Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça | |||
Processo: |
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Nº Convencional: | 7.ª SECÇÃO | ||
Relator: | FERREIRA LOPES | ||
Descritores: | INCAPACIDADE ACIDENTAL MAIOR ACOMPANHADO SENTENÇA EFICÁCIA RETROATIVA DOAÇÃO ANULAÇÃO DA DECISÃO DECLARAÇÃO NEGOCIAL FALTA DA VONTADE IMPUGNAÇÃO DA DECISÃO DA MATÉRIA DE FACTO PRESUNÇÃO JUDICIAL PODERES DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA | ||
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Data do Acordão: | 01/16/2025 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
Privacidade: | 1 | ||
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Meio Processual: | REVISTA | ||
Decisão: | NEGADA A REVISTA | ||
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Sumário : | I - Aos actos anteriores ao início do processo de maior acompanhado, aplica-se o regime da incapacidade acidental; II - De acordo tal regime, previsto no art. 257º do CCivil, a anulação da declaração negocial com base em incapacidade acidental depende da prova dos seguintes requisitos cumulativos: i) que no momento do acto haja uma incapacidade de entender o sentido da declaração negocial ou falte o livre exercício da vontade; ii) que a incapacidade natural existente seja notória ou conhecida do declaratário; III – Ainda que a data que a sentença de maior acompanhado fixou como aquela em que a “medida se tornou necessária”, seja anterior ao acto impugnado, aquela declaração constitui apenas um início de prova, que por si só é insuficiente para se ter como demonstrada a incapacidade acidental. | ||
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Decisão Texto Integral: | Acordam no Supremo Tribunal de Justiça AA intentou acção declarativa de condenação sob a forma de processo comum, contra BB, peticionando que: i) Seja o contrato de Doação, celebrado entre o R. e o A., anulado, por corresponder a um Negócio Usurário e ofensivo dos bons costumes, nos termos do art. 282.º, com os efeitos previstos no art. 289.º do Código Civil ; ou, subsidiariamente, ii) Seja o contrato de Doação, celebrado entre o R. e o A., anulado, porque viciado por Incapacidade Acidental do A., nos termos do art. 257.º, com os efeitos previstos no art. 289.º, ambos do Código Civil ; ou ainda, subsidiariamente, iii) Seja reconhecida a ocorrência de uma deslocação patrimonial injustificada do património do A. para o património do R. iv) Seja o R., nos termos do art. 473.º n.º 1 e 2 do Código Civil, condenado a restituir ao A. o referido imóvel doado por este àquele, anulando-se a respectiva doação, restituindo-se, consequentemente, a propriedade ao ora A.; v) Seja, ainda, determinado, em qualquer dos casos, o cancelamento dos registos efectuados a favor do R. junto da Conservatória do registo predial relativamente ao imóvel e, bem assim, seja determinado a alteração do proprietário junto da A.T., relativamente ao imóvel em causa. Citado, o Réu apresentou contestação pugnando pela improcedência da acção. Realizada a audiência de discussão e julgamento, foi proferida sentença que julgou a acção improcedente e absolveu o Réu dos pedidos. Inconformado com tal decisão, dela apelou o Autor. Por acórdão da Relação de Lisboa, com um voto de vencido, foi o recurso julgado improcedente e confirmada a sentença. O Autor interpôs recurso de revista. Por acórdão de 02.05.2024, o STJ anulou o acórdão para que em nova decisão, se procedesse a apreciação crítica da prova produzida. Na Relação foi proferido novo acórdão, também desta vez com voto vencido, que julgou improcedente a apelação e confirmou a sentença. O Recorrente conclui do seguinte modo a sua alegação: 1- É essencial ter presente o que nos diz o douto Acórdão do STJ, de 3/5/2024, que nos elucida sobre a sua competência para sindicar, neste caso, sobre se "a Relação bem (não) usou as presunções judiciais" 2 - Pegando nos Votos de Vencido que resumem na perfeição toda a situação sub judice, chega-se à seguinte conclusão: - a patologia do foro psiquiátrico de que padece oA., afigura-se-nos ter ficado provado nos pontos 3.6, 3.7, 3.8 dos Factos Provados - a sentença do MAcompanhado, assim como os factos nela provados, tendo um valor extraprocessual, representa um facto instrumental, e bem assim, um forte indicio para prova dos facto essencial, -- facto este que, foi dado como provado, nos presentes autos... - a decisão do MAcompanhado (e os factos nela provados), é consensualmente considerada como tendo um valor probatório extra judicial correspondente ao de uma mera presunção judicial, natural - essa sentença do MAcompanhado, nomeadamente, no que se refere à data considerada como tendo sido o inicio da doença psiquiátrica do A., não foi alvo de qualquer oposição ou contestação da parte contrária, nestes autos Logo, não tendo sido alvo de Contraprova pelo Réu, a sua importância como forte e evidente indicio, não pode ser negada pela Relação e, muito menos servir de fundamento, para essa negação - Portanto, no que diz respeito à data que a mencionada sentença M Acompanhado, considera ser o inicio da patologia do foro psiquiátrico que afecta o A., ela refere-se ao ano de 2014, ou seja, decide que ela existe desde 2014. Ora, não havendo contestação em relação a isso, nos presentes autos, o mais lógico, o que era esperado, era julgar a situação seguindo um juízo de probabilidade subjectiva, óbvio, do provável era o A. em 2021 - ora, a convicção de que o A. padece de uma "doença" parece ter ficado assente ao considerar provado o 3.6, 3.7, 3.8 do Factos Provados, e por isso, o Tribunal de que se recorre apenas recorreria a ajuda das presunções judiciais, e aos dados da sua experiência, para dessa forma chegar àquilo que é o resultado mais provável, mais perto da realidade: que a incapacidade existia no dia da Doação, porque o A. padece de doença dela geradora desde 2014. e assim considera provado o facto 2.23 (dos Factos Não Provados) Sumariando: diz o acórdão recorrido que não se provou, nos presentes autos, a incapacidade do A. no dia da doação (apesar de provada a doença de que o A. padece), e por isso não valoriza a sentença do M. Acompanhado (facto instrumental) na parte em que, decide com base numa presunção judicial, que a doença do A. teve inicio em 2014-- decisão essa a que, ainda por cima, ninguém de opôs, ou ofereceu contraprova Ora, seguindo a douta opinião dos Votos de Vencido (da 1ª e da 2ª Decisão da Relação) esse facto está mais do que provado (nomeadamente, por testemunhas e pelo depoimento do A.) Se a sentença do Maior Acompanhado (facto instrumental) decide, com base numa mera presunção judicial, que a doença do A. existe desde 2014, e não existe contestação a esse facto deduzido, mais uma razão forte para, essa presunção ser considerada um indicio e fortíssimo para decidir pela incapacidade do A. no dia da Doação Daqui resulta que a douta decisão de que se recorre é ilegal por falta de fundamento O Tribunal da Relação não podia deixar de aproveitar a prova que resulta da sentença do Tribunal de Lisboa, que decidiu o Maior Acompanhado Nestes termos e no mais de Direito que V.Exªs doutamente suprirão, deve a Douta Sentença recorrida ser alterada e substituída por outra que ( tal como determina a anterior decisão do STJ de 3-5-2024 sobre este assunto) que: – julgue provado o facto essencial do ponto 2.23 -- ("2.23. (...) que quando subscreveu o original do documento cuja cópia se encontra de fls. 11-verso a 13-verso, o A. estava incapaz de entender o sentido e consequências da sua declaração, o que o R., não podia deixar de saber.") -- devendo o Tribunal da Relação extrair do juízo presuntivo constante da sentença do Maior Acompanhado (facto instrumental), nomeadamente no que se refere à data do inicio da doença do A., as ilações que se impõem no sentido da comprovação do facto essencial e por conseguinte, – considere a situação dos autos integrada na previsão do artº 257º do C.C. com a consequente procedência do pedido de anulação da doação, e respectivo registo predial. * Contra alegou o Recorrido pugnando pela improcedência do recurso e a confirmação do acórdão recorrido, tendo formulado as seguintes conclusões: 1. A fixação da matéria de facto pelas instâncias foi julgada corretamente, não padecendo de qualquer vício de direito material ou probatório. 2. Nos termos do n.º 3 do artigo 674.º do Código de Processo Civil o erro na apreciação das provas e na fixação dos factos materiais da causa não pode ser objecto de recurso de revista, estando reservado para o Tribunal de revista o conhecimento de questões de direito. 3. Cabe em todo o caso ao Supremo Tribunal de Justiça qualificar em concreto uma determinada questão como sendo de facto ou de direito. 4. Tem, no entanto, sido entendido por jurisprudência deste Tribunal que realidades de natureza psicológica como estados emocionais e eventos do foro interno, psíquicos são susceptíveis de integrar realidades de facto. 5. A utilização de presunções judiciais e máximas de experiência pelo julgador não resulta em todo o caso de qualquer disposição expressa da lei que exija certa espécie de prova para a existência do facto ou que fixe a força de determinado meio de prova. 6. Pelo que deve prevalecer a apreciação e confirmação da matéria de facto efectuada pelo Tribunal da Relação no uso do princípio da livre apreciação da prova, plasmado no n.º 5 do artigo 607.º e artigo 662.º do Código de Processo Civil. 7. Ambas as instâncias procederam à análise crítica da prova de forma exigível por lei, conforme resulta da leitura das respectivas motivações de facto, que permite perceber e avaliar as razões que contribuíram por duas vezes para a formação da livre e prudente convicção por parte do julgador, com influência decisiva na valoração positiva e negativa dos factos. 8. Deste modo, não procede a pretensão do recorrente em impor ao julgador uma obrigatoriedade de lançar mão de certas e determinadas presunções judiciais à força, para além das que resultaram da sua convicção formada livremente, de forma a dar como provados factos que já foram fixados como não provados. 9. Quer a Sentença quer o Acórdão recorrido julgaram de harmonia com o preceituado na lei e de acordo com a prova produzida nos autos. 10. A prova produzida fora do processo não pode ser invocada nesse processo fora dos casos expressamente previstos no artigo 421.º do Código de Processo Civil, o que não é o caso nos presentes autos, uma vez que entre a acção de acompanhamento de maior e a acção de condenação nos presentes autos não há sequer, nem podia haver, identidade de partes. 11. De igual modo, a motivação de facto constante de uma decisão no âmbito de um processo não faz caso julgado autónomo, independente do conteúdo decisório a que se refere, pelo que os factos dados como provados num processo não podem sem mais ser dados como provados noutro processo, pelo simples facto de se juntar aos autos um documento com uma sentença. 12. Sobre os efeitos substantivos da sentença de acompanhamento de maior, relativamente ao caso dos presentes autos estão previstos no artigo 154.º, n.º 3 do Código Civil, segundo o qual aos actos anteriores ao anúncio do início do processo de acompanhamentode maior,aplica-se o regime da capacidade acidental; sendo que 13. A data a partir da qual as medidas decretadas se tornam convenientes pode funcionar em certos casos, como presunção judicial, mas não de forma vinculada, não tal desonera o A. do ónus da prova, admitindo ainda a produção de prova em contrário e contraprova. (900.º C.P.C.); sendo que 14. O A. não logrou fazer prova dos factos constitutivos do direito por si alegado, desde logo porque não requereu relatório pericial nos autos. 15. Não trouxe ao processo nenhuma testemunha que pudesse produzir prova sobre o seu estado mental no momento da prática do acto que pretende anular, uma vez que todas as testemunhas que foram produzidas pelo A. só tiveram conhecimento da doação em data posterior à celebração do mesmo. 16. Não trouxe ao processo a pessoa que, no uso da competência atribuída por lei, emitiu termo de autenticação segundo o qual, no momento da celebração da doação escreveu que A. e R. “para fins de autenticação me apresentaram o presente contrato de doação, que disseram haver lido e assinado e que o mesmo exprime as suas vontades, confirmando o conteúdo”. 17. Os próprios relatórios médicos apresentados pelo A. não são conclusivos relativamente à sua incapacidade, além de que não se referem a momento relevante para preenchimento dos requisitos da incapacidade acidental. 18. As testemunhas apresentadas por A. e R. representaram duas realidades bem distintas e contraditórias entre si, o que exigiu uma ponderação hábil por parte do julgador, sendo que as testemunhas produzidas pelo A. declararam todas ser notório o seu estado mental frágil e influenciável e as produzidas pelo R. referiram assistir a um comportamento confiante e normal; 19. Sendo que pode inclusivamente ler-se no relatório produzido na acção de acompanhamento de maior que “não se conclui por estado demencial claramente presente” e ainda que “estes factores psicopatológicos e de funcionamento da personalidade não são típicos ou característicos de défice cognitivo ligeiro, nem é lógico que decorra daqueles.” 20. Pelo exposto, o A. não produziu prova credível nos autos que pudesse sustentar o preenchimento dos requisitos da incapacidade acidental, desde logo, não convenceu o julgador, quer em primeira, quer em segunda instância, que no momento da celebração a doação se encontrasse incapaz de entender o sentido e as consequências da sua declaração por si. 21. Pelo que bem decidiram as instâncias acerca da não subsunção dos factos apurados aos requisitos de anulação do negócio por capacidade acidental. /// Objecto da revista. O objecto do recurso é delimitado pelas conclusões do recorrente (arts. 635º/4 e 639º/1 do CPCivil). No caso, as questões que cumpre apreciar são as seguintes: - A incapacidade acidental do Autor/recorrente; - O uso de presunções judiciais; - A força probatória da sentença de maior acompanhado. /// Fundamentação De facto. Vem provada a seguinte matéria de facto: 1. Com data de ... de ... de 2021, A. e R., como primeiro e segundo contraente, respetivamente, subscreveram a denominada “Doação”, junta a fls. 11v e 12 dos autos, pela qual o A. disse que “(…) doa ao segundo contraente, livre de ónus ou encargos, reservando para ele doador o usufruto vitalício, do seguinte imóvel : Fracção autónoma designada pela letra “A”, que corresponde ao rés-do-chão esquerdo, para habitação, com carvoeira no logradouro, do prédio urbano em regime de propriedade horizontal sito na D. ...A, na freguesia de ..., concelho de ..., descrito na Conservatória do Registo Predial de ... sob o número mil seiscentos e vinte e dois, da freguesia de ..., aí registada a aquisição a favor do doador pela apresentação um de vinte e oito de Outubro de mil novecentos e noventa e sete, submetido ao regime da propriedade horizontal pela apresentação vinte de vinte de Maio de mil novecentos e noventa e sete e inscrito na matriz predial urbana sob artigo 892, da freguesia de ..., com o valor patrimonial correspondente à fracção de 111 223,70 euros. Que ele primeiro contraente tem setenta e nove anos de idade, pelo que dá a esta doação o valor de oitenta e oito mil novecentos e setenta e oito euros e noventa e seis cêntimos, que é o valor da nua propriedade (…).”. 2. No dia ........2021, foi celebrado pela advogada CC o “Termo de Autenticação”, junto a fls. 12v e 13, no qual A. e R., como primeiro e segundo outorgantes, respetivamente, declararam: “(…) Que para fins de autenticação me apresentaram o presente contrato de doação, que disseram haver lido e assinado e que o mesmo exprime as suas vontades, confirmando o conteúdo, instrumento esse que tem por objecto o seguinte imóvel: A raiz ou nua propriedade da fracção autónoma designada pela letra “A”, que corresponde ao rés-do-chão esquerdo, para habitação, com carvoeira no logradouro, do prédio urbano em regime de propriedade horizontal sito na D. ..., na freguesia de ..., concelho de ..., descrito na Conservatória do Registo Predial de... sob o número mil seiscentos e vinte e dois, da freguesia de ... e inscrito na matriz predial urbana sob artigo 892, da freguesia de .... (…).” 3. Pela Ap. ..22 de 2021/04/15 a aquisição da fracção id. foi registada a favor do Réu e o usufruto foi registado a favor do A. 3. Com data de 23.08.2022, foi proferida decisão no processo n.º 14449/21.1..., a correr termos no Juízo Local Cível de ..., Juiz ..., que determinou “a aplicação ao beneficiário AA da medida de acompanhamento de representação especial, consignando-se que tal medida se tornou necessária desde ... de ... de 2014. Em concreto, o maior acompanhado carece de representação para actos de disposição ou oneração do seu património. Declaro ainda o maior acompanhado impedido de exercer os seguintes direitos pessoais: a) tem impedimento dirimente absoluto para contrair casamento ( cfr. art.º 1601.º ,al. b) do C.Civil); b) é incapaz de testar (art. 2189.º al. b) do C.Civil); d) é - lhe vedado o direito de perfilhar ou adotar (art. 1850.º n.º 1, do C.Civil). ”. 5.- Da sentença constam os seguintes factos provados: “ 1º. AA nasceu a ... de ... de 1942 e é divorciado. 2º. O beneficiário apresenta um défice cognitivo global ligeiro, com maior incidência na memória, na fluência verbal e na construção viso espacial, com impacto no funcionamento diário, com diminuição do desempenho em situações sociais mais exigentes, requerendo algum suporte ou supervisão. 3º. Foi seguido em consulta externa de psiquiatria do Hospital ... entre .../.../1998 e .../.../1999 por apresentar quadro de distimia. 4º. Nesse seguimento foi-lhe diagnosticada Perturbação Afetiva Bipolar. 5º. Observado em .../.../2017, foi-lhe detetada a existência de períodos longos de alteração cognitiva-afectiva graves, com expansão delirante do humor e consequentes perturbações no plano comportamental, redutoras da autocrítica e do discernimento global e aumento da permeabilidade à influência de terceiras pessoas. 6º. O beneficiário sofre de uma credibilidade excessiva que o vulnerabiliza perante pessoas mal-intencionadas. 7º. Desde pelo menos ... de 2014, o beneficiário é recorrente em comportamentos de prodigalidade e má gestão do património. 8º. Entre 2014 e 2021 o beneficiário transmitiu a propriedade de vários imóveis a favor de DD, incluindo a sua casa de habitação, e emprestou-lhe €60.000,00, sem qualquer contrapartida. 9º. Atualmente o beneficiário está orientado no espaço e no tempo, auto e alo psiquicamente. 10º. Apresenta alterações da função executiva/visuo espacial ( prova do relógio : incapaz de desenhar números e ponteiros, incapaz de copiar cubo, incapaz de realizar sequência de números e letras). 11º. Sabe dizer quanto ganha de pensão. 12º. Consegue reconhecer o valor facial e patrimonial do dinheiro. 13º. É capaz de realizar trocos simples e complexos. 14º. É capaz de efetuar subtrações. 15º. É capaz de interpretar provérbios. 16º. Consegue relatar factos correntes do dia-a-dia. 17º. Apresenta noção da posse e das necessidades pessoais, bem como do património. 18º. O beneficiário é licenciado em ... e foi ..., encontrando-se reformado. 19º. Não tem filhos. 20º. Tem um irmão já falecido. 21º. Conta com o apoio das primas. 22º. Reside sozinho e tem uma empregada para limpeza da casa. 23º. Desloca-se sozinho. 24º. Aufere uma reforma e rendas de imóveis que arrenda.”. 6. O A. foi seguido nas consultas externas do Centro Hospitalar Psiquiátrico de ... – Polo ... entre ........1998 e ........1999, por apresentar um quadro de distimia. 7. O A. sofre de perturbação afectiva bipolar. 8. Segundo a declaração médico-psiquiátrica junta a fls. 18: “ No curso evolutivo da doença do A. foi patente a existência de períodos longos de alteração cognitiva- afectiva graves, com expansão delirante do humor e consequente perturbação no plano comportamental, redutores da autocritica e do discernimento global e aumento da permeabilidade à influência de terceiras pessoas.”. 9. A ... de Janeiro de 2021, o R. começou a viver na casa do A., sita na Rua D. ...., em .... 10. O Réu permaneceu na casa do A. até ... de Junho de 2021. 11. A fracção sita na Rua D. .... ..., ..., foi a casa de habitação permanente do Autor desde 1988. 12. O A. aufere uma reforma e recebe rendas de imóveis que arrenda, em valores não apurados. Foi julgado não provado: (i) O R. parecia querer cuidar do A., zelar pelas coisas e pela sua casa, mas afinal quem assegurava a limpeza e manutenção da casa, no dia a dia, era alguém contratado pelo A., só para o efeito, em alguns dias da semana. (ii) Desde o início que o Réu sempre quis que o A. lhe entregasse uma chave da casa, que lhe permitisse ter liberdade de sair e entrar, quando quisesse, tentando desde sempre, convencer o A. que ele queria viver com o ele para o resto da vida e que adorava aquela casa. (iii) Que o Réu sempre demonstrou uma grande vontade e desejo de que a casa ficasse para ele, não por morte do A., através de um testamento a seu favor, mas em vida do mesmo. (iv) Que foi o Réu que preparou e tratou de todos os procedimentos – relacionados com a doação - , com a ajuda de uma advogada brasileira, sua conhecida, que, por sua vez o encaminhou para o escritório onde foi celebrada a escritura de Doação. (v) Que no período em que ocorreram estes factos, o A. estava a passar por uma fase pontualmente mais difícil quer do ponto de vista físico, quer psicológico, sendo isso do conhecimento do Réu. (vi) Que do ponto de vista psicológico o A. deixa-se várias vezes enfraquecer quer devido a problemas do foro psiquiátrico de que padece há já muitos anos, quer por desgostos ou traições e vigarices de que é alvo e tem sido alvo ao longo dos anos, nomeadamente e mais recentemente, desde 2018. (vii) Que a bipolaridade do A. acentuou-se a partir de 2003. (viii) Que como consequência do quadro clínico, o A. apresenta e revela várias fraquezas, nomeadamente, ao nível afectivo, demonstrando medo de ficar só, e a necessidade de alguém que cuide dele, levando-o ao ponto de quase querer “comprar” a sua companhia, mas de uma forma desequilibrada, injustificada, e altamente lesiva para o mesmo. (ix) Que o A. vive o seu dia a dia, afastado dos seu familiares mais directos, como sejam, irmão, sobrinhos e primas, não sendo, por isso, possível contar como acompanhamento de familiares, contava unicamente, com a ajuda de uma empregada doméstica que, entretanto, saiu. (x) Que o A. aufere uma pensão de cerca de €1500, possui conta bancária junto do banco CTT e no Novo Banco, e aufere, ainda, dos rendimentos provenientes do arrendamento de dois imóveis que possui no ... em ..., no total de cerca de €1500. (xi) Que quando subscreveu o original do documento cuja cópia se encontra de fls. 11-verso a 13-verso, o A. estava incapaz de entender o sentido e consequências da sua declaração, o que o R., não podia deixar de saber. O direito. Está em causa saber se o Autor, quando, em ........2021, declarou doar ao Réu, reservando para si o usufruto, a fracção autónoma supra identificada tinha a necessária consciência e discernimento de forma a entender o alcance do acto, isto é, se exerceu livremente a sua vontade. Entendeu o acórdão recorrido, por maioria, que o Autor não logrou provar a ausência de vontade livre e discernida, e assim confirmou a sentença da 1ª instância que havia julgado a acção improcedente. Diversamente, defende o Recorrente que a sentença proferida no processo de maior acompanhado e os factos ali dados como provados impõem conclusão contrária, devendo pois ser julgado procedente o pedido subsidiário de anulação da doação. Vejamos. A Lei nº 49/2018 de 14 de Agosto criou o regime jurídico do maior acompanhado, eliminando os institutos da interdição e inabilitação, previstos no Cód. Civil. Este regime permite a qualquer pessoa que, por razões de saúde, deficiência ou pelo seu comportamento se encontrar impossibilitado de exercer pessoal, plena e conscientemente os seus direitos ou de cumprir os seus deveres, beneficiar das medidas de acompanhamento previstas no Código Civil. O acompanhamento é determinado por decisão judicial, que nomeia o acompanhante, cargo que na falta de escolha pelo acompanhado, é deferido a pessoa que melhor salvaguarde o interesse do beneficiário, podendo ser decretadas medidas de acompanhamento limitadas ao estritamente necessário (cfr. arts. 138º a 156º do Cód. Civil). Aos actos do acompanhado refere-se o art. 154º nos termos seguintes: 1. Os actos praticados pelo maior acompanhado que não observem as medidas de acompanhamento decretadas ou a decretar são anuláveis: a) Quando posteriores ao registo do acompanhamento; b) Quando praticados depois de anunciado o início do processo, mas apenas após a decisão final e caso se mostrem prejudiciais ao acompanhado. 2. O prazo dentro do qual a acção de anulação deve ser proposta só começa a contar-se a partir do registo da sentença. 3. Aos actos anteriores ao anúncio do início do processo aplica-se o regime da incapacidade acidental. No processo de maior acompanhado nº14449/21.1... foi proferida decisão, com data de 23.08.2022, que determinou “a aplicação ao beneficiário AA da medida de acompanhamento de representação especial, consignando-se que tal medida se tornou necessária desde ... de ... de 2014. Em concreto, o maior acompanhado carece de representação para actos de disposição ou oneração do seu património.” O referido processo teve início em 12 de Junho de 2021, portanto em data posterior à doação impugnada, o que significa que a este acto se aplica o regime da incapacidade acidental, como decorre do nº3 do art. 154º do CCivil. A incapacidade acidental é encarada no Código Civil como um vício de vontade, estatuindo o nº1 do art. 257º: “A declaração negocial feita por quem, devido a qualquer causa, se encontrava acidentalmente incapacitado de entender o sentido dela ou não tenha o livre exercício da sua vontade é anulável, desde que o facto seja notório ou conhecido do declaratário.” De acordo com esse regime, os actos só são anuláveis se se verificarem os seguintes requisitos: - que no momento do acto, haja uma incapacidade de entender o sentido da declaração negocial ou falte o livre exercício da vontade; - que a incapacidade natural existente seja notória ou conhecida do declaratário (nos contratos, a contraparte), entendendo-se notória a incapacidade (nº2 do art. 257º) quando uma pessoa de normal diligência a teria podia notar. Não basta, assim, para a anulabilidade destes actos, a prova da incapacidade natural, sendo ainda necessária a prova da cognoscibilidade da incapacidade. E, por outro lado, não basta demonstrar um estado habitual de insanidade de espírito, na época do negócio. Torna-se necessário provar a existência de uma perturbação psíquica no momento em que a declaração de vontade foi emitida. (cf. Carlos Alberto Mota Pinto, “Teoria Geral do Direito Civil”, 3ª edição, pag. 307). Nas palavras de Mafalda Miranda Barbosa, Falta e Vícios de Vontade, Gestelgal, 2020, pag.193: “O preceito (art. 257º) oferece-nos todos os requisitos de relevância da incapacidade acidental. Em primeiro lugar, é necessário que a pessoa se encontrasse acidentalmente incapacitada e que isso se tenha repercutido no entendimento e na vontade do declarante. Ou seja, não se exige que a incapacidade fosse duradoura ou permanente, nem se restrigem as causas relevantes dessa incapacidade. O que a norma impõe é que, no momento da celebração do negócio, a pessoa se encontrasse diminuída nas suas capacidades intelectuais ou volitivas; no momento da prática do acto (momento em que a declaração negocial foi emitida), o declarante deveria mostrar-se incapaz de entender o alcance do seu ato e/ou de determinar a sua vontade de acordo com um pré-entendimento que tivesse. Em segundo lugar, impõe-se que o declaratário conhecesse o facto, ou seja, as circunstâncias que fundam a incapacidade acidental, ou que este fosse notório. De acordo com o art. 257º/2 CC, o facto é notório quando um homem de comum diligência o teria podido notar.” Neste sentido decidiu o acórdão do STJ de 06.04.2021, P. 2541/19: “A anulação da declaração negocial por incapacidade acidental depende da verificação do requisitos cumulativos previstos no art. 257º do Cód. Civil, reportado ao momento da celebração do acto impugnado; Recai sobre o autor o ónus da prova dos pressupostos da anulação, por efeito de incapacidade acidental, nos termos do art. 342º, nº1, do Cód. Civil.” Revertendo ao caso dos autos. Foi julgado não provado que o Autor, quando efectuou a declaração de doação estava incapaz de entender o sentido e consequências da sua declaração. Daí que o pedido de anulação da doação tenha sido julgado improcedente por não demonstrada situação de incapacidade acidental. Objecta o Recorrente que se a medida de acompanhamento “se tornou necessária desde ... de ... de 2014”, como decidiu a sentença no processo de maior acompanhado, deve dar-se como provado, por presunção judicial, que em Fevereiro de 2021 o Autor não estava capaz de entender o sentido e consequências da declaração. Vejamos. As presunções são as ilações que a lei ou o julgador tira de um facto conhecido para firmar um facto desconhecido (art. 349º do CCivil). E conforme dispõe o art. 351º, “as presunções judiciais só são admitidas nos casos e nos termos em que é admitida a prova testemunhal”. Ora, os juízos de valor formulados pela Relação, ainda que não por unanimidade pois o que conta é a tese que fez vencimento naquele tribunal, perante os factos provados, com base em regras de experiência ou presunções judiciais, como ilações logicamente deduzidas desses factos, reconduzem-se a matéria de facto, excluída da competência do tribunal de revista. (cf. acórdão do STJ de 05.07.2001, CJ/STJ, 2001, II, p.154, ) O STJ tem considerado de forma constante que só pode sindicar o uso de presunções judiciais ou ilações lógicas se tal actividade ofende qualquer norma legal, se padece de ilogicidade ou se parte de factos não provados (cf. acórdãos do STJ 08.07.2003, CJ/STJ, 2003, II, p. 151, de 14.07.2016, P. 377/09, e de 18.05.2017, P. 20/14). Neste sentido, tem-se considerado que o uso de presunções judiciais não pode conduzir a desenvolvimentos contraditórios com a matéria de facto expressamente considerada provada e não provada, eliminando, por via indirecta, o que fixou fixado, ou não por via directa (cfr. o já citado Ac. STJ de 05.07.2001, e ainda o acórdão do STJ de 14.10.2021, P. 152/19). No caso vertente, a Relação deu como não provado que “ quando subscreveu o original do documento cuja cópia se encontra de fls. 11-verso a 13-verso, o A. estava incapaz de entender o sentido e consequências da sua declaração, o que o R., não podia deixar de saber. Estando-se no domínio da matéria de facto e não sendo a ilação ilógica, em face da matéria de facto provada, não pode a mesma ser sindicada por este STJ, pelo que cumpre concluir que se trata de presunção correcta. Conclusão esta que não é prejudicada pelo facto de na sentença do processo de maior acompanhado ter-se consignado que “a medida de acompanhamento se tornou necessária desde ... de ... de 2014”. Com efeito, o STJ tem constantemente decidido que ainda que o início da incapacidade seja anterior à data do acto impugnado, sempre seria insuficiente para o reconhecimento da incapacidade acidental no acto da celebração do negócio, por aquela declaração judicial constituir apenas um início de prova da incapacidade, que carece de ser completada por outra prova, para se ter como demonstrada a incapacidade acidental. (cf. o citado acórdão do STJ de 09.12.2004, e o acórdão de 06.04.2021, P. 2541/19). Como se escreveu no primeiro dos citados arestos, a propósito dos actos praticados pelo incapaz antes da publicitação da acção de interdição, “a sentença ao decretar a data do começo da incapacidade estabelece uma presunção de facto que, facilitando a prova, não a dispensa, o que significa que, mesmo que o negócio tenha sido celebrado depois da data fixada na sentença de interdição, na posterior acção de anulação, o interessado na arguição de anulabilidade continua a ter de provar que, no momento da celebração do negócio, se verificava a incapacidade.” Ora, percorrendo a matéria de facto nada nela se encontra que permita concluir que o Autor ao emitir a declaração de doação não tinha consciência do acto, pelo que a decisão da sentença de maior acompanhado a retrotrair a situação de incapacidade a uma data anterior á doação, sem mais, é inidónea, por si só, a permitir concluir pela incapacidade acidental do Autor. Com o que improcedem na totalidade as conclusões do Recorrente. Decisão. Pelo exposto, nega-se a revista e confirma-se o acórdão recorrido. Custas pelo Recorrente. Lisboa, 16.01.2025 Ferreira Lopes (relator) Rui Machado e Moura Fátima Gomes |