série, de 28-07-1995 e BMJ 451 (Suplemento), pág. 129, que revogou o citado Assento n.º 2/93, a fim de a decisão recorrida ser “reformulada em consonância com o decidido sobre a questão de inconstitucionalidade”, o acórdão nº 330/97, processo 254/95 – 1ª secção, de 17-04-1997, in DR II Série, n.º 151, de 03-07-1997, e BMJ 466, pág. 115, o Acórdão n.º 445/97, de 25-06-1997, proferido no processo n.º 154/97, in DR - I Série A, n.º 179, de 05-08-1997 e BMJ 468, 53, que tendo em conta o juízo de inconstitucionalidade do mencionado assento de 1993, expresso nos acórdãos do TC n.º 279/95 já referido e n.º 16/97, publicado no DR, II Série, n.º 50, de 28-02-1997, e n.º 58/97, declarou inconstitucional, com força obrigatória geral - por violação do princípio constante do n.º 1 do artigo 32º da Constituição -, a norma ínsita na alínea f) do n.º 1 do artigo 1º do CPP, em conjugação com os artigos 120º, 284º, n.º 1, 303º, n.º 3, 309º, n.º 2, 359º, n.ºs 1 e 2, e 379º, alínea b), do mesmo Código, quando interpretada, nos termos constantes do referido Assento de 1993, o acórdão do STJ de 13-11-1997, que na sequência dos acórdãos do Tribunal Constitucional n.ºs 279/95 e 445/97, reformulou o Assento 2/93(fixando então a seguinte doutrina obrigatória “ao enquadrar juridicamente os factos constantes da acusação ou da pronúncia, quando esta exista, o Tribunal pode proceder a uma alteração do correspondente enquadramento, ainda que em figura criminal mais grave, desde que previamente dê conhecimento e, se requerido, prazo, ao arguido, da possibilidade de tal ocorrência, para que o mesmo possa organizar a respectiva defesa jurídica”, do qual por ter ainda decidido, quanto ao julgamento do feito penal que “Não há lugar pelas razões indicadas na fundamentação, a revisão da decisão recorrida”, foi interposto recurso para o Tribunal Constitucional originando o Acórdão n.º 518/98, de 15-07-1998, processo n.º 45/98, in DR, II Série, n.º 261, de 11-11-1998, e BMJ 479, 190, o qual veio então a definir o sentido e alcance da declaração de inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, constante do Acórdão n.º 445/97, nos termos seguintes: “o tribunal que proceda a uma diferente qualificação jurídica dos factos descritos na acusação ou na pronúncia, que importe a condenação do arguido em pena mais grave, antes de a ela proceder, deve prevenir o arguido de tal possibilidade, dando-lhe, quanto a ela, oportunidade de defesa”, revogando o acórdão recorrido, a fim de ser reformulado em conformidade com essa declaração de inconstitucionalidade, com o sentido e alcance então explicitados, bem como o Acórdão n.º 519/98, igualmente de 15 de Julho de 1998, processo n.º 541/97, in DR, II Série, n.º 287, de 14-12-1998, fazendo igualmente aplicação da declaração de inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, do acórdão n.º 445/97, e Acórdão n.º 295/99, de 12-05-1999, in DR, II Série, nº 163, de 15-07-1999, fazendo aplicação da declaração de inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, do acórdão 445/97, com o sentido de dever ser dada oportunidade ao arguido para organizar a sua defesa em função da nova qualificação jurídico-penal dos factos e o “Assento” nº 3/2000, de 15 de dezembro de 1999, prolatado no processo nº 43073, in DR- I Série- A, nº 35, de 11-02-2000, que reformulou o Assento 2/93, fixando a seguinte doutrina: ”Na vigência do regime dos Códigos de Processo Penal de 1987 e de 1995, o tribunal, ao enquadrar juridicamente os factos constantes da acusação ou da pronúncia, quando esta existisse, podia proceder a uma alteração do respectivo enquadramento, ainda que em figura criminal mais grave, desde que previamente desse conhecimento e, se requerido, prazo ao arguido da possibilidade de tal ocorrência, para o que o mesmo pudesse organizar a respectiva defesa”.


Fazendo aplicação destes acórdãos do Tribunal Constitucional, pode ver-se o Acórdão n.º


356/2005, processo n.º 535/2003, de 06-07-2005, in DR, II Série, nº 202, de 20-10-2005, em que se pode ler que “o aditamento do nº 3 ao artigo 358º do CPP efectuado pela Lei nº 59/98, de 25 de Agosto, vejo expressamente impor, no seguimento daquela jurisprudência, a audição do arguido quando o tribunal altera a qualificação dos factos descritos na acusação ou na pronúncia”.


Nesta linha evolutiva da enunciada solução jurisprudencial se situa a alteração da Lei n.º 48/2007, de 29 de Agosto, com a introdução do n.º 3 do artigo 424º do Código de Processo Penal, o qual estabelece:


“Sempre que se verificar uma alteração não substancial dos factos descritos na decisão recorrida ou na respetiva qualificação jurídica não conhecida do arguido, este é notificado para, querendo, se pronunciar no prazo de 10 dias”.


Este normativo teria aplicação no caso de o tribunal verificar por iniciativa própria, que face aos factos provados, o enquadramento jurídico-criminal se deveria fazer por modo diverso, integrando a conduta em outro preceito incriminador e face a essa alteração, não prevista, desconhecida do arguido, a fim de se evitar uma decisão surpresa, a exemplo do que ocorre no processo cível com o artigo 3º do CPC, mas aqui com raízes e razões mais ponderosas e visando a salvaguarda de interesses mais profundos e assegurar as garantias de defesa constitucionalmente acauteladas, haverá necessidade de dar a conhecer a possível alteração de qualificação.


Nada impede este Supremo Tribunal de indagar, por iniciativa própria, da correcção da subsunção jurídica feita em acórdão em reexame, com ressalva dos limites decorrentes do princípio da proibição de reformatio in pejus, como tem sido entendido, nomeadamente, e desde logo no referido Acórdão uniformizador nº 4/95, de 7 de Junho de 1995, in DR, I Série, de 06-07-1995 e BMJ, 448, 107 e nos acórdãos de 04-12-1997, CJSTJ 1997, tomo 3, pág. 246; de 17-01-2002, CJSTJ 2002, tomo 1, pág. 183; de 20-03-2003, processo n.º 504/03-5ª; de 05-02-2004, CJSTJ 2004, tomo 1, pág. 195; de 04-12-2004, processo n.º 3293/03-5ª; de 12-07-2006, CJSTJ 2006, tomo 2, pág. 239; de 24-01-2007, processo n.º 3647/06-3ª; de 27-03-2008, processo n.º 447/08-5ª; de 02-04-2008, processo n.º 4197/07-3ª; de 22-10-2008, processo n.º 215/08-3ª; de 29-10-2008, processo n.º 1309/08-3ª; de 21-01-2009, processo n.º 4029/08-3ª (aqui questionando-se, oficiosamente, a integração da qualificativa constante da alínea h) do artigo 24º do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22-01).


Há que conciliar esta liberdade de procurar o correcto enquadramento jurídico criminal com as garantias de defesa, daí emergindo um dever de prevenção, de comunicação ao arguido da possível nova qualificação, de modo a propiciar o exercício do contraditório.


O dever adicional de notificação é limitado aos casos de alteração “não conhecida do arguido”, tendo a limitação o propósito de subtrair do âmbito do dever de notificação no Tribunal de recurso as situações em que a alteração já é conhecida do arguido, v. g. se, como ocorre no caso presente, a alteração resulta da posição do Mº Pº expressa nas conclusões do recurso, pois que os arguidos foram oportunamente notificados para responder – cfr., neste sentido, Paulo Pinto de Albuquerque, Comentário do Código de Processo Penal, Universidade Católica Editora, 2007 pág. 1164.(…)


Fica claro, por conseguinte, que a situação vertente não consubstancia a pretendida (pelo arguido) alteração substancial de factos, como resulta inquestionável a conformidade legal e constitucional do procedimento seguido pelo Tribunal.


2 - Já sobre a invocada proibição da reformatio in pejus, consagrada no artigo 409.º do C.P.P., também não assiste razão ao arguido, na medida em que a lide não comporta apenas o seu recurso - caso em que, aí sim, não seria possível a modificação, na sua espécie ou medida, das penas aplicadas na decisão recorrida - mas também o recurso da assistente, sendo que um dos aspectos que o enforma é, precisamente, a medida das penas aplicadas, que este sujeito processual pretende ver agravadas.

Concluindo:

Entende o Ministério Público, pelo que antecede, dever ser indeferido, por falta de fundamento legal, o requerimento apresentado pelo arguido AA”


A.7.2. Resposta da Assistente


“1. Face ao Acórdão de fls , de 11.04.2024, veio o Arguido, por requerimento de 24.04.2024, sumariamente, invocar que o que está em causa é uma alteração substancial dos factos, o que não será admissível, quer por alegada violação das garantias do processo penal, quer por força do princípio da reformatio in pejus.


2. Salvo o devido respeito, além do Arguido ter feito uma incorrecta interpretação do Acórdão de fls , de 11.04.2024,


3. Da mesma retirou o Arguido (pretensas) consequências, imputando ao referido Acórdão vícios, que não se verificam de todo.


4. Antes de mais, em momento algum, poderá estar em causa a violação do princípio plasmado no art. 409º do CPP, uma vez que a Assistente recorreu do Acórdão proferido em 1ª Instância, entre outros fundamentos, expressamente colocando em causa a medida das penas (quer as parcelares, quer a pena única) aplicadas ao Arguido, pugnando pelo seu agravamento.


5. Logo, só por isso, não tem aplicação o princípio da proibição da reformatio in pejus.


6. A Assistente, enquanto titular de um direito próprio e autónomo, e sem qualquer dependência do Ministério Público, exerceu o seu legítimo direito ao recurso.


7. Do qual resulta, face ao conteúdo das alegações, a efectiva possibilidade, legitima e legal, de agravamento da medida das penas aplicadas ao Arguido, quer as penas parcelares, quer a pena única, em cúmulo jurídico.


8. Assim, não tendo sido apenas o Arguido a recorrer, tão pouco o MP no interesse daquele, não tem aplicação o estabelecido no art. 409º do CPP.


9. No entanto, mesmo que assim não fosse, já o Tribunal Constitucional se pronunciou, vd. Acórdão nº 394/2022, de 26 de Maio, nos seguintes termos: Não julga inconstitucional a interpretação extraída dos artigos 409.º, n.º 1, e 428.º, ambos do Código de Processo Penal, no


sentido de ser admissível, nos casos em que o arguido é o único recorrente, a aplicação pelo tribunal de recurso de norma agravante não contemplada quer na acusação, quer na decisão proferida pelo tribunal a quo. , sublinhado e realçado nosso.


10. Por outro lado, não se alcança de que forma o teor do Acórdão de fls, de 11.04.2024, pode conter com as garantias do processo penal, como invocado pelo Arguido.


11. O que está em causa não é uma alteração substancial dos factos, tão só e apenas uma alteração da qualificação jurídica.


12. Como bem resulta do teor do Acórdão de fls , de 11.04.2024, os factos constantes da decisão recorrida, dos quais o Arguido teve, necessariamente, o direito e a faculdade, que exerceu, de os contraditar, permanecem absolutamente imutáveis.


13. Não foi introduzida qualquer alteração, seja substancial ou não substancial, aos factos.


14. A alteração cinge-se exclusivamente à qualificação jurídica dos factos em causa,


15. Uma vez que, além de preencherem o nº 1 do art. 171º, os factos em causa preenchem igualmente o nº 2 do referido preceito legal.


16. Não implicam uma alteração substancial, as alterações que não se traduzem em factos novos.


17. Não ocorre adição de nenhum outro crime aos que já constavam da acusação, mas antes, a subsunção integral ao mesmo tipo de crime.


18. Há alteração da qualificação jurídica dos factos quando os factos se mantêm, alterando-se somente a sua qualificação jurídica.


19. Face ao disposto no art. 339º, nº 4 do CPP, o objeto do processo não é constituído pela incriminação imputada ao arguido, mas antes pelos factos que lhe são imputados.


20. E perante a alteração da qualificação jurídica, não há qualquer alteração do objeto do processo.


21. E tal jamais configurará uma alteração substancial de factos, ainda que daí resulte a imputação de crime diverso e/ou mais grave por força da sanção penal a este abstratamente aplicável.


22. Sendo que a alteração da qualificação jurídica nesta sede é expressamente permitida nos termos do nº 3 do art. 424º do CPP.


23. Impondo-se, apenas e só, que ao Arguido seja dada oportunidade, para, querendo, se pronunciar, 24. o que esse Colendo Tribunal fez, e direito que o Arguido exerceu.


25. Pelo que, é forçoso concluir que foram observadas as garantias de defesa e do contraditório, como se impunha.


26. Por tudo o exposto, deve ser indeferido o requerido pelo Arguido, decidindo V. Exas. como for de JUSTIÇA.”


Após, foram novamente colhidos os vistos, cumprindo neste momento decidir.


B - Fundamentação


B.1. âmbito do recurso


O âmbito do recurso delimita-se, como se sabe, pelas conclusões do(s) recorrente(s) (artigos 402º, 403º e 412º do Código de Processo Penal) sem prejuízo, se necessário à sua boa decisão, da competência do Supremo Tribunal de Justiça para, oficiosamente, conhecer dos vícios da decisão recorrida, a que se refere o artigo 410º, nº 2, do mesmo diploma legal, (acórdão de fixação de jurisprudência nº 7/95 in D.R. I Série de 28 de dezembro de 1995), de nulidades não sanadas (nº 3 do aludido artigo 410º) e de nulidades da sentença ( artigo 379º, nº do Código de Processo Penal).


Assim e em suma, as questões a apreciar no presente recurso são as seguintes:

A adequação das penas parcelares aplicadas ao arguido (exceto as que se reportam ao crime de violência doméstica e ao crime de importunação sexual3)

A adequação da pena única em que o mesmo foi condenado, em sede de cúmulo jurídico;

A adequação do valor arbitrado a favor da assistente, a título de reparação pelos prejuízos não patrimoniais sofridos.


B.2. Matéria de facto dada como provada


Para proceder a essa apreciação importa, antes de mais, consignar a matéria de facto dada como provada e que serviu de fundamento à aplicação das penas – parcelares e única – e à fixação da indemnização.


Assim, foi dada como provada e fixada a seguinte matéria de facto:

a. “BB, doravante vítima BB, nasceu em ........2007 e é filha de AA, doravante arguido, e de FF.

b. A BB residiu sempre com os pais, na Rua ..., na cidade e concelho de ....

c. A partir dos 11 (onze) anos da vítima BB e até 22.11.2022, data da sua detenção à ordem dos autos, quando se encontravam em casa, o arguido, que até essa data dava palmadas na filha quando esta se comportava de forma desadequada, passou a desferir-lhe, com frequência quase diária, bofetadas e socos ao longo do corpo bem a arremessar e embater no seu corpo objetos, atingindo-a nos braços, pernas, tronco e cabeça.

d. Designadamente, arremessou cadeiras que a atingiram na cabeça, provocando hematomas e desferiu-lhe pancadas, com as mãos, nas costas quando estava a lavar-se no bidé por motivos insignificantes como, por exemplo, estar a gastar muita água quente ou demorar mais 5 ou 10 minutos do que os 15 minutos que lhe impunha para regressar da escola para casa.

e. Por vezes, estando a BB a tomar banho de água quente, o arguido desligava o gás e compelia a sua filha a continuar a banhar-se em água fria, o que sucedia independentemente da estação do ano.

f. Noutras ocasiões, durante a noite, após a 1 hora da manhã, o arguido deslocava-se para o quarto da filha e exigia falar com a mesma, impedindo-a de descansar, inclusive durante o período escolar.

g. Bem como durante o lapso de tempo referido em f., em discussões com a BB, o arguido chamou à sua filha, com frequência quase diária, “puta, vaca, rameira, otária, porca, monte de merda”, quer verbalmente quer por mensagens escritas.

h. Em dia e mês não concretamente apurados quando a BB tinha 12 anos e estava a usar o bidé, por estar a gastar água quente o arguido esmurrou, por diversas vezes, as costas e a cabeça da sua filha.

i. Em outras 4 ocasiões situadas no período temporal referido, o arguido desferiu, no corpo da sua filha, diversas pancadas, por esta estar a usar de forma indevida água quente.

j. Em dia e mês não concretamente apurados, mas situados no período temporal referido, o arguido quando se apercebeu que a vítima BB desabafava, nas conversas que tinha no telemóvel com as amigas, o arguido atirou com uma cadeira à vítima BB e virou a cama contra a mesma, vindo a cadeira a acertar na cabeça da vítima BB, causando-lhe um hematoma.

k. Noutro dia não concretamente determinado, quando a vítima BB estava no 2.º período do 9.º ano de escolaridade, o arguido direcionou uma cama e uma cadeira contra a vítima BB, a qual, ao tentar evitar que o arguido lhe acertasse com tais objetos, embateu com um dedo num desses objetos, sofrendo uma lesão.

l. Numa outra ocasião, na noite de 22 para 23 de junho de 2022, noite anterior ao dia do exame nacional de português de 2022, o arguido, tendo tido conhecimento de que a BB havia desabafado com a amiga GG, desferiu um soco no lado esquerdo da cara da vítima BB, acertando no olho esquerdo e provocando-lhe um grande hematoma.

m. No dia seguinte, a fim de evitar que terceiros, designadamente na Escola, se apercebessem da lesão e indagassem acerca da sua origem, o arguido ordenou à vítima BB que se maquilhasse bastante e utilizar óculos escuros, a fim de esconder a lesão.

n. O arguido, quando se encontravam em casa, a partir da idade dos 11 anos da sua filha, diariamente passou a observar a sua vulva e a captar fotografias da mesma até ao dia 19.11.2022, usando um telemóvel que utilizava unicamente para tirar as fotos, designadamente um telemóvel de marca Samsung, modelo Edge e um iPhone 4.

o. A primeira vez que o arguido agiu da forma descrita ocorreu por altura da primavera de 2019, quando a vítima BB ia tomar banho.

p. Nessa ocasião, a vítima BB estava despida, enrolada na toalha e o arguido disse “ah tens vergonha” ao que a vítima disse que não e tirou a toalha.

q. O arguido disse “deixa ver uma coisa que tens aí” e que se deitasse na cama, de costas, e abrisse as pernas, o que a BB fez tendo o arguido observado a sua vagina.

r. O arguido repetiu a atuação nos dois dias seguintes, dizendo que a vítima BB estava com uma doença- líquen esporoso - passando, a partir daí, a olhar a vulva da vítima e a tirar fotos da mesma.

s. O arguido quando queria ver a vulva da vítima BB e tirar fotos dizia-lhe: «vamos para o quarto ver isso» e a vítima BB ia para o seu quarto, deitava-se na sua cama e abria as pernas para o arguido poder olhar a sua vulva, o que ocorria ao final da tarde ou à noite.

t. Contudo, o arguido nunca levou a BB ao médico a propósito dessa alegada doença e apenas falava com a filha acerca da mesma.

u. Decorridos os primeiros quinze dias o arguido, além de olhar e tirar fotos à vulva da vítima BB, passou também a mexer com um cotonete no clitóris e nos lábios, dizendo à vítima BB que era para ver se ela tinha sensibilidade.

v. Para o efeito, o arguido apontava a lâmpada que estava em cima da secretária da vítima BB, para a vulva desta.

w. Quando a vítima ainda tinha 11 anos, o arguido pediu à BB para lhe fazer sexo oral, dizendo-lhe que o podia fazer com preservativo, que lhe mostrou, mas aquela sempre se recusou.

x. Por altura dos doze/treze anos da vítima BB o arguido, além de lhe ver a vulva, tocar com o cotonete e fotografar a sua vulva, nos termos mencionados também, cerca de quatro 5 vezes, meteu os dedos dentro de um saco de plástico e introduziu, um ou dois dedos, na vagina da vítima BB e depois colocava a língua no saco e introduzia-a, igualmente, na vagina desta.

y. Os sacos de plástico - transparentes do tipo que há na frutaria - estavam na despensa da cozinha e o arguido ia buscar ou mandava a vítima BB ir buscar e quando esta chegava ao quarto o arguido dizia-lhe: “BB, deixa-me ver” e a vítima BB já sabia o que tinha de fazer e despia-se da cintura para baixo.

z. A vítima BB é menstruada desde os seus doze anos de idade e o arguido controla o seu “período” desde o verão de dois mil e vinte e um, dizendo que a mesma podia engravidar com a língua, obrigando-a a fazer testes de gravidez.

aa. No verão do ano de 2022, a instâncias do arguido, a vítima BB fez entre 20 a 30 testes de gravidez.

bb. O arguido dizia à filha para comprar os testes e copos esterilizados, tendo a vítima BB sentido vergonha por ter de se deslocar à farmácia do Bairro com tanta frequência para esse efeito, o que a levou a deslocar-se a outras farmácias e parafarmácias, como a W.....

cc. O arguido dizia à filha que o teste só era corretamente realizado se ela urinasse para um copo esterilizado, incumbindo-se o mesmo, depois, da realização do teste.

dd. No mês de setembro de 2022, o arguido, além da atuação supra descrita, dizendo-lhe que dava para ver se ela estava no período fértil ou se estava para vir o período, passou, ainda, a introduzir o cotonete na vagina da vítima BB, causando-lhe dor.

ee. O arguido retirava o cotonete do armário de higiene, que fica no corredor, que levava consigo ou mandava a vítima BB ir lá buscar.

ff. O arguido esteve empregado de outubro de 2021 a junho/julho de 2022 e, nesse período, apenas olhava a vulva e peito da vítima BB, utilizava o cotonete e captava fotos.

gg. Desde o verão de 2022 que o arguido mandava a vítima BB pôr óleo de coco na vulva, dizendo-lhe ter lido na internet que era bom para o líquen.

hh. No verão de 2022, depois de ficar desempregado, o arguido voltou a introduzir os dedos e a língua na vagina da vítima BB, dizendo-lhe: “que tinha que saber o que é que era bom”.

ii. No verão de 2022 o arguido passou a tirar também fotos ao peito e ventre desnudos da vítima BB, o que fez todos os dias das férias escolares do verão de 2022, com exceção de um dia.

jj. O arguido mandava a vítima BB colocar o soutien para cima ou tirar o soutien e tirava a fotografia, dizendo que o peito não estava normal, mas à vítima BB parecia-lhe normal.

kk. O arguido após tirar as fotografias supra mencionadas e, por vezes, levando consigo as cuecas da sua filha, dirigia-se para o seu quarto, aí se masturbando.

ll. A vítima BB, no ano letivo 2022/23 estava matriculada no 10.º ano de escolaridade no Curso ... na Escola Secundária ..., em ..., na turma ... e começou a namorar com o seu colega de turma, CC, nascido a ........2005, por volta do dia 10 de outubro de 2022.

mm. Os pais da vítima BB descobriram que namorava com o CC, porque aquela quis beijá-lo na casa de banho das raparigas, para ninguém ver, e a assistente operacional comunicou à Direção da Escola que, por sua vez, comunicou aos pais da vítima BB no dia 25 de outubro de 2022.

nn. Após a vítima BB ser chamada ao diretor da Escola, refugiou-se em casa do CC, com medo do arguido, mas, ao final da tarde, regressaram ambos ao estabelecimento escolar, onde os pais da vítima BB já estavam numa sala, tendo a vítima BB explicado que só tinha trocado uns beijos com o CC.

oo. Como os pais não acreditaram na explicação dada pela filha, levaram a vítima BB ao Centro de Saúde ..., onde lhe disseram para dizer que tinha tido relações sexuais com o CC, o que a vítima fez.

pp. Após saírem do Centro de Saúde, a vítima BB foi com os seus pais à farmácia, aí a vítima BB falou a sós com a farmacêutica e reiterou que nada havia ocorrido entre si e o seu namorado, no entanto, os pais insistiram para que a vítima fizesse teste de gravidez, tendo feito cerca de 2 a 3 testes nessa altura.

qq. O namoro foi aceite pelos pais da vítima BB, contudo, o arguido impôs regras: não podiam estar sozinhos, apenas podiam estar juntos na casa da vítima BB, na sua presença e, durante os intervalos da escola ou percurso para casa, a vítima BB tinha que fazer uma videochamada com o arguido durante todo o percurso e o intervalo, que era de 20 min (vinte minutos) ou 10 min (dez minutos).

rr. Desde então, além do atrás descrito, o arguido estava constantemente a controlar a vítima BB perguntando onde estava e com quem estava, inclusivamente, exigindo fotografias, videochamadas e localização para comprovar o que lhe era dito pela filha.

ss. No fim de semana de 29/30 de Outubro de 2022 – que se seguiu ao dia 25 de outubro de 2022, dia em que os pais da vítima BB souberam que esta namorava - foram com a mesma comprar-lhe um vibrador, numa loja na ..., em ..., de cor de rosa choque, com cerca de 10 cm (dez centímetros), que funciona a pilhas, com 5 vibrações diferentes.

tt. O arguido disse à vítima BB que ia comprar o vibrador para esta “não ter pensamentos sexuais nem para fazer nada com o CC”.

uu. Depois de comprar o vibrador o arguido disse à vítima BB que a ia ensinar a usá-lo.

vv. Em dia não concretamente apurado, estando a BB despida no seu quarto, o arguido foi ao seu encontro com o vibrador e introduziu o vibrador na vagina da vítima BB, que pôs a vibrar, fazendo com que a vítima BB sentisse dor.

ww. O arguido disse à vítima BB que tinha que utilizar o vibrador, porém, a mesma nunca o fez sozinha, apenas o arguido o introduziu na vagina da vítima BB.

xx. A partir do momento em que teve conhecimento do namoro entre a BB e o CC, o arguido, por diversas vezes, inclusive na presença de CC, apalpou o rabo da sua filha e beijou-a na boca.

yy. Numa ocasião, em dia não concretamente apurado, quando se encontravam os três em casa, o arguido foi buscar um vibrador e um preservativo e disse ao CC para o colocar, no vibrador, para se certificar que o mesmo sabia colocar um preservativo.

zz. Na primeira semana de novembro de 2022, o arguido cortou o “excesso” de pelos púbicos da sua filha.

aaa. Em meados de novembro de 2022, o arguido introduziu a língua na sua vagina, sem utilizar saco, dizendo-lhe o arguido: “aaah como já fizeste sexo com o CC se tiveres alguma doença foi ele que te passou”.

bbb. No dia 15.11.2022, a vítima BB estava na sala da sua casa, sentada no sofá ao lado do CC, com as pernas em cima das pernas deste e estavam os dois a ver um filme.

ccc. Nessa ocasião, o arguido disse ao CC: “se tu amas a BB, mete-lhe a mão no peito”.

ddd. CC recusou, contudo, o arguido pegou na mão do CC e colocou-a em cima da mama da vítima BB, por baixo do soutien, assim o compelindo a tocar no peito desnudo da vítima BB, atuação que esta, à semelhança daquele, não pretendia.

eee. Também disse à filha para “fazer um broche” ao CC, dizendo-lhe para ir buscar um preservativo e ao CC para ir lavar o pénis.

fff. Enquanto o CC foi à casa de banho, o arguido dizia à filha para fazer ao CC e depois a ele, sendo que a menor sempre disse que não queria, acabando por não o fazer.

ggg. No dia 17.11.2022, o arguido enviou uma mensagem à vítima BB a perguntar-lhe se o CC tinha conhecimento do que se passava entre os dois, referindo-se aos atos de natureza sexual, insistindo na pergunta, ao que a vítima BB respondia sempre que não.

hhh. Entre o dia 17 e 18 de novembro de 2022, o arguido obrigou a vítima BB a fazer uma gravação, com um texto que o próprio arguido escreveu, em que a vítima teve de dizer, nomeadamente, que o CC a tinha drogado, que lhe tinha dado uma ganza para a obrigar a fazer sexo com ele e que a vítima BB ia inventar que o seu pai lhe fazia um “minete” e que a masturbava, que a vítima BB odiava o seu pai, que se queria livrar do seu pai. E que a sua mãe era uma estúpida. Dizendo-lhe o arguido que se lhe acontecesse alguma coisa a ele, queria que acontecesse alguma coisa ao CC.

iii. No dia 21.11.2022 o arguido voltou a enviar mensagem à vítima BB, de manhã, dizendo: “E depois não contas a nossa vida.” e, à tarde, a dizer: “Tu não tens o direito de falar de nós ao CC”, “Não te admito isso”.

jjj. E, ainda nesse dia, o arguido enviou um áudio à vítima BB no qual lhe disse: “Conta-lhe a tua vida toda. Conta-lhe. Estraga a nossa vida, estraga a vida dele, estraga tudo…Tá bem?”

kkk. A vítima BB e o CC disseram ao arguido que tinham tido relações sexuais no dia 07.10.2022, porque o arguido ameaçou a vítima BB que a punha num colégio, se não dissessem a verdade, e quando negavam e o arguido não acreditava este voltava a fazer a mesma ameaça.

lll. No dia 23-11-2022, pelas 21h, o arguido na residência acima mencionada guardava no seu telemóvel Samsung A13, com os imeis .............51 e .............56, as seguintes fotografias que havia tirado:


i. 67 fotografias retratando a BB, desnuda da cintura para baixo, deitada de costas numa cama, com as pernas completamente abertas e a abrir com ambas as mãos a vagina de forma a ver-se o seu interior,


ii. 50 fotografias da BB, de pé com as cuecas descidas abaixo da anca, mostrando a púbis,


iii. 20 fotografias do peito desnudo e mamilos da BB.

mmm. O arguido compelia a vítima BB aos atos/contactos de natureza sexual, acima descritos, dizendo-lhe que se não fizesse o que lhe mandava a punha num colégio e, depois de esta começar a namorar, dizia que a punha num colégio interno e nunca mais ia ver o seu namorado.

nnn. A BB nunca relatou a terceiros a atuação do pai a nível sexual, uma vez que este lhe dizia que a matava e de seguida a si próprio e que a mãe ia ficar sozinha, que ia preso, a colocavam num colégio e que a mãe ficava sozinha.

ooo. A vítima BB escreveu o que se estava a passar consigo em duas cartas que entregou ao namorado CC no dia 21.11.2022, porque desde que os pais consentiram o namoro nunca conseguiu estar a sós com o namorado, pois almoçava todos os dias em casa e no percurso, que fazia apeada, de casa para a escola e vice-versa, fazia-o sempre em videochamada com o arguido e por imposição deste, o mesmo acontecendo nos intervalos das aulas.

ppp. Devido a todo o sofrimento que vivia, a vítima BB chegou a cortar-se cinco vezes, na zona da coxa da perna direita, a conduta do arguido gerava um sentimento de culpa na vítima BB que esta aliviava cortando-se na perna.

qqq. Ao atuar conforme o descrito, no domicílio comum, o arguido pretendeu e logrou, de forma reiterada, ofender a integridade física e psíquica da vítima BB e humilha-la, bem sabendo que a sua conduta era idónea a tanto e a afetar deste modo o seu bem-estar físico e psíquico.

rrr. Sabia o arguido que as palavras que lhe dirigia eram idóneas a atingir a sua honra e bom nome bem como a intimidá-la, causando-lhe receio pela sua vida e integridade física.

sss. Sabia o arguido que ao exigir que a sua filha relatasse e comprovasse os seus passos, ver o conteúdo do seu telemóvel e que não contasse os pormenores da vida familiar às suas amigas quis impedir a sua filha de se autodeterminar e exercer controlo sobre a mesma.

ttt. Bem sabia e não podia ignorar o arguido que tais condutas, dirigidas de forma constante à vítima, eram idóneas e adequadas a causar-lhe medo e inquietação, fazendo-a recear o que o arguido lhe pudesse fazer, mantendo-a num estado de persistente perturbação e desassossego, e prejudicando a sua liberdade de determinação, resultados que o arguido quis e logrou atingir.

uuu. Bem sabia que ao agir da forma descrita condicionava gravemente a vida e bem-estar psicossocial da sua filha, ofendendo-lhe a respetiva dignidade humana e pondo em perigo a sua saúde psíquica.

vvv. O arguido quis e logrou observar, fotografar e mexer com um cotonete na vulva e vagina da sua filha, introduzir os dedos, a língua e um vibrador na sua vagina, apalpar-lhe o rabo e apalpar e fotografar os seus seios desnudos, colocar a mão do CC no seu peito sabendo que, com a sua conduta, a submetia a atos e contactos de natureza sexual e que punha em causa autodeterminação sexual e o livre desenvolvimento da personalidade da vítima BB na esfera sexual, o que fez para satisfazer os seus instintos libidinosos, o que logrou.

www. O arguido quis e logrou tirar e guardar no seu telemóvel as fotografias acima referidas, ciente da natureza pornográfica das mesmas e bem sabendo que para o efeito servia-se da sua filha e que tais fotografias expunham os órgãos sexuais da sua filha e partes do seu corpo

xxx. Em cada uma das ocasiões em que quis e atuou das formas acima descritas, o arguido estava bem ciente que procedia contra a sua filha BB e da sua idade, cuja data de nascimento bem conhecia e sendo por isso sabedor que a sua conduta acima descrita se desenrolou quando a sua filha era menor, tendo entre os 11 e os 14 anos da sua filha.

yyy. Em cada uma dessas ocasiões, bem sabia o arguido que exercia sobre a vítima BB as responsabilidades parentais, que a mesma estava ao seu encargo e sob a sua direção, competindo-lhe zelar pelo seu bem-estar e prover às suas necessidades por ser menor.

zzz. Estava ainda o arguido ciente de que, por força da relação filial com a sua filha, tinha sobre esta conatural ascendente de dominância e poder de direção e que, por força da desproporção etária entre ambos e temor reverencial sentido pela vítima face ao arguido, seu pai, a vítima BB não tinha qualquer possibilidade séria de oferecer resistência às condutas do arguido.

aaaa. De todas essas circunstâncias, de que estava bem ciente, o arguido se prevaleceu para concretizar as atuações supra descritas, mormente os seus propósitos libidinosos querendo e praticando com a filha tais atos/contactos sexuais e cuja natureza sexual bem conhecia.

bbbb. O arguido quis e logrou pegar na mão de CC e fazê-lo tocar numa das mamas da BB ciente de que ao agir da forma descrita o sujeitava assim como à sua filha a contacto de natureza sexual, que agia contra a vontade de ambos e que violava a liberdade e autodeterminação sexual de ambos.

cccc. O arguido padece de Perturbação de Personalidade de tipo Borderline, contudo mantém e mantinha aquando dos factos capacidade de avaliação e discernimento entre lícito ou ilícito, de avaliar a natureza e alcance dos seus atos e a sua capacidade de autodeterminação de acordo com essa avaliação também se encontrava, e encontra, preservada.

dddd. O arguido por força dessa perturbação evidencia impulsividade, baixa tolerância à frustração, receio extremado de abandono e rejeição, traços histriónicos de personalidade e recorre a auto e heteroagressividade, chantagem emocional e ameaça como forma de impor a sua vontade.

eeee. Recorre a comportamento manipulador e à instrumentalização de sintomatologia psiquiátrica diversa (pseudoalucinações após aplicação da prisão preventiva) para desresponsabilização de atos de que é acusado ou de insucesso laboral e traços histriónicos de personalidade, embora em menor grau.

ffff. consiste num modo de ser… e acarreta baixo potencial para a mudança… sem outra patologia psiquiátrica.

gggg. O arguido agiu sempre livre, voluntária e conscientemente, bem sabendo que os seus comportamentos são proibidos e punidos pela lei penal.


Outras condições pessoais do arguido para além das que constam dos factos assentes:

1. O segundo de dois filhos de um casal de modesta condição socioeconómica, o arguido descreve os primeiros anos de vida inserido no agregado familiar de origem, quotidiano que ter-se-á pautado por uma dinâmica familiar disfuncional, devido ao quadro de negligência vivenciado, na sequência da conduta alcoólica dos progenitores.

2. As implicações da problemática aditiva dos progenitores, também desempregados, terão promovido um quotidiano de dificuldades económicas no lar familiar, a par de um

3. quadro de negligência parental, o que terá contado com a intervenção dos serviços de Proteção de Menores, que retiraram o arguido e irmã do lar familiar, tendo ambos sido colocados em regime de internamento na Casa ....

4. Três anos depois viria a ocorrer o falecimento da progenitora.

5. AA refere o início da escolaridade na Casa ..., tendo apenas concluído o 6º ano de escolaridade, mencionando, de forma assertiva, o seu desinteresse pelas atividades escolares, optando por faltar às aulas, com sucessivas fugas do colégio.

6. Apesar da sua permanência nessa instituição até aos dezoito anos, o arguido nunca deu continuidade aos estudos, mencionando a sua frequência de apenas alguns meses num curso de pintura auto, que abandonou, justificando desinteresse.

7. Como atividade de interesse referiu a prática de equitação promovida nessa instituição.

8. AA saiu da Casa ... aos dezoito anos de idade e terá integrado o agregado da avó materna, na morada acima referida, quotidiano que, do descrito pelo próprio, terá sido marcado por um estilo de vida inativo, subsistindo do apoio disponibilizado pela avó materna, beneficiária de uma reforma modesta.

9. AA refere nunca ter trabalhado desde a saída do colégio, aos dezoito anos, por sua opção, descrevendo apenas e, mais recentemente, um curto período de desempenho laboral como empregado de limpezas na mesma empresa onde a sua mulher trabalha, o que nos foi confirmado por essa fonte, embora nos tenha referido que o arguido terá sido dispensado devido aos seus comportamentos desajustados no relacionamento com outros colegas de trabalho.

10. No plano afetivo, o arguido descreve o início do namoro com FF há aproximadamente quinze anos, sendo que passados alguns meses de relacionamento, esta foi viver para a habitação da avó materna, onde já estaria a viver sozinho, devido ao falecimento da avó.

11. O casal terá contraído matrimónio em ... de ... de 2007, tendo posteriormente nascido BB, vítima no atual processo judicial, mantendo-se o agregado constituído até à data da atual prisão.

12. AA relata (com alguma reserva) um relacionamento conjugal aparente normativo ao longo dos anos, situação contrária ao descrito pelo cônjuge, que nos descreveu um quadro de violência doméstica, marcada por maus-tratos físicos verbais e físicos, iniciado logo após o casamento.

13. FF descreveu atos gratuitos e inesperados de violência física no lar familiar, que ainda hoje os justifica como atos despoletados por uma crescente fúria do arguido, apresentando sequelas físicas, na sequência do arremesso de objetos por parte do arguido.

14. Esses episódios de crescente fúria e zanga por parte do arguido são explicados pelo cônjuge, como tendo na sua origem, sentimentos de ciúmes infundados que, ao longo dos anos, deram lugar a um controlo exacerbado a todos os seus movimentos, com especial ênfase ao seu telemóvel e contactos nas redes sociais, fator promotor de atos de maior agressividade, alegadamente originados pela desconfiança gerada quanto à razão desses contactos.

15. FF descreve o arguido como sic” estar casada com duas pessoas diferentes, dois maridos numa pessoa”.

16. Apesar do ambiente de violência doméstica vivenciado no lar familiar ao longo dos anos, FF nunca terá apresentado queixa às autoridades policiais, que justifica com o facto de eventuais represálias por parte do arguido, caso ele fosse contactado pelas autoridades competentes, por receio da sua vida, dado que em episódios ocorridos de violência doméstica, o arguido chegou a ameaças com arma branca, tendo encostado

17. uma faca ao seu pescoço, verbalizando não ter receio de a matar.

18. Outra forma de controlo no lar familiar terá sido através do controlo financeiro, retirando-lhe o cartão multibanco e utilizando-o em compras pessoais.

19. No que concerne a dinâmica dos progenitores com a filha BB surge como distinta na sua intervenção.

20. AA descreve uma relação normal entre pai e filha até esta ter completado onze anos de idade, assumindo desde essa data uma postura diferente, com passagem a atos de agressividade física para com ela, que justifica como atos por impulso gratuito, que não consegue explicar a razão desses seus comportamentos.

21. Todavia, no seu discurso transparece uma postura defensiva a esses episódios de agressividade física e também sexual para com a filha, que justifica com alegada doença psiquiátrica que lhe foi anteriormente diagnosticada, na sequência dos traumas sofridos como vítima de violação no caso judicial da Casa ....

22. O discurso da progenitora incide no seu total desconhecimento quanto aos atos descritos no presente processo judicial, justificando esse desconhecimento com os períodos prolongados de ausência do lar familiar, pelo seu desempenho laboral com três atividades distintas, a primeira com turnos da meia noite às cinco da manhã, a trabalhar nas limpezas do metro, regressando ao lar familiar, onde descansaria algumas horas, para voltar a sair para uma segunda atividade, como auxiliar de limpezas numa habitação particular, regressando novamente ao lar familiar por curto período de tempo, para assumir um terceiro trabalho numa outra residência particular.

23. Segundo a própria, o contacto com a filha seria pouco, apenas em períodos em que se cruzavam na habitação familiar, sendo que BB nunca terá iniciado qualquer conversa sobre eventuais comportamentos desviantes por parte do arguido.

24. FF refere o seu desconhecimento sobre eventuais razões que levaram à presente situação da sua filha, colocada em instituição, embora nos tenha afirmado manter o contacto com a menor, com visitas aos fins-de-semana.

25. Do percebido, os atos pelos qual o arguido se encontra acusado no presente processo judicial, não surgem como tema de conversa entre ambas, pelo contrário, a situação nunca terá sido conversada entre mãe e filha.

26. FF descreve uma vivência junto do arguido como muito problemática não só pelo quadro de maus-tratos sofridos pela mão do marido, mas também pela observação de atos que por vezes o próprio infligia a si mesmo, que justifica como tentativas de suicídio, sendo que numa das ocasiões recorda um episódio de automutilação do arguido, em que este cortou o seu próprio abdómen com uma faca, situação que o terá levado a intervenção cirúrgica. Esse ato ter-lhe-á sido explicado pelo arguido como consequência dos traumas sofridos enquanto vítima de violação na Casa ..., sendo que o próprio arguido nos afirmou ter sido acompanhado na valência de pedopsiquiatria, ainda enquanto aluno no colégio Casa ....

27. No plano pessoal, AA apresenta um discurso coerente, relevando-se a sua capacidade em termos de memória remota, com precisão nos relacionamentos de episódios e respetivas datas do seu percurso vivencial, sendo de referir a sua escusa a questões relacionadas com a presente acusação, alegando os traumas vivenciados na Casa ....

28. Contudo, do ponto de vista afetivo, surge alguma reserva quanto ao seu modo funcional, especialmente no que concerne o plano das interações sociais.

29. O seu discurso quanto a eventuais sentimentos para com a sua filha parece revelar reduzida ressonância afetiva, com dificuldades na verbalização de sentimentos quanto à menor, apenas afirmando amar a sua filha ainda que sem qualquer sinal visível de emotividade.

30. A reduzida ou falta de ressonância afetiva revelou-se igualmente no seu discurso quanto à mulher, apenas verbalizando o seu desconhecimento se estará ou não ainda casado.

31. Eventuais dificuldades na esfera social foram também relatadas pela mulher, que descreve o arguido como um indivíduo algo solitário, com poucos amigos pelas dificuldades que apresenta no relacionamento com terceiros, permanecendo grande parte do tempo no lar familiar.

32. Do percecionado, o arguido reconhece a gravidade dos atos pelos quais vem acusado, tendo expressado a sua reserva em falar quanto aos atos pelos quais se encontra acusado no presente processo judicial.

33. No presente contexto prisional o arguido, que se encontra em ala mais resguarda do contacto com a população prisional no seu geral, tem mantido uma conduta institucionalmente ajustada.

34. Em termos de suporte no exterior, o arguido já beneficiou de visitas por parte da sua irmã, o que não tem acontecido mais recentemente, alegando que esta terá sido mãe recentemente, o que não temos como confirmar.

35. AA parece registar um percurso vivencial marcado por condicionalismos na fase do seu crescimento, destacando-se os primeiros anos de vida inserido no agregado dos pais, ambiente que parece ter-se regido por uma dinâmica disfuncional com um quadro de negligência parental, na sequência da conduta de alcoolismo dos progenitores, o que promoveu a intervenção dos serviços competentes, tendo o arguido sido encaminhado para a Casa ..., onde permaneceu até aos dezoito anos de idade.

36. Do processo de desenvolvimento do arguido parece destacarem-se problemas desde a idade precoce, especialmente ao nível comportamental, com implicações no seu percurso escolar, não sendo possível aferir eventuais fatores que o próprio descreve como de forte impacto no seu percurso vivencial.

37. No plano pessoal, AA revela fragilidades pessoais, de certa forma, limitantes em termos do seu funcionamento pessoal, especialmente ao nível de competências sociais.

38. Foi observado medicamente e aos 16 anos apresentava sinais de coito anal relacionado com queixas de ter sido abusado sexualmente e síndrome depressivo.

39. Registou duas tentativas de suicídio aquando da sua permanência na Casa ....

40. Não tem antecedentes criminais.”


Uma última nota para referir que, relativamente a factos não provados, se consignou que “Inexistem, com relevo para a decisão a proferir”


B.3. Motivação da matéria de facto dada como provada


Por outro lado, o Tribunal justificou a sua decisão sobre a matéria de facto começando por citar doutrina e jurisprudência e por tecer um conjunto de considerações, das quais se destacam as constantes nos dois últimos parágrafos (transcrição):


“Neste tipo de crime raramente existem testemunhas o que determina um maior controle e um raciocínio mais exigente na análise do conjunto da prova produzida e globalmente analisada. Por outro lado, resulta das regras da experiência comum, em tese, e advenientes da experiência que se vai alcançando, neste tipo de crime não se obtém a confissão do arguido, o que não foi o caso.


Acresce que quanto mais próximo o convívio da criança com o autor do abuso sexual, mais difícil se torna a revelação.”


Em seguida, procede ao exame crítico da prova que, em concreto, justificou a sua decisão tendo, designadamente e para o que ora interessa, consignado o seguinte:


“Posto isto, a decisão teve por base a análise e valoração da prova produzida e examinada em audiência, apreciada segundo as regras da experiência, designadamente:


Declarações confessórias do arguido que confessou quase integralmente os factos constantes da acusação com exceção do facto 5., sendo confrontado com todos os restantes factos constantes da acusação, que foi confirmando um a um, sem mais exceções, a não ser a preocupação de evitar que a sua mulher, mãe da BB, fosse associada a qualquer dos factos por si praticados. Num discurso perturbado, foi referindo ser tudo verdade, que não consegue explicar o sucedido, a não ser que foi vítima de abuso sexual e que já atentou contra a sua própria vida. Tendo tido apoio psiquiátrico e psicológico até dada altura da sua vida não foi capaz de recorrer a este aquando da prática dos factos que reconhece serem contrários ao dever ser jurídico penal e aos seus deveres como pai.


As declarações para memória futura das vítimas BB e CC confirmam os factos assumidos pelo arguido, bem como o facto 5 da acusação. Os seus depoimentos são, no essencial, elucidativos dos factos que, aliás, o arguido confirmou e não deixam dúvidas no Tribunal acerca dos factos vivenciados, na sua maioria pela BB e que acabaram por “arrastar” o CC (não colocamos propositadamente o nome completo de ambos), sendo de notar particularmente que o tipo de abusos a que a menor foi sujeita foram piorando a partir da sua relação de namoro.”


B.4. O Direito


B.4.1. Questões prévias


B.4.1.1. Competência deste Supremo Tribunal de Justiça


Como atrás se mencionou, o recurso foi apresentado no Tribunal da Relação de Lisboa, tendo o Ministério Público suscitado a incompetência, em razão da matéria desse tribunal, sendo que, por despacho proferido a 16.02.2024, na constatação de que, visando qualquer dos recursos interpostos apenas o reexame da matéria de direito, designadamente as penas concretas fixadas em primeira instância e o valor da indemnização por danos não patrimoniais e tendo o arguido sido condenado em pena (única) de prisão superior a 5 anos, declarou-se aquele Venerando Tribunal incompetente, em razão da matéria, para deles conhecer, e determinou a remessa dos autos ao Supremo Tribunal de Justiça, por ser o competente para o efeito.


Concorda-se com este entendimento devendo ainda acrescentar-se que, nestas situações (vulgarmente apelidada de recursos per saltum), este Supremo Tribunal tem competência, não apenas para apreciar a aplicada pena única de prisão superior a 5 anos, como, também, para apreciar as penas parcelares. mesmo que estas se situem aquém daquele limite, como acontece no caso dos autos.


Com efeito, ficou decidido no Ac. de fixação de jurisprudência nº 5/20274 deste Supremo Tribunal de Justiça que


«A competência para conhecer do recurso interposto de acórdão do tribunal do júri ou do tribunal coletivo que, em situação de concurso de crimes, tenha aplicado uma pena conjunta superior a cinco anos de prisão, visando apenas o reexame da matéria de direito, pertence ao Supremo Tribunal de Justiça, nos termos do artigo 432.º, n.º 1, alínea c), e n.º 2, do CPP, competindo-lhe também, no âmbito do mesmo recurso, apreciar as questões relativas às penas parcelares englobadas naquela pena, superiores, iguais ou inferiores àquela medida, se impugnadas.»


Por outro lado, a matéria de facto fixada nos termos supra descritos, embora registe algumas imperfeições, não padece de quaisquer vícios de que este Supremo Tribunal pode conhecer, tal como prevê o art.º 410.º, n.º 2, do CPP, nem estes foram arguidos, não se vislumbrando quaisquer nulidades e por isso está definitivamente fixada, pelo que, com base nela se passa a decidir as questões de direito que foram suscitadas pelos ora recorrentes.


B.4.1.2. Alteração da Qualificação Jurídica


Como atrás se referiu, foi designadamente dado como provado no acórdão recorrido, o seguinte:

a. “BB, doravante vítima BB, nasceu em ........2007 e é filha de AA, doravante arguido, e de FF.

x. Por altura dos doze/treze anos da vítima BB o arguido, além de lhe ver a vulva, tocar com o cotonete e fotografar a sua vulva, nos termos mencionados também, cerca de quatro 5 vezes, meteu os dedos dentro de um saco de plástico e introduziu, um ou dois dedos, na vagina da vítima BB e depois colocava a língua no saco e introduzia-a, igualmente, na vagina desta.

vvv) O arguido quis e logrou observar, fotografar e mexer com um cotonete na vulva e vagina da sua filha, introduzir os dedos, a língua e um vibrador na sua vagina, apalpar-lhe o rabo e apalpar e fotografar os seus seios desnudos, colocar a mão do CC no seu peito sabendo que, com a sua conduta, a submetia a atos e contactos de natureza sexual e que punha em causa autodeterminação sexual e o livre desenvolvimento da personalidade da vítima BB na esfera sexual, o que fez para satisfazer os seus instintos libidinosos, o que logrou.

xxx. Em cada uma das ocasiões em que quis e atuou das formas acima descritas, o arguido estava bem ciente que procedia contra a sua filha BB e da sua idade, cuja data de nascimento bem conhecia e sendo por isso sabedor que a sua conduta acima descrita se desenrolou quando a sua filha era menor, tendo entre os 11 e os 14 anos da sua filha.


E, aquando da subsunção destes factos ao Direito e da escolha e determinação concreta da pena, o acórdão recorrido decidiu o seguinte:


“4.1.4. Do crime de abuso sexual de criança, p. e p. pelos artigos 171,nº1 , agravado pelo artº 177, nº1, al. a) do C.P.


(…)


Assim e considerando a matéria de facto apurada e sendo evidente o preenchimento do tipo pela conduta do arguido, teremos por verificado o cometimento do crime, p. e p. pelo artº 171º, nº1 do C.P. com a referida agravante posto que é pai da ofendida – artº 177º, nº1, al. a) do C.P., p. e p. com pena de prisão de um ano e quatro meses de prisão a dez anos e oito meses de prisão.


5. Da medida concreta da pena:


O crime de abuso sexual de criança agravado, p. e p. pelos 171º, nº1 e 177º, nº1, al. a) é punido com pena de prisão de 1 ano e 4 meses até 10 anos e oito meses (…)


(…)


Pelos quatro crimes que além de observar a vulva e fotografar, meteu os dedos e a língua, protegidos com um plástico, na vagina da filha – quatro anos de prisão para cada um.


Finalmente, no dispositivo e no que ora interessa, condenou o arguido nos seguintes termos:


Pela prática do crime de abuso sexual de criança, p. e p. pelos artigos 171,nº1, agravado pelo artº 177, nº1, al. a) do C.P. correspondente a 724 crimes de abuso sexual de criança agravado por ser pai da BB (…)

• Pelos quatro crimes que além de observar a vulva e fotografar, meteu os dedos e a língua, protegidos com um plástico, na vagina da filha – quatro anos de prisão para cada um.”


Ora, como atrás deixamos referido, entende-se que a subsunção dos factos acima referido ao disposto no Código Penal foi feita de forma incorreta.


Com efeito, a versão original do Código Penal o coito anal e o coito bocal (então denominados como “atos contra natura”), eram subsumíveis ao crime de atentado ao pudor em pessoa inconsciente, nos termos do artigo 206º desse diploma legal.5


Contudo, o nº 2 do artigo 171º do Código Penal em vigor tem atualmente (por força da alteração introduzida pela Lei 59/2997, de 4 de setembro), a seguinte redação:


“2 – Se o ato de relevo consistir em cópula, coito anal, coito oral ou introdução vaginal de partes do corpo ou objectos, o agente é púnico com ena de três a dez anos.”


Face ao exposto, os factos acima referidos devem ser subsumíveis a esta norma e não (como fez o acórdão recorrido) no nº 1 do mesmo artigo 171º do Código Penal, mantendo-se a agravação decorrente do disposto no artigo 177º, nº 1 al. a) do mesmo diploma legal.


Notificado para, em 10 dias, se pronunciar sobre a intenção deste Supremo Tribunal de Justiça de proceder a essa alteração jurídica dos factos, nos termos do disposto no nº 3 do artigo 424º do Código de Processo Penal, o arguido opôs-se a essa alteração, nos termos da argumentação acima transcrita, à qual foram dadas respostas, também acima transcritas, do Ministério Público e da Assistente.


Em síntese, o arguido fundamenta essa oposição em duas ordens de razões:

• Por um lado, tal operação consubstanciaria uma “alteração substancial dos factos, na medida em que, e nos termos da al. f), do art. 1º do C.P.P., implicaria abstratamente a "agravação dos limites máximos das sanções aplicáveis";

Por outro, estar-se-ia a agravar a pena, o que violaria as suas garantias de defesa e é proibida pelo princípio da proibição da reformatio in pejus, estabelecida no artigo 409º do Código de Processo Penal, já que o Ministério Púiblico não interpôs recurso da decisão recorrida.


B.4.1.2.1. A alegada “alteração substancial dos factos”


O arguido fundamenta esta alegação no disposto no artigo 1º do Código de Processo Penal, norma que contém um conjunto de definições legais e que, na sua alínea f), estabelece que:


“f) “Alteração substancial dos factos” aquela que tiver por efeito a imputação ao arguido de um crime diverso ou a agravação dos limites máximos das sanções aplicáveis”


Assim, suportando-se nesta norma, entende o recorrente que a alteração que pretendemos realizar é subsumível àquele conceito, já que a mesma implicaria abstratamente a "agravação dos limites máximos das sanções aplicáveis";


Esquece, contudo, que, na aludida definição legal, a agravação dos limites máximos das sanções aplicáveis – assim como a imputação de crime diverso - têm de decorrer de alteração de FACTOS.


Com efeito, em anotação a essa alínea, escreve Paulo Pinto de Albuquerque6 o seguinte:


“A alteração substancial dos factos é uma noção complexa e deve ser delimitada em função da alteração não substancial dos factos e da alteração da qualificação jurídica dos factos. A noção legal de alteração substancial dos factos é composta pelos seguintes requisitos

a. A alteração substancial de factos é uma alteração dos “factos”. Portanto, uma alteração da qualificação jurídica sem que haja qualquer modificação dos factos da acusação ou da pronúncia não está submetida ao regime dos artigos 359º e 303º, nºs 3 e 4, mas antes ao regime do artigo 358º, nº 3, e do artigo 303, nº 5 (desde logo, acórdão do STJ, de 8.1.1992, in CJ, XVII, 1, 5, e acórdão do STJ, de 27.5.1992, in CJ, XVII, 3, 40).

b. A alteração substancial dos factos é uma alteração dos factos relevantes para a “imputação” de um crime ou a “agravação dos limites máximos” das sanções aplicáveis. Isto é, só constitui alteração substancial dos factos a modificação que se reporta a factos constitutivos do crime e a factos que tenham o efeito de imputação de um crime punível com uma pena abstrata mais grave (…)”


Aliás, que a operação a que se pretende proceder não se integra nesse conceito decorre, de forma cristalina, do disposto nos nºs e 1 e 3 do artigo 358º do Código de Processo Penal que, com a epígrafe “Alteração não substancial dos factos descritos na acusação ou na pronúncia” estabelecem o seguinte7:


“1 - Se no decurso da audiência se verificar uma alteração não substancial dos factos descritos na acusação ou na pronúncia, se houver, com relevo para a decisão da causa, o presidente, oficiosamente ou a requerimento, comunica a alteração ao arguido e concede-lhe, se ele o requerer, o tempo estritamente necessário para a preparação da defesa.


3 – O disposto no nº 1 é correspondentemente aplicável quando o tribunal alterar a qualificação jurídica dos factos descritos na acusação ou na pronúncia.”


Por outro lado, e complementarmente, anote-se que o nº 3 do artigo 424º do mesmo diploma legal determina que:


“3 - Sempre que se verificar uma alteração não substancial dos factos escritos na decisão recorrida ou na respectiva qualificação jurídica não conhecida do arguido este é notificado para, querendo, se pronunciar o prazo de 10 dias.”


Assim e sem necessidade de muitos mais considerandos – completamente despiciendos face ao que deixámos escrito e ao doutamente consignado pelo Digníssimo Procurador-Geral Adjunto neste Supremo Tribunal de Justiça –, carece de razão o recorrente, pois o que se anunciou e que, em seguida, se irá fazer, é alterar a qualificação jurídica dos factos constantes na decisão recorrida.


Ou seja, e escrito de outra forma, não se irá proceder a qualquer alteração desses factos que, aliás e podendo tê-lo feito, o Recorrente nunca impugnou e, por isso, estão definitivamente assentes.


Porventura terá interesse recordar o que Frederico Isasca8 escreveu sobre a questão da qualificação jurídica:


“Um primeiro ponto importa, porém, desde já esclarecer. O do objeto da qualificação jurídica. Objeto da qualificação jurídica são factos. São os factos que formam um acontecimento da vida, delimitado no espaço e no tempo, e que se imputam a certo sujeito. Objeto da qualificação jurídica é, portanto, o facto processual, i. e., o objeto do processo. Qualificar um determinado facto do ponto de vista jurídico-penal é subsumir um determinado acontecimento na descrição abstrata de uma preposição penal., i. e., verificar se aquele comportamento concreto daquele agente, corresponde ou não ao comportamento abstractamente descrito numa dá da lei penal como constituindo um crime. Nisto e só nisto consiste a qualificação jurídico penal.”


Portanto, não tem o recorrente razão, quando afirma que se visa proceder a alteração substancial dos factos, sendo o propósito deste Supremo Tribunal de Justiça completamente lícito, pois não pode o mesmo consentir que se aplique o direito de forma incorreta. Na verdade, e como refere Pereira Madeira,9 “o conhecimento do direito é officio do tribunal”.


Aliás, há muito o Supremo Tribunal de Justiça fixou jurisprudência no sentido de que “o Tribunal Superior pode, em recurso, alterar oficiosamente a qualificação jurídico-penal efectuada pelo tribunal recorrido, mesmo para crime mais grave, sem prejuízo, porém, da proibição da reformatio in pejus”.10


E compreende-se que tal seja permitido pois, como referem Teresa Pizarro Beleza e Frederico de Lacerda da Costa Pinto11, “Nestes casos, o objeto do processo mantém-se exatamente o mesmo; apenas se altera a qualificação dos factos em relação à acusação, à pronúncia ou à decisão da 1.ª instância, consoante os casos.”


Concluindo, parece-nos evidente que, neste ponto, não assiste razão ao recorrente.


Numa nota complementar e, em jeito de introdução ao tema seguinte, desde já se alerta que, como tem ido jurisprudência do Tribunal Constitucional12, o princípio da reformatio in pejus jamais obsta à alteração jurídica dos factos, imponto apenas - no caso de haver apenas recursos a favor do recorrente – que ao arguido seja aplicada uma sanção mais severa.


B.4.1.2.2. A alegada violação das suas garantias de defesa e do princípio da proibição de reformatio in pejus.


O disposto no nº 1 do artigo 409º do Código de Processo Penal estabelece que:


“1 - Interposto recurso da decisão final somente pelo arguido, pelo Ministério Público no exclusivo interesse daquele ou pelo arguido e pelo Ministério Público no exclusivo interesse do primeiro, o tribunal superior não pode modificar, na sua espécie ou medida, as sanções constantes da decisão recorrida, em prejuízo de qualquer dos arguidos, ainda que não recorrentes”


Conforme é referido naos acórdãos deste Alto Tribunal13, “A “ratio “ do instituto radica nas mais díspares razões, mas uma mais antiga pondera uma ideia de equidade, não fazendo sentido reformar para pior uma sentença se só o arguido recorre, não o fazendo o M.º P.º, transitando em julgado quanto a ele o decidido; uma outra na ideia de “favor reo“, de benefício, de concessão de uma garantia última dos seus direitos de defesa, como contrapeso da sua debilidade posicional no processo, mas já em Pisani a razão é de índole reguladora do processo, de instrumento que regulariza o andamento justo do processo na medida em que, pelo menos, não desencoraja o arguido de recorrer com receio de sentença mais gravosa ( Cfr. Mara Lopes, in “O Princípio da Proibição da Reformatio in Pejus, como Limite aos Poderes Cognitivos e Decisórios do Tribuna”, Estudos em Homenagem ao Professor Jorge de Figueiredo Dias, Vol.III, Coimbra Ed., 949 a 996 )”


Na doutrina, Ana Sofia Ribeiro14 escreve o seguinte: “Como ensina Claus Roxin, o princípio traduz que “a sentença não pode ser modificada em prejuízo do arguido, na classe e extensão das suas consequências jurídicas, quando somente tenha recorrido o arguido, o seu representante legal ou o Ministério Público no seu interesse (...). Com isto pretende lograr-se que ninguém se abstém de interpor recurso por receio de ser punido de modo mais severo na instância seguinte.” 42 Analisando o âmbito de intervenção e alcance do princípio no nosso atual sistema processual penal, não podemos deixar de o ver como uma garantia, por conferir intensidade e autonomia ao mesmo. Como já tivemos oportunidade de ver, a proibição resulta da própria estrutura acusatória 43 do processo penal, constituindo uma garantia básica do direito do arguido ao recurso de uma sentença que o condenou. O que acontece é que o princípio que proíbe a reformatio in pejus protege o arguido do risco de uma decisão mais grave do tribunal superior. Caso contrário, o direito ao recurso, apesar de ser um direito, envolveria sempre um risco inevitável, pois estar-se-ia sempre a recorrer na incerteza, o que acabaria por constranger e, de certo modo, restringir o uso do direito ao recurso, que é um direito fundamental do arguido. A proibição de reformatio in pejus apresenta-se perante nós, como uma medida protetora do recurso em favor do arguido, em que o objetivo é garantir que a este não será aplicada uma sanção mais gravosa, quando é ele o recorrente ou o Ministério Público no interesse dele. É uma limitação imposta ao tribunal de recurso quando este determina a sanção a aplicar ao arguido, por estar impedido de a agravar. Como ensina Claus Roxin, o princípio traduz que “a sentença não pode ser modificada em prejuízo do arguido, na classe e extensão das suas consequências jurídicas, quando somente tenha recorrido o arguido, o seu representante legal ou o Ministério Público no seu interesse (...). Com isto pretende lograr-se que ninguém se abstém de interpor recurso por receio de ser punido de modo mais severo na instância seguinte.” Analisando o âmbito de intervenção e alcance do princípio no nosso atual sistema processual penal, não podemos deixar de o ver como uma garantia, por conferir intensidade e autonomia ao mesmo. Como já tivemos oportunidade de ver, a proibição resulta da própria estrutura acusatória 43 do processo penal, constituindo uma garantia básica do direito do arguido ao recurso de uma sentença que o condenou. O que acontece é que o princípio que proíbe a reformatio in pejus protege o arguido do risco de uma decisão mais grave do tribunal superior. Caso contrário, o direito ao recurso, apesar de ser um direito, envolveria sempre um risco inevitável, pois estar-se-ia sempre a recorrer na incerteza, o que acabaria por constranger e, de certo modo, restringir o uso do direito ao recurso, que é um direito fundamental do arguido. A proibição de reformatio in pejus apresenta-se perante nós, como uma medida protetora do recurso em favor do arguido, em que o objetivo é garantir que a este não será aplicada uma sanção mais gravosa, quando é ele o recorrente ou o Ministério Público no interesse dele. É uma limitação imposta ao tribunal de recurso quando este determina a sanção a aplicar ao arguido, por estar impedido de a agravar.”


Pretende-se, em suma e colocando o assunto na sua forma mais simples, proteger o direito constitucional de defesa, evitando uma “decisão surpresa”, relativamente à qual o arguido não teve a possibilidade de se defender, pois, só ele (ou o Ministério Público no seu interesse) recorreu do acórdão que o condenou.


Acontece que, no caso em apreço, a assistente BB, depois de, a 9 de junho de 2023, ter apresentado requerimentos nos quais manifestou aderir à acusação pública (refª. nº 25890335) e declarado que não se opunha ao arbitramento de quantia a título de reparação pelos prejuízos por si sofridos15 (refª. ......32), a 5 de dezembro de 2023 interpôs recurso da decisão ora em apreciação (refª......23).


Ou seja, o Recorrente parece querer ignorar o facto de não ter sido ele o único que recorreu do acórdão proferido a 2 de novembro de 2023 pelo juiz ... do Juízo Central Criminal de ...…


Com efeito a assistente BB também interpôs recurso e, no que concerne aos factos ora em apreço - Facto x), Por altura dos doze/treze anos da vítima BB o arguido, além de lhe ver a vulva, tocar com o cotonete e fotografar a sua vulva, nos termos mencionados também, cerca de quatro 5 vezes, meteu os dedos dentro de um saco de plástico e introduziu, um ou dois dedos, na vagina da vítima BB e depois colocava a língua no saco e introduzia-a, igualmente, na vagina desta - pediu que este Supremo Tribunal de Justiça condenasse o Recorrente a pena parcelar de “8 anos e 6 meses de prisão para cada um”.


E, fê-lo, ao abrigo do disposto na alínea c) do nº 2 do artigo 69º do Código de Processo Penal, que estabelece que, designadamente, “compete à assistente”:


“c) Interpor recurso das decisões que os afectem, mesmo que o Ministério Público não o tenha feito, dispondo, para o efeito, de acesso aos elementos processuais imprescindíveis, sem prejuízo do regime aplicável ao segredo de justiça16.


E fê-lo, também, porque tem um concreto e próprio interesse na correta adequação das concretas penas a aplicar ao arguido – o que, aliás, demonstrou na sua motivação – pois, designadamente, a forma extremamente gravosa como o arguido atuou, o período durante o qual manteve esse comportamento e a extrema vulnerabilidade da vítima, sua filha, provocaram nesta, como ficou demonstrado e para além de dor e sofrimento, uma completa desestabilização afetiva, que afetou profundamente a sua saúde mental e psicológica e a sua perspetiva sobre a liberdade, a vida e a família, sendo por isso necessário proteger, pelo tempo adequado e necessário, o seu crescimento e a sua formação enquanto ser humano (ainda hoje uma menor), o qual foi vítima de crimes que protegem bens jurídicos extremamente pessoais e que são essências para o seu são desenvolvimento. Aliás, foi também devido às particulares exigências de proteção da vítima – que foi considerada especialmente vulnerável - que o Ministério Público, em obediência ao disposto no artigo 82ºA do Código de Processo Penal, requereu e o tribunal recorrido concordou que à mesma fosse arbitrada reparação pelos danos sofridos.


Voltando ao estatuto e posição dos assistentes e como refere Henriques Gaspar17: “Os assistentes estão materialmente legitimados pela existência subjacente de interesses, próprios no caso dos ofendidos, ou de cidadania nos casos referidos na alínea e) do nº 1 do artigo 68º ou em outras disposições avulsas, a realizar no processo penal”


E, embora estejam, em regra, subordinados à atividade do Ministério Público, em alguns casos essa subordinação deixa de existir. Com efeito e como refere o mesmo autor,18 “em tais casos, a actuação do assistente e a prossecução processual de interesses, próprios ou assumidos, não está subordinada às posições do Ministério Público. Os espaços de divergência em relação à atividade do Ministério Público estão previstos nas alíneas b) e c)” (do nº 2 do artigo 69º do Código de Processo Penal).


Ora, foi usando esse espaço de divergência, do qual é legítima titular, que a assistente interpôs o aludido recurso, assim perdendo sentido a alusão à proibição de reformatio in pejus.


Com efeito, o arguido teve oportuno conhecimento desse recurso e ao mesmo pode responder, pelo que não se configura a possibilidade de “decisão surpresa”, nem estão em causa os seus direitos de defesa.


Por outro lado, no exercício do seu direto constitucional a intervir no processo (artigo 32º nº 7 da Constituição da República) a ofendida/assistente, ao usar o seu direito de recurso – que pode interpor independentemente da posição assumida pelo Ministério Público -, está também no uso do direito fundamental de acesso ao direito e à tutela jurisdicional efetiva dos seus legítimos interesses, previsto no artigo 20º da Constituição da República.


Ou seja, seria completamente incompreensível e flagrantemente violador dos direitos da ofendida – designadamente do princípio da confiança ínsito no princípio do Estado de direito democrático, proclamado pelo artigo 2º da Lei fundamental - que, depois de se ter constituído assistente, ter aderido à acusação pública, de ter manifestado não se opor à reparação dos seus prejuízo e de ter oportunamente interposto recurso – assim manifestando inequivocamente o seu desejo de prossecução penal e de condenação do arguido em determinada sanção penal -, esta sua atitude recursória não afastasse o princípio da proibição de reformatio in pejus.


Aliás, que tal princípio perde sentido face ao recurso interposto pela assistente resulta das seguintes considerações, da jurisprudência e doutrina:


“2 - Se foi aplicada uma única pena de 3 anos e 2 meses de prisão inferior a 8 anos de prisão, se bem que a moldura penal abstracta seja superior a 8 anos de prisão e a Relação confirmou a condenação, não pode o arguido recorrer para o STJ, pois que então a pena nunca poderá ser agravada (art. 409.º do CPP) e, por essa via, aumentada, para além de 8 anos de prisão. Essa é a pena máxima aplicável, que coincide, por força da proibição da reformatio in pejus, com a pena aplicada, estando presente o limite da alínea f) do n.º 1 do art. 400.º do CPP.
3 - Já seria obviamente diferente em caso de recurso do assistente ou do Ministério Público, sem ser no interesse exclusivo da defesa, em que pena aplica e aplicável não coincidiriam. (sublinhado nosso) (Ac. do STJ de 22 de maio de 2003 – Proc. 03P1798 in www.dgsi.pt)


“Não deixa de verificar-se a chamada reformatio indireta (configurando violação da proibição de reformatio in pejus) se, nos casos de anulação ou de reenvio para novo julgamento, o tribunal de primeira instância condenar o arguido/recorrente por crime de que este fora absolvido em anterior julgamento, sem que o Ministério Público ou o assistente tenham recorrido, anteriormente, daquela mesma absolvição” (Ac. do Trib. da Rel. de Évora de 02 de junho de 2015 (Relator António Latas) - Proc. 2411/09.7GBABF.E2)


“O princípio da proibição da reformatio in pejus estabelece que quando o arguido, ou o Ministério Público no interesse daquele, recorrem para um tribunal superior, este tribunal não poderá modificar, em prejuízo do arguido, a pena imposta pelo tribunal recorrido. Diferente será quando for o Ministério Público a recorrer sem ser no interesse do arguido, ou quando for o assistente a recorrer, situações em que não se aplicará, naturalmente, a proibição.19


Finalmente, uma última nota para sublinhar que, com a notificação do recorrente, no próprio dia, do acórdão proferido a 11 de abril se visou, uma vez mais, assegurar que eram respeitadas as suas garantias de defesa.


Face a todo o exposto e em consequência, altera-se a qualificação jurídica dos factos acima descritos, ficando o arguido condenado pela prática de 4 (quatro) crimes de abuso sexual de criança, previstos e puníveis pelos artigos 171º, nºs 1e 2, agravados pelo disposto no artº 177º, nº1, al. a), todos do Código Penal, cuja moldura abstrata da pena passa a ser de 4 (quatro) anos a 13 (treze) anos e 4 (quatro) meses de prisão, fixando-se a pena concreta aquando da apreciação do recurso relativo às penas parcelares e tendo-se em conta os termos do recurso da assistente.


B.4.2. As penas parcelares


B.4.2.1. Introdução


Como já atrás se referiu, o arguido apenas se insurge contra a medida da pena única.


É a assistente quem critica a medida concreta das penas parcelares, referindo, explicitamente, que não censura a que foi fixada relativamente ao crime de violência doméstica e nada consignando nas suas conclusões (nem na motivação) quanto à pena aplicada no que concerne ao crime de importunação sexual, previsto e punível pelo artigo 170º do Código Penal.


Essa crítica mostra-se sintetizada nas seguintes conclusões (transcrição):


“VIII. As penas parcelares e a pena única aplicadas ao Arguido pecam por defeito, uma vez que a conduta do Arguido e a sua culpa impunham punição mais severa e exemplar.


IX. Considerando a relação de parentesco entre o Arguido e a vítima, pai e filha, a prática, quase diária, ao longo de praticamente quatro anos, desde os 11 anos de idade da Recorrente, dos crimes em causa, comportamentos que apenas cessaram quando e porque ao Arguido foi aplicada a medida de coação de prisão preventiva, a conduta do Arguido foi-se agravando e intensificando, levada a cabo na habitação familiar, apesar do Arguido ter sido também ele vítima de abusos sexuais, não se absteve de infligir tais condutas à própria filha, causando-lhe dor e sofrimentos ainda mais expressivos, até pela relação entre ambos, o Arguido, ao longo do processo, sempre se desresponsabilizou pelos actos praticados na pessoa da sua filha, não demonstrou perante e por esta qualquer arrependimento, empatia, preocupação ou cuidado, o Arguido demonstrou, ao longo das suas declarações em sede de julgamento, preocupação, única e exclusivamente, consigo mesmo, fruto da conduta do Arguido, a Recorrente encontra-se em instituição, ao abrigo da medida de promoção e protecção de acolhimento residencial, o Arguido praticou os actos em causa, na pessoa da Recorrente, deliberada e conscientemente, apenas para satisfação dos seus propósitos libidinosos e o distúrbio de personalidade apenas agrava e sedimenta a sua culpa, até pela ausência, deliberada, de acompanhamento e tratamento.


X. Não se poderá concordar que a culpa do Arguido é de grau médio, mas antes bastante intensa.


XI. A circunstância do Arguido ter sido vítima de abusos sexuais faz sobre o mesmo impender um dever acrescido de não sujeitar a própria filha a tais actos, jamais consistindo numa desculpa para o comportamento que adoptou, ao longo de quase 4 anos.


XII.O crime de abuso sexual de criança agravado, é punido com pena de prisão de 1 ano e 4 meses até 10 anos e 8 meses, tendo sido aplicada ao Arguido, consoantes os actos em causa, penas de 1 ano e seis meses, dois anos e 4 anos, ou seja, penas muito próximas do limite mínimo, e outras que nem se encontram no meio da moldura abstractamente aplicável.


XIII.O crime abuso sexual de menores dependentes, também agravado, é punido com pena de prisão de 1 ano e 4 meses até 10 anos e 8 meses, tendo o Tribunal a quo aplicada penas parcelares, umas, 342, muito próximas do limite máximo, de 1 ano e 6 meses, 1 ano e 9 meses e 2 anos e meses, e outras, 3, de 4 anos e 4 anos e 6 meses, ou seja, penas que nem se encontram novamente sequer no meio da moldura abstractamente aplicável.


XIV.O crime de pornografia de menores, igualmente, agravado, é punido com pena de um 1 ano e 4 meses a 6 anos e 8 meses, tendo o Tribunal a quo aplicado, a cada um dos crimes, no total de 137, a pena de 2 anos para cada um, novamente, uma pena muito próxima do limite mínimo.


XV. Face às circunstâncias acima indicadas, impõe-se a aplicação de penas concretas manifestamente superiores, assim, atenta a factualidade provada, deve ser aplicada ao Arguido, o que se requer:

a) Pela prática do crime de abuso sexual de criança,

i) correspondente a 724 crimes de abuso sexual de criança agravado por ser pai da BB e consistentes na observação da vulva, suportando ter que ser fotografada – 3 anos de prisão para cada um;

ii) Pelos dois crimes em que, alem de observar a vulva e fotografar, mexeu com um cotonete nos lábios e vagina da filha – 5 anos e 6 meses de prisão para cada um;

iii) Pelos quatro crimes que além de observar a vulva e fotografar, meteu os dedos e a língua, protegidos com um plástico, na vagina da filha – 8 anos e 6 meses de prisão para cada um.

b) Pela pratica de crime de abuso sexual de menores dependentes agravados,

i) Pelos 337 crimes em que se limitou a observar os seus órgãos sexuais fotografando-os – 3 anos de prisão por cada um;

ii) Pelas duas vezes que introduziu o cotonete na vagina da BB causando-lhe dor – 5 anos e 6 meses de prisão para cada um;

iii) Pela vez que além do referido lhe cortou os pelos púbicos – 5 anos anos de prisão;

iv) Pelas duas vezes que introduziu os dedos e a língua na vagina da BB sem o saco de plástico – 9 anos de prisão para cada um;

v) Pela vez que introduziu o vibrador a vibrar na vagina da BB causando-lhe dor – 7 anos de prisão;

vi) Pela vez que apalpou o rabo e beijou a boca da BB na presença do namorado desta – 3 anos e 6 meses de prisão;

vii) Pela vez que colocou a mão do CC nos seios da sua filha – 3 anos de prisão.

c) Pela prática de 137 (cento e trinta e sete) crimes de pornografia de menores agravados – 4 anos e 6 meses para cada um dos crimes.”

B.4.2.2. A fundamentação das penas parcelares


Na fundamentação das penas parcelares o acórdão recorrido começa por fazer referência a doutrina e jurisprudência e, depois de indicar as molduras abstratas dos vários crimes a que considera subsumíveis os factos provados, justifica a escolha da pena de prisão da seguinte forma (transcrição):


“É de preferir a pena não privativa de liberdade quando esta realize de forma adequada e suficiente as finalidades da punição - artº 70º do C.P.; isto é, a proteção de bens jurídicos e a reintegração do arguido em sociedade.


Tendo em consideração a gravidade dos factos em questão considerando o contexto de toda a atuação do arguido revelando total desrespeito pela intimidade da vítima e na presença da sua filha, a pena de multa não satisfaz as aludidas necessidades de prevenção.”


Finalmente, para fundamentar as penas parcelares (e depois de consignar os princípios e critérios que devem nortear a determinação concreta da pena), escreve-se no acórdão o seguinte:


“Tendo em conta este princípio, consideremos agora as circunstâncias relevantes em termos de medida da pena concreta.


A culpa do arguido é de grau médio. Vivenciou episódios de abuso sexual contra si, padece de Perturbação de Personalidade de tipo Borderline, contudo mantém e mantinha aquando dos factos capacidade de avaliação e discernimento entre lícito ou ilícito, de avaliar a natureza e alcance dos seus atos e a sua capacidade de autodeterminação de acordo com essa avaliação também se encontrava, e encontra, preservada.


O arguido evidencia impulsividade, baixa tolerância à frustração, receio extremado de abandono e rejeição, traços histriónicos de personalidade e recorre a auto e heteroagressividade, chantagem emocional e ameaça como forma de impor a sua vontade.


Recorre a comportamento manipulador e à instrumentalização de sintomatologia psiquiátrica diversa (pseudoalucinações após aplicação da prisão preventiva) para desresponsabilização de atos de que é acusado ou de insucesso laboral e traços histriónicos de personalidade, embora em menor grau.


O grau de ilicitude do facto típico, entendemos que ela se situa num grau acima da média, considerando os atos sexuais em causa, e o grau de violência a que foi sujeita, sobretudo a BB, ao longo do período vertido na matéria de facto provada.


No que diz respeito à intensidade do dolo, ao atuar como atuou o arguido fê-lo como dolo direto, sendo, nessa medida, particularmente intensa a sua vontade criminosa (20.)


O arguido não tem antecedentes criminais.


Ponderadas todas estas circunstâncias e não havendo quaisquer outras a ter em conta, entende o tribunal como adequado condenar o arguido nas seguintes penas parcelares:


Pela prática de um crime de Violência doméstica: quatro anos e nove meses de prisão.


Pelos 724 crimes de abuso sexual de criança agravado por ser pai da BB e consistentes na observação da vulva, suportando ter que ser fotografada – um ano e seis meses de prisão para cada um.


Pelos dois crimes em que, alem de observar a vulva e fotografar, mexeu com um cotonete nos lábios e vagina da filha- dois anos de prisão para cada um.


Pelos quatro crimes que além de observar a vulva e fotografar, meteu os dedos e a língua, protegidos com um plástico, na vagina da filha – quatro anos de prisão para cada um.


Pelos 345 crimes de abuso sexual de menores dependentes agravados por ser pai da vítima.


Pelos 337 crimes em que se limitou a observar os seus órgãos sexuais fotografando-os um ano e seis meses de prisão.


Pelas duas vezes que introduziu o cotonete na vagina da BB causando-lhe dor, dois anos e três meses de prisão para cada um.


Pela vez que além do referido lhe cortou os pelos púbicos, um ano e nove meses de prisão.


Pelas duas vezes que introduziu os dedos e a língua na vagina da BB sem o saco de plástico quatro anos de prisão para cada um.


Pela vez que introduziu o vibrador a vibrar na vagina da BB causando-lhe dor quatro anos e seis meses de prisão.


Pela vez que apalpou o rabo e beijou a boca da BB na presença do namorado desta, um ano e nove meses de prisão.


Pela vez que colocou a mão do CC nos seios da sua filha um ano e nove meses de prisão.


Pelos crimes pornografia de menores agravado - cento e trinta e sete crimes de pornografia de menores da pessoa da sua filha BB – dois anos para cada um dos crimes.


O crime de importunação sexual a pena de nove meses de prisão.”


B.4.2.3. Apreciação


B.4.2.3.1 Enquadramento


Nos termos do disposto nos nº 1 e 2 do artigo 40º do Código Penal e como refere Figueiredo Dias21, “(a)s finalidades da aplicação de uma pena residem primordialmente na tutela de bens jurídicos e, na medida do possível, na reinserção do agente na comunidade”, sendo que, “a pena não pode ultrapassar, em caso algum, a medida da culpa” pois isso, “mesmo que em nome das mais instantes exigências preventivas, poria em causa a dignitas humana do delinquente e seria assim, logo por razões jurídico constitucionais, inadmissível.”


Por outro lado, continuando a acompanhar esse Mestre e citando o acórdão recorrido, a determinação definitiva da pena é alcançada através de um procedimento que decorre em três fases distintas: na primeira, investiga-se e determina-se a moldura penal (medida abstrata da pena) aplicável ao caso; na segunda, investiga-se e determina-se a medida concreta (dita também individual ou judicial); na terceira, escolhe-se (de entre as penas postas à disposição pelo legislador e através dos mecanismos das penas alternativas ou das penas de substituição) a espécie de pena que, efetivamente, deve ser cumprida.


Como decorre do nº 1 do artigo 71º do Código Penal, a medida concreta da pena tem como limite máximo a culpa do agente, como limite mínimo razões de prevenção geral (consubstanciadas no quantum da pena imprescindível à tutela dos bens jurídicos e das expetativas da comunidade), sendo subsequentemente “afinada” por razões de prevenção especial espelhadas nas funções que a mesma desempenha (seja a função primordial de socialização, seja qualquer uma das funções subordinadas de advertência individual ou segurança ou inocuização22).


Escrito de outra forma e usando as palavras de Anabela Miranda Rodrigues, sobre o exposto modelo de determinação concreta da medida da pena:


«Em primeiro lugar, a medida da pena é fornecida pela medida da necessidade de tutela de bens jurídicos, isto é, pelas exigências de prevenção geral positiva (moldura de prevenção). Depois, no âmbito desta moldura, a medida concreta da pena é encontrada em função das necessidades de prevenção especial de socialização do agente ou, sendo estas inexistentes, das necessidades de intimidação e de segurança individuais. Finalmente, a culpa não fornece a medida da pena, mas indica o limite máximo da pena que em caso algum pode ser ultrapassado em nome de exigências preventivas23


Para terminar este excurso falta referir que, nos termos do nº 2 daquele mesmo artigo 71º, na determinação concreta da pena o tribunal atende a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, depuserem a favor do agente ou contra ele, considerando, nomeadamente, as elencadas exemplificativamente nessa mesma norma.


Sobre as circunstâncias, que relevam para a determinação da medida da pena, quer pela via da culpa, quer pela da prevenção, refere Figueiredo Dias24, que as mesmas se podem agrupar em:


“1. Fatores relativos à execução do facto”, esclarecendo que: Toma-se aqui a “execução do facto” num sentido global e complexo, capaz de abranger “o grau de ilicitude do facto, o modo de execução deste e a gravidade das suas consequências, bem como o grau de violação dos deveres impostos ao agente”, “a intensidade do dolo ou da negligência” e ainda “os sentimentos manifestados na preparação do crime e os fins e os motivos que o determinaram (...);


“2) Fatores relativos à personalidade do agente”, em que inclui: a) Condições pessoais e económicas do agente; b) Sensibilidade à pena e suscetibilidade de ser por ela influenciado; e c) Qualidades da personalidade manifestadas no facto; e


“3) Fatores relativos à conduta do agente anterior e posterior ao facto”, esclarecendo que, no que respeita à vida anterior ao facto, há que averiguar se este surge como um episódio ocasional e isolado no contexto de uma vida de resto fiel ao direito, que poderá atenuar a pena ou se existem condenações anteriores, que poderão servir para agravar a medida da pena.


Também Maria João Antunes refere que podem ser agrupados nas alíneas a), b), c) e e), parte final, do n.º 2 do art.71.º, do Código Penal, os fatores relativos à execução do facto; nas alíneas d) e f), os fatores relativos à personalidade do agente; e na alínea e), os fatores relativos à conduta do agente anterior e posterior ao facto. 25


Duas últimas notas para terminar estas breves notas introdutórias:


A primeira, para nos referimos à atividade judicial de determinação concreta da pena, citando, para o efeito, o seguinte trecho de Figueiredo Dias26:


“Daqui se concluirá então que aquela atividade é, pura e simplesmente, aplicação do direito, confluindo nela as notas da discricionariedade e da vinculação, nos mesmos termos e na mesma medida em que tal sucede com qualquer operação comum de aplicação do direito; operação na qual relevam regras de direito escritas e não escritas, elementos descritivos e normativos, atos cognitivos e puras as valorações. Justamente no desenvolvimento e solidificação desta concepção - que representa o adeus definitivo ao dogma da “arte do juiz” e da sua discricionariedade desvinculada na matéria - se considera residir naquilo que com Rudolphi, pode com razão chamar-se a fase de jurídica que são da determinação da pena.”


A segunda, para começar por citar Acórdão deste Supremo Tribunal de Justiça, de 8 de novembro de 202327, no qual se consignou, designadamente, o seguinte:


“IV. Sendo os recursos remédios jurídicos, mantendo o arquétipo de recurso-remédio também em matéria de pena, a sindicabilidade da medida da pena abrange a determinação da pena que desrespeite os princípios gerais respectivos, as operações de determinação impostas por lei, a indicação e consideração dos factores de medida da pena, mas “não abrangerá a determinação, dentro daqueles parâmetros, do quantum exacto de pena, excepto se tiverem sido violadas regras da experiência ou se a quantificação se revelar de todo desproporcionada”.


É, portanto, é isso que, de seguida, se irá fazer, verificando, designadamente, se foram considerados – e considerados de forma adequada e proporcional - todas as circunstâncias que deviam ter sido tidas em conta na concretização das penas parcelares aplicadas ao arguido.


B.4.2.3.2. O caso concreto


Com os ensinamentos atrás consignados, revertendo ao caso concreto e face à fundamentação constante no acórdão recorrido, desde já se anuncia que entendemos que existe algum fundamento para alterar algumas das penas parcelares – designadamente por, por um lado, o acórdão recorrido não ter tido em devida conta algumas das circunstâncias no mesmo referidas e, sobretudo, por ter simplesmente ignorado outras que deviam ser tidas na determinação concreta da pena - mas não na medida pretendida pela assistente.


Porém, antes de fundamentarmos esta afirmação, impõe-se consignarmos que o acórdão está redigido de forma pouco elaborada28 e que o mesmo podia e devia ter fundamentado melhor (em termos substantivos e formais) a sua decisão, designadamente no que concerne à medida concreta das penas parcelares que aplicou ao arguido. Tais deficiências determinam que, em algumas situações, pareça que o mesmo não teve em conta algumas das circunstâncias indicadas pela assistente ou que, tendo-as sopesado, o fez de forma injustificadamente branda. Além disso, circunstâncias existem que não foram sequer tidas em consideração pelo acórdão recorrido


Assim e antes de passarmos a uma justificação mais detalhada do que acima fica consignado, desde logo importa realçar que, para fundamentar a escolha da medida da pena de prisão, o acórdão recorrido consignou o seguinte:


“Tendo em consideração a gravidade dos factos em questão considerando o contexto de toda a atuação do arguido revelando total desrespeito pela intimidade da vítima e na presença da sua filha, a pena de multa não satisfaz as aludidas necessidades de prevenção”


Passando agora à análise da argumentação expendida pela assistente começaremos por referir que, no momento de concretização da medida concreta da pena, não era legalmente admissível ter em conta a “relação de parentesco”, uma vez que essa circunstância já havia sido considerada aquando da determinação da medida abstrata da pena. Com efeito e como se alcança do acórdão recorrido, foi a circunstância prevista na al. a) do nº 1 do art 177º do Código Penal (ser a vítima descendente do arguido) que fez com que este fosse condenado pelos crimes de abuso sexual de criança (previsto e punível pelo artigo 171º, nº1 do Código Penal) e de abuso sexual de menor dependente (previsto e punível pelo artigo 172º, nº1, als a) e b) do Código Penal) na forma agravada.


Por outro lado, “a prática quase diária, ao longo de praticamente quatro anos, desde os 11 anos de idade” foi tida em conta, em alguma medida, na fundamentação da medida concreta das penas parcelares aplicadas, quando se reporta (embora de forma que podia ter sido mais elaborada, admite-se…) “aos atos sexuais em causa” e ao “período vertido na matéria de facto provada”, no âmbito da ponderação sobre o grau de ilicitude do facto típico que foi considerado situar-se, aliás, “num grau acima da média”.


De igual forma, o acórdão recorrido também teve em conta, em alguma medida, o facto de “(o) Arguido ter sido, também ele vítima de abusos sexuais” quando refere, no âmbito da graduação da culpa, que o arguido “(v)ivenciou episódios de abuso sexual contra si”.


Quanto à “dor e sentimentos ainda mais expressivos” o acórdão recorrido mostra ter ponderado o mesmo, mais uma vez em alguma medida, quando, (ainda que de uma forma pouco elaborada, admite-se novamente…) se reporta aos “atos sexuais em causa


Quanto à desvalorização da confissão dos factos que lhe eram imputados, importa tecer algumas considerações adicionais, uma vez que tal circunstância também é alegada pelo arguido, no recurso interposto relativamente à pena única que lhe foi aplicada.


A primeira, para referir que, embora a forma menos clara como está redigida a matéria de facto dada como provada a esse propósito (cfr. pontos 20 e 2129), permita, numa leitura menos atenta, criar a dúvida sobre a existência de confissão, embora ninguém (nem sequer a assistente !!!) ponha em causa que a mesma existiu, estando nós seguros da verificação desta circunstância atenuativa.


De facto, do exame crítico da prova – sendo este exame que credibiliza a decisão e permite revelar o raciocínio lógico do tribunal relativamente, v.g., aos motivos que levaram a dar como provados certos factos e não outros30 - resulta, sem qualquer margem para dúvidas, que o arguido “confessou quase integralmente os factos constantes da acusação com exceção do facto 531., sendo confrontado com todos os restantes factos constantes da acusação, que foi confirmando um a um, sem mais exceções, a não ser a preocupação de evitar que a sua mulher, mãe da BB, fosse associada a qualquer dos factos por si praticados. Num discurso perturbado, foi referindo ser tudo verdade, que não consegue explicar o sucedido, a não ser que foi vítima de abuso sexual e que já atentou contra a sua própria vida.”


Aliás, mais à frente repete-se que “(a)s declarações para memória futura das vítimas BB e CC confirmam os factos assumidos pelo arguido, bem como o facto 5 da acusação. Os seus depoimentos são, no essencial, elucidativos dos factos que, aliás, o arguido confirmou e não deixam dúvidas no Tribunal acerca dos factos vivenciados, na sua maioria pela BB.”


Passando agora à ponderação desta confissão, desde logo se concorda com o acórdão recorrido, quando alude à normal inexistência de testemunhas neste tipo de crimes, o que torna a confissão mais valiosa em termos probatórios, sobretudo quando a vítima tem dificuldade em relatar o que ocorreu devido à relação de parentesco e à proximidade que mantém com o agente do crime.


Ou seja, não é possível – como parece pretender a recorrente - retirar valor à confissão prestada pelo arguido, porquanto o mesmo assumiu os atos praticados, embora o tenha feito de uma forma defensiva (factos 20 e 21), sendo que na motivação consta que o arguido “confessou quase integralmente os factos constantes da acusação, com exceção do facto 5, sendo confrontado com todos os restantes factos constantes da acusação que foi confirmando uma a um, sem mais exceções (…)”


Contudo e de igual forma, também não é possível atribuir a essa confissão o valor que o arguido e recorrente lhe pretende emprestar, em virtude de este “sempre se desresponsabilizou pelos actos praticados na pessoa da sua filha, não demonstrou perante e por esta qualquer arrependimento, empatia, preocupação ou cuidado, o Arguido demonstrou, ao longo das suas declarações em sede de julgamento, preocupação, única e exclusivamente, consigo mesmo (…)”, por ter desvelado no seu discurso “reduzida ressonância afetiva, com dificuldades na verbalização de sentimentos quanto à menor, apenas afirmando amar a sua filha ainda que sem qualquer sinal visível de emotividade” (facto 29 da matéria dada como provada) e, também, porque existia nos autos outra prova (testemunhal e documental) que sustentou a condenação.


Por outro lado, não se pode concordar com a alegação, feita pela recorrente, de que “fruto da conduta do Arguido, a Recorrente encontra-se em instituição, ao abrigo da medida de promoção e protecção de acolhimento residencial”.


Com efeito, embora a atuação do arguido possa ter contribuído para esse internamento, é evidente que o mesmo não lhe pode ser imputado em termos exclusivos, já que a menor tinha e tem mãe…


Igualmente não é possível acompanhar a Recorrente quando pretende que o “distúrbio de personalidade apenas agrava e sedimenta a sua (do arguido) culpa, até pela ausência, deliberada, de acompanhamento e tratamento”. Com efeito, os distúrbios de personalidade conduzem, em regra a uma valoração oposta – já que diminuem a capacidade de culpa do arguido – embora, no caso dos autos, se tenha dado como provado que o arguido tinha essa capacidade “preservada”. Por outro lado, para além de não ter sido dado como provada a existência de uma atitude “deliberada” de se furtar a tratamento, tal abordagem aproxima-se das teses da culpa na condução da vida (Mezger) e isso seria, de alguma forma, aderir às teses da culpa da vontade referida ao carácter, há muito abandonadas32


Aqui chegados, concordamos, portanto, com a afirmação de que o “(o) Tribunal não as ponderou (as circunstâncias do crime) devidamente”, acrescentando que outras circunstâncias (e de peso significativo) não foram, sequer, tidas em consideração.


Assim, consignemos o nosso entendimento:


Em nosso entender a ilicitude do comportamento do arguido situa-se em grau muitíssimo elevado, sendo inclusivamente difícil de encontrar situações mais graves. Na verdade, a essa conclusão permite desde logo chegar o número e variedade de crimes praticados (1213 crimes) e a diversidade de bens jurídicos violados (liberdade sexual -artigo 170º do C.P.-, autodeterminação sexual - artigos 171º, 172º, 176º do C.P. - e a dignidade da pessoa humana33 -artigo 152º do C.P.)


Também para essa conclusão contribui o facto de os comportamentos terem sido praticados diariamente e durante praticamente 4 anos.


No que concerne aos crimes de abuso sexual de crianças e de abuso de menores dependentes ou em situação particularmente vulnerável, a idade da vítima é outro fator a considerar negativamente pois a menor tinha apenas 11 anos de idade quando começou a ser abusada sexualmente e, no que se refere ao ilícito punido pelo artigo 172º do Código Penal, a BB tinha, justamente, a idade mínima prevista nessa norma (14 anos de idade).


Por outro lado, e também relativamente a todos os crimes pelos quais o arguido foi condenado, constata-se que os mesmos são agravados por várias circunstâncias modificativas da moldura abstrata da pena, previstas na lei.


Com efeito e no que concerne aos crime de cariz sexual, para além de o arguido ser pai da BB (al. a) do nº 1 do artigo 172º e al. a) do nº 1 do artigo 177º, ambos do código Penal), ambos coabitavam na mesma habitação, o arguido dispunha e abusou de uma posição de manifesta confiança, autoridade e de influência relativamente à BB e esta encontrava-se numa situação de particular vulnerabilidade, em virtude de sua mãe raramente estar com ela e por o pai, dado estar desempregado, se encontrar permanentemente sozinho com a vítima em casa (cfr. factos 22), yyy) e vv)), o que é subsumível nas als. b) e c) do nº1 do artigo 172º do Código Penal e nas als. b) e c) do artigo 177º do mesmo diploma legal. Ora, não sendo necessárias para alterar a moldura abstrata da pena dos aludidos crimes, estas circunstâncias devem ser sopesadas em sede de medida concreta da pena, assumindo grande relevo, dado o legislador as erigiu como circunstâncias que podem modificar a moldura abstrata da pena.


De igual forma, o crime de violência doméstica é agravado devido à vítima ser uma menor (artigo 152º, nº 2, al. a)). Contudo, os factos dados como provados também são subsumíveis às alíneas d) e e) do nº1 do mesmo artigo, já que a BB era filha do arguido e encontrava-se, como atrás deixámos consignado, particularmente indefesa perante o seu agressor. Ou seja, também neste caso existem circunstâncias que devem ser sopesadas em sede de medida concreta da pena e que assumem grande relevo, dado o legislador as erigir como circunstâncias que podem modificar a moldura abstrata da pena.


Também a forma de execução dos crimes agrava a conduta do arguido pois, para além de, amiúde, praticar, em simultâneo, vários atos individualmente censuráveis (v.g. olhar e fotografar, olhar fotografar e mexer com um cotonete no clitóris e nos lábios vaginais; meter os dedos e a língua), usou a violência e a ameaça para concretizar os seus propósitos (v.g. factos kkk) e nnn)).


Por outro lado, e como se refere no acórdão recorrido, o arguido atuou com dolo direto, sendo nessa medida particularmente intensa a sua vontade criminosa, a qual tinha como único propósito satisfazer os seus propósitos libidinosos.


Acresce que foram muitas e sempre muito graves as consequências do comportamento do arguido. Desde logo a violência física e psicológica com que atuava e a dor e sofrimento que infligiu na menor em vários momentos descritos na matéria dada como provada, o medo, a inquietação, a perturbação e desassossego que provocava na vítima (fato ttt), a vergonha a que a sujeitava com a realização de inúmeros testes de gravidez que a mandava comprar nas farmácias (factos aa) e pp))e a perturbação psicológica que lhe provocou (factos mmm) nnn) ou ppp) e que a levou a cortar-se, por cinco vezes, na coxa da perna direita (factos dd), vv) e ppp)).


No que concerne à sua personalidade constata-se que o arguido cresceu num agregado familiar marcado por uma dinâmica disfuncional, negligente (v.g devido à adição alcoólica dos pais), com grandes carências económicas devido à situação de desemprego dos progenitores, tendo sido encaminhado para o acolhimento institucional na Casa ... onde foi, como atrás se referiu, vítima de abusos sexuais graves e que o levaram a, por duas vezes, tentar suicidar-se.


Nunca manifestou interesse pelas atividades escolares (concluiu apenas o 6º ano), raramente frequentou atividades estruturadas e, desde que saiu do acolhimento institucional, manteve-se inativo, havendo apenas referência ao desempenho das funções de empregado de limpeza na empresa onde trabalhava a mulher, durante curto período e que cessaram devido aos seus comportamentos desajustados no relacionamento com colegas.


Do conjunto da matéria dada como provada resulta, como referido no acórdão recorrido, que o arguido evidencia impulsividade, baixa tolerância à frustração, receio extremado de abandono e rejeição, traços histriónicos de personalidade e recorre a auto e heteroagressividade, chantagem emocional e ameaça como forma de impor a sua vontade (facto dddd)).


Finalmente e como também é referido no acórdão recorrido, o arguido recorre a comportamento manipulador e à instrumentalização de sintomatologia psiquiátrica diversa (pseudoalucinações após aplicação da prisão preventiva) para desresponsabilização de atos de que é acusado ou de insucesso laboral e traços histriónicos de personalidade, embora em menor grau (facto eeee)).


No que concerne a fatores relativos à conduta do arguido antes e depois dos crimes, a ausência de antecedentes criminais (facto 40) deve ser sopesada favoravelmente, sem esquecer a juventude do arguido (os factos ocorreram desde 2018 e o arguido tinha cerca de 30 anos, pois nasceu a ... de ... de 1987).


Por outro lado e como também já atrás deixámos consignado, confessou os factos, embora não se tenha provado a existência de arrependimento, se tenha apurado que continua a revelar, no seu discurso, “ressonância afetiva, com dificuldades na verbalização de sentimentos quanto à menor, apenas afirmando amar a sua filha ainda que sem qualquer sinal visível de emotividade” (facto 29 da matéria dada como provada), devendo ainda ter-se em conta a existência nos autos de outra prova (testemunhal e documental) que sustentou a condenação


No contexto prisional o arguido tem mantido uma conduta institucionalmente ajustada.


Face a todo o exposto conclui-se que as exigências de prevenção geral são muitos elevadas, sendo-o também as exigências de prevenção especial, até porque o arguido apenas deixou de praticar os crimes por que foi condenado em virtude de ter sido detido.


Por último, a culpa, enquanto suporte axiológico da pena e seu limite intransponível, situa-se no caso em análise num ponto médio alto, desde logo porque o facto de ter sido vítima de abusos sexuais graves tornava mais exigível ao arguido que mantivesse uma conduta diametralmente oposta à que assumiu e, sobretudo, porque o fez na pessoa da sua filha.


Face a todo o exposto e concedendo provimento parcial ao recurso interposto pela Assistente, entende-se condenar o arguido nas seguintes penas parcelares:

• Pela prática de 1 (um) crime de violência doméstica, p. e p. pelo artigo 152.º, n.º 1, alínea d) e e), e n.º 2, alínea a), do Código Penal (na pessoa de sua filha BB), na pena de 4 (quatro) anos e 9 (nove) meses de prisão;

• Pela prática de 724 (setecentos e vinte e quatro) crimes de abuso sexual de criança, agravado, p. e p. pelos artigos 171. °, n.º 1, e 177. °, n.º 1, alíneas a), b) e c), ambos do Código Penal (observar e fotografar a vulva da BB- factos n) a t)), na pena de 1 (um) ano e 8 (oito) meses de prisão, por cada um desses crimes;

• Pela prática de 2 (dois) crimes de abuso sexual de criança, agravado, p. e p. pelos artigos 171°, n.º 1, e 177º, n.º 1, alíneas a), b) e c), ambos do Código Penal (observar e fotografar a vulva e mexer com cotonete nos lábios vaginais e clitóris da BB- facto u)), na pena de 2 (dois) anos e 4 (quatro) meses de prisão, por cada um desses crimes;

• Pela prática de 4 (quatro) crimes de abuso sexual de criança, agravado, p. e p. pelos artigos 171°, n.ºs 1 e 2, e 177º, n.º 1, alíneas a), b) e c), ambos do Código Penal (observar e fotografar a vulva, tocar-lhe com cotonete e meter dedos e a língua, envoltos em saco de plástico, na vagina da BB- facto x)), na pena de 6 (seis) anos de prisão por cada um desses crimes;

• Pela prática de 337 (trezentos e trinta e sete) crimes de abuso sexual de menores dependentes, agravados, p. e p. pelo artigo 172. °, n.º 1, alínea a) e b), e 177. °, n.º 1, alíneas a) e b), ambos do Código Penal (observar e fotografar a vulva da BB- factos n) e a)), na pena de 1 (um) ano e 8 (oito) meses de prisão, por cada um desses crimes;

• Pela prática de 2 (dois) crimes de abuso sexual de menores dependentes, agravados, p. e p. pelo artigo 172. °, n.º 1, alínea a) e b), e 177. °, n.º 1, alíneas a) e b), ambos do Código Penal (observar e fotografar a vulva e introdução de cotonete na vagina da BB com dor) – facto dd) e ff)), na pena de 2 (dois) anos e 7 (sete) meses de prisão por cada um desses crimes;

• Pela prática de 1 (um) crime de abuso sexual de menores dependentes, agravados, p. e p. pelo artigo 172. °, n.º 1, alínea a) e b), e 177. °, n.º 1, alíneas a) e b), ambos do Código Penal (observar e corte de excesso de pêlos púbicos da BB – facto zz34), na pena de 1 (um) ano e 9 (nove) meses de prisão;

• Pela prática de 2 (dois) crimes de abuso sexual de menores dependentes, agravados, p. e p. pelo artigo 172. °, n.º 1, alínea a) e b), e 177. °, n.º 1, alíneas a) e b), ambos do Código Penal (introdução dos dedos e da língua na vagina da BB – facto hh)) na pena de 5 (cinco) anos de prisão por cada um desses crimes;

• Pela prática de 1 (um) crimes de abuso sexual de menores dependentes, agravados, p. e p. pelo artigo 172. °, n.º 1, alínea a) e b), e 177. °, n.º 1, alíneas a) e b), ambos do Código Penal (introdução de vibrador a vibrar na vagina da BB causando-lhe dor – facto vv), na pena de 5 (cinco) anos e 6 (seis) meses de prisão;

• Pela prática de 1 (um) crimes de abuso sexual de menores dependentes, agravados, p. e p. pelo artigo 172. °, n.º 1, alínea a) e b), e 177. °, n.º 1, alíneas a) e b), ambos do Código Penal (apalpar o rabo e beijar a boca da BB na presença do namorado desta – facto xx), na pena de2 (dois) anos de prisão;

• Pela prática de 1 (um) crimes de abuso sexual de menores dependentes, agravados, p. e p. pelo artigo 172. °, n.º 1, alínea a) e b), e 177. °, n.º 1, alíneas a) e b), ambos do Código Penal (colocar a mão do CC nos seios da BB – facto ddd)), na pena de 2 (dois) anos de prisão;

• Pela prática de 137 (cento e trinta e sete) crimes de pornografia de menores, agravados, p. e p. pelo artigo 176. °, n. ºs1, alínea b) e d) e 8, e 177. °, n.º 1, alíneas a) e b), ambos do Código Penal (fotos da vagina, púbis e peito desnudos da BB - factos ii), jj e iii)), na pena de 2 (dois) anos e 6 (seis) meses de prisão por cada um desses crimes;

• Pela prática de 1 (um) crime de importunação sexual, previsto e punido pelo art. 170º do Código Penal (na pessoa da vítima CC – facto ddd)), na pena de 9 (nove) meses de prisão.


B.4.3. A pena única


Ambos os recorrentes se manifestaram, em sentidos opostos, relativamente à pena única aplicada ao arguido.


Assim:


B.4.3.1. Recurso do arguido


Pretende o arguido que a pena única seja reduzida (embora sem dizer em que medida) porquanto, em apertada síntese:

• Numa fase de formação da sua personalidade (infância e adolescência), perdeu as referências parentais, num contexto de reconhecida negligência familiar, sobretudo ao nível dos afetos e, num segundo momento, a institucionalização na Casa ... vem a revelar-se um acrescido fator de sofrimento pessoal, dado ter sido abusado sexualmente, o que originou tentativas de suicídio. Ou seja, as suas condições pessoais consubstanciam uma circunstância atenuadora da sua culpa;

• Confessou os factos, contribuindo para a descoberta da verdade;

• Não tem antecedentes criminais


B.4.3.2. Recurso da assistente


A assistente entende que:

• sendo as penas parcelares aumentadas nos termos pela mesma requeridos e ficando a moldura abstrata da pena única situada entre os 9 anos e os 25 anos de prisão,

• ou, mesmo que tal pretensão não tenha provimento,


a pena única a aplicar ao arguido deve situar-se nos 25 anos de prisão “atenta toda a factualidade dada como provada, a culpa do Arguido e as elevadas necessidades de prevenção quer geral, quer especial, o que igualmente se requer”


B.4.3.3. Fundamentação da pena única


O Acórdão fundamentou a pena única de 16 (dezasseis) anos e 3 (três) meses de prisão que aplicou ao arguido nos seguintes termos (transcrição):


“Conjugando a globalidade dos factos apurados e a personalidade do agente já referidos acima, constata-se que os factos se encontram todos interligados e relacionados com a sua personalidade que consiste num modo de ser… e acarreta baixo potencial para a mudança… sem outra patologia psiquiátrica, o que significa que se não tivesse sido detido a probabilidade de continuar com a sua atuação seria acima da média.”


B.4.3.4. Apreciação


B.4.3.4.1. Introdução


Na busca da pena do concurso, explicita Figueiredo Dias, que “Tudo deve passar-se como se o conjunto dos factos fornecesse a gravidade do ilícito global perpetrado, sendo decisiva para a sua avaliação a conexão e o tipo de conexão que entre os factos concorrentes se verifique. Na avaliação da personalidade – unitária – do agente relevará, sobretudo, a questão de saber se o conjunto dos factos é reconduzível a uma tendência (ou eventualmente mesmo a uma «carreira») criminosa, ou tão só a uma pluriocasionalidade que não radica na personalidade: só no primeiro caso, já não no segundo, será cabido atribuir à pluralidade de crimes um efeito agravante dentro da moldura penal conjunta”. E acrescenta que “de grande relevo será também a análise do efeito previsível da pena sobre o comportamento futuro do agente (exigências de prevenção especial de socialização).”35


No mesmo sentido refere Cristina Líbano Monteiro que, com o sistema da pena conjunta, perfilhado neste preceito penal, deve olhar-se para a possível conexão dos factos entre si e para a necessária relação de todo esse bocado de vida criminosa com a personalidade do seu agente.36


As conexões ou ligações fundamentais na avaliação da gravidade da ilicitude global são as que emergem do tipo e do número de crimes, dos bens jurídicos individualmente afetados, da motivação, do modo de execução, das suas consequências e da distância temporal entre os factos.


Por outro lado, condutas muito gravosas para a comunidade, como as integradas no terrorismo, criminalidade violenta, criminalidade especialmente ou criminalidade altamente organizada, [definidas no art.1.º, alíneas f) a m)] exigem, por respeito do princípio da proporcionalidade e exigências de prevenção, uma menor compressão das penas parcelares, na formação da pena única, do que condutas de agentes inseridas na chamada média ou pequena criminalidade.


Ínsita nos factos ilícitos unificados no âmbito da pena de concurso, a personalidade do agente, é um fator essencial à formação da pena única. A revelação da personalidade global do agente, o seu modo de ser e atuar em sociedade, emergem essencialmente dos factos ilícitos praticados, mas também das suas condições pessoais e económicas e da sensibilidade à pena e suscetibilidade de ser por ela influenciado.


A interiorização das condutas ilícitas e consequentes penas parcelares que lhe foram aplicadas, traduzidas na vontade clara de alteração do comportamento antissocial violador de bens jurídico-criminais, assente em factos que o demonstrem, relevam assim, particularmente, no apuramento das exigências de prevenção no momento de determinar a pena única.


Finalmente, sendo as necessidades de prevenção mais exigentes quando o ilícito global é produto de tendência criminosa do agente do que quando esse ilícito se reconduz a uma situação de pluriocasionalidade, a pena conjunta deverá refletir esta singularidade da personalidade do agente.


B.4.3.4.2 O caso concreto.


O disposto no n.º 1 do art.º. 77.º do Código Penal determina que há lugar a cúmulo jurídico quando alguém tiver praticado vários crimes antes de transitar em julgado a condenação por qualquer um deles.


E, nos termos do estabelecido no n.º 2 desse mesmo artigo, em caso de cúmulo, a pena aplicável tem como limite máximo a soma das penas concretamente aplicadas aos vários crimes, não podendo ultrapassar 25 anos tratando-se de pena de prisão; e como limite mínimo a mais elevada das penas concretamente aplicadas aos vários crimes.


Assim, no caso em apreço, a pena mínima situa-se nos 6 (seis) anos de prisão e a máxima, ascendendo a 2252 anos e 3 meses de prisão, tem de ser reduzido aos 25 anos de prisão.


Encetando o percurso para determinar a medida concreta da pena única e avaliando o comportamento do arguido na sua globalidade, desde logo se verifica que os diversos atos praticados pelo mesmo se encontram estreitamente conexionados.


A gravidade desse comportamento global assume extrema gravidade, tendo designadamente em conta o número de crimes cometidos, a pluralidade de vítimas, a importância e diversidade dos bens jurídicos afetados, a motivação do arguido, o modo de execução dos ilícitos, as suas consequências e a proximidade temporal entre os diversos comportamentos e, finalmente, mas não menos importante, a duração desse comportamento global.


Por outro lado, essa extrema gravidade também decorre da circunstância de, com exceção para o crime de importunação sexual, todos os demais se inserirem no que o legislador entende ser “criminalidade violenta” (cfr. al. j) do artigo 1º do Código de Processo Penal), bem como pelo facto de a quase totalidade desse ilícitos criminais ser mesmo considerado como “criminalidade especialmente violenta” (cfr. al. l) do artigo atrás referido) o que, como atrás se referiu, justifica uma menor compreensão das penas parcelares, na formação da pena única.


Por outro lado, a personalidade do agente desvelada no comportamento atrás sumariamente caracterizado, a atitude de desresponsabilização perante o mesmo, a falta de empatia face as vítimas, o desinteresse por uma atividade estruturada (que só muito esporadicamente assumiu) e, finalmente, a circunstância de só ter cessado a sua atividade criminosa – que vinha exercendo de forma cada vez mais grave-, devido a ser detido, bem como o facto de ter sido dado como provado que revela baixo potencial para a mudança, não permite que reconduzamos o caso a uma situação de pluriocasionalidade, devendo, antes, caracteriza-la como uma clara tendência criminosa.


Face a todo o exposto, entende-se que a pena única, adequada e proporcional ao caso em apreço, se deve situar nos 19 (dezanove) anos de prisão.


B.4.4. A reparação à ofendida


B.4.4.1. Introdução


Embora não tenha sido apresentado pedido de indemnização cível, o Tribunal a quo, a pedido do Ministério Público, com o consentimento da assistente e ao abrigo do disposto no artigo 82ºA do Código de Processo Penal, decidiu condenar o arguido no pagamento à vítima BB de uma quantia, a título de reparação pelos prejuízos sofridos, que fixou em €7.500 (sete mil e quinhentos euros).


B.4.4.2. A posição da assistente


Com a aludida decisão não se conformou a assistente, pedindo a este Supremo Tribunal de Justiça que tal quantia seja fixada em € 25.000 (vinte e cinco mil euros).


Para esse efeito, apresentou nas suas conclusões de recurso, recorde-se, os seguintes argumentos:


“XIX. Por último, no que tange à quantia arbitrada à Recorrente a título de reparação pelos prejuízos sofridos, o Tribunal a quo fixou o montante de € 7.500,00, o que a Recorrente reputa de manifestamente insuficiente.


XX.O Arguido destruiu a infância da Recorrente, humilhando-a, controlando-a, agredindo-a, quer física, quer psicologicamente, desrespeitando-a,


XXI. Afectou e comprometeu o Arguido, irremediavelmente, a liberdade, desenvolvimento e autodeterminação sexual da Recorrente.


XXII. Sendo certo que haverá que ter em consideração a situação económica do Arguido, não é menos verdade que ter-se-á que ter em atenção a situação económica da própria vítima, as circunstâncias relevantes e o grau de culpabilidade do Arguido.


XXIII. Novamente, apelando à factualidade dada como provada, tendo em consideração as condutas do Arguido, o modo como foram levadas a cabo, e o crescendo das mesmas, a relação de parentesco entre agressor e vítima


perpetraram, a tenra idade da Recorrente quando aquelas se iniciaram, o local onde as condutas se realizaram, a total e absoluta não interiorização por parte do Arguido do desvalor das suas condutas, bem como o absoluto desinteresse pela sua filha e das consequências dos seus actos, a circunstância do Arguido, antes de em condições de reclusão, não ter actividade profissional por sua única e exclusiva culpa, e a circunstância da Recorrente ter apenas, actualmente, 15 anos de idade, sem, obviamente, qualquer forma de sustento, impõe-se que a quantia arbitrada a título de reparação dos prejuízos sofridos pela Recorrente seja alterada, em valor nunca inferior a € 25.000,00, o que se requer.


XXIV. Atenta as especificidades do presente caso, qualquer outra quantia, inferior a € 25.000,00, consubstancia um branqueamento do comportamento do Arguido, e, por outro lado, um desvalor dos prejuízos sofridos pela Recorrente.”


B.4.4.3. A posição do arguido e do Ministério Público


O arguido não apresentou resposta a este pedido e o Digníssimo Procurador-Geral Adjunto neste Supremo Tribunal de Justiça considerou que tal pretensão merecia deferimento.


B.4.4.4. A fundamentação do decidido pelo acórdão recorrido


Depois de uma abordagem em abstrato – citando, a propósito, doutrina e jurisprudência –, o acórdão em análise fundamentou a sua decisão nos seguintes termos:


“No caso vertente, é manifesto que existem danos não patrimoniais sofridos pela assistente, danos esses que assumem, do ponto de vista da tutela do ordenamento jurídico, gravidade mais que suficiente para serem considerados.


Com efeito, foi sujeita a um grau de violência psíquica física e sexual por quem devia zelar pelo seu bem-estar e que poderá ter sequelas para toda a vida.


Por seu turno, o arguido não tem meios conhecidos de subsistência.


Assim, vistos os critérios orientadores estabelecidos nos artº 496º e 494º, do C.Civil, julga-se equitativa, por tais danos, a indemnização de €7.500,00 (sete mil e quinhentos Euros) para a Assistente”


B.4.4.5. Apreciação


B.4.4.5.1. Introdução


O cometimento de um crime pode fazer com que o seu agente incorra em responsabilidade civil pela prática de facto ilícito, sendo o respetivo pedido apresentado no processo penal, nos termos do disposto nos artigos 71 e sgs. do Código de Processo Penal, e a respetiva indemnização calculada nos termos da lei civil, conforme determina o artigo 129º do Código Penal.


Porém, casos existem em que, mesmo sem que tal pedido seja apresentado, o agente tenha de reparar os prejuízos causados à vítima.


Com efeito a Lei n.º 59/98, de 25 de agosto, introduziu no Código de Processo Penal um novo artigo com a seguinte redação:


«Artigo 82.º-A (Reparação da vítima em casos especiais)


1 - Não tendo sido deduzido pedido de indemnização civil no processo penal ou em separado, nos termos dos artigos 72.º e 77.º, o tribunal, em caso de condenação, pode arbitrar uma quantia a título de reparação pelos prejuízos sofridos quando particulares exigências de protecção da vítima o imponham.


2 - No caso previsto no número anterior, é assegurado o respeito pelo contraditório.


3 - A quantia arbitrada a título de reparação é tida em conta em acção que venha a conhecer de pedido civil de indemnização».


Ao contrário do que acontece com o pedido de indemnização cível, anteriormente referido, esta “reparação não constitui uma verdadeira indemnização, mas uma compensação destinada principalmente ao reforço do conteúdo reeducativo e pedagógico da pena e dar satisfação suficiente às finalidades da punição, respondendo nomeadamente à necessidade de tutela dos bens jurídicos e estabilização contrafáctica das expectativas comunitárias”, o que justifica “que o montante arbitrado não tenha de corresponder ao que resultaria da fixação da indemnização segundo os critérios estabelecidos na lei para a responsabilidade civil e para a obrigação de indemnizar (artigos 483.º e segs. e 562.º e segs. do Código Civil)” (acórdão de 11.6.1997, Coletânea de Jurisprudência, acórdãos do STJ, ano V, T. 2, pp. 226ss).


Com efeito na Exposição de Motivos da Proposta de Lei n.º 157/VII 37, que esteve na origem da Lei n.º 59/98, pode ler-se o seguinte, a propósito desta reparação:


“Novidade da actual revisão constitui a possibilidade de o tribunal oficiosamente poder arbitrar, como efeito penal da condenação, uma reparação pelos prejuízos sofridos quando o imponham particulares exigências de protecção da vítima (artigo 82.º-A).


Preserva-se a autonomia e a natureza civil do pedido de indemnização, mas não se posterga a protecção das vítimas carenciadas, através de um processo que não exige qualquer formalidade. Recupera-se, assim, uma medida abandonada com a entrada em vigor do Código Penal de 1982, quando parte da doutrina nacional já então insistia em fazer da reparação um «terceiro degrau» do sistema sancionatório – ideia que hoje vem sendo defendida por vozes autorizadas da doutrina nacional e estrangeira –, estabelecendo-se, nesta conformidade, que a quantia arbitrada deverá ser levada em conta em acção que conheça autonomamente do pedido civil de indemnização”.


Também em sintonia com a aludida alteração legislativa, o artigo 21º do “Regime jurídico aplicável à prevenção da violência doméstica, à protecção e à assistência das suas vítimas” (aprovado pela Lei 112/2009, de 16 de setembro) veio estabelecer o seguinte:


“1 - À vítima é reconhecido, no âmbito do processo penal, o direito a obter uma decisão de indemnização por parte do agente do crime, dentro de um prazo razoável.
2 - Para efeito da presente lei, há sempre lugar à aplicação do disposto no artigo 82.º-A do Código de Processo Penal, exceto nos casos em que a vítima a tal expressamente se opuser.
3 - Salvo necessidade imposta pelo processo penal, os objetos restituíveis pertencentes à vítima e apreendidos no processo penal são imediatamente examinados e devolvidos.
4 - Independentemente do andamento do processo, à vítima é reconhecido o direito a retirar da residência todos os seus bens de uso pessoal e, ainda, sempre que possível, os seus bens móveis próprios, bem como os bens pertencentes a filhos menores e a pessoa maior de idade que se encontre na direta dependência da vítima em razão de afetação grave, permanente e incapacitante no plano psíquico ou físico, devendo os bens constar de lista disponibilizada no âmbito do processo e sendo a vítima acompanhada, quando necessário, por autoridade policial.”


Finalmente e para o que ora interessa, também o artigo 16º do Estatuto da Vítima (aprovado pela lei 130/2015, de 4 de setembro) veio estabelecer o seguinte:


“1 - À vítima é reconhecido, no âmbito do processo penal, o direito a obter uma decisão relativa a indemnização por parte do agente do crime, dentro de um prazo razoável.


2 - Há sempre lugar à aplicação do disposto no artigo 82.º-A do Código de Processo Penal em relação a vítimas especialmente vulneráveis, exceto nos casos em que a vítima a tal expressamente se opuser.


3 - Os bens pertencentes à vítima que sejam apreendidos em processo penal devem ser de imediato examinados e restituídos, salvo quando assumam relevância probatória ou sejam suscetíveis de ser declarados perdidos a favor do Estado.”


Assim, também em ambos os diplomas se distingue entre o pedido de indemnização cível que deve ser apresentado nos termos do disposto nos artigos 71º e sgs. do Código de Processo Penal – o qual tem por finalidade arbitrar uma verdadeira indemnização com natureza cível e que será calculada, por força do disposto no artigo 129º do Código Penal, nos termos do disposto no Código Civil - e a reparação prevista no artigo 82ºA do Código Penal.


Face a todo o exposto e para o que ora interessa, há que concluir o seguinte:

• O arbitramento da reparação a que alude o artigo 82ºA do Código de Processo Penal pode ser oficiosamente decidida pelo tribunal, desde que existam prejuízos, caso particulares exigências de proteção da vítima o imponham, e desde que não tenha sido deduzido pedido de indemnização cível;

• Nos casos de condenação pela prática de violência doméstica e nas situações de vítimas especialmente vulneráveis, tal arbitramento é sempre obrigatório, exceto nos casos em que a vítima a tal expressamente se oponha e desde que não tenha sido deduzido pedido de indemnização cível;


Finalmente, a caracterização e conteúdo desta “reparação”, de natureza pecuniária, sem se confundir com a indemnização civil, remete, porém, para conceitos que lhe são próprios, nomeadamente quanto ao “dano” ou “prejuízos”, mas já não quanto à “quantia” a fixar.


Com efeito e como se refere em acórdão deste Supremo Tribunal de Justiça que temos seguido de perto38, a aludida reparação deverá ser fixada “segundo o prudente arbítrio do legislador, que atenderá à gravidade da infracção, ao dano material e moral por ela causado, à situação económica e à condição social do ofendido e do infractor”


B.4.4.5.2. O caso concreto


No caso em apreço, importa começar por afirmar que, tendo em conta os crimes pelos quais o arguido foi condenado (v.g. o crime de violência doméstica, previsto e punível pelo artigo 152º do Código Penal), dado estarmos em presença de uma vítima especialmente vulnerável (na aceção do disposto nos artigos 1º als., j) e l) e 67º nºs 2 al. b) e 3 do Código de Processo Penal),uma vez que não foi deduzido pedido de indemnização cível e porque a vítima declarou expressamente a que tal não se opunha, o arbitramento oficioso da reparação a que alude o artigo 82º A do Código de Processo Penal é obrigatório.


Ou seja, face a todo o acima exposto, mesmo que não tivesse existido pedido do Ministério Público nesse sentido, a abordagem e decisão sobre eventual arbitramento da aludida reparação era obrigatória, constituindo eventual omissão sobre esta matéria a nulidade de omissão de pronúncia, nos termos do disposto no art. 379º, nº 1, al. c) do Código de Processo Penal.


Passando agora à quantificação da reparação remete-se para o que se expôs aquando da apreciação da adequação das penas parcelares e única (v.g. pontos B.4.2.3.2. e B.4.3.4.2) e para a matéria de facto dada como provada e que também transcrevemos supra (ponto B.2.), podendo sintetizar o que foi consignado da seguinte forma:

• Desde que a menor completou 11 anos até 22.11.2022, diariamente e de forma cada vez mais intensa, o arguido desferiu-lhe palmadas, bofetadas e socos por todo o corpo (v.g. cabeça, costas, braços, pernas e mãos), tendo-lhe causado dor e lesões (v.g. hematomas);

• Durante os mesmos praticamente quatro anos o arguido arremessava contra o corpo da vítima objetos (v.g. cadeiras) ou entalava-a com esses objetos contra a parede (cama e cadeira), causando-lhe igualmente sofrimento e lesões (v.g. hematomas);

• Também durante o mesmo período e com frequência o arguido apelidava a vítima de “puta”, “vaca”, “rameira”, “porca” e “monte de merda”;

• Por outro lado, torturava-a, impedindo-a de descansar (mesmo durante os períodos escolares) ou obrigando-a a tomar banho de água fria, independentemente da estação do ano;

• Também controlava permanentemente os seus movimentos, obrigando-a a fazer videochamadas com frequência e com intervalos de cerca de 10/20 minutos ou exigindo-lhe que tirasse fotografias para comprovar o local onde se encontrava ou tinha estado;

• Durante o mesmo período e até a menor completar 14 anos, em pelo menos 730 momentos distintos, o arguido abusou sexualmente da vítima, observando a sua vagina e vulva, fotografando-os, mexendo com um cotonete nos seus lábios vaginais e no seu clitóris e introduzindo os dedos e a língua, envoltos num saco de plástico na vagina da BB;

• Depois de a vítima ter completado 14 anos e até ser detido, a 22 de novembro de 2022, o arguido continuou a abusar sexualmente da sua filha, pelo menos durante 345 momentos e pela forma atrás descrita, sendo que também lhe apalpou o rabo, lhe beijou a boca, lhe cortou os pelos púbicos, obrigou o seu namorado a apalpar-lhe os seus e ainda, numa ocasião, introduziu os seus dedos e a língua na vagina da menor e, noutra, introduziu-lhe um vibrador a vibrar dentro da vagina, causando-lhe, em ambas as situações, dor;

• Para conseguir realizar os seus atos libidosos o arguido com frequência ameaçava a vítima, dizendo-lhe que, se não fizesse o que lhe pedia, a internava num colégio o que a matava e se suicidava;

• Na realização desses atos o arguido dispunha e abusou de uma posição de manifesta confiança, autoridade e de influência relativamente à BB e esta encontrava-se numa situação de particular vulnerabilidade, em virtude de sua mãe raramente estar com ela e por o pai, dado estar desempregado, se encontrar permanentemente sozinho com a vítima em casa;

• Por outro lado, o arguido guardou e usou as fotografias que tirava ao corpo desnudo da filha, sendo que foram encontradas em seu poder 137 fotos desse cariz;

• O arguido atuou com dolo direto, sendo nessa medida particularmente intensa a sua vontade criminosa, a qual tinha como único propósito satisfazer os seus propósitos libidinosos.

• Por outro lado, foram muitas e sempre muito graves as consequências do comportamento do arguido. Desde logo a violência física e psicológica com que atuava e a dor e sofrimento que causou à filha em vários dos momentos atrás descritos, o medo, a inquietação, a perturbação e desassossego que provocava na vítima, a vergonha e humilhação a que a sujeitava com a realização de inúmeros testes de gravidez que a mandava comprar nas farmácias e a perturbação psicológica que lhe provocava e que a levou a cortar-se, por cinco vezes, na coxa da perna direita;

• No que concerne à sua personalidade constata-se que o arguido cresceu num agregado familiar marcado por uma dinâmica disfuncional, negligente, com grandes carências económicas, tendo sido encaminhado para o acolhimento institucional na Casa ... onde foi, como atrás se referiu, vítima de abusos sexuais graves;

• Nunca manifestou interesse pelas atividades escolares, raramente frequentou atividades estruturadas e, desde que saiu do acolhimento, manteve-se inativo, havendo apenas referência ao desempenho das funções de empregado de limpeza na empresa onde trabalhava a mulher, durante curto período e que terminou devido aos seus comportamentos desajustados no relacionamento com colegas;

• No que concerne a fatores relativos à conduta do arguido antes e depois dos crimes, a ausência de antecedentes criminais deve ser sopesada favoravelmente, sem esquecer a juventude do arguido (os factos ocorreram desde 2018 e o arguido tinha cerca de 30 anos, pois nasceu a ... de ... de 1987);

• E, por outro lado e como também já atrás deixámos consignado, confessou os factos, embora não se tenha provado a existência de arrependimento, se tenha apurado que continua a revelar, no seu discurso, “ressonância afetiva, com dificuldades na verbalização de sentimentos quanto à menor, apenas afirmando amar a sua filha ainda que sem qualquer sinal visível de emotividade”, devendo ainda ter-se em conta a existência nos autos de outra prova (testemunhal e documental) que sustentou a condenação;

• No contexto prisional o arguido tem mantido uma conduta institucionalmente ajustada;

• Finalmente, de referir que, por um lado, e como é referido no acórdão recorrido, “o arguido não tem meios conhecidos de subsistência”, por outro que a vítima também não disporá de tais meios já que ainda é menor (nasceu a ........2007) e se encontra colocada em instituição de proteção.


Assim, ponderando todos estes fatores à luz dos critérios acima enunciados, entende-se que a reparação que deve ser atribuída à vítima menor BB se deve situar, antes, nos €25.000 (vinte e cinco mil euros).

C – Decisão

Por todo o exposto, decide-se:


1 – Julgar totalmente improcedente o recurso apresentado pelo arguido;


2 – Alterar a qualificação dos factos enunciados no ponto x) da matéria de facto dada como provada e em articulação com os factos apurados nas alíneas a), vvv) e xxx), subsumi-la num crime de abuso de crianças previsto e punível pelos artigos 171º, nºs 1 e 2 e 177º nº1, al. a) do Código Penal;


3- Julgar parcialmente procedente o recurso apresentado pela assistente, no que concerne às penas parcelares, ficando o arguido AA condenado nos seguintes termos:

• Pela prática de 1 (um) crime de violência doméstica, p. e p. pelo artigo 152.º, n.º 1, alínea d) e e), e n.º 2, alínea a), do Código Penal (na pessoa de sua filha BB), na pena de 4 (quatro) anos e 9 (nove) meses de prisão;

• Pela prática de 724 (setecentos e vinte e quatro) crimes de abuso sexual de criança, agravado, p. e p. pelos artigos 171. °, n.º 1, e 177. °, n.º 1, alíneas a), b) e c), ambos do Código Penal (observação e fotografia da vulva da BB- factos n) a t)), na pena de 1 (um) ano e 8 (oito) meses de prisão, por cada um desses crimes;

• Pela prática de 2 (dois) crimes de abuso sexual de criança, agravado, p. e p. pelos artigos 171°, n.º 1, e 177º, n.º 1, alíneas a), b) e c), ambos do Código Penal (observação e fotografia da vulva e mexer com cotonete nos lábios vaginais e clitóris da BB- facto u)), na pena de 2 (dois) anos e 4 (quatro) meses de prisão, por cada um desses crimes;

• Pela prática de 4 (quatro) crimes de abuso sexual de criança, agravado, p. e p. pelos artigos 171°, n.ºs 1 e 2, e 177º, n.º 1, alíneas a), b) e c), ambos do Código Penal (observação e fotografia da vulva, mexer com cotonete na vulva e meter dedos e a língua, envoltos em saco de plástico, na vagina da BB- facto x)), na pena de 6 (seis) anos de prisão por cada um desses crimes;

• Pela prática de 337 (trezentos e trinta e sete) crimes de abuso sexual de menores dependentes, agravados, p. e p. pelo artigo 172. °, n.º 1, alínea a) e b), e 177. °, n.º 1, alíneas a) e b), ambos do Código Penal (observação e fotografia da vulva da BB- factos n) e a)), na pena de 1 (um) ano e 8 (oito) meses de prisão, por cada um desses crimes;

• Pela prática de 2 (dois) crimes de abuso sexual de menores dependentes, agravados, p. e p. pelo artigo 172. °, n.º 1, alínea a) e b), e 177. °, n.º 1, alíneas a) e b), ambos do Código Penal (observação e fotografia da vulva e introdução de cotonete na vagina da BB com dor) – facto dd) e ff)), na pena de 2 (dois) anos e 7 (sete) meses de prisão por cada um desses crimes;

• Pela prática de 1 (um) crime de abuso sexual de menores dependentes, agravados, p. e p. pelo artigo 172. °, n.º 1, alínea a) e b), e 177. °, n.º 1, alíneas a) e b), ambos do Código Penal (Observação e corte de excesso de pêlos púbicos da BB – facto zz39), na pena de 1 (um) ano e 9 (nove) meses de prisão;

• Pela prática de 2 (dois) crimes de abuso sexual de menores dependentes, agravados, p. e p. pelo artigo 172. °, n.º 1, alínea a) e b), e 177. °, n.º 1, alíneas a) e b), ambos do Código Penal (introdução dos dedos e da língua na vagina da BB – facto hh)) na pena de 5 (cinco) anos de prisão por cada um desses crimes;

• Pela prática de 1 (um) crimes de abuso sexual de menores dependentes, agravados, p. e p. pelo artigo 172. °, n.º 1, alínea a) e b), e 177. °, n.º 1, alíneas a) e b), ambos do Código Penal (introdução de vibrador a vibrar na vagina da BB causando-lhe dor – facto vv), na pena de 5 (cinco) anos e 6 (seis) meses de prisão;

• Pela prática de 1 (um) crimes de abuso sexual de menores dependentes, agravados, p. e p. pelo artigo 172. °, n.º 1, alínea a) e b), e 177. °, n.º 1, alíneas a) e b), ambos do Código Penal (apalpar o rabo e beijar a boca da BB na presença do namorado desta – facto xx), na pena de2 (dois) anos de prisão;

• Pela prática de 1 (um) crimes de abuso sexual de menores dependentes, agravados, p. e p. pelo artigo 172. °, n.º 1, alínea a) e b), e 177. °, n.º 1, alíneas a) e b), ambos do Código Penal (colocar a mão do CC nos seios da BB – facto ddd)), na pena de 2 (dois) anos de prisão;

• Pela prática de 137 (cento e trinta e sete) crimes de pornografia de menores, agravados, p. e p. pelo artigo 176. °, n. ºs1, alínea b) e d) e 8, e 177. °, n.º 1, alíneas a) e b), ambos do Código Penal (fotos da vagina, púbis e peito desnudos da BB - factos ii), jj e iii)), na pena de 2 (dois) anos e 6 (seis) meses de prisão por cada um desses crimes;

• Pela prática de 1 (um) crime de importunação sexual, previsto e punido pelo art. 170º do Código Penal (na pessoa da vítima CC – facto ddd)), na pena de 9 (nove) meses de prisão;


4 - Julgar parcialmente procedente o recurso apresentado pela assistente, no que concerne à pena única, condenando o arguido AA, ao abrigo e nos termos do disposto no artigo 77º do Código Penal, na pena de 19 (dezanove) anos de prisão;


5 – Julgar procedente o recurso apresentado pela assistente no que concerne ao pedido de reparação da vítima, condenando-se o arguido AA a pagar à mesma, ao abrigo do disposto nos artigos 82ºA do Código de Processo Penal, 21º, nº 2 do “Regime jurídico aplicável à prevenção da violência doméstica, à protecção e à assistência das suas vítimas” (aprovado pela Lei 112/2009, de 16 de setembro) e 16º, nº 2 do Estatuto da Vítima (aprovado pela lei 130/2015, de 4 de setembro) e tendo conta o disposto no artigo 494º aplicável ex vi artigo 496º, nº 4, ambos do Código Civil, o montante de €25.000 (vinte e cinco mil euros);


5 - Vai ainda o arguido e ora recorrente condenado, ao abrigo do disposto no artigo 513º, nº 1 do Código de Processo Penal nas custas do processo, fixando-se a taxa de justiça em 6 (seis) Unidades de Conta;


6 – Sem custas a pagar pela assistente, face ao estabelecido na última parte do nº 1 do artigo 513º Código de Processo Penal (decaimento não total), sendo certo que delas estaria isenta nos termos do disposto no artigo 4º, nº 1 al z), do Regulamento das Custas Processuais.


D.N.


Supremo Tribunal de Justiça, d.s. certificada


(Processado e revisto pelo relator - artigo 94º, nº 2 do Código de Processo Penal)


Celso Manata (Relator)


Agostinho Torres (1º Adjunto)


Leonor Furtado (2º Adjunto)


__________________________________________

1. In CJ/STJ, 1999, Tomo 2, pág. 196.↩︎

2. In DR I Série - A, de 28 de dezembro de 1995.↩︎

3. A assistente consigna, expressamente, não pretender recorrer da pena parcelar relativa ao crime de violência doméstica, sendo que, no que concerne ao crime de importunação sexual, nada refere nas conclusões (nem mesmo na motivação), designadamente em termos argumentativos ou em termos de proposta de pena a aplicar por esse ilícito criminal, como faz para todos os demais crimes relativamente aos quais entende que a sanção foi inadequadamente branda. Aliás, quanto ao crime de importunação sexual, nem teria legitimidade para recorrer dado que a vítima não é seu familiar.↩︎

4. In Diário da República n.º 120/2017, Série I, de 2017-06-23↩︎

5. Cfr. Maia Gonçalves, Código Penal Português anotado, edição de 1983, pág. 219.↩︎

6. “Comentário do Código de Processo Penal à luz da Constituição da República e da Convenção Europeia dos Direitos Humanos”, 5ª edição, vol. I, pág. 47)↩︎

7. Sublinhado e negrito nossos.↩︎

8. Alteração Substancial dos Factos e Sua Relevância no Processo Penal Português”, Editora Almedina, 1992, pág 100.↩︎

9. Código de Processo Penal comentado” de Henriques Gaspar e outros, pág. 1346.↩︎

10. Ac. do STJ nº 4/95, de 7 de junho de 1995 in D. R. I Série-A de 6 de julho de 1995.↩︎

11. Direito Processual Penal I- Objeto do Processo, Liberdade de Qualificação Jurídica e Caso Julgado, Lisboa, 2001, p. 46↩︎

12. Cfr. Ac. do T.C. nº 394/2022 in “Direito Processual Penal dos Recursos” de Helena Morão e outros, Associação Académica da Faculdade de Direito de Lisboa Editora, 2022, pág.417↩︎

13. Ac. do STJ de 14 de setembro de 2011 – Proc138/08.6TALRA.C1.S1 in www.dgsi.pt↩︎

14. “A Proibição de Reformatio in Pejus e a Alteração da Qualificação Jurídica” Tese de mestrado apresentada por Ana Sofia Matança da Costa Sousa Ribeiro, sob a orientação do Professor Doutor Germano Marques da Silva. Edição da “Católica Faculdade Direito Escola de Lisboa”, 2021, pág. 20.↩︎

15. Ao abrigo dos artigos 82ºA do Código de Processo Penal, 21º, nºs 1 e 2 da Lei 112/2009, de 16 de setembro e 16º, nºs 1 e 2 da lei 130/2015, de 4 de setembro.↩︎

16. Sublinhado e negrito nossos.↩︎

17. Código de Processo Penal comentado”, de Henriques Gaspar e outros, pág. 246.↩︎

18. Ob. e pág. citada.↩︎

19. “A Proibição de Reformatio in Pejus e a Alteração da Qualificação Jurídica” Tese de mestrado apresentada por Ana Sofia Matança da Costa Sousa Ribeiro, sob a orientação do Professor Doutor Germano Marques da Silva. Edição da “Católica Faculdade Direito Escola de Lisboa”, 2021, pág. 19 e 20.↩︎

20. Fala aqui Figueiredo Dias na intensidade da vontade no dolo, loc. cit., pag. 246.↩︎

21. “Direito Penal Português - As consequências jurídicas do crime” 4ª reimpressão, pág. 227 e sgs.↩︎

22. Figueiredo Dias, ob. citada 223 e sgs.↩︎

23. Cf. “O modelo de prevenção na determinação da medida concreta da pena”, in Revista Portuguesa de Ciência Criminal, ano 12, n.º2, abril-junho de 2002, págs. 181 e 182.↩︎

24. Cfr. “Direito Penal Português, As consequências jurídicas do crime”, Editorial Notícias, pág. 245 a 255.↩︎

25. Cf. “Consequências Jurídicas do Crime”, Lições para os alunos da FDC, Coimbra, 2010-2011.↩︎

26. “Direito Penal Português As consequências Jurídicas do Crime, 4ª reimpressão, pág. 195.↩︎

27. Proc. 808/21.3PCOER.L1.S1 relatado pela Juiz Conselheira Ana Brito↩︎

28. Problemas que se detetam ao longo do acórdão, dificultando a sua compreensão, mas que não permitem determinar a sua nulidade, já que esta só existe quando a falta de fundamentação é total e já não quando, apenas, – como é caso – se denotam apenas deficiências (cfr., a este propósito, Acórdãos do STJ de 24 de janeiro de 2018 e de 7 de setembro de 2020, proferidos, respetivamente, nos Procs. nºs 388/15.9GBABF.S1 E 2774/17.0T8STR.E1.S1 in ww.dgsi.pt)↩︎

29. Acrescente-se que um leitor menos atento poderia, inclusivamente, entender existir o vício de contradição insanável na fundamentação, porquanto a aludida matéria de facto parece ser contraditada pelo que consta nos pontos 27 e 32, o que não é o caso pois que, nestes últimos pontos, o tribunal não se está a reportar ao depoimento que o arguido prestou em audiência de julgamento, reportando-se, antes, ao resultado do contacto mantido pelo arguido com serviços técnicos.↩︎

30. Cfr. Acórdão do STJ de 24 de janeiro de 2018, proferido no Proc. nºs 388/15.9GBABF.S1 in ww.dgsi.pt↩︎

31. O facto 5 da acusação corresponde ao facto e) da matéria de facto dada como provada e reporta-se ao crime de violência doméstica (“5. Por vezes, estando a BB a tomar banho de água quente, o arguido desligava o gás e compelia a sua filha a continuar a banhar-se em água fria, o que sucedia independentemente da estação do ano”).↩︎

32. Cfr. Liberdade Culpa Direito Penal” Jorge Figueiredo Dias, fls. 87 e sgs.↩︎

33. Relativamente à violência doméstica trata-se de um crime complexo pelo que não há uma resposta pacífica sobre qual (ou quais) o(s) bem(s) jurídico(s) protegidos, tendo nós optado pela dignidade humana dado o mesmo se poder desdobrar numa multiplicidade de outros bens jurídicos e, desde logo, na proteção da saúde física e psíquica.↩︎

34. Relativamente a esta matéria no acórdão recorrido referia-se que além do referido lhe cortou os pêlos púbicos, um ano e nove meses de prisão” sendo que o “atrás referido” consistia na introdução de cotonete na vagina causando dor. Trata-se de um mero lapso, como se pode alcançar do ponto zz) da matéria de facto dada como provada e da circunstância de a pena aplicada ser inferior à que tinha sido atribuída no parágrafo anterior (concretamente 2 anos e 3 meses de prisão).↩︎

35. Cf. “Direito Penal Português, “As Consequências Jurídicas do Crime”, Editorial Notícias, 1993, págs.290/2.↩︎

36. Cf. “Revista Portuguesa de Ciência Criminal”, Ano 16, nº1, pág. 155 a 166 e acórdão do STJ, de 09-01-2008, CJSTJ 2008, tomo 1.↩︎

37. In Diário da Assembleia da República II, de 29.1.1998, p. 485):↩︎

38. Ac. de 2 de maio de 2018 – Proc. 156/16.0PALSB.L1.S1- in www.dgso.pt↩︎

39. Relativamente a esta matéria no acórdão recorrido referia-se que além do referido lhe cortou os pelos púbicos, um ano e nove meses de prisão” sendo que o “atrás referido” consistia na introdução de cotonete na vagina causando dor. Trata-se de um mero lapso, como se pode alcançar do ponto zz) da matéria de facto dada como provada e da circunstância de a pena aplicada ser inferior à que tinha sido atribuída no parágrafo anterior (concretamente 2 anos e 3 meses de prisão).↩︎