Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
02A1987
Nº Convencional: JSTJ000
Relator: PINTO MONTEIRO
Descritores: RESPONSABILIDADE CIVIL DE ENTES PÚBLICOS
GESTÃO PÚBLICA
GESTÃO PRIVADA
RESPONSABILIDADE EXTRA CONTRATUAL
Nº do Documento: SJ200305060019871
Data do Acordão: 05/06/2003
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: T REL COIMBRA
Processo no Tribunal Recurso: 1548/01
Data: 10/08/2002
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA.
Sumário :
Decisão Texto Integral: Acordam, em conferência, no Supremo Tribunal de Justiça:

I - "A", intentou acção com processo sumário contra B, pedindo que a ré seja condenada a pagar-lhe a quantia de 2.272.385$00 e ainda importâncias a vencer, por prejuízos sofridos na sua viatura.

Alegou que no dia 04-12-97 conduzia o seu veículo automóvel quando, devido ao gelo que se formou na via pública e que teve origem na rotura de um esgoto público que derramava para o pavimento, perdeu o controle do veículo e foi embater num muro.
O Município da Guarda, que é o responsável pelos prejuízos, havia transferido tal responsabilidade para a Companhia ré.
Contestando, a ré sustentou que desconhece as circunstâncias em que o acidente ocorreu e, por outro lado, impugnou os valores pretendidos pelo autor.

O processo prosseguiu termos, tendo tido lugar audiência de discussão e julgamento, sendo proferida sentença que decidiu pela improcedência da acção.
Apelou o autor.
O Tribunal da relação revogou a decisão e concedeu provimento parcial ao recurso, condenando a "C" (sucessora da ré).
Inconformada, recorre a ré para este Tribunal.

Formula as seguintes conclusões:
- O autor não logrou provar culpa efectiva da Câmara Municipal na produção do acidente;
- Em concreto e em face dos factos dados como provados torna-se necessário apreciar se em concreto existirá qualquer facto impeditivo ou modificativo que inverta o ónus da prova, conduzindo, na ausência de culpa efectiva, à culpa presumida da Câmara Municipal da Guarda determinando um juízo de censurabilidade, em suma a sua condenação;
- Afastada que foi a existência de qualquer culpa efectiva daquela instituição pública, a discórdia da alegante manifesta-se por ter havido recurso à culpa presumida da Câmara Municipal da Guarda para condenar, em última análise, a companhia seguradora, por aplicação do artigo 493º nº 1 do CC. Contudo poderá operar a inversão?;
- Não se sabe efectivamente qual a origem do derrame da água;
- Nem mesmo os Bombeiros que intervieram na ocorrência;
- Não sabendo qual a origem da água, podemos, com segurança, dizer que a água podia provir de uma conduta quer pública, quer privada;
- Neste caso, parece-nos que, a não actuação ou omissão da Câmara Municipal não pode ser censurada;
- Se a água proviesse efectivamente de uma conduta pública, não ficou provado que a Câmara Municipal fosse conhecedora da situação;
- Diga-se apenas que os derrames de água para a via pública são sempre participados à Câmara ou aos Bombeiros, quando a abundância do fluxo torna insustentável o trânsito e de alguma forma incomoda os moradores e comerciantes e representa um grave perigo para os utilizadores da via pública;
- Ora, em momento algum se prova que aquele derrame, pelo caudal de água que debitava para a via, afectava a comodidade do trânsito;
- Os Bombeiros apenas intervieram no dia e já depois do acidente. Nem estes, nem a GNR ou a PSP, nem mesmo os Munícipes participaram a existência daquela água no local, certamente porque não era de molde a oferecer perigo aos utilizadores da via;
- É evidente que a Câmara Municipal deveria ter intervindo no local, mas desde que soubesse da existência do derramamento para a via pública. Nada disto resultou provado;
- Só mediante prova afirmativa deste facto, se poderia operar a inversão do ónus da prova, ou seja, a Câmara Municipal ser responsabilizada por não se ter provado que os danos se teriam produzido independentemente de culpa sua ou não ter provado que actuou no cumprimento dos seus deveres de vigilância.

Contra-alegando, o recorrido defende a manutenção do decidido.
Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.

II - Vem dado como provado:
O veículo ligeiro de passageiros de marca Suzuki, modelo Swift 1.3 GTI, de matrícula AS-... é pertença do autor A;
No dia 04.12.97, pelas 22h, o F conduzia o referido veículo na Rua António Sérgio, na cidade da Guarda, no sentido Norte-Sul;
Compete ao Município da Guarda providenciar pela manutenção da conduta de esgoto da Rua António Sérgio, junto à "D";
Esta conduta situa-se na principal rua de acesso ao centro da cidade;
O veículo de matrícula AS-... tem 53.660 Km;
E foi construído em 1992;
O Município da Guarda transferiu para a ré "B" a responsabilidade civil por danos causados a terceiros titulada pela apólice nº 06367;
Ao chegar junto à casa "D", onde a Rua António Sérgio descreve uma curva para a esquerda, atento o sentido de marcha prosseguido pelo veículo do autor, este, devido ao gelo que se encontrava naquele local, perdeu o controlo do veículo e foi colidir com um muro;
O gelo que se encontrava e se formou naquele local teve origem em água que estava derramada na estrada, conjugada com a temperatura negativa que no momento se fazia sentir no local;
Outros veículos que ali circulavam àquela mesma hora, derraparam e entraram em despiste;
Já em dias anteriores existia água derramada na estrada;
Naquele local e época do ano, sobretudo de noite, é provável que a temperatura do ar desça abaixo dos zero graus centígrados;
O embate causou danos no veículo do autor que em 15.12.97 foram orçados de 1.051.265$00;
Antes do embate, o veículo AS-..., encontrava-se em perfeitas condições de manutenção, salvaguardando o uso normal que o mesmo possuía;
E foi avaliado pelo concessionário da marca em 1.200.000$00;
O valor venal do veículo AS-... é de 700.000$00;
Aos salvados do veículo de matrícula AS-..., foi atribuído o valor de 150.000$00;
Em meados de Dezembro o autor participou à ré o sinistro e indicou-lhe onde podia vistoriar o veículo na oficina de E , nas Lameirinhas, Guarda;
Só em finais do mês de Março de 1998, a ré procedeu à vistoria do veículo de matrícula AS-...;
O veículo AS-... encontra-se na referida oficina a aguardar reparação;
O autor encontra-se privado do uso do veículo desde 04.12.97 até 18.06.98;
A oficina de E reclama do autor o pagamento de parqueamento e guarda do veículo de matrícula AS-... a quantia de 1.000$00 diários, enquanto o mesmo ali permanecer;
O autor pagou à oficina de E a quantia de 133.380$00, referente ao parqueamento e guarda do veículo de matrícula AS-..., no período compreendido entre 04.12.97 e 06.04.98;
O autor pagou à oficina de E a quantia de 14.040$00 referente a serviço de reboque e a quantia de 11.700$00 referente aos custos com a realização do orçamento.

III - O autor, devido ao gelo que se encontrava na via, perdeu o controlo do veículo automóvel que conduzia e foi colidir com um muro, sofrendo danos.
Imputa a responsabilidade do acidente ao Município da Guarda por, segundo defende, o gelo que se formou ter tido origem na rotura de um esgoto público, competindo àquele Município providenciar pela manutenção dessa conduta de esgoto.
O Tribunal da Relação (revogando a decisão da 1ª instância) condenou a ré a pagar os prejuízos sofridos pelo autor.
Daí o recurso.
A questão de fundo a resolver consiste em saber se o Município da Guarda é responsável pelos danos sofridos pelo autor, já que a Companhia de Seguros responderá nos termos da apólice.
Importa, antes de mais, delimitar o âmbito do recurso.
O Estado e demais pessoas colectivas públicas estão obrigados a indemnizar os eventuais lesados quer por danos causados no exercício de uma actividade de gestão pública quer por prejuízos causados por uma actividade de gestão privada.
São, contudo, diferentes as vias judiciais a que se deve recorrer, como é diferente o regime jurídico aplicável.
Resultando os danos de uma actividade de gestão pública os pedidos de indemnização feitos à Administração são apreciados pelos Tribunais Administrativos e o regime de responsabilidade é o previsto no Dec-Lei nº 48051 de 21.11.1967.
Se os danos resultarem de uma actividade de gestão privada os pedidos feitos contra o Estado ou autarquias locais deverão ser formulados nos Tribunais Judiciais e o regime de responsabilidade é o constante do Código Civil, designadamente dos artigos 501º e 500º.
O instituto da responsabilidade civil não se limita, no âmbito do direito público, a satisfazer as necessidades de reparação e prevenção, à semelhança do que acontece no direito civil. A responsabilidade estadual é, ela mesma, instrumento de legalidade, não só porque assegura a conformidade ao direito dos actos estaduais, como a indemnização por sacrifícios impostos cumpre a outra função do Estado, que é a realização da justiça material.
O sistema da responsabilidade por actos de gestão pública é caracterizado por uma bipartição fundamental entre responsabilidade subjectiva - por factos ilícitos e culposos - e por uma responsabilidade objectiva - actos lícitos e pelo risco. Em qualquer dos casos a culpa e a ilicitude continuam a desempenhar tarefas específicas e autónomas no âmbito da responsabilidade - Prof. Gomes Canotilho - "O Problema da Responsabilidade do Estado por Actos Lícitos", págs. 13/14 e 109/111.
Em concreto, está-se perante actividade de gestão privada, consequentemente regida pelo direito privado. Em causa estará aquilo que, pelo menos se pode designar como acto neutro em termos de distinção entre actos de gestão pública e de gestão privada, sendo, por isso, competentes os Tribunais Judiciais - Em certo sentido o Ac. do STJ, de 27.09.2001, Agravo nº 2516/01, 6ª Secção, "Sumários" 2001, págs. 257/258.
Considerações estas que se tornam necessárias, já que nos presentes autos nem sempre se fez a distinção entre o regime aplicável, quando é certo que tratando-se de actos de gestão privada, correndo por isso nos Tribunais Judiciais, é aplicável o Código Civil.
A esta luz vejamos o cerne da problemática suscitada.
A tese do autor, ora recorrido, é a de que os danos que sofreu no seu veículo automóvel se ficaram a dever ao facto de existir gelo na estrada, que se formou devido à água derramada e às baixas temperaturas.
A água em causa resultaria da rotura de um esgoto público.
Competia assim à Câmara (Serviços Municipalizados) a manutenção da conduta e a limpeza da via.
A responsabilidade do Município (e consequentemente da Seguradora) adviria de um acto omissivo: a Câmara não providenciou pela limpeza da via, quando tal obrigação impendia sobre a mesma.
Tal como a questão é colocada está-se no campo da responsabilidade civil extracontratual, ou seja, da que resulta da violação de um dever geral de abstenção contraposto a um direito absoluto (direito de personalidade, direito real). Neste tipo de responsabilidade é ao lesado que incumbe provar a culpa do autor da lesão, salvo havendo presunção legal de culpa, sendo esta apreciada, na falta de outro critério legal, pela diligência de um bom pai de família em face das circunstâncias de cada caso (artigo 487º do C. Civil).
Agir com culpa significa actuar por forma a que a conduta do agente seja pessoalmente censurável ou reprovável e o juízo de censura ou de reprovação dessa conduta só se pode apreciar no reconhecimento, perante as circunstâncias concretas do caso, de que o obrigado não só devia, como podia ter agido de outro modo - Prof. Antunes Varela - "Das Obrigações em Geral" II, 7ª ed., pág. 97.
Ora, constata-se, antes de mais, que o autor não conseguiu provar aquilo que, a propósito, alegou.
No quesito 2º perguntava-se: "O gelo que se formou no referido local teve origem numa rotura dum esgoto público que derramava para o pavimento daquela via, conjugado com a temperatura negativa que no momento se fazia sentir no local?
Teve a seguinte resposta: "Provado apenas que o gelo que se encontrava e se formou no referido local teve origem em água que estava derramada na estrada, conjugado com a temperatura negativa que no momento se fazia sentir no local".
Significa a resposta, no que é essencial, que não se provou que a água em causa tivesse origem numa rotura de um esgoto público.
Os quesitos 5º, 7º e 8º, directa ou indirectamente referentes à mesma questão, tiveram resposta de "Não provado".
O já citado artigo 501º do C. Civil determina que o Estado e demais pessoas colectivas públicas quando haja danos causados a terceiros pelos seus órgãos, agentes ou representantes no exercício de actividades de gestão privada, respondem civilmente por esses danos nos termos em que os comitentes respondem pelos danos causados pelos seus comissários.
O comitente responde, independentemente de culpa, pelos danos que o comissário causar, desde que sobre este recaia também a obrigação de indemnizar (artigo 500º nº 1 do CC).
Ora, afigura-se-nos evidente que face à factualidade trazida até este Tribunal (e que não é possível sindicar) não existe qualquer obrigação de indemnizar por parte do comissário, não existindo também, necessariamente, por parte do comitente, nem a título de responsabilidade subjectiva, fundada culpa, nem a título de responsabilidade objectiva ou pelo risco.
São conhecidos os pressupostos da responsabilidade civil: a existência de um facto voluntário; ilicitude; imputação do facto ao lesante; culpa; dano; nexo de causalidade entre o facto e o dano (artigo 483º nº 1 do CC).
Só existe a obrigação de indemnizar independentemente de culpa nos caso especificados na lei (artigo 483º nº 2 do CC).
No caso em análise os pressupostos só ocorreriam se a água derramada proviesse do esgoto público. Então, impenderia sobre a Câmara a obrigação de tomar as medidas adequadas e evitar a formação de gelo, com o perigo inerente. Não tomando essas medidas, os órgãos, agentes ou representantes do Município teriam actuado com culpa, respondendo a Câmara a título de responsabilidade objectiva, nos termos já referidos.
Não se apurando qual a origem da água derramada, nem se podendo concluir dos factos provados que sobre os Serviços Municipalizados recaísse a obrigação de conhecer a existência do gelo no pavimento e a obrigação de o remover, não é imputável o acidente ocorrido à actuação da autarquia ou dos seus agentes.
Situando-se a questão no campo da responsabilidade civil extracontratual por facto ilícito, como já está dito, e sendo a actuação circunscrita a actos de gestão privada, não existe qualquer facto voluntário imputável à Câmara Municipal que arraste a obrigação de indemnizar.
Está assim correcta a decisão da 1ª instância, impondo-se revogar o acórdão recorrido.
Pelo exposto, concede-se a revista.
Custas pelo recorrido.

Lisboa, 6 de Maio de 2003
Pinto Monteiro
Azevedo Ramos
Silva Salazar