Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
12889/20.9T8PRT-A.P1.S1
Nº Convencional: 7.ª SECÇÃO
Relator: ILÍDIO SACARRÃO MARTINS
Descritores: RECURSO DE REVISTA
OPOSIÇÃO DE JULGADOS
MATÉRIA DE FACTO
Data do Acordão: 07/14/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA
Indicações Eventuais: TRANSITADO EM JULGADO
Sumário :
I - Para os efeitos do disposto na al. d) do n.º 2 do art. 629.º do CPC, não havendo identidade das situações de facto analisadas nos arestos em confronto, não se pode concluir pela alegada contradição, que só se verifica quando a uma idêntica situação de facto, subsumível às mesmas normas jurídicas, correspondem decisões, entre si, incompatíveis.

II - O STJ tem exigido, constantemente, que a questão, sobre que a contradição recai, seja uma questão fundamental ou essencial para a decisão do caso:

“A contradição de julgados relevante para a aplicação do art. 629.º, n.º 2, al. d), do CPC [...]”, diz-se, p. ex., em acórdão de 02-05-2019, “tem de referir-se a questões que se tenham revelado essenciais para a sorte do litígio em ambos os processos, desinteressando para o efeito questões marginais ou que respeitem a argumentos sem valor determinante para a decisão emitida”.

Decisão Texto Integral:

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça



I - RELATÓRIO 


O CLUBE FENIANOS PORTUENSES intentou procedimento cautelar de embargo de obra nova contra ROCHA MIRANDA & PEREIRA, LDA, pedindo a ratificação do embargo extrajudicial da obra que a requerida se encontra a realizar no imóvel locado onde funciona o estabelecimento denominado “Via Garrett”, com entrada pelos n.º….. a .. da ...........do prédio urbano inscrito na matriz predial urbana da União de Freguesias  ......., ......., .., ....., ……. e …, sob o art. ….75.

Alega que é proprietária do imóvel onde está instalado o estabelecimento, tendo-o dado de arrendamento à requerida; esta, todavia, e sem a autorização daquele, está a realizar no mesmo obras que importam inclusive a demolição de paredes e abertura de vão; além disso, sem obter previamente licença camarária e parecer favorável da Direcção Geral da Cultura do Norte e da Direcção Geral do Património Cultural.

A requerida deduziu oposição na qual, para além de impugnar parte da factualidade alegada, sustenta que as obras que se encontrava a realizar estão autorizadas.

Foi proferida sentença que julgou procedente o procedimento, ratificou o embargo extrajudicial da obra que a requerida se encontra a realizar no local onde funciona o mencionado estabelecimento denominado “Via Garret”. 

A requerida interpôs recurso de apelação e a Relação, por ACÓRDÃO de 10.05.2021, julgou a apelação procedente, indeferiu a providência requerida e revogou a sentença recorrida.

A requerente interpôs recurso de revista, invocando o disposto no artigo 629º nº 2 alª d) do CPC, tendo formulado as seguintes CONCLUSÕES:

I – DA ADMISSIBILIDADE DO RECURSO

I. Quanto ao fundamento específico de recorribilidade, embora se trate de um procedimento cautelar, é admissível recurso para este Supremo Tribunal de Justiça do Acórdão da Relação no processo em apreço, uma vez que se trata de um dos casos em que o recurso é sempre admissível, nos termos do disposto alínea d) do n.º 2 do artigo 629º do CPC.

II. A questão fundamental de direito em causa sobre o qual reside conflito jurisprudencial circunscreve-se ao conceito de “obra nova” que foi preenchido de forma distinta pelo Tribunal de primeira instância e pelo Tribunal da Relação  …..: ao passo que o acórdão recorrido considerou que as obras em causa que (entre as quais a demolição de uma parede com vista à redução da área de uma casa de banho, pretendendo-se construir nova parede) não se consideram “obra nova”;

III. O Acórdão Fundamento para esta concreta questão, legitimador do presente recurso, é o Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 18/12/2017, proferido no processo 161/17.0T8MDL.G1, já transitado em julgado e disponível para consulta em http://www.dgsi.pt, o qual foi proferido no domínio da mesma legislação (ratificação judicial da embargo extrajudicial de obra nova, artº 397º do Cód. Processo Civil) e que se debruçou sobre a mesma questão fundamental de direito (o conceito de obra nova), tendo decidido em sentido contrário ao acórdão de que agora se recorre, considerando, nomeadamente, que a “abertura de uma vala para construção de um muro configura uma obra, na medida em que implica uma modificação substancial do prédio dos requerentes, configurando, por isso, execução de obra nova.”. – junto a final como Doc. nº 1.

IV. As obras em causa nos presentes autos, são mais relevantes do que a simples abertura de uma vala com vista à construção de um muro, pelo que estamos perante uma das situações em que o recurso é sempre admissível, devendo o mesmo ser admitido.

Acresce que,

V. Embora o douto acórdão ora em crise assente na qualificação das obras, não considerando as obras realizadas como “obra nova” (“Em conclusão, não se verifica o primeiro requisito acima apontado: realização de obra nova. Pelo que, sendo os requisitos previstos no art. 397º do CPC cumulativos, não logrou a requerente demonstrar o direito invocado.”), a verdade é que é nele dito que tais obras estavam autorizadas no contrato de arrendamento, por ser de adaptação;

VI. Ora, também nesta parte o douto Acórdão Recorrido colide com o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 07/06/2011, no proc. n.º 906/2001.C1.S2, disponível para consulta em http://www.gde.mj.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/a3fe303343 670490802578af003c2ede e já transitado em julgado, proferido sobre a mesma questão fundamental de direito e no domínio de legislação que não sofreu alterações no que à norma diz respeito - junto a final como Doc. nº 2.

VII. A questão relevante (e fundamental de direito) prende-se em saber se a autorização dada no contrato de arrendamento para a realização de obras de adaptação do locado ao fim a que se destina pode justificar as obras feitas posteriormente e a alteração da sua configuração;

VIII. O acórdão recorrido considerou que a(s) obra(s) em causa (que incluem a diminuição de área de uma casa de banho, e consequente aumento da área da sala) são ainda de adaptação do arrendado para o fim a que se destina, já o referido Acórdão Fundamento, proferido pelo Supremo Tribunal de Justiça de 07/06/2011, no Proc. n.º 906/2001.C1.S2, debruçando-se sobre esta mesma questão fundamental de direito, entendeu de forma diversa: “Se os réus, sem autorização do senhorio, ergueram no locado duas paredes, separando divisões e aumentando o número de espaços do estabelecimento, tendo ainda suprimido uma janela, obras realizadas com carácter definitivo e permanente, essas obras alteraram substancialmente, ou de forma acentuada, a divisão interna do locado, desfigurando-o e descaracterizando-o claramente. Nas obras necessárias para o fim a que o local se destina apenas poderão ser integradas as adequadas ao funcionamento do estabelecimento, em termos de conservação, salubridade e conforto dos utentes, mas não as que determinam o aumento de divisões, tendo em vista uma maior rentabilização.” (destaque nosso)

IX - As obras aqui em causa – que incluíram o derrube de uma parede e a alteração da sua localização com inerente diminuição da área de uma casa de banho – nunca se poderiam incluir na espécie de obras ali descritas como sendo de necessárias para adaptação do local para o fim a que se destina e, estando assente que só estas estavam autorizadas no contrato, jamais se poderia concluir que as obras em causa se inseriam no âmbito da autorização que foi dada no contrato de arrendamento, pelo que também neste ponto se preenchem os pressupostos para a admissibilidade do presente recurso.


II – DO DOUTO ACÓRDÃO RECORRIDO

X. A decisão do tribunal, que considerou que não estávamos, no caso em apreço, perante uma obra verdadeiramente nova e que, mesmo que estivéssemos, a mesma sempre seria de adaptação, pelo que se encontraria autorizada no contrato de arrendamento, encerra um clamoroso erro de julgamento, violando o disposto nos artigos 362º n.º 1 e 397º n.º 1 do CPC.

XI. A obra embargada constitui uma obra permanente e estável, que altera por completo a configuração do locado, que se encontra irreconhecível, alterando, inclusivamente, a estrutura do mesmo com o derrube de uma parede e a consequente alteração do espaço de uma divisão (casa de banho)!

XII. Os pressupostos de que dependia o decretamento da providência de embargo de obra nova (ou sua ratificação) – 1) a titularidade de um direito real ou pessoal de gozo e 2) a ofensa desse direito pelo início de uma obra – estavam preenchidos.

XIII. Considera-se “obra nova” qualquer atuação humana, seja ela obra, trabalho ou serviço, sobre objecto que comprometa o direito do embargante, pelo que estaremos perante o início de uma obra nova desde que no objecto deste direito opere uma actuação humana que o possa alterar, não implicando necessariamente que se trate de uma construção, podendo limitar-se a uma destruição.

XIV. Como decorre dos factos provados, foram diversas as destruições perpetradas pela recorrida, que removeu por completo o revestimento do tecto, destruiu diversas estruturas do prédio, deixando à vista fios elétricos, tubos de exaustão e canalização, removeu o revestimento da parede da sala de refeições na zona do retro balcão, bem como das paredes das casas de banho, retirou as louças das casas de banho, removeu o revestimento do balcão e removeu as portas existentes, deixando o imóvel praticamente em bruto, como concluiu o tribunal de primeira instância.

XV. As obras levadas a cabo no locado não eram necessárias para assegurar o gozo pelo arrendatário e para prosseguir no locado a actividade à qual o mesmo se encontra afectado.

XVI. As obras levadas a cabo deixaram o imóvel completamente em bruto, sendo indiferente quem é que havia no passado realizado as obras de adaptação à actividade, uma vez que todas as obras realizadas são benfeitorias da aqui recorrente, por força do estipulado no contrato de arrendamento.

XVII. É impossível afirmar que o derrube de uma parede divisória e a construção de uma outra nova, em local diferente, diminuindo a área de uma casa de banho, não se trata de uma obra nova.

XVIII. No referido e junto Acórdão (Fundamento) do Tribunal da Relação de Guimarães de 18/12/2017, já transitado        em julgado, proferido no processo 161/17.0T8MDL.G11, decidiu- que: “A abertura de uma vala para construção de um muro configura uma obra, na medida em que implica uma modificação substancial do prédio dos requerentes, configurando, por isso, execução de obra nova.” Sendo certo que as obras em causa nos presentes autos são, manifestamente, mais relevantes do que a simples abertura de uma vala com vista à construção de um muro!

XIX. Não estando o conceito de “obra nova” claramente definido na lei e cabendo à jurisprudência preenchê-lo face às circunstâncias do caso concreto, é forçoso concluir que quem estava em melhores condições para preencher tal conceito era o tribunal de primeira instância, já que gozou da imediação da prova produzida, tendo inclusivamente adquirido uma percepção directa dos factos através da inspecção ao local.

XX. O contrato de arrendamento continha uma proibição genérica de realização de obras sem autorização do senhorio, incluindo as próprias obras de conservação, apenas estando autorizadas “as obras necessárias à respectiva adaptação para o fim a que se destina”.

XXI. A obra de derrube da parede e construção de nova parede em local diferente não pode ser considerada uma obra de adaptação do arrendado para os fins a que se destina pois estando o locado já a funcionar como restaurante nunca podiam as obras em causa ser de adaptação à actividade!

XXII. Como bem decidiu o Tribunal de primeira instância, “antes de iniciada a obra, já o imóvel locado era destinado à restauração, pelo que, ainda que eventualmente necessitando de obras para tornar o espaço mais apelativo à clientela, as ditas obras para modernização do espaço não podem julgar-se consistir em obras de adaptação à actividade. Sê-lo-iam, por exemplo, as obras impostas por alterações legislativas de regulamentação da atividade (por exemplo, prever a separação física entre uma zona de fumadores e outra de não fumadores, prever a utilização de determinados materiais ao nível do revestimento das paredes ou a eliminação de degraus à entrada) ou outras decorrentes da total obsolescência do espaço para o desenvolvimento da actividade de restauração. Não é o caso.”

XXIII. E esta interpretação é também a que decorre de forma cristalina do douto Acórdão Fundamento, proferido pelo Supremo Tribunal de Justiça, em 07/06/2011, no proc. n.º 906/2001.C1.S22.


Termina, pedindo que seja revogado o douto acórdão do Tribunal da Relação do ….. e, em consequência, mantida a douta sentença que decretou a providência de embargo de obra nova.


Não houve contra-alegações.

Após os VISTOS, cumpre decidir.


II - FUNDAMENTAÇÃO


A) Fundamentação de facto

Mostra-se assente a seguinte matéria de facto:

1) No dia 17 de Novembro de 2015, a requerente e a requerida celebraram um contrato, que reduziram a escrito e intitularam de “contrato de arrendamento para fim não habitacional”, mediante o qual a primeira, invocando a qualidade de proprietária, cedeu à segunda o gozo da parte do prédio urbano com entrada pelos n.ºs .. a .. da .............., inscrito na matriz predial da União de Freguesias de ........., ............., .., ........., .......... e ............, sob o art. ……75, pelo prazo de trinta anos, com início em 1 de novembro de 2015 e termo em 30 de Outubro 2045, mediante a obrigação de pagamento da quantia de 1.100,00€ por mês, a ser paga até ao primeiro dia útil do mês anterior aquele

a que respeitasse.

2) Ficou estipulado que:

Cláusula terceira

O local arrendado destina-se ao exercício de qualquer comércio, nomeadamente à área de hotelaria e restauração em geral e/ou industria com elas conexas ou similares (…)”.

Cláusula quarta

“4.1 – “A segunda outorgante não poderá realizar quaisquer obras no local arrendado, sem autorização escrita do primeiro outorgante, e todas as que fizer, com ou sem autorização, sejam consideradas benfeitorias necessárias, úteis ou voluptuárias, ficarão a pertencer ao prédio em que se integram, sem que em consequência disso, possa a arrendatária, findo o contrato, exigir qualquer indemnização, mesmo que em sede de enriquecimento sem causa, ou alegar ouusar do direito de retenção. Porém, a segunda outorgante fica desde já autorizada a realizar no arrendado as obras necessárias à respectiva adaptação para o fim a que se destina, cabendo-lhe suportar todos os custos daí decorrentes, incluindo todas e quaisquer despesas relacionadas com projectos camarários, licenças, taxas, etc. (…)”.

4.5 – “As referidas obras de adaptação do arrendado não deverão afectar  a linha arquitectónica e a estrutura do prédio, onde se integram a loja arrendada, podendo ainda a segunda outorgante executar as obras necessárias para a instalação de ar condicionado e exaustão e ficando também a segunda outorgante autorizada a colocar a publicidade necessária, desde que devidamente licenciada para o efeito pelas entidades competentes”.

Cláusula quinta

Ficam a cargo da arrendatária as obras de conservação e limpeza do arrendado, tanto interna como externamente, bom como o pagamento dos consumos de água, electricidade e taxa de saneamento”.


3) A requerida explora na referida parte do imóvel locado um estabelecimento de restauração denominado “Via Garrett”.

4) No dia 1 de Julho de 2020, pelas 11h, AA, BB, CC e DD, enquanto vice-presidente, tesoureiro, membro do conselho fiscal e presidente da mesa da assembleia geral, respectivamente, deslocaram-se ao imóvel locado e, na presença de EE e FF, como testemunhas, ordenaram a GG, identificado como encarregado da obra, a suspensão dos trabalhos em curso no local.

5) Entretanto chegou ao local o gerente da requerida, a quem comunicaram também a ordem de suspensão dos trabalhos em curso.

6) A requerida pretende realizar obras no imóvel locado que têm em vista modernizar o local onde funciona o estabelecimento que explora, o que passaria, entre outros trabalhos, por pintar paredes e tectos, alterar a iluminação e instalação eléctrica, substituir as louças das casas de banho, substituir o balcão do estabelecimento, alterar o pavimento e requalificar os equipamentos de ventilação e aquecimento, ventilação e ar condicionado.

7) Na data referida em 4), encontravam-se no local operários a realizar trabalhos.

8) Encontrava-se demolida a parede divisória da casa de banho destinada a pessoas com deficiência motora e a zona da entrada para a cozinha.

9) Está prevista a construção de uma nova parede em tijolo para substituir a referida em 8), diminuindo a área daquela casa de banho.

10) Foi retirado o revestimento do tecto.

11) Ficaram à vista fios eléctricos, tubos de exaustão e canalização.

12) Foi retirado o revestimento da parede da sala de refeições na zona do retro balcão e das paredes das casas de banho.

13) Foi removido o revestimento do balcão.

14) Foram removidas as louças das casas de banho.

15) Foram removidas as portas.

16) A requerida iniciou a obra sem ter obtido autorização da requerente para a sua realização.

17) O imóvel identificado em 1) está inserido no conjunto de interesse público constituído pela .........., ......... e ........, situadas no concelho e distrito ….. .

18) À data em que foi iniciada a obra, a requerida não tinha formulado e obtido parecer favorável da Direção Geral da Cultura do Norte/Direção Geral do Património Cultural para a realização dos trabalhos em curso.



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E foi considerado indiciariamente não provado que:

a.- Foram demolidas outras paredes para além da referida em 8).

b.- Foram abertos vãos.

c.- À data referida em 4) tinha sido retirado o revestimento do chão.


B) Fundamentação de direito 

A questão colocada e que este tribunal deve decidir, nos termos dos artigos 663º nº 2, 608º nº 2, 635º nº 4 e 639º nºs 1 e 2 do Código de Processo Civil, consiste em saber se a requerente, agora recorrente, invoca correctamente, como fundamento específico de recurso, o artigo 629º, nº 2, alínea d) do Código de Processo Civil.

O nº 2 do artigo 370º do Código de Processo Civil, preceitua que, das decisões proferidas nos procedimentos cautelares, incluindo a que determine a inversão do contencioso, não cabe recurso para o Supremo Tribunal de Justiça, sem prejuízo dos casos em que o recurso é sempre admissível.


Os casos em que o recurso é sempre admissível encontram-se no artigo 629º, nº 2 do Código de Processo Civil:

Independentemente do valor da causa e da sucumbência, é sempre admissível recurso:

d) Do acórdão da Relação que esteja em contradição com outro, dessa ou de diferente Relação, no domínio da mesma legislação e sobre a mesma questão fundamental de direito, e do qual não caiba recurso ordinário por motivo estranho à alçada do tribunal, salvo se tiver sido proferido acórdão de uniformização de jurisprudência com ele conforme”.


Ora, aquando da apresentação das suas alegações, em 28.05.2021 (fls 212), a recorrente no final do seu requerimento (fls 213) referiu que juntou “cópia dos dois Acórdãos fundamento ( artº 637º nº 2 do Código de Processo Civil), protestando juntar certidões com a menção dos respectivos trânsito em julgado,  assim que emitidas”.

Efectivamente, preceitua o nº 2 do artigo 637º o seguinte:

“2 - O requerimento de interposição do recurso contém obrigatoriamente a alegação do recorrente, em cujas conclusões deve ser indicado o fundamento específico da recorribilidade; quando este se traduza na invocação de um conflito jurisprudencial que se pretende ver resolvido, o recorrente junta obrigatoriamente, sob pena de imediata rejeição, cópia, ainda que não certificada, do acórdão fundamento”.


Em anotação a este preceito, António Geraldes[1] referiu que é necessário ainda que se junte cópia, ainda que não certificada, do acórdão-fundamento transitado em julgado, e ainda que o mesmo ónus deve ser cumprido nos recursos de revistas a que se alude nos arts. 629º nº 2 alª d) e 671º nº 2 ou no recurso de revista excepcional do artº 672º nº 1 alª c).

E continua o mesmo autor, em anotação ao artigo 672º que o recorrente deve enunciar nas alegações de recurso os aspectos de identidade que estão da génese da interposição excepcional da revista, apresentando cópia, ainda que não certificada, do acórdão-fundamento, nos termos e para efeitos do disposto nos arts. 637º nº 2 e 641º. Embora a lei não exija a certidão de tal acórdão, é indispensável a demonstração do respectivo trânsito em julgado, requisito formal demonstrativo do seu carácter definitivo.

Mais refere que não é tolerável a apresentação de diversos arestos, deixando para o STJ o ónus de proceder à sua destrinça[2].


No caso concreto, apesar da recorrente ter apresentado dois acórdãos-fundamento, referiu que o acórdão fundamento era o da Relação de Guimarães de 18.12.2017, proferido no processo 161/17.0T8MDL.G1 (Conclusões III e XVIII) e de que juntou cópia retirada da plataforma digital www.dgsi.pt/jstj, conforme consta de fls 224 vº a 241 vº).


Mais tarde, em 08.07.2021, acabou por juntar certidão do referido acórdão de 18.12.2017, com nota de trânsito em julgado.


Posteriormente, em 12.07.2021, juntou também certidão do acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 07.06.2011, transitado em julgado, proferido no âmbito do processo nº 906/2001.C1.S2.


Pese embora tenha sido essa a opção da recorrente, ao longo das alegações  pretendeu temperar a discussão jurídica com argumentos contidos no acórdão do Acórdão do STJ de 07.06.2011, proferido no processo nº 906/2001.C1.S2 (Conclusões VI, VIII e XXIII).

O que pressupõe a aplicação do disposto na invocada alínea d) do nº 1 do artigo 629º do CPC não é a contradição entre o acórdão da Relação com outro acórdão do Supremo, mas com outro, dessa ou de diferente Relação.


O que se pretende é consagrar um mecanismo susceptível de permitir a resolução de conflitos jurisprudenciais que essencialmente se colocam ao nível das Relações.


Sem termos o ónus de proceder à sua destrinça, como acabámos de realçar no pensamento de António Geraldes, face à posição assumida pela recorrente, não há dúvida que o acórdão invocado como acórdão-fundamento é o da Relação de Guimarães de 18.12.2017, acima referido.


Lendo o acórdão recorrido e o acórdão da Relação de Guimarães de 18.12.2017, invocado como acórdão fundamento, podemos afirmar com a necessária segurança que não existe o requisito da identidade das questões de facto e das normas jurídicas subjacentes ao acórdão recorrido e ao acórdão da Relação de Guimarães.


O acórdão recorrido considerou que não estamos “perante uma obra nova susceptível de embargo: a requerida apenas pretende diminuir a área da casa de banho – sendo que foi ela quem procedeu à realização das obras de adaptação, consoante ponto 2). Ou seja, embora havendo alguma inovação, não estamos perante uma obra relevante. Logo, uma obra nova para efeitos do disposto no art.397º, nº1, do CPC.

Aliás, parece até estarmos, ainda, perante uma obra de adaptação do arrendado para fim a que se destina – cfr. ponto 2. Donde, mesmo a entender-se ser uma obra nova, sempre estaria autorizada.

Em suma, estamos perante obras de reconstrução – e não uma obra nova; e mesmo que se considere que a obra da qual resulta a diminuição da casa de banho, referida em 8), constitui obra nova, a mesma, por ser uma obra de adaptação, encontra-se autorizada”.


No acórdão da Relação de Guimarães (acórdão fundamento) decidiu-se que “a abertura de uma vala para construção de um muro configura uma obra, na medida em que implica uma modificação substancial do prédio dos requerentes, configurando, por isso, execução de obra nova.”


Além do mais, não existe a mínima correspondência factual entre as situações inerentes aos acórdãos analisados.


No caso do acórdão recorrido, trata-se de obras efectuadas pela requerida, arrendatária do estabelecimento de restauração denominado “Via Garrett”, com vista a modernizar o local onde funciona o estabelecimento que explora, o que passaria, entre outros trabalhos, por pintar paredes e tectos, alterar a iluminação e instalação eléctrica, substituir as louças das casas de banho, substituir o balcão do estabelecimento, alterar o pavimento e requalificar os equipamentos de ventilação e aquecimento, ventilação e ar condicionado – Factos provados sob os nºs 3) e 6).


No acórdão da Relação de Guimarães, como já foi dito, está apenas em causa a construção de uma vala que atravessa o prédio do requerente marido.

Para uma melhor compreensão, deixamos aqui transcritos os seguintes factos:

10.º O requerente marido, no passado dia 7 de abril de 2017, cerca das 8:00 horas, quando se deslocou ao seu prédio, constatou que o requerido entrou, por arrombamento, no prédio dos requerentes, tendo para o efeito fraturado a fechadura do portão da entrada, portão que mais tarde chegou, até, a retirar do local.

11.º O que fez, sem o consentimento nem autorização dos requerentes, e motivou por estes, a chamada da Polícia de Segurança Pública ao prédio.

12.º Nesse mesmo dia, fraturou também as fechaduras da edificação existente no prédio e substituiu-as por outras.

13.º Ocupou a entrada do prédio com o recurso a um veículo automóvel, impedindo com isso o acesso dos requerentes ao seu prédio e, possibilitando a entrada e saída de máquinas e camiões. (cfr. doc. 5, junto com o requerimento inicial que ora se junta e aqui se dá por integralmente reproduzido).

14.º E ordenou, o requerido, a pessoa que contratou que procedesse à abertura de uma vala, o que foi executado nesse mesmo dia, com o auxílio de uma escavadora giratória. (cfr. doc. 6, junto com o requerimento inicial que ora se junta e aqui se dá por integralmente reproduzido).

15.º Vala que atravessa o prédio em toda a sua extensão, no sentido nascente /poente e vice-versa, com o comprimento de 57,50 metros, 1,35 metros de largura e profundidade de cerca de 50 centímetros, ocupando a área de 77,625 m2 do prédio. (doc. 7 a 9, que ora se juntam e aqui se dão por integralmente reproduzidos).

(…).

19.º Contudo, o requerido continuou a obra, tendo já descarregado no local blocos de cimento e outros materiais destinados a edificar um muro em toda a extensão da vala, como aquele deixou dito.

20.º A obra encontra-se inacabada, mantendo-se no local materiais e máquinas, destinadas à sua continuação, pretendendo os requerentes, com a presente providência, evitar também o prejuízo que a continuação da obra lhes causará.

21.º Posteriormente à realização do embargo extrajudicial, foi edificado um muro em toda a sua extensão da vala referida em 18.º da PI”.


Ora, não havendo identidade das situações de facto analisadas nos arestos em confronto, não se pode concluir pela alegada contradição, que só se verifica quando a uma idêntica situação de facto, subsumível às mesmas normas jurídicas, correspondem decisões, entre si, incompatíveis.

O Supremo Tribunal de Justiça tem exigido, constantemente, que a questão, sobre que a contradição recai, seja uma questão fundamental ou essencial para a decisão do caso[3]:

A contradição de julgados relevante para a aplicação do art. 629.º, n.º 2, alínea d), do Código de Processo Civil […]”, diz-se, p. ex., em acórdão de 2 de Maio de 2019, “tem de referir-se a questões que se tenham revelado essenciais para a sorte do litígio em ambos os processos, desinteressando para o efeito questões marginais ou que respeitem a argumentos sem valor determinante para a decisão emitida”.

Deste modo, improcedem as conclusões das alegações do recorrente.



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Todavia, quanto ao acórdão do STJ de 07/06/2011, sempre se dirá o seguinte:

Já deixámos decidido que o acórdão fundamento é o da Relação de Guimarães, o que afasta a tese do recorrente que, aqui e ali, sem acerto, o foi considerando como acórdão fundamento.


Em abono desta tese, basta atentar nos pontos VI a IX do seu sumário:

“VI - Não são quaisquer obras que fundamentarão a resolução do contrato de arrendamento, mas apenas aquelas que, sendo exteriores, desfiguram o locado; sendo interiores, conduzam a uma transformação profunda da morfologia interior.

VII - O fundamento da resolução referido no art. 64.º, al. d), do RAU, está relacionado com a obrigação que cabe ao arrendatário de fazer do prédio uma utilização prudente (art. 1038.º, al. d), do CC). Só as alterações de monta, importantes, relevantes é que podem levar ao radical efeito da resolução do contrato de arrendamento. Não basta, assim, uma simples alteração, exige-se uma modificação profunda, fundamental, de forma a que a “essência” do prédio seja atingida, “desfigurando-o” na sua estrutura externa ou na sua divisão interna.

VIII - Se os réus, sem autorização do senhorio, ergueram no locado duas paredes, separando divisões e aumentando o número de espaços do estabelecimento, tendo ainda suprimido uma janela, obras realizadas com carácter definitivo e permanente, essas obras alteraram substancialmente, ou de forma acentuada, a divisão interna do locado, desfigurando-o e descaracterizando-o claramente.

IX - Nas obras necessárias para o fim a que o local se destina apenas poderão ser integradas as adequadas ao funcionamento do estabelecimento, em termos de conservação, salubridade e conforto dos utentes, mas não as que determinam o aumento de divisões, tendo em vista uma maior rentabilização”.


Da simples leitura desses números do sumário, conjugada com o conjunto dos factos provados, podemos afirmar com a necessária segurança que, tal como o acórdão fundamento (o da Relação de Guimarães) não existe o requisito da identidade das questões de facto e das normas jurídicas subjacentes ao acórdão recorrido e ao acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, mal invocado como acórdão fundamento.


SUMÁRIO

- Para os efeitos do disposto na alínea d) do nº 2 do artigo 629º do Código de Processo Civil, não havendo identidade das situações de facto analisadas nos arestos em confronto, não se pode concluir pela alegada contradição, que só se verifica quando a uma idêntica situação de facto, subsumível às mesmas normas jurídicas, correspondem decisões, entre si, incompatíveis.

- O Supremo Tribunal de Justiça tem exigido, constantemente, que a questão, sobre que a contradição recai, seja uma questão fundamental ou essencial para a decisão do caso:

“A contradição de julgados relevante para a aplicação do art. 629.º, n.º 2, alínea d), do Código de Processo Civil […]”, diz-se, p. ex., em acórdão de 2 de Maio de 2019, “tem de referir-se a questões que se tenham revelado essenciais para a sorte do litígio em ambos os processos, desinteressando para o efeito questões marginais ou que respeitem a argumentos sem valor determinante para a decisão emitida”.



III - DECISÃO

Atento o exposto, nega-se provimento à revista e confirma-se o acórdão recorrido.

Custas pelo recorrente.


Lisboa, 14 de Julho de 2021


Ilídio Sacarrão Martins Martins (Relator) (Nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 15º-A do Decreto-Lei nº 20/20, de 01 de Maio, atesto que, não obstante a falta de assinatura, os Senhores Juízes Conselheiros Adjuntos deram o correspondente voto de conformidade).

Nuno Manuel Pinto Oliveira

Ferreira Lopes  

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[1] Recursos no Novo Código de Processo Civil, 5ª Edição, Almedina, 2018, pág. 135.
[2] Ob cit pág 386.
[3] Cf. designadamente os acórdãos do STJ de 7 de Março de 2017 — processo n.º 1512/07.0TBLSD.P2.S1 — e de 2 de Maio de 2019 — processo n.º 1650/06.7TBLLE.E2.S1, citados no recente acórdão desta Secção de 30.06.2021, Procº . 22121/20.3T8LSB.L1.S1