Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
3519/16.8T8LLE.E1.S1
Nº Convencional: 3.ª SECÇÃO
Relator: ANA BARATA BRITO
Descritores: RECURSO DE ACÓRDÃO DA RELAÇÃO
RECONHECIMENTO
CONFISCO
EXECUÇÃO DE DECISÃO ESTRANGEIRA
RECURSO PENAL
LACUNA
APLICAÇÃO SUBSIDIÁRIA DO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL
REVISTA EXCECIONAL
PRINCÍPIO DA SUFICIÊNCIA DO PROCESSO PENAL
REJEIÇÃO DE RECURSO
Data do Acordão: 01/12/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: NEGADO PROVIMENTO
Sumário :
I - O regime processual dos recursos penais foi autonomizado no CPP de 1987, que passou a regular de modo auto-suficiente, taxativo, exaustivo e completo os casos de recurso para o Supremo Tribunal de Justiça: o art. 432.º do CPP delimita o recurso ordinário; os art.os 437.º, 446.º e 449.º do CPP, contemplam os recursos extraordinários .

II - A revista excepcional não tem aplicação nos processos penais, relativamente a matéria penal, pois só em caso de lacuna do regime processual penal poderia o intérprete socorrer-se de normas processuais civis, situação que não ocorre aqui.

Decisão Texto Integral:

Acordam na 3.ª Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça:



1. Relatório

1.1. No Processo n.º 3519/16...., do Tribunal Judicial da Comarca ..., Juízo Local Criminal ... - Juiz ..., foi proferida sentença em que se decidiu reconhecer a decisão de confisco da propriedade sita em ..., Quinta ..., descrita na Conservatória do Registo Predial de ... sob o n° ...15 e inscrita na respectiva matriz com o artigo ...62, proferida e transitada em julgado em 14 de Novembro de 2014, contra AA, no Processo com a ref ..., pelo Tribunal Penal ....

Inconformado, o requerido interpôs recurso da sentença para o Tribunal da Relação ..., que, ao que ora interessa,  proferiu acórdão a “negar provimento ao recurso, mantendo a decisão recorrida no sentido de reconhecer a decisão de confisco da propriedade sita em ..., Quinta ..., ..., descrita na Conservatória do Registo Predial de ... sob o n° ...15 e inscrita na respetiva matriz com o artigo ...62, proferida e transitada em julgado em 14 de novembro de 2014, contra AA, no Processo com a ref.ª ..., pelo Tribunal Penal ....”

Inconformado também com o decidido em recurso pela Relação ..., recorre de novo AA, agora para o Supremo Tribunal de Justiça, concluindo:

“Secção I da Motivação- Da Admissibildade do Recurso Secção I-A da Motivação

I. O procedimento de emissão e execução de decisões de perda de instrumentos, produtos e vantagens do crime, entre Estados-Membros da UE, rege-se pelo disposto na Lei n.º 88/2009, de 31.08. A impugnação de decisões de reconhecimento emitidas no seu âmbito rege-se pelo disposto no artigo 17.º da mesma Lei, que prevê o direito ao recurso.

II. O n.º 2 daquele artigo 17.º determina que o recuso se rege pelas regras gerais do direito processual penal e que tem efeito suspensivo.

III. A decisão de reconhecimento em causa nestes autos teve origem numa decisão de perda, de natureza civil, ainda que associada a um processo penal, pelo que deverá aplicar-se, em matéria de recursos, a disciplina do C.P.C., por remissão operada pelo artigo 400.º, n.º 2 e 3 do C.P.P. ex vi art. 17.º, n.º 2 da Lei n.º 88/2009, de 31.08.

IV. O reconhecimento e execução de decisão ao abrigo da Lei 88/2009, de 31.08, não é automático pois exige a apreciação, em primeira instância, da verificação dos fundamentos de recusa de reconhecimento e execução consagrados no artigo 13.º da referida Lei. Inexiste qualquer motivo para tratar diferentemente o regime processual do recurso desta decisão face ao recurso da decisão proferida em Portugal.

V. Em matéria de reconhecimento e execução de decisão de perda de bens, é o próprio artigo 510.º, do CPP, que determina a aplicação à execução de bens em processo penal do disposto no Código de Processo Civil.

VI. A decisão de reconhecimento de uma decisão de confisco estrangeira tem idêntico efeito ao da prolação de uma decisão de confisco ou perda proferida em Portugal, altamente restritivo do direito de propriedade constitucionalmente consagrado no art. 62.º da Constituição da República Portuguesa, pois opera em Portugal uma supressão deste direito, com base numa decisão proveniente de outra jurisdição.

VII. A recorribilidade desta decisão ser assegurada nos mesmos termos da recorribilidade de decisões de confisco proferidas em território nacional, sendo-lhe aplicável a regra do n.º 2 e 3 do artigo 400.º do C.P.P., devendo o presente Recurso ser admitido por aplicação das regras do Processo Civil.

VIII. Suscita-se a inconstitucionalidade, por violação do artigo 20.º, n.º 1 e 4, 32.º, n.º 1, e 62.º, do CRP, da norma extraída dos artigos 399.º, 400.º, n.º 1, 2 e 3, 510.º e do Código de Processo Penal, ex vi arts. 17.º, n.º 1 e 2, e 21.º da Lei 88/2009, de 31.08, segundo a qual à recorribilidade da decisão de reconhecimento e execução de uma decisão de confisco estrangeira não são aplicáveis as normas reguladoras dos recursos em processo civil.

Secção I-B da Motivação

IX. O Requerido invocou a violação do art. 13.º, n.º 2, al. c) da Lei n.º 88/2009, de 31 de Agosto, que prevê que o tribunal português pode recusar o reconhecimento e a execução de decisão de perda quando tenham decorrido os prazos de prescrição do procedimento criminal ou da pena, de acordo com a lei portuguesa, desde que os tribunais portugueses sejam competentes para o conhecimento dos factos a que se refere a decisão

X. Tivesse sido o imóvel sito em Portugal obtido com dinheiro doado a terceiro, resultado da actividade criminosa do Recorrente (como o Tribunal recorrido considerou provado), os tribunais portugueses seriam competentes para conhecer os factos, pois que ocorreram em Portugal, por aplicação dos critérios do art. 4.º alínea a), e 7.º, n.º 1, ambos do Código Penal.

XI. A matéria em apreço neste segmento refere-se à competência internacional. O recurso das decisões que versem sobre competência internacional é, em geral, de acordo com o disposto no artigo 629.º, n.º 2, al. a) do Código de Processo Civil, sempre admissível.

XII. Sendo admissível Recurso para o Supremo Tribunal de Justiça, nos termos do artigo 671.º, n.º 3, pois, ainda que se considere ter havido confirmação pelo Tribunal da Relação ... da decisão de reconhecimento do confisco emitida pela 1ª instância, haverá Recurso nos casos em que o Recurso é sempre admissível, ou seja, nos casos previstos na alínea a) do n.º 2 do artigo 629, em particular nos casos em que na decisão é discutida a competência internacional

XIII. Suscita-se a inconstitucionalidade, por violação do artigo 20.º, n.º 1 e 4, 32.º, n.º 1, e 62.º, do CRP, da norma extraída dos artigos 399.º, 400.º, n.º 1, 2 e 3, 510.º e do Código de Processo Penal, ex vi arts. 17.º, n.º 1 e 2, e 21.º da Lei 88/2009, de 31.08, segundo a qual à recorribilidade da decisão de reconhecimento e execução de uma decisão de confisco estrangeira não são aplicáveis as normas reguladoras dos recursos em processo civil, nomeadamente o fundamento de recurso para o Supremo Tribunal de Justiça previsto na alínea a) do n.º 2 artigo 629.º, do CPC, na parte em que se refere à matéria da competência internacional.

XIV. Suscita-se a inconstitucionalidade, por violação do artigo 20.º, n.º 1 e 4, 32.º, n.º 1, e 62.º, do CRP, da norma extraída dos artigos 13.º, n.º 2, al. c), da Lei 88/2009, de 31.08, 399.º, 400.º, n.º 1, 2 e 3, 510.º e do Código de Processo Penal, ex vi arts. 17.º, n.º 1 e 2, e 21.º da Lei 88/2009, de 31.08, segundo a qual à recorribilidade da decisão de reconhecimento e execução de uma decisão de confisco estrangeira que que tenha por objecto decisão sobre a verificação do motivo de recusa de execução previsto na al. c), do n.º 2, do art. 13.º da Lei 88/2009, de 31.08, não são aplicáveis as normas reguladoras dos recursos em processo civil, nomeadamente o fundamento de recurso para o Supremo Tribunal de Justiça previsto na alínea a) do n.º 2 artigo 629.º, do CPC, na parte em que se refere à matéria da competência internacional.

XV. Subsidiariamente – e por mera cautela de patrocínio – se deixa em qualquer caso alegado que, ainda que não se entendesse que a alínea a) do n.º 2 artigo 629.º, na parte em que se refere à matéria da competência internacional, era aplicável por força do artigo 400.º, n.º 2 e 3, do CPP, e do artigo 510.º do CPP, por a admissibilidade do presente recurso não se reger pelas regras dos recursos civis, a disposição em causa sempre seria aplicável directamente em Processo Penal, por via de remissão operada pelo artigo 4.º do CPP, porquanto a regulamentação dos recursos em processo penal (arts. 399.º, 400.º, 427.º, 432.º, 433.º, 437.º, 446.º, 447.º, 449.º) não é exaustiva e não regula explicitamente este fundamento de recurso, admitindo aliás a recorribilidade para o Supremo Tribunal de Justiça “noutros casos previstos na Lei” (art. 433.º, do CPP). E ao recurso da decisão de reconhecimento e execução da decisão de confisco ou perda de bens por força do artigo 17.º, n.º 1 e 2, e 21.º da Lei 88/2009, de 31.08.

XVI. Suscita-se a inconstitucionalidade, por violação do artigo 20.º, n.º 1 e 4, 32.º, n.º 1, e 62.º, do CRP, da norma extraída dos artigos arts. 4.º, 399.º, 400.º, 427.º, 432.º, 433.º, 437.º, 446.º, 447.º, 449.º do Código de Processo Penal, ex vi arts. 17.º, n.º 1 e 2, e 21.º da Lei 88/2009, de 31.08, segundo a qual não é aplicável em processo de decisão de reconhecimento e execução da decisão de confisco ou perda de bens ao abrigo da Lei 88/2009, de 31.08, o fundamento de recurso para o Supremo Tribunal de Justiça previsto na alínea a) do n.º 2 artigo 629.º, do CPC, na parte em que se refere à matéria da competência internacional, directamente por via de remissão operada pelo artigo 4.º do CPP.

XVII. Suscita-se a inconstitucionalidade, por violação do artigo 20.º, n.º 1 e 4, 32.º, n.º 1, e 62.º, do CRP, da norma extraída dos artigos 13.º, n.º 1, al. b), da Lei 88/2009, de 31.08, 4.º, 399.º, 400.º, 427.º, 432.º, 433.º, 437.º, 446.º, 447.º, 449.º do Código de Processo Penal, ex vi arts. 17.º, n.º 1 e 2, e 21.º da Lei 88/2009, de 31.08, segundo a qual à recorribilidade da decisão de reconhecimento e execução de uma decisão de confisco estrangeira que tenha por objecto decisão sobre a verificação do motivo de recusa de execução previsto na al. c), do n.º 2, do art. 13.º da Lei 88/2009, de 31.08, não é aplicável o fundamento de recurso para o Supremo Tribunal de Justiça previsto na alínea a) do n.º 2 artigo 629.º, do CPC, na parte em que se refere à matéria da competência internacional, directamente por via de remissão operada pelo artigo 4.º do CPP.

XVIII. Suscita-se a inconstitucionalidade, por violação do artigo 20.º, n.º 1 e 4, 32.º, n.º 1, e 62.º, do CRP, da norma extraída dos artigos 13.º, n.º 1, al. b), da Lei 88/2009, de 31.08, 4.º, 399.º, 400.º, 427.º, 432.º, 433.º, 437.º, 446.º, 447.º, 449.º do Código de Processo Penal, ex vi arts. 17.º, n.º 1 e 2, e 21.º da Lei 88/2009, de 31.08, segundo a qual à recorribilidade da decisão de reconhecimento e execução de uma decisão de confisco estrangeira que tenha por objecto decisão sobre a verificação do motivo de recusa de execução previsto na al. c), do n.º 2, do art. 13.º da Lei 88/2009, de 31.08, não é aplicável o fundamento de recurso para o Supremo Tribunal de Justiça previsto na alínea a) do n.º 2 artigo 629.º, do CPC, na parte em que se refere à matéria da competência internacional, directamente por via de remissão operada pelo artigo 4.º do CPP.

XIX. O presente Recurso deverá assim ser admitido por versar sobre a questão da competência internacional.

Secção I-C da Motivação

XX. O Requerido alegou ainda a violação do art. 13.º, n.º 1 al. b) da Lei 88/2009, de 31.08., pois, “pelos mesmos factos típicos, o Recorrente foi condenado numa pena de prisão já cumprida, numa sanção de confisco e numa segunda pena de 3 anos de prisão pelo não pagamento do valor atribuído aquele confisco” e ainda em pena acessória de inibição de funções.

XXI. O Recorrente entende que o reconhecimento da decisão de confisco teria de ser recusado, por decorrer claramente das informações constantes da certidão que a execução da decisão de perda é contrária ao princípio do ne bis in idem.

XXII. O princípio do ne bis in idem visa impedir a sobreposição de julgados com o mesmo objecto, tal como a excepção de caso julgado. O Recurso das decisões que versem sobre a ofensa do caso julgado é, de acordo com o disposto no artigo 629.º, n.º 2, al. a), sempre admissível.

XXIII. Por esta razão, é também admissível Recurso para o Supremo Tribunal de Justiça, nos termos do artigo 671.º, n.º 3, pois, ainda que se considere ter havido confirmação pelo Tribunal da Relação ... da decisão de reconhecimento do confisco emitida pela 1ª instância, haverá Recurso para o STJ nos casos em que o Recurso é sempre admissível, ou seja, nos casos previstos no n.º 2 do artigo 629.º do C.P.C., em particular nos casos em que na decisão é discutida a ofensa de caso julgado.

XXIV. Suscita-se a inconstitucionalidade, por violação do artigo 20.º, n.º 1 e 4, 32.º, n.º 1, e 62.º, do CRP, da norma extraída dos artigos 399.º, 400.º, n.º 1, 2 e 3, 510.º e do Código de Processo Penal, ex vi arts. 17.º, n.º 1 e 2, e 21.º da Lei 88/2009, de 31.08, segundo a qual à recorribilidade da decisão de reconhecimento e execução de uma decisão de confisco estrangeira não são aplicáveis as normas reguladoras dos recursos em processo civil, nomeadamente o fundamento de recurso para o Supremo Tribunal de Justiça previsto na alínea a) do n.º 2 artigo 629.º, do CPC, na parte em que se refere à matéria da ofensa de caso julgado.

XXV. Suscita-se a inconstitucionalidade, por violação do artigo 20.º, n.º 1 e 4, 32.º, n.º 1, e 62.º, do CRP, da norma extraída dos artigos 13.º, n.º 1, al. b), da Lei 88/2009, de 31.08, 399.º, 400.º, n.º 1, 2 e 3, 510.º e do Código de Processo Penal, ex vi arts. 17.º, n.º 1 e 2, e 21.º da Lei 88/2009, de 31.08, segundo a qual à recorribilidade da decisão de reconhecimento e execução de uma decisão de confisco estrangeira que que tenha por objecto decisão sobre a verificação do motivo de recusa de execução previsto na al. b), do n.º 1, do art. 13.º da Lei 88/2009, de 31.08, não são aplicáveis as normas reguladoras dos recursos em processo civil, nomeadamente o fundamento de recurso para o Supremo Tribunal de Justiça previsto na alínea a) do n.º 2 artigo 629.º, do CPC, na parte em que se refere à matéria à matéria da ofensa de caso julgado.

XXVI. Subsidiariamente – e por mera cautela de patrocínio – se deixa em qualquer caso alegado que, ainda que não se entendesse que a alínea a) do n.º 2 artigo 629.º, na parte em que se refere à matéria da competência internacional, era aplicável por força do artigo 400.º, n.º 2 e 3, do CPP, e do artigo 510.º do CPP, por a admissibilidade do presente recurso não se reger pelas regras dos recursos civis, a disposição em causa sempre seria aplicável directamente em Processo Penal, por via de remissão operada pelo artigo 4.º do CPP, porquanto a regulamentação dos recursos em processo penal (arts. 399.º, 400.º, 427.º, 432.º, 433.º, 437.º, 446.º, 447.º, 449.º) não é exaustiva e não regula explicitamente este fundamento de recurso, admitindo aliás a recorribilidade para o Supremo Tribunal de Justiça “noutros casos previstos na Lei” (art. 433.º, do CPP). E ao recurso da decisão de reconhecimento e execução da decisão de confisco ou perda de bens por força do artigo 17.º, n.º 1 e 2, e 21.º da Lei 88/2009, de 31.08.

XXVII. Suscita-se a inconstitucionalidade, por violação do artigo 20.º, n.º 1 e 4, 32.º, n.º 1, e 62.º, do CRP, da norma extraída dos artigos arts. 4.º, 399.º, 400.º, 427.º, 432.º, 433.º, 437.º, 446.º, 447.º, 449.º do Código de Processo Penal, ex vi arts. 17.º, n.º 1 e 2, e 21.º da Lei 88/2009, de 31.08, segundo a qual não é aplicável em processo de decisão de reconhecimento e execução da decisão de confisco ou perda de bens ao abrigo da Lei 88/2009, de 31.08, o fundamento de recurso para o Supremo Tribunal de Justiça previsto na alínea a) do n.º 2 artigo 629.º, do CPC, na parte em que se refere à matéria da ofensa de caso julgado, directamente por via de remissão operada pelo artigo 4.º do CPP.

XXVIII. Suscita-se a inconstitucionalidade, por violação do artigo 20.º, n.º 1 e 4, 32.º, n.º 1, e 62.º, do CRP, da norma extraída dos artigos 13.º, n.º 1, al. b), da Lei 88/2009, de 31.08, 4.º, 399.º, 400.º, 427.º, 432.º, 433.º, 437.º, 446.º, 447.º, 449.º do Código de Processo Penal, ex vi arts. 17.º, n.º 1 e 2, e 21.º da Lei 88/2009, de 31.08, segundo a qual à recorribilidade da decisão de reconhecimento e execução de uma decisão de confisco estrangeira que tenha por objecto decisão sobre a verificação do motivo de recusa de execução previsto na al. b), do n.º 1, do art. 13.º da Lei 88/2009, de 31.08, não é aplicável o fundamento de recurso para o Supremo Tribunal de Justiça previsto na alínea a) do n.º 2 artigo 629.º, do CPC, na parte em que se refere à matéria da ofensa de caso julgado, directamente por via de remissão operada pelo artigo 4.º do CPP.

XXIX. Temos em que deverá ser o presente Recurso ser admitido por versar sobre a questão da ofensa de caso julgado

Secção I-D da Motivação

XXX. Ainda que não se considere ser o Recurso admissível por estarem em causa aquelas matérias, sempre deverá o presente recurso ser admitido como Recurso de Revista Excepcional.

XXXI. A Revista Excepcional é um meio processual aplicável nestes autos, por via do disposto na força do artigo 400.º, n.º 2 e 3, do CPP, e do artigo 510.º do CPP, por a admissibilidade do presente recurso se reger pelas regras dos recursos civis.

XXXII. Os pressupostos para a admissão do Recurso de Revista Excepcional estão preenchidos in casu.

XXXIII. A matéria em apreciação nestes autos é dotada de considerável relevância jurídica, tendo em conta que não existe um registo suficiente de decisões capaz de dar resposta às questões em apreço.

XXXIV. A jurisprudência existente sobre a aplicação da Lei 88/2009 de 31.08 é escassa, pelo que insuficiente para que se possam retirar conclusões claras acerca dos critérios decisórios na base da resolução das questões jurídicas que dela emergem – sendo o desenvolvimento jurisprudencial nesta matéria essencial, mormente para finalidades de segurança jurídica.

XXXV. Quanto às questões emergentes das decisões de reconhecimento de decisões de perda estrangeiras, emitidas ao abrigo da Lei 88/2009, de 31.08 – em especial quanto à sua recorribilidade - a jurisprudência não é bastante, sendo relevante o seu desenvolvimento e aprimoramento para uma melhor e mais clara aplicação do Direito, pelo que deve o presente Recurso ser admitido e apreciado.

XXXVI. No caso em apreço, as matérias em questão têm particular relevância jurídica directamente conexa com o seu elevado grau de complexidade e com a novidade que representam, sendo relevante a tomada de posição do Supremo Tribunal de Justiça ao abrigo da sua tarefa uniformizadora no desenvolvimento jurisprudencial.

XXXVII. Está em causa a conjugação de vários regimes jurídicos: o regime da Lei n.º 88/2009, de 31.08, e os regimes do Código de Processo Penal e do Código de Processo Civil, a Constituição, bem como o Direito da União Europeia relevante (a Decisão-Quadro n.º 2006/783/JAI, do Conselho, de 6 de Outubro, a Directiva 2014/42/UE, O Tratado da União Europeia e a Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia, entre outros), conjugação que se revela complexa. Por essa razão são necessárias as ferramentas jurisprudenciais adequadas para melhor esclarecer a boa aplicação do Direito, pelo que deve o presente Recurso de Revista Excepcional ser admitido.

XXXVIII. A decisão de reconhecimento de decisão de confisco estrangeira ao abrigo da Lei 88/2009, de 31.08, é uma decisão essencial para que esta decisão estrangeira possa ter eficácia na nossa ordem jurídica.

XXXIX. O confisco caracteriza-se por ser uma intromissão ao direito de propriedade, que, ainda que legitimada por uma decisão associada a um processo-crime, e ainda que se presuma que a propriedade confiscada é consequência da utilização dos proveitos do crime, é, em si mesma, uma medida restritiva de direitos fundamentais, em concreto do direito de propriedade previsto no art. 62.º da Constituição da República Portuguesa e no art. 1.º do Protocolo 1 anexo à Convenção Europeia dos Direitos Humanos, pois resulta na privação do bem em questão do seu proprietário (esteja este na posse do autor do crime ou de um terceiro alheio àquela prática), e como tal é questão que se reveste de particular relevância social.

XL. Particularmente relativamente a uma decisão de reconhecimento de uma decisão de confisco estrangeira, que, ao ser proferida, confere eficácia a uma decisão de confisco, restritiva de direitos fundamentais, emitida por Tribunal estrangeiro, e cujos fundamentos que lhe estão de base não foram sindicados pelos tribunais nacionais e poderão colidir com interesses jurídicos fundamentais protegidos na nossa Ordem Jurídica. E que aprecia, pela primeira vez, fundamentos não apreciados no Estado de emissão e que se reportam em concreto aos fundamentos de recusa de execução previstos no artigo 13.º da Lei 88/2009, de 31.08.

XLI. Neste caso estão em causa dois interesses legítimos: por um lado, o interesse legítimo do ... em impor a perda dos proveitos do crime. Por outro lado, o interesse do Requerido em que o seu direito de propriedade seja respeitado e, em consequência, que seja apenas restrito com respeito pelo devido contraditório e com acesso a um remédio/recurso efectivos.

XLII. Ainda, está em causa o interesse de terceiros afectados já que o objecto da perda no processo em causa não pertence ao arguido.

XLIII. O direito de acesso a um recurso/remédio efectivos nos termos do art. 1.º do Protocolo 1 Adicional à C.E.D.H. implica ter de se considerar admissível ao Requerido recorrer a este grau de Recurso, em sede de Revista Excepcional.

XLIV. No presente caso estão em causa as seguintes questões com elevada relevância social: A questão de saber se a causa de recusa de reconhecimento do art. 13.º, n.º 2, al. c) da Lei n.º 88/2009, de 31 de Agosto se encontra verificada quando tenham decorrido os prazos de prescrição do procedimento criminal ou da pena, por aplicação da lei portuguesa, por serem os tribunais portugueses competentes para o conhecimento dos factos a que se refere a decisão, quando os bens sitos em Portugal são alegadamente resultantes da actividade criminosa do Requerido. (art. 4.º al. a) e 7.º n.º 1 do CP) (cfr. capítulo III-A do Recurso)

XLV. A questão de saber se a causa de recusa prevista na al. b) do n.º 1 do art. 13.º Lei n.º 88/2009, de 31 de Agosto, se encontra verificada nos casos em que, pelos mesmos factos típicos, o Requerido foi condenado numa pena de prisão já cumprida, numa sanção de confisco e numa segunda pena de prisão pelo não pagamento do valor atribuído aquele confisco, estando a ser executada decisão de confisco cujo correspondente incumprimento foi já sancionado com uma pena. (cfr. III-B do Recurso)

XLVI. A questão de saber se a al. c) do n.º 1 do do art. 13.º da Lei 88/2009, de 31 de Agosto se encontra verificada pelo facto de os direitos de terceiros de boa fé, ao abrigo da lei portuguesa, impossibilitarem a execução da decisão, nomeadamente quando os bens a cuja decisão de confisco a ser reconhecida se refere pertencem a terceiros de boa-fé, não tendo os mesmos sido ouvidos como parte interessada no processo judicial que determinou o confisco (cfr. Capítulo III-C do Recurso.)

XLVII. A admissão de uma intervenção no direito de propriedade pressupõe que a base jurídica que a sustenta é suficientemente precisa. Neste caso não existe a precisão necessária e exigida pois não existem decisões suficientes sobre a matéria do reconhecimento e execução de decisões estrangeiras de confisco em Portugal para que se consiga prever razoavelmente como irá ser aplicado o Direito, em particular quanto ao reconhecimento de decisões estrangeiras de confisco.

XLVIII. A Revista Excepcional deve ser admitida, por estarem verificados os requisitos das alíneas a) e b) do n.º 1 do artigo 672.º do C.P.C., ex vi artigo 400.º, n.º 2 e 3 do C.P.P, e artigos 17.º, n.º 2 e 21.º, n.º 2 da Lei 88/2009 de 31.08, nomeadamente por estarem em causa questões que devem ser decididas para que se assegure a boa aplicação do Direito em casos futuros de reconhecimento de decisões de confisco estrangeiras, e que tocam interesses de particular relevância social.

XLIX. Subsidiariamente – e por mera cautela de patrocínio – se deixa em qualquer caso alegado que, ainda que não se entendesse que o artigo 672.º, do CPC, não era aplicável por força do artigo 400.º, n.º 2 e 3, do CPP, e do artigo 510.º do CPP, por a admissibilidade do presente recurso não se reger pelas regras dos recursos civis, a disposição em causa sempre seria aplicável directamente em Processo Penal, por via de remissão operada pelo artigo 4.º do CPP, porquanto a regulamentação dos recursos em processo penal (arts. 399.º, 400.º, 427.º, 432.º, 433.º, 437.º, 446.º, 447.º, 449.º) não é exaustiva e não regula explicitamente este fundamento de recurso, admitindo aliás a recorribilidade para o Supremo Tribunal de Justiça “noutros casos previstos na Lei” (art. 433.º, do CPP).

E ao recurso da decisão de reconhecimento e execução da decisão de confisco ou perda de bens por força do artigo 17.º, n.º 1 e 2, e 21.º da Lei 88/2009, de 31.08.

L. Isto porque os motivos que levam à consagração de tal meio recursório, e que se identificam com os seus fundamentos (elevada relevância jurídica cuja clarificação seja necessária claramente para melhor aplicação do direito; impacto sobre interesses de elevada relevância social; contradição de julgados entre os Tribunais superiores, salvo quando já exista acórdão de fixação de jurisprudência) estão ainda mais presentes no processo penal, onde é premente a necessidade do papel orientador do STJ.

LI. Está em causa no processo penal a ablação de direitos de natureza fundamental, como a liberdade, a propriedade, a liberdade de iniciativa económica ou de exercício da profissão, etc. Interesses que também estão em causa num processo de reconhecimento e execução de decisão de confisco, em particular os três últimos. Tendo em conta a natureza da execução de decisão estrangeira de confisco, a conclusão pela aplicabilidade da revista excepcional em processo penal é aplicável in totum em processos de reconhecimento e execução da decisão de confisco ou perda de bens ao abrigo da Lei 88/2009, de 31.08.

LII. Nenhum dos regimes recursórios previstos no CPP permite suprir de forma efectiva as funções e a utilidade para a protecção daqueles direitos fundamentais do arguido (e porventura da vítima), ou do Requerido em processo ao abrigo da Lei 88/2009, de 31.08.

LIII. É vedado o acesso ao STJ em casos de igual ou maior importância e para os quais em processo civil ou administrativo é admissível o acesso ao STJ ou ao STA, sem que qualquer justificação constitucionalmente aceitável, esta constituindo tal restrição uma discriminação manifestamente desproporcionada e violadora da igualdade e o direito de acesso a uma tutela jurisdicional efectiva para defesa dos direitos fundamentais, na qual tem de incluir-se o recurso, inclusivamente o recurso ao STJ em casos nos quais a intervenção deste Tribunal é importante pela novidade, complexidade e importância jurídica e social da questão, ou para garantir o tratamento igual de casos iguais que tenha obtido soluções diferentes em processos diferentes.

LIV. Suscita-se a inconstitucionalidade, por violação dos artigos 13.º, 20.º, n.º 1 e 4, 32.º, n.º 1, e 62.º, do CRP, da norma extraída dos artigos arts. 4.º, 399.º, 400.º, 427.º, 432.º, 433.º, 437.º, 446.º, 447.º, 449.º do Código de Processo Penal, ex vi arts. 17.º, n.º 1 e 2, e 21.º da Lei 88/2009, de 31.08, segundo a qual não é aplicável em processo de decisão de reconhecimento e execução da decisão de confisco ou perda de bens ao abrigo da Lei 88/2009, de 31.08, o recurso de revista excepcional previsto no art. 672.º, do CPP, directamente por via de remissão operada pelo artigo 4.º do CPP.

Secção II da Motivação – Dos Fundamentos do Recurso

Secção II-A da Motivação

LV. Errou a decisão a quo ao julgar improcedente o recurso, decidindo que não era admissível a apresentação de oposição pois só no Estado de emissão poderia ser posta em causa a decisão de perda.

LVI. A decisão recorrida errou pois:

a. O conceito de “recurso” do artigo 9.º da Decisão-Quadro (conjugado com arts. 1.º, n.º 2, 7.º, n.º 1, da Decisão-Quadro 2006/783/JAI) é um conceito autónomo de direito da União, conceito que mantém a mesma autonomia na sua transcrição para o artigo 17.º da Lei 88/2009, de 31.08 e que por isso não é idêntico ao conceito de “recurso” do direito interno português. Esse conceito autónomo implica a possibilidade de produção de prova e de discussão contraditória, bem como a possibilidade de sindicar perante um segundo Tribunal do Estado de execução, de hierarquia superior, porquanto só assim pode considerar-se existir a possibilidade de obter remédio efectivo.

b. Ainda que se entendesse que o conceito autónomo de direito da União era idêntico ao do direito interno, então a norma em causa sempre seria violadora da CDFUE (arts. 47.º, §§1 e 2), do TUE (arts. 2.º e 19.º n.º 1, §2), e da CRP (arts. 20.º, n.º 1 e 4, e 32.º, n.º 1).

LVII. Uma sentença estrangeira não tem força executiva directa em Portugal a não ser que aqui seja reconhecida e declarada executória, por decisão transitada em julgado, conforme decorre do art. 234.º do CPP, o que, no caso das decisões de perda emitidas por outros Estados-Membros da UE, no presente, se faz através do procedimento consagrado na Lei 88/2009, de 31 de Agosto, e na DQ 2006/783/JAI.

LVIII. Os fundamentos de recusa de execução enunciados no art. 8.º da Decisão-Quadro 2006/783/JAI e no art. 13.º da Lei 88/2009, de 31.08, não se prendem com “reequacionar” a decisão de perda, mas antes com motivos decorrentes da Lei, da Constituição ou da Ordem Pública do Estado de execução, ou do próprio Direito Europeu.

LIX. O argumento da decisão recorrida, de ausência de analogia com o regime do MDE (onde o Requerido tem direito a apresentar primeiro uma oposição e inclusivamente requerer a produção de prova), não colhe. Isto porque também naquele regime, por força do princípio do reconhecimento mútuo, não é permitido sindicar no Estado de execução o fundamento da decisão interna subjacente à emissão do MDE (pelo menos como regra geral). Assim, o art. 17.º, n.º 4, da Lei 88/2009, de 31.08, não constitui uma especificidade do regime de reconhecimento e execução de decisões de perda.

LX. A decisão recorrida adoptou assim como critério decisório norma extraída dos arts. 13.º n.º 1 e 2, 17.º, n.º 1, 2 e 4, e 21.º, n.º 1 e 2, da Lei n.º 88/2009, de 31.08, da qual resulta que a tutela judicial dos direitos do Requerido em processo de execução de decisão de confisco ou perda ao abrigo da Lei 88/2009, de 31.08, está limitado à interposição do recurso para a Relação.

LXI. A referida norma é materialmente inconstitucional, por violação do direito à tutela judicial efectiva, ao processo equitativo e às garantias de defesa, em especial ao recurso, consagrados nos arts. 20.º, n.º 1 e 4, e 32.º, n.º 1, da CRP.

LXII. Neste ponto, seja por consequência do juízo de inconstitucionalidade que venha a ser formulado, seja por consequência da aplicação do direito da União Europeia (arts. 1.º, n.º 2, 7.º, n.º 1, e 9.º, n.º 1, da Decisão-Quadro 2006/783/JAI; 2.º e 19.º n.º 1, §2, do Tratado da União Europeia; 47.º, §§1 e 2, da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia), ou dos arts. 6.º e 13.º da CEDH, deve ser considerado procedente o recurso, ordenando-se a nova notificação do Requerido para apresentar a sua oposição, com informação concreta de qual o meio de oposição de que dispõe para o efeito, para que do mesmo possa fazer uso efectivo (podendo, depois, recorrer da decisão judicial que venha a recair sobre tal meio de defesa).

Secção II-B da Motivação

LXIII. O Tribunal Relação recorrido ao confirmar a decisão de reconhecimento de decisão estrangeira nos presentes autos, violou o disposto na al. c) do n.º 2 do art. 13.º da Lei n.º 88/2009, de 31 de Agosto.

LXIV. Na interpretação que refere que o imóvel sito em Portugal ainda é fruto de dinheiro que havia sido doado a terceiro, dinheiro esse resultado da actividade criminosa do Recorrente, pelo que os tribunais portugueses seriam competentes para conhecer os factos, pois que ocorreram em

Portugal (art. 4.º alínea a) do CP), já que aqui se verificou um resultado da actividade criminosa (art. 7.º n.º 1 do CP).

LXV. Os factos típicos ocorreram (como resulta da decisão ...) entre Novembro ou Dezembro de 1999/começo de 2000, a Junho de 2002 e originaram uma condenação em pena de prisão pela prática de um crime de “conspiracy to defraud” – burla – transitada em 5/08/2010, não tendo sido decidida nesta altura (ao contrário do que aconteceria se o julgamento ocorresse em Portugal) a perda de bens; esta decisão acontece em 14.11.2014 autonomamente e não inclui qualquer aplicação de pena ou medida de segurança.

LXVI. À luz do disposto no n.º 2 do art. 112.º-A do CP, nos casos em que não tenha havido lugar a aplicação de pena ou de medida de segurança, aplicam-se os prazos de prescrição previstos para o procedimento criminal.

LXVII. O procedimento criminal por crime de burla (considerando-a qualificada pelo valor – art. 218.º nº 2 a) CP) prescreve no prazo de 10 anos (cfr. art. 118.º n.º 1 b) do CP), iniciando-se a sua contagem, nos termos do art. 119.º do CP, em Junho de 2002, pelo que, não se vislumbrando qualquer causa de suspensão, ainda que se considere o prazo de prescrição absoluta previsto no n.º 3 do art. 121.º do CP, o prazo de prescrição ocorreu já em Junho de 2017.

LXVIII. Ainda que fosse considerado o prazo de prescrição da pena, tendo em conta que a pena de prisão aplicada ao arguido foi de 3 anos e meio de prisão, aplicada em 5 de Agosto de 2010, há muito que decorreu o prazo prescricional.

LXIX. Nestes termos, deveria o Tribunal recorrido, também por este motivo, recusar o reconhecimento da decisão de confisco em causa e não o fazendo, violou o disposto nos artigos art. 13.º n.º 2 al. c) da Lei n.º 88/2009, de 31 de Agosto, 112.º-A, 118.º, 119.º, 121º, 122.º e 218.º do Código Penal.

LXX. É inconstitucional, por violação do disposto nos artigos 2.º, 18.º, n.º 2, 32.º, n.º 1, n.º, 62.º da CRP, a norma segundo a qual, tendo decorrido os prazos de prescrição do procedimento criminal ou da pena, de acordo com a lei portuguesa, não tem de ser recusado o reconhecimento e

execução de decisão de perda proferida noutro Estado, norma extraída dos artigos 13.º n.º 2 al. c) da Lei n.º 88/2009, de 31 de Agosto, 112.º-A, 118.º, 119.º, 121º, 122.º e 218.º do Código Penal.

Secção II-C da Motivação

LXXI. Acresce que a o Acórdão da Relação recorrido dá cobertura a uma manifesta violação do princípio do ne bis in idem, tendo por isso, o Requerido invocado a violação do disposto no art. 13.º n.º 1 al. b) da Lei n.º 88/2009, De 31 De Agosto.

LXXII. Na verdade, pelos mesmos factos típicos, o Recorrente foi condenado numa pena de prisão já cumprida de 3 anos e 6 meses, numa pena acessória de inibição de exercício de funções também já cumprida, numa sanção de confisco e numa segunda pena de 3 anos de prisão pelo não pagamento do valor atribuído aquele confisco. E foi ainda condenado numa sanção acessória de inibição de exercício de funções.

LXXIII. In casu, existe violação mais flagrante ainda do ne bis in idem porquanto o Requerido foi sancionado com a aplicação de uma pena de prisão pelo não pagamento do confisco e ao mesmo tempo está a ser sancionado com a execução da mesma decisão de confisco. E foi ainda punido com outra pena de prisão e com pena acessória de inibição de exercício de funções pelos mesmos factos

LXXIV. Observando formalmente os processos em causa, terá de constatar-se que apesar de existirem formalmente dois processos (o processo sobre a acusação penal propriamente dita e o processo de confisco) e de a existência de julgamento e condenação penal não impedir a existência de um processo e de uma decisão de confisco, ao pedir a execução da pena imposta por não pagamento de confisco está a transmutar-se a natureza da decisão de confisco que passa materialmente a ser uma pena, e por isso, do ponto de vista material, o Requerido passa a ser julgado e condenado penalmente duas vezes pelo mesmo facto.

LXXV. Ainda que se considerasse que ambas as penas tinham sido impostas “num só processo”, sempre teria de considerar-se que haveria violação do princípio ne bis in idem na vertente da proibição da cumulação de sanções, porquanto estariam a impor-se para a mesma situação subjacente duas sanções privativas da liberdade, e ainda duas sanções acessórias ou medidas de segurança muito gravosas.

LXXVI. Da análise da informação disponível referente ao(s) o(s) processo(s) a que Recorrente foi sujeito no ... - em conjugação com o que consta da referida certidão - resulta sempre a violação do princípio ne bis in idem ínsito quer no art. 29.º, n.º 5 da CRP, quer no art. 18.º, n.º 2, da CRP, independentemente de se avaliar a sua vertente processual ou material, quer do art. 13.º, n.º 1, al. b), da Lei 88/2009 de 31 de Agosto.

LXXVII. Quer se considere que foi instaurado segundo procedimento (cujo terminus consistiu decisão de confisco) pelos mesmos factos, quer se considere que se aplicou dupla (ou melhor múltipla) sanção pelos mesmos factos no mesmo processo, quer se considere ainda que se verificou um cúmulo de qualificações numa única acção (no caso de se tratar de sentença compósita abrangendo o processo original e o de confisco), sempre o princípio ne bis in idem se encontra violado, porque as sanções daí resultantes para o Requerido são manifestamente desnecessárias e desproporcionadas (duas penas privativas da liberdade, uma pena acessória de inibição e uma decisão de perda).

LXXVIII. Pelo que se encontra preenchida a causa de recusa obrigatória do art. 13.º n.º 1 al. b) da Lei 88/2009 de 31 de Agosto.

LXXIX. Suscita-se a inconstitucionalidade, por violação dos arts. 18.º, n.º 2, 25.º, n.º 1, 27.º, 29.º n.º 5, e 62.º da CRP, da norma extraída do art. 13.º, n.º 1, al. b), da Lei 88/2009, de 31 de Agosto, segundo a qual a não é contrário ao princípio ne bis in idem e ao princípio da proporcionalidade das consequências jurídicas do crime a execução de decisão estrangeira de perda pelos mesmos factos aos quais tenham sido impostas para tutela dos mesmos bens jurídicos duas penas de prisão (de entre as quais uma por não pagamento do montante da decisão de perda), e pena acessória de inibição de funções.

LXXX. A sanção cumulativa com pena de prisão por não pagamento de dívida resultante de decisão de confisco, com pena de prisão principal, com o confisco e sanção acessória de inibição de funções impostas pelos mesmos factos, inexistindo nesta situação qualquer concurso efectivo de crimes decorrente da tutela de diferentes bens jurídicos, não permite sustentar conclusão diversa da da violação do princípio ne bis in idem, vedada que está a dupla punição pelos mesmos factos pelo art. 29.º, n.º 5 da CRP, e do princípio da proporcionalidade das penas, decorrente do art. 18.º, nº 2, da CRP, em conjugação com os arts. 25.º, n.º 1, 27.º, e 62.º da CRP e isto mesmo considerando que as sanções resultem de um só processo, porquanto estão a impor-se para a mesma situação subjacente e para tutela do mesmo bem jurídico duas sanções privativas da liberdade, confisco e sanção acessória, o que resulta em punição múltipla e desproporcionada pelos mesmos factos, a qual viola o ne bis in idem na vertente da cumulação de sanções.

LXXXI. Ao proferir a decisão de reconhecimento ora em crise nos termos em que o fez, o Tribunal recorrido violou, além do mais, o disposto no art. 13.º n.º 1 al. b), da Lei n.º 88/2009, de 31 de Agosto.

Secção II - D da Motivação

LXXXII. A decisão do Tribunal recorrido violou ainda o disposto no art. 13.º n.º 1 al. c) da Lei n.º 88/2009, de 31 De Agosto, uma vez que permitiu o reconhecimento de uma decisão que manifestamente viola direitos de terceiros de boa fé.

LXXXIII. Nos termos da al. c) do n.º 1 do art. 13.º da Lei n.º 88/2009, de 31 de Agosto, o tribunal português tem de recusar o reconhecimento e a execução da decisão de perda quando os direitos de qualquer parte interessada, incluindo terceiros de boa fé, ao abrigo da lei portuguesa, impossibilitam a execução da decisão de perda.

LXXXIV. Nos presentes autos, o ... peticiona o confisco de um montante em dinheiro e a pretensão de confisco do imóvel advém de se ter considerado que o mesmo foi adquirido com o valor das doações realizadas à Sra. BB pelo Recorrente.

LXXXV. Ainda que constasse da decisão ... de confisco as doações foram feitas com valores provenientes de actividade ilícita – algo que é incorrecto, pois o que resulta do regime ... é que quaisquer doacções efectuadas por arguido condenado por aquele tipo de crimes se presumem tainted gifts e por isso estamos perante um regime de perda alargada (como detidamente explicado no Recurso interposto), a conclusão da decisão recorrida faz um salto lógico:

a. A Sra. BB recebeu quantias em dinheiro do arguido que tinha sido condenado por crimes

b. Logo a Sra. BB sabia que tais quantias tinham origem criminosa.

LXXXVI. Esse salto lógico não é admissível e por isso constitui erro notório na apreciação da prova.

LXXXVII. Ainda mais quando a Sra. BB não teve qualquer participação como sujeito processual, nem no processo penal, nem no de confisco, não tendo quaisquer direitos de intervenção processual no ....

E também não teve qualquer intervenção no presente processo. O mesmo se aplicando à T…, Ltd., titular registado do imóvel objecto de perda.

LXXXVIII. Mais, como referido infra na Secção III-B, que aqui se dá por reproduzida, a decisão recorrida utilizou um documento que não cumpre os requisitos legais de forma para permitir dar como provado o teor da decisão em causa.

LXXXIX. Pior, a decisão a quo trata a situação em apreço como se a Senhora BB ou o imóvel objecto de perda nestes autos tivessem sido declarados perdidos, quando resulta evidente do texto da decisão de 14.11.2014 cuja tradução está nos autos: i) só o Requerido foi condenado na perda de bens; ii) foi condenado em perda de valor; iii) não houve declaração de perda do imóvel; iv) o valor das doações efectuadas pelo Requerido à Sra. BB apenas foi tido em conta para determinar o valor da perda a decretar; v) a Sra. BB e a T… não tiveram intervenção e não foram alvo de decisão de perda, nem como arguidas, nem como terceiros visados.

XC. Apesar destas evidências, decretou-se o reconhecimento e execução de uma decisão de perda (alargada) de valor a executar contra bens de terceiros, ou seja, a T…, Ltd. e a Senhora BB. Tudo sem os chamar a intervir nos autos.

XCI. Aliás, sendo aplicável a lei portuguesa, a situação destes interessados, que seriam considerados de boa fé, não seria abrangida pela Lei 5/2002, nem pelas disposições do. Art. 111.º do CP, por não se verificarem os pressupostos de aplicação destas normas.

XCII. O que está em causa neste processo é uma decisão de perda de valor equivalente (que não objecto, instrumento ou produto do crime) proferida contra o Arguido e aqui Requerido e Recorrente, mas que está a ser executada em bens de terceiros, que nunca tiveram qualquer intervenção processual.

XCIII. Ora, em Portugal e nas circunstâncias deste caso e tendo em conta a lei vigente à data da prática dos factos, que é a aplicável, a não ser que a mais recente seja mais favorável, não seria possível proferir e executar tal decisão contra terceiro, pelo que se encontra flagrantemente violada a alínea c), do n.º 1, do art. 13.º, a Lei 88/2009, de 31 de Agosto.

XCIV. A perda de bens de terceiro ao abrigo do CP vigente à data da prática dos factos pelo Arguido aqui Requerido, em Junho de 2002 (redacção do Decreto-Lei n.º 323/2001, de 17 de Dezembro, não abrangia a perda de vantagens pertencentes a terceiro.

XCV. É verdade que a Lei 5/2002 prevê a perda de bens de terceiro. Porém, a Lei em causa não é aplicável ao crime de burla, logo é inaplicável in casu.

XCVI. A esta situação acresce ainda o facto de, não sendo possível a intervenção de terceiros no julgamento do confisco no ... e não sendo permitido a sua intervenção no presente processo, estarmos perante uma situação de escandalosa denegação de justiça: com a sentença de reconhecimento e execução proferida, a sociedade T… Limited e a Sra. BB viram-se espoliados de um imóvel seu, sem terem sido chamados à acção no Estado de emissão ou sequer informados do processo no próprio Estado de execução, para que pudessem exercer os seus direito de defesa em tempo útil.

XCVII. Os direitos da sociedade T… Limited e de BB, enquanto partes interessadas na decisão de reconhecimento (cfr. al. c) do n.º 1 do art. 13.º da Lei 88/2009), tornam impossível a execução da decisão de perda.

XCVIII. Quando o Tribunal recorrido decidiu reconhecer a decisão de confisco sem antes ter dado possibilidade aos terceiros T… Limited e BB de se defenderem invocando o seu direito de propriedade registado, e o seu direito de gozo, uso e usufruto do imóvel e sem lhes permitir o acesso à tutela judicial dos seus direitos e mediante um julgamento equitativo, violou assim o disposto nos artigos 1.º, n.º 2, 7.º, nº 1, 8.º, n.º 2, al. d), e 9.º, nº 1 e 2, da Decisão-Quadro 2006/783/JAI, conjugados com os artigos 6.º, nº 1 e 2, 8.º, n.º 1, 2, 4, 6, 8 e 9, da Directiva 2014/42/UE, e com o artigo 47.º, §§ 1 e 2, da CDFUE.

XCIX. E violou ainda o art. 347.º-A do CPP, que deve considerar-se aplicável ex vi art. 21.º da Lei 88/2009, de 31 de Agosto, obrigando a citar ou notificar os terceiros que aliás estão devidamente identificados.

C. Violou ainda o Tribunal os arts. 47.º, §§ 1 e 2, da CDFUE, 6.º e 13.º da CEDH, e 20.º, n.º 1 e 4, da CRP, normativos que, tal como supra referido, a propósito da secção II-A, dando-se aqui por reproduzido, obrigam a conferir a todos os cidadãos ou empresas o direto de acesso à tutela – e tutela útil e efectiva – dos seus direitos perante um Tribunal, e mediante um processo equitativo, o que, in casu, foi flagrantemente vedado quer à T… Limited, quer à Sra. BB – pessoas sem intervenção como partes no processo e na decisão de confisco de 11.14.2014, e sem intervenção no processo.

CI. Perante uma tal flagrante violação, compete ao Estado de execução recusar o reconhecimento e execução, nos termos do art. 8.º, n.º 2, al. b), da DQ 2006/783/JAI, e do art. 13.º, n.º 1, al. c), da Lei 88/2009, de 31.08.

CII. O que, aliás, é imposto pelos arts. 47.º, §§ 1 e 2, da CDFUE, 6.º e 13.º da CEDH, e ainda pelo art. 20.º, n.º 1 e 4, da CRP, e pelo próprio art. 6.º do TUE (cf. considerando 13 e art. 1.º, n.º 2, da DQ 2006/783/JAI).

CIII. Ao proferir a decisão de reconhecimento ora em crise nos termos em que o fez, o Tribunal a quo violou, além do mais, o disposto no art. 13.º n.º 1 al. c) da Lei n.º 88/2009, de 31 de Agosto.

Secção II - E da Motivação

CIV. Acresce ainda que a decisão do Tribunal da Relação, reconhecendo existir uma precipitação na execução em Portugal da decisão ao ter sido ordenado e efectuado registo definitivo da propriedade da casa mencionada na titularidade do ..., sem que previamente ter sido operada qualquer notificação neste processo, seja ao Requerido aqui Recorrente, seja à sociedade proprietária do imóvel sito em ..., Quinta..., ... Portugal, seja à sua ultimate beneficial owner e possuidora que, como bem sabem as autoridades inglesas e, aliás, fizeram constar dos documentos transmitidos, é a Senhora BB e sem ter transitado em julgado a decisão de reconhecimento e execução proferida pelo Tribunal português.

CV. Não obstante, para espanto do Recorrente aquele Tribunal bastou-se com o entendimento de tal registo ser “prematuro” e ainda mais espantosamente, a decisão de determinar que “deverão os autos aguardar o trânsito deste Acórdão a fim de, se decidir se é de manter ou não tal registo”.

CVI. No entendimento do Recorrente, tal decisão configura a nulidade tempestivamente invocada, nos termos do art. 379.º, n.º 1, al. a) e al. c), do CPP, conjugado com o art. 374.º, n.º 2 e n.º 3, al. b), mutatis mutandis, do CPP, ex vi art. 425.º, n.º 4, do CPP, ex vi art. 17.º, n.º 2, e 21.º, n.º 2, da Lei 88/2009, de 31.08

CVII. Nulidade que o Tribunal não reconheceu, reiterando o seu non liquet, pois que se eram procedentes os argumentos do Recorrente, devia ser ordenada a revogação da decisão de execução proferida pelo Tribunal de primeira instância e em consequência ordenar-se à conservatória a anulação do ato indevidamente registado.

CVIII. No Direito Português vale a proibição geral do non liquet estabelecida no artigo 8.°, n.° 1, do Código Civil, subordinado à epígrafe «Obrigação de julgar e dever de obediência à lei».

CIX. Ora, os Acórdãos recorridos abstêm-se de fazer o julgamento exigido por lei e, apesar de reconhecer a bondade da alegação do Recorrente, não determinam a revogação do acto ilegal, deixando mero “conselho” de se aguardar por decisão definitiva para averiguar a bondade da manutenção do acto ilegal, o que constitui violação do artigo 202.º, n.º 1, da CRP e de invocar os mesmos argumentos junto do Conservador do Registo Predial.

CX. Com esta não-decisão, o Tribunal recorrido negou, além do mais, o direito ao recurso do Recorrente, pois que de nada serve ter recorrido e ter-lhe sido reconhecido provimento quanto à ilegalidade da transferência de propriedade do imóvel identificado nos autos a favor do Estado de emissão antes da existência de trânsito em julgado.

CXI. Certo é que tal decisão tem agora de ser substituída por outra que reconheça o direito do Recorrente e dela retire a necessária consequência: anulação da decisão de execução e legais efeitos.

CXII. A decisão recorrida adoptou como critério de decisão a norma extraída dos arts. 234.º, 374.º, n.º 2 e 3, 425.º, n.º 4, 428.º, 468.º al. c), do CPP, art. 628.º do CPC, e art. 12.º, n.º 1, e 17.º, n.º 1 e 2, da Lei 88/2009, de 31.08, e dos arts. 2.º, n.º 1, al. a), e 3.º, n.º 1 al. a) e c), do Código de Registo Predial, segundo a qual a ilegalidade da execução da decisão de confisco através do registo da transferência da propriedade com base em decisão de reconhecimento e execução de decisão de confisco de outro Estado-Membro da União Europeia não transitada em julgado não importa o cancelamento imediato desse registo.

CXIII. Adoptou ainda como critério de decisão a norma extraída dos arts. 234.º, 374.º, n.º 2 e 3, 425.º, n.º 4, 428.º, 468.º al. c), do CPP, art. 628.º do CPC, e art. 12.º, n.º 1, e 17.º, n.º 1 e 2, da Lei 88/2009, de 31.08, e dos arts. 2.º, n.º 1, al. a), e 3.º, n.º 1 al. a) e c), do Código de Registo Predial, no sentido de que, não tendo transitado em julgado a decisão de reconhecimento e execução, por não ter decorrido o prazo para interposição de recurso pelos intervenientes processuais e terceiros, é admissível a execução da mesma através do registo definitivo da aquisição da propriedade em nome do Estado de emissão.

CXIV. Outrossim, adoptou como critério de decisão a norma extraída dos arts. 234.º, 374.º, n.º 2 e 3, 425.º, n.º 4, 428.º, 468.º al. c), do CPP, art. 628.º do CPC, e art. 12.º, n.º 1, e 17.º, n.º 1 e 2, da Lei 88/2009, de 31.08, e dos arts. 2.º, n.º 1, al. a), e 3.º, n.º 1 al. a) e c), do Código de Registo Predial, no sentido de que, não tendo transitado em julgado a decisão de reconhecimento e execução, por não ter decorrido o prazo para interposição de recurso pelos intervenientes processuais e terceiros, não é admissível a execução da mesma através do registo definitivo da aquisição da propriedade em nome do Estado de emissão, cabendo, no entanto, ao Conservador decidir sobre a legalidade do registo efectuado, e não ao Tribunal.

CXV. Aqueles critérios normativos são violadores dos arts 20.º, n.º 1, da CRP, e 202.º da CRP, bem como do direito às garantias de defesa e de tutela jurisdicional efectiva, inclusivamente por via do recurso decorrente dos arts. 20.º, n.º 1 e 4, e 32.º, n.º 1, da CRP, aplicáveis em processo de reconhecimento e execução de decisão estrangeira, como melhor explicitado supra, por constituir uma negação do direito de tutela jurisdicional efectiva quanto a decisões restritivas de direito fundamentais, neste caso o direito de propriedade consagrado no art. 62.º, n.º 1, da CRP.

Secção III da Motivação

CXVI. O interesse do Recorrente é de que o presente recurso seja admitido e conhecido no seu mérito, mas por dever de patrocínio, não podem as suas mandatárias deixar de invocar também as nulidades que não se encontram sanadas.

Secção III - A da Motivação

CXVII. O art. 411.º, n.º 5, do CPP, estabelece um direito incondicional do Recorrente à realização de audiência oral para discussão da matéria do recurso, apenas sujeito ao ónus de indicar nas alegações de recurso a pretensão de que o julgamento seja realizado em audiência, com indicação os pontos que pretende ver discutidos.

CXVIII. Tendo o Recorrente requerido a realização de audiência oral para discussão da matéria do recurso, com base naquela norma, está preenchido o requisito da alínea c), do art. 419.º, n.º 3, a contrario.

CXIX. A não realização da audiência, por violação do disposto no art. 411.º, n.º 5, e 419.º, n.º 3, al. c), entendidas como alternativas as situações previstas nas várias alíneas do n.º 3, dos arts. 55.º, al. a), 56.º, n.º 1, e 74.º, n.º 1, da LOSJ, e do art. 429.º do CPP, consubstancia nulidade insanável, prevista nas als. a) e e) do art. 119.º do CPP, normas violadas pela decisão a quo, acarretando a invalidade subsequente dos Acórdãos proferidos, o que aqui se invoca.

CXX. A decisão recorrida interpretou erradamente o art. 419.º, n.º 3, do CPP, por considerar cumulativos os requisitos das alíneas b) e c), tendo assim violado frontalmente o disposto nos arts. 411.º, n.º 5, 419.º, n.º 3, e 421.º do CPP.

CXXI. Subsidiariamente, ainda que as previsões no art. 419.º, n.º 3, fossem cumulativas, a decisão recorrida não cabe na al. b), já que se trata de uma sentença que conheceu a final do objecto do processo, nos termos do art. 97.º, n.º 1, al. a), do CPP, normas violadas pela decisão a quo.

CXXII. A não realização da audiência, por violação do disposto no art. 411.º, n.º 5, e 419.º, n.º 3, al. b) e c), entendidas como cumulativas as situações previstas nestas alíneas, e dos arts. 55.º, al. a), 56.º, n.º 1, e 74.º, n.º 1, da LOSJ, e do art. 429.º do CPP, consubstancia nulidade insanável, prevista nas als. a) e e) do art. 119.º do CPP, acarretando a invalidade subsequente dos Acórdãos proferidos, o que aqui se invoca.

CXXIII. Deve assim ser revogada a decisão e declarado o vício invocado, anulando-se os Acórdãos proferidos, ordenando-se a realização de audiência oral, nos termos do art. 119.º, e 122.º, n.º 2, do CPP.

CXXIV. Como fundamento da decisão de indeferimento da realização de audiência oral e realização de julgamento em conferência, o Tribunal convocou norma extraída dos arts. 411.º, n.º 5, 419.º, n.º 3, als. b) e c), 97.º, n.º 1, al. a), do CPP, e dos arts. 12.º, n.º 1, 17.º, n.º 2, e 21.º, n.º 2, da Lei 88/2009, de 31.08, segundo a qual é julgado em conferência o recurso de decisão que não conheça, a final, do objecto do processo, mesmo que requerida a realização de audiência.

CXXV. Como fundamento da decisão de indeferimento da realização de audiência oral e realização de julgamento em conferência, o Tribunal recorrido convocou norma extraída dos arts. 411.º, n.º 5, 419.º, n.º 3, als. b), 97.º, n.º 1, al. a), do CPP, e dos arts. 12.º, n.º 1, 17.º, n.º 2, e 21.º, n.º 2, da Lei 88/2009, de 31.08, segundo a qual é julgado em conferência o recurso de decisão de reconhecimento e execução de decisão de confisco proferida em outro Estado-Membro da União Europeia, nos termos de Lei 88/2009, de 31.08.

CXXVI. Estes critérios normativos convocados nos Acórdãos recorridos são inconstitucionais por violação dos arts. 2.º, 18.º, n.º 2 e 3, 20.º, n.º 1 e 4, 29.º, n.º 1, 32.º, n.º 1, e 62.º, n.º 1, da CRP, inconstitucionalidade que aqui se invoca, nos termos densificados na motivação.

CXXVII. A redistribuição do processo à ....ª Subsecção da Secção Criminal, aos Venerandos Desembargadores Dr. CC Dra. DD, consubstancia nulidade insanável, nos termos do art. 119.º, als. a) e e), do CPP, e por violação do disposto nos artigos 203.º e 216.º do CPP, ex vi art. 4.º do CPP, ex vi arts. 17.º, n.º 2, e 21.º, n.º 2, da Lei 88/2009, de 31.08, com os legais efeitos.

CXXVIII. A decisão a quo no segmento que recaiu sobre a arguição da referida nulidade padece de omissão de pronúncia, neste ponto, sendo nula por violação do disposto no art. 379.º, n.º 1, al. c), do CPP (e 615.º, n.º 1, al. d), do CPC).

Secção III - B da Motivação

CXXIX. Para que um Estado-Membro, neste caso Portugal, possa reconhecer e executar uma decisão de perda, o Estado-Membro de emissão tem de enviar-lhe, nos termos dos arts. 4.º, n.º 1, e 19.º da DQ 2006/783/JAI, e do art. 8.º, n.º 1 e 2, da Lei 88/2009, em conjugação com o mencionado art. 13.º, n.º 1, a) do mesmo diploma: i) A decisão de perda original ou a sua cópia autenticada; i) A certidão prevista no art. 4.º, n.º 2, de acordo com o anexo à DQ 2006/783/JAI, assinada pela autoridade emitente, a qual certifica a exactidão do seu conteúdo; A tradução daquela decisão e da certidão para a língua portuguesa.

CXXX. Compulsados os autos, constata-se que tais disposições foram flagrantemente violadas, pois que: dos autos não constam a decisão de perda original ou a sua cópia autenticada (que, como é evidente, foi proferida em língua ...), não consta a certidão original prevista no art. 4.º, n.º 2 (que, como é evidente, terá sido emitida em língua ...), a cópia da decisão de perda traduzida para português não se encontra assinada pelo Magistrado ou funcionário do Tribunal (aliás, a fls. 3 dos autos, na carta da “SFO” – é dito ipsis verbis que se envia “cópia da sentença de Lady EE com data de 11 de Novembro de 2014” (“copy of the Judgment of Lady EE dated 11th November 2014”) e não o original da decisão ou sequer uma cópia autenticada da mesma), nem a certidão traduzida para português se encontra assinada pela autoridade emitente, pelo que não pode considerar-se que se trata, quanto a estas, daquelas duas peças.

CXXXI. Não obstante a evidência de que uma cópia redigida em língua portuguesa de i) uma sentença proferida no ...; ii) uma certidão emitida para efeitos da Decisão-Quadro n.º 2006/783/JAI, não podem ser o original ou a cópia autenticada de uma decisão proferida num país onde a língua oficial é o ..., a decisão recorrida considera que por terem sido remetidas por ofício do Serious Fraud Office, com os dizeres ali referidos de que teriam tal autenticidade.

CXXXII. O Tribunal recorrido violou os arts. 4.º, n.º 1, e 19.º da DQ 2006/783/JAI, e do art. 8.º, n.º 1 e 2, da Lei 88/2009, em conjugação com o mencionado art. 13.º, n.º 1, a) do mesmo diploma, por ter aceitado para prova da existência das decisões em causa documento que não preenche os requisitos legalmente exigidos para prova desse facto (cf. art. 674.º,, n.º 3, do CPC).

CXXXIII. Deve assim a decisão recorrida ser revogada, com decisão de recusa de execução por falta de preenchimento de um pressuposto processual para a prolação de decisão de reconhecimento e execução.

Secção IV da Motivação

CXXXIV. O Recorrente enunciou questões de direito da União Europeia relevantes para a decisão do caso concreto, nomeadamente a questão da interpretação do conceito de recurso constante do art. 9.º da DQ 2006/783/JAI, e a compatibilidade das disposições internas e da União com os artigos 47.º da CDFUE e 2.º e 19.º, n.º 1, §2, do TUE.

CXXXV. A decisão recorrida indeferiu o reenvio quanto a estas questões, sem tomar qualquer posição sobre os vários argumentos suscitados pelo Recorrente nas motivações, o que constitui flagrante violação da competência do TJUE para decidir sobre a questão prejudicial suscitada, porquanto o Tribunal nacional se substituiu ao TJUE, dizendo qual o teor do direito da União, sem que tal se funde em jurisprudência anterior do TJUE ou no teor claro da norma (clareza que fica desde logo excluída pelos motivos aduzidos no recurso apresentado).

CXXXVI. Assim, a decisão padece de nulidade nos termos do art. 119.º al. e), do CPP, ex vi art. 21.º, n.º 2, da Lei 88/2009, de 31.08, por violação do art. 267.º, n.º 3, do TFUE, aplicável directamente na ordem jurídica interna, nos termos do disposto no art. 8.º, n.º 4, da CRP, e do próprio direito da União, nulidade essa tempestivamente arguida e não sanada.

CXXXVII. É obrigatório o reenvio das questões relevantes que sejam necessárias para a resolução da causa no processo a nível nacional, sempre que preenchidos os requisitos do artigo 267.º, n.º 3, do TFUE, o que aqui se reitera e requer seja suscitado agora por este Colendo Tribunal.

CXXXVIII. Sendo a norma do art. 267.º, n.º 3, uma verdadeira norma de competência (nos termos melhor descritos pelo Acórdão do BVerfG infra citado), e destinando-se o art. 119.º, al. e), do CPP, a tutelar a violação do princípio do juiz natural através de violação das regras de competência do Tribunal, a violação daquela disposição do direito da União deverá ser tutelada por igual via, desde logo por força do princípio da equivalência derivado do direito da União.

CXXXIX. Nestes termos, devem ser suscitadas, ao abrigo do art. 7.º do CPP, ex vi, art. 21.º da Lei 88/2009, de 31 de Agosto, sob pena de violação do art. 267.º, em particular o n.º 3, do TFUE, as seguintes questões (cf. Secção II-A da Motivação), devendo o Recorrente ser notificado para indicar qual a formulação concreta das questões que pretende ver submetidas ao TJUE, desde já sugerindo, preliminarmente:

a. Os artigos 1.º, n.º 2, 7.º, n.º 1, e 9.º, n.º 1, da Decisão-Quadro 2006/783/JAI, devem ser interpretados no sentido de que se opõem a uma legislação como a do Estado de execução, como a que está em causa no processo principal, que prevê como único meio de impugnação de uma decisão de reconhecimento e execução o recurso para uma segunda instância, no âmbito do qual não é admissível a produção de prova, nomeadamente pessoal?

b. Sendo a resposta negativa, os artigos 1.º, n.º 2, 7.º, n.º 1, e 9.º, n.º 1, da Decisão-Quadro 2006/783/JAI, são compatíveis com o artigo 47.º, §§1 e 2, da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia e com os artigos 2.º e 19.º n.º 1, §2, do Tratado da União Europeia?

CXL. Além destas questões, são ainda essenciais os seguintes aspectos de direito da União, relativamente aos quais também se requer o reenvio prejudicial (cf. Secção II-D supra):

c. Os artigos 1.º, n.º 2, 7.º, nº 1, 8.º, n.º 2, al. d), e 9.º, nº 1 e 2, da Decisão-Quadro 2006/783/JAI, conjugados com os artigos 6.º, nº 1 e 2, 8.º, n.º 1, 2, 4, 6, 8 e 9, da Directiva 2014/42/UE, e com os artigos 2.º e 19.º n.º 1, §2, do Tratado da União Europeia, e 47.º, §§ 1 e 2, da CDFUE, devem ser interpretados no sentido de que se opõem-se ao reconhecimento e execução de uma decisão de um Estado-Membro que declare a perda de bem pertencente a terceiro, sem que este tenha tido ou possa ter intervenção processual no processo no qual foi decretada a decisão de perda e a emissão do certificado ao abrigo da Decisão-Quadro?

d. Os artigos 1.º, n.º 2, 7.º, nº 1, 8.º, n.º 2, al. d), e 9.º, nº 1 e 2, da Decisão-Quadro 2006/783/JAI, conjugados com os artigos 6.º, nº 1 e 2, 8.º, n.º 1, 2, 4, 6, 8 e 9, da Directiva 2014/42/UE, e com os artigos 2.º e 19.º n.º 1, §2, do Tratado da União Europeia, e 47.º, §§ 1 e 2, da CDFUE, devem ser interpretados no sentido de que se opõem-se ao reconhecimento e execução de uma decisão de um Estado-Membro que declare a perda de bem pertencente a terceiro, sem que este tenha tido ou possa ter intervenção processual no processo no qual foi decretada a decisão de perda e a emissão do certificado ao abrigo da Decisão-Quadro e sem que tenha sido citado no processo de reconhecimento e execução no Estado-Membro de execução?

e. Os artigos 1.º, n.º 2, 7.º, nº 1, 8.º, n.º 2, al. d), e 9.º, nº 1 e 2, da Decisão-Quadro 2006/783/JAI, conjugados com os artigos 6.º, nº 1 e 2, 8.º, n.º 1, 2, 4, 6, 8 e 9, da Directiva 2014/42/UE, e com os artigos 2.º e 19.º n.º 1, §2, do Tratado da União Europeia, e 47.º, §§ 1 e 2, da CDFUE, devem ser interpretados no sentido de que se opõem-se ao reconhecimento e execução de uma decisão de um Estado-Membro que declare a perda de bem pertencente a terceiro, sem que tenha sido citado no processo de reconhecimento e execução no Estado-Membro de execução?

CXLI. As questões de direito da União suscitadas são questões essenciais ao desfecho do presente processo – já que determinam qual o meio de defesa ou impugnação aplicável por parte do Requerido, sendo com isso susceptíveis de influir na conformação concreta do processo, na definição da amplitude dos direitos de defesa e intervenção do Requerido e, como tal, na decisão da causa. Mais, são questões novas, não decididas pelo TJUE, não resultando claro da jurisprudência existente até à data a resposta que o direito da União daria às mesmas, como interpretado pelo TJUE. O Tribunal ad quem é última instância neste processo.

CXLII. Estão assim preenchidos os requisitos que, à luz dos artigos 2.º, 19.º, n.º 1, §2, 3, al. b), do TUE, e 267.º, nº 3, do TFUE, e 47.º, n.º 1, da CFDUE, obrigam o Tribunal nacional a submeter as questões suscitadas ao Tribunal de Justiça da União, sob pena de violação destes normativos.

CXLIII. O artigo 7.º, do CPP, aplicável ex vi art. 21.º da Lei 88/2009, de 31.08, deve ser interpretado no sentido de que em processo de reconhecimento e execução de decisão de perda que corra termos perante Tribunal de última instância em Portugal é obrigatório ordenar a suspensão do processo e a submissão das questões de direito da União à apreciação do Tribunal de Justiça por meio de reenvio prejudicial, sempre que se trate de questão decisiva, a sua solução não decorra claramente das normas de direito da União aplicáveis, não tenha sido objecto de decisão pelo TJUE, ou a solução para a questão não decorra claramente dessa jurisprudência, constituindo consequentemente a decisão do tribunal de última instância em Portugal um desenvolvimento do direito da União à margem da jurisdição atribuída pelo TJUE pelo art. 267.º, do TFUE.

CXLIV. Tendo este Colendo Tribunal dúvidas sobre as implicações do direito da União para a interpretação do artigo 7.º do CPP, deverá submeter esta questão à apreciação do próprio TJUE, já que esta questão, em si mesma, é essencial para a solução do presente (e de muitos outros) litígios.

CXLV. Assim, é obrigatório o reenvio da questão suscitada, ao abrigo do art. 7.º do CPP, ex vi, art. 21.º da Lei 88/2009, de 31 de Agosto, e dos artigos 2.º, 19.º n.º 1, e §2, 3, al. b), do TUE, e 267.º, n.º 3, do TFUE, e artigo 47.º, §§1 e 2, CDFUE, sob pena de violação destes normativos do direito da União, devendo o Recorrente ser notificado para indicar qual a formulação concreta das questões que pretende ver submetidas ao TJUE:

a. Os artigos 2.º, 19.º n.º 1, e §2, 3, al. b), do TUE, 267.º, n.º 3, do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia, e o artigo 47.º, §§1 e 2, da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia, devem ser interpretados no sentido de que se opõem-se a uma legislação como a do processo principal, segundo a qual é permitida a prossecução de um processo de reconhecimento e execução de uma decisão de um Estado-Membro que declare a perda de bem pertencente a terceiro, sem que um Tribunal de última instância submeta ao Tribunal de Justiça as questões de direito da União que sejam decisivas, cuja solução não decorra claramente das normas de direito da União aplicáveis, que não tenham sido objecto de decisão pelo TJUE, ou cuja solução não decorra claramente dessa jurisprudência, constituindo consequentemente a decisão do tribunal de última instância em Portugal um desenvolvimento do direito da União à margem da jurisdição atribuída pelo TJUE pelo art. 267.º, do TFUE?

CXLVI. O Recorrente suscita a inconstitucionalidade da norma extraída do art. 7.º do CPP, aplicável ex vi art. 21.º da Lei 88/2009, de 23.08, no sentido de não ser obrigatório o reenvio de questão de direito da União que corra termos perante tribunal de última instância em Portugal, sempre que se trate de questão decisiva, a sua solução não decorra claramente das normas de direito da União em causa, não tenha sido objecto de decisão pelo TJUE, ou a solução para a questão não decorra claramente dessa jurisprudência, constituindo consequentemente a decisão do tribunal de última instância em Portugal um desenvolvimento do direito da União à margem da jurisdição atribuída pelo TJUE pelo art. 267.º, do TFUE, por violação do art. 32. º, n.º 9, da CRP.

CXLVII. O Recorrente suscita a inconstitucionalidade da norma extraída do art. 119.º, al. e), do CPP, e do art. 7.º do CPP, aplicável ex vi art. 21.º da Lei 88/2009, de 23.08, segundo a qual as normas sobre o reenvio prejudicial do artigo 267.º, n.º 3, do TFUE não constituem normas de competência cuja violação seja causa de nulidade, por violação do art. 32.º, n.º 9, da CRP.

CXLVIII. O art. 8.º, n.º 4, da CRP determina que as disposições dos Tratados e do direito da UE são aplicáveis nos termos deste direito, ou seja, no que diz respeito ao reenvio prejudicial, nos termos do art. 267.º do TFUE.

CXLIX. Assim, de acordo com o direito fundamental ao juiz natural ou juiz legal, nos termos do art. 32.º, n.º 9, da CRP, o Tribunal a quem compete a decisão sobre a correcta interpretação quando esteja em causa uma questão de interpretação do direito da UE cuja resposta não resulte de forma evidente de jurisprudência já estabelecida e seja determinante para a resolução do litígio a nível nacional, estando este perante tribunal que decida em última instância, é o TJUE, sendo este o juiz natural ou legal.”

O Ministério Público respondeu ao recurso pronunciando-se no sentido da improcedência, e concluindo:

“1.  O   Acórdão   ora   recorrido   fez   uma   correcta   aplicação   do   Direito, designadamente, da Lei n.º 88/2009 de 31/8.

2. E como tal, considerou a inexistência de qualquer causa que obstasse ao reconhecimento da decisão de perda proferida pelo Tribunal ..., e respectiva execução.”

Neste Tribunal, a Sra. Procuradora-Geral Adjunta, na primeira vista que teve do processo, promoveu o cumprimento do disposto no art. 672.º n.º 3 do CPC, o que foi deferido. E pela formação a que se refere o art. 672.º, n.º 3, do CPC, foi proferida decisão no sentido de se justificar “a admissão da revista, considerando o relevo jurídico, nos termos do art. 672.º, n.º 1, al. a), do CPC”.

Aberta nova vista, a Sra. Procuradora-Geral Adjunta emitiu então parecer no sentido da rejeição do recurso, fazendo-o nos seguintes termos:

 “1.  Do acórdão proferido pelo Tribunal da Relação ..., datado de 28.04.2020, complementado pelo acórdão de 22.09.2020, considerando-se o arguido legalmente notificado em 28.09.2020, interpõe o mesmo Recurso de Revista Excecional para o Supremo Tribunal de Justiça, em 29.10.2020, nos termos do disposto nos arts. 17.º, n.º 1, al. a) e b), da Lei 88/2009, de 31.08, e 629.º, n.º 2 al. a), 671.º, n.º 2 b) e 672.º, n.º 1 a) e b), e 854.º, todos do Código de Processo Civil, ex vi art. 4.º, 400.º, n.º 2 e 3, 510.º do Código de Processo Penal, e art. 21.º n.º 2 da Lei 88/2009, de 31.08.

2. O Magistrado do MºPº junto do TR... respondeu fundadamente ao recurso em causa, pronunciando-se pela sua improcedência

3. Cumprido que foi o disposto no art. 672º nº 3 do CPC, por acórdão da ... Secção do  STJ de 11.05.2021, foi decidido :

a) Sem prejuízo do que venha a ser decidido relativamente às questões de direito que foram suscitadas pelo recorrente em torno da competência internacional e da ofensa de caso julgado, nos termos do art. 629º, nº 2, al. a), e do nº 3 do art. 671º do CPC;

b) Admite-se a revista excecional, tendo em conta o relevo jurídico das demais questões de direito, nos termos do art. 672º, nº 1, al. a).

4. Tendo em consideração o  decidido no aludido acórdão da ... Secção do STJ, tendo sido a requerimento do Ministério Público que  foi reconhecida pelo tribunal de 1ª instância a decisão judicial emanada do Tribunal Penal ..., ..., ..., que decretou o confisco da propriedade sita em ..., Quinta ..., sendo assim parte nos autos, dir-se-á  que relativamente  às questões suscitadas de alegada incompetência internacional e de ofensa do caso julgado, colocadas em sede de recurso  ordinário interposto para o STJ do acórdão proferido pelo TR...  de 28.04.2020/22.09.2020, se afigura não serem as mesmas suscetíveis de recurso ordinário para o STJ, nos termos do disposto no art. 400º nº 1-c), 432 e 434º, do CPP.

4.1 Decorre dos autos ter sido o recorrente condenado, por decisão de 5 de Agosto de 2010, proferida no ... – Tribunal Criminal ..., pela prática do crime de participação em conspiração para cometer fraude em investimento de capitais em 3 anos e 6 meses de prisão, que cumpriu, tendo ficado consignado na sentença, que as questões relativas à perda (confisco), compensações e custas foram adiadas para que sejam tratadas numa fase posterior, não obstante, antes da sentença, o Ministério Público ter iniciado o processo de confisco contra o arguido.

A 14 de Novembro de 2014, no mesmo processo e Tribunal, foi proferida decisão de confisco, transitada em julgado pelo montante de £ 1.458.317,66, a pagar em 6 meses, tendo sido fixada em 3 anos de prisão a sanção pelo incumprimento.

O Tribunal Penal ..., solicitou a Portugal o reconhecimento e execução de decisão de confisco de uma propriedade sita em ..., Quinta …, …,(……..) decisão proferida no âmbito de processo penal por aquele tribunal, ao abrigo da decisão quadro 2006/783/Jal do Conselho de 06.10 relativa à aplicação do principio do reconhecimento mutuo às decisões de perda.

O Ministério Público, em Portugal, promoveu que se procedesse à execução do solicitado pelas autoridades ..., com base no disposto na Lei 88/2009 de 31.08, que transpôs para a ordem jurídica interna a referida Decisão Quadro.

Pelo tribunal de 1ª instância foi reconhecida a decisão judicial emanada do Tribunal Penal ..., ..., ..., que decretou o confisco da propriedade sita em ..., Quinta ....

O requerido interpôs recurso de tal decisão, tendo o Tribunal da Relação ...  negado provimento a tal recurso, mantendo a decisão recorrida no sentido de reconhecer a decisão de confisco da dita propriedade.

Nos termos do disposto na al. c) do art. 400º do CPP “não é admissível recurso de acórdão proferidos, em recurso, pelas relações que não conheçam, a final, do objeto do processo”.

E é essa, cremos, a situação dos presentes autos.

 Como se decidiu na Decisão Sumária proferida em 11.02.2020 na 5ª Secção do STJ (Cons. Carlos Almeida), a norma do art. 629º nº 2-a) do CPC não se justifica em processo penal; mas mesmo que a mesma se considerasse aplicável, sempre ocorreria a limitação ao recurso resultante do disposto no art. 400.º n.º 1-c) do CPP.

Como se decidiu ainda, designadamente no recente acórdão da 3ª Secção do STJ de 27.01.2021 (proc. 266/07.5TATNU.E1.S1, Cons.  Nuno Gonçalves, com extensa referência jurisprudencial):

“I. O regime dos recursos quanto à questão penal está regulado completa e autonomamente no CPP.

II. O regime da admissibilidade do recurso estabelecido no art. 629º n.º 2 do CPC não tem aplicação no processo penal.

III. Ao recurso em processo penal que vise a parte da decisão em matéria cível é aplicável o regime da revista consagrado no arts. 671º do Código de Processo Civil/CPC, incluindo a norma do nº 3 que estabelece a denominada dupla conforme.

IV. Tendo o acórdão recorrido confirmado, por unanimidade dos juízes, a decisão condenatória da 1ª instância em matéria cível, na vertente revista (normal) deparamo-nos com uma situação de dupla conformidade, que torna inadmissível o recurso de revista para este Supremo Tribunal de Justiça.”

5. Na eventualidade de assim se não entender, acompanham-se os fundamentos aduzidos no acórdão do TR..., realçados na resposta apresentada pelo MºPº, transcrevendo-se excertos do citado acórdão:

“O recorrente alega que foi violado o princípio ne bis in idem (art° 13° n° 1 al. b) da Lei n° 88/2009) porque as sanções aplicadas pelo crime (fraude) são manifestamente desnecessárias desproporcionadas (duas penas privativas da liberdade, uma pena acessória de inibição e uma decisão de perda)

O arguido foi condenado, a 5 de Agosto de 2010, no ... (no Tribunal Criminal ...), pela prática do crime de participação em conspiração para cometer fraude em investimento de capitais em 3 anos e 6 meses de prisão, que cumpriu, tendo ficado consignado na sentença, que as questões relativas à perda (confisco), compensações e custas foram adiadas para que sejam tratadas numa fase posterior, não obstante, antes da sentença, o Ministério Público ter iniciado o processo de confisco contra o arguido.

A 14 de Novembro de 2014, no mesmo processo e Tribunal, foi proferida decisão de confisco, transitada em julgado pelo montante de £ 1.458.317,66, a pagar em 6 meses, tendo sido fixada em 3 anos de prisão a sanção pelo incumprimento.

Dispõe o art° 29° n° 5 da Constituição que "Ninguém pode ser julgado mais que uma vez pela prática do crime".

A expressão "crime" deve ser entendida, como um dado de facto ou acontecimento histórico que, porque subsumível em determinados pressupostos de que depende a aplicação da lei penal constitui um crime.

Este princípio constitui um princípio basilar do Estado de Direito democrático e está também consagrado nos textos internacionais pertinentes à salvaguarda dos direitos, liberdades e garantias fundamentais, nomeadamente no art° 14° n° 7 do Pacto Internacional Sobre Direitos Civis e Políticos e no art° 4 do Protocolo n° 7 à Convenção Europeia dos Direitos do Homem.

Deste princípio resulta, pois, que um cidadão não pode ser julgado mais do que uma vez pela prática do mesmo facto ou acontecimento histórico, mas não obsta a que um arguido possa ser sujeito a mais do que uma sanção, principal e acessórias.

Ora, no caso em apreço, o arguido foi julgado pelo mesmo facto ou acontecimento histórico uma só vez e foi condenado nas penas referidas, previstas para o crime cometido.

Não se nos afigura que as sanções aplicadas ao recorrente sejam desnecessárias ou desproporcionadas e que violem o disposto no art° 18º n° 2 e 29° n° 5 da CRP, dado que estamos apenas perante um sistema de penas, que é diferente do nosso.”

No que tange à alegada violação do disposto no art.° 13° n.° 2 al c) da Lei n.° 88/2009, de 31/8, e eventual prescrição do procedimento criminal e das penas aplicadas no ..., tal como já havia sido decidido em 1ª Instância, o Tribunal da Relação ... considerou que não existiam quaisquer causas que obstassem ao reconhecimento, em Portugal, da decisão de perda decretada pelo tribunal …, nomeadamente as previstas nos números 1 e 2 do art.° 13° da  Lei n.° 88/2009, de 31/8.

Ali se fundamenta:

“Diz o art° 13 de Lei n° 88/2009 no n° 2 al. c) que " O tribunal português pode recusar o reconhecimento e a execução da decisão de perda quando tenham decorrido os prazos de prescrição do procedimento criminal ou da pena, de acordo com a lei portuguesa, desde que os tribunais portugueses sejam competentes para o conhecimento dos factos a que se refere a decisão".

Ora, a decisão é a condenação pelo crime de burla ocorrida na ... e não a "decisão de perda" de bens registados em Portugal.

O recorrente alega na conclusão LXXIII, "Desde logo, aquela interpretação refere que o imóvel sito em Portugal ainda é fruto de dinheiro que havia sido doado a terceiro, dinheiro esse resultado da actividade criminosa do recorrente, pelo que os tribunais portugueses seriam competentes para conhecer os factos, pois que ocorreram em Portugal (art° 4 alínea a) do C. Penal), já que aqui se verificou um resultado da actividade criminosa ".

De acordo com o art° 4 n° 1 al a) do C. Penal, a lei portuguesa é aplicável a factos praticados: a) em território português, seja qual for a nacionalidade do agente" e nos termos do art° 7o n° 1 "o facto considera-se praticado tanto no lugar em que, total ou parcialmente e sob qualquer forma de comparticipação, o agente actuou, ou, no caso de omissão, devia ter actuado, como naquele em que o resultado típico ou o resultado não compreendido no tipo de crime se tiverem produzido".

Não assiste razão ao recorrente quanto ao alegado, dado que o crime de burla se consumou na ... e aqui em Portugal apenas foi escondido o dinheiro proveniente de tal ilícito criminal, que já havia sido obtido com a consumação do crime no Estado de emissão.

(….)

Estabelece o art. 112-A do C. Penal (com a epigrafe - Pagamento do valor declarado perdido a favor do Estado-) no seu n° 2 do C. Penal, "nos casos em que não tenha havido lugar a aplicação de pena ou medida de segurança", aplicam-se os prazos de prescrição previstos para o procedimento criminal".

No caso concreto, a pena principal foi aplicada. Assim, sempre se teria em conta a prescrição da pena e não do procedimento criminal.

Por outro lado, dado que os tribunais portugueses são incompetentes para conhecer dos factos, nos termos do art° 13, n° 2 al c) da Lei n° 88/2009, também lhes está vedado conhecer da prescrição, como causa de recusa de reconhecimento e de execução da decisão estrangeira, pelo que também não assiste razão ao recorrente quanto a este segmento da decisão.”

Pelo exposto pronunciamo-nos pela rejeição do recurso ordinário interposto para o STJ, ou caso assim se não entenda, pela improcedência de tal recurso.”

O requerido respondeu ao parecer, nos seguintes termos:

“AA, requerido nos autos supra identificados e nos mesmos melhor identificado, após ter sido notificado do Parecer do Ministério Público (Ref.ª ...), limitado às questões referidas na alínea a), do Acórdão de 11 de Maio de 2021 proferido pela Formação de Apreciação Preliminar das secções cíveis (Ref.ª CITIUS ...), em cumprimento do determinado pela Colenda Conselheira Relatora, por despacho de 03.05.2021 (Ref.ª CITIUS ...), vem, muito respeitosamente, apresentar a sua RESPOSTA o que faz com os seguintes fundamentos:

I – Da admissibilidade do recurso de revista

1. Por despacho de 12 de Fevereiro de 2021 (Ref.ª CITIUS ...), foi o Recurso de revista admitido pelo Venerando Desembargador Relator junto do Tribunal a quo, “nos termos dos arts. 399.º 400.º nº 2 e 3 e 510.º do CPPenal e 629.º nº 2 do Cód. de Processo Civil, ex vi do artº 17º nº 2 e 21º nº 2 da Lei nº 89/2009, de 31 de Agosto e ainda nos termos do artº 672º nº 1, als. a) e b) do C.P.Civil, já que a decisão quanto à verificação dos pressupostos do recurso de revista excecional compete ao Supremo Tribunal de Justiça”.

2. Em 17.03.2021 (Ref.ª CITIUS ...), a Procuradoria-Geral Regional ... apresentou a sua resposta ao recurso apresentado pelo requerido, tendo remetido e acolhido a fundamentação dos acórdãos recorridos quanto à matéria do recurso, entendendo que deveria ser negado provimento ao mesmo.

3. Quanto à admissibilidade do recurso, o Exmo. Procurador-Geral Adjunto não se pronunciou, nem nada opôs à mesma.

4. O Ministério Público junto deste Tribunal, logo em 20.04.2021, promoveu o cumprimento do disposto no artigo 672.º, n.º 3, do CPC, sem que (tal como a nível da primeira instância) qualquer óbice tivesse sido oposto à aplicabilidade das normas do processo civil (cf. Parecer, Ref.ª CITIUS ...).

5. Por despacho da Colenda Conselheira Relatora, de 03.05.2021 (Ref.ª CITIUS ...), foi o processo submetido à apreciação da formação prevista no artigo 672.º, n.º 3 do CPC que, por decisão de 11.05.2021 (Ref.ª CITIUS ...), considerou verificados os fundamentos da admissibilidade da Revista Excepcional. Nomeadamente, que, “tendo em conta o relevo jurídico das demais questões de direito, nos termos do art. 672.º, n.º 1, al. a).”, o recurso se deveria considerar admissível.

6. Esta alínea refere-se à relevância jurídica das questões invocadas, cuja apreciação é essencial, pois necessária para uma melhor aplicação do direito, o que impõe que tais questões possam e devam ser apreciadas em sede de revista excepcional.

7. Na sequência desta decisão, o Requerido foi, em 15.07.2021, notificado do Parecer do Ministério Público junto do Supremo Tribunal de Justiça relativamente ao recurso de revista por si apresentado e a que aqui se responde

8. Este Parecer não prejudica a admissão da Revista excepcional, já que a mesma compete à formação de juízes que já se havia pronunciado em 11.05.2021, tendo admitido o recurso, decisão essa que é definitiva.

9. O Ministério Público, no âmbito do referido Parecer, veio pronunciar-se no sentido da inadmissibilidade do recurso interposto, no que toca à admissibilidade da Revista “normal”, mesmo estando em causa questões de incompetência internacional e de ofensa de caso julgado, entendendo que “se afigura não serem as mesmas susceptíveis de recurso ordinário para o STJ, nos termos do disposto no art. 400º nº 1 c), 432º e 434º do CPP.” (cfr. ponto 4 do parecer do Ministério Público).

10. Considerando:

a. Que não é aplicável a norma do artigo 629.º, n.º 2, al. a), do CPP, “em processo penal”;

b. Ainda que fosse aplicável aquela norma, não seria o recurso admissível por força do resultante no disposto no artigo 400.º, n.º 1, al. c), do CPP, por o acórdão recorrido não conhecer, a final, do objecto do processo.

11. O referido Parecer afirma que o regime dos recursos em processo penal é regulado de forma completa pelo Código de Processo Penal, desconsiderando que a matéria do confisco, tal como indicado e desenvolvido pelo Recorrente no recuso por si apresentado e que aqui se dá por reproduzido por questões de economia processual, evitando a repetição excessiva, é uma matéria de natureza civil.

12. O Parecer vem invocar o decidido no acórdão da 3.ª secção do STJ, de 27.01.2021, emitido no âmbito do Proc. n.º 266/07.5TATNU.E1.S1.

13. O Recorrente já deixou exposta abundantemente a sua discordância com a inaplicabilidade do artigo 629.º em processos de reconhecimento e execução de decisão de confisco, em termos que aqui se dão por reproduzidos.

14. Aliás, o Supremo Tribunal de Justiça, na sua decisão de 11.05.2021, ao pronunciar-se, nos termos do artigo 672.º, n.º 3 do CPC, sobre a admissibilidade da revista excepcional, considerou, em primeiro lugar, que o recurso de revista excepcional era aplicável aos recursos interpostos no âmbito do processo penal, na parte em que estivessem em causa questões de natureza cível, acolhendo assim a argumentação do Requerido no sentido de que as decisões sobre os recursos em matéria de processo Ccvil são aplicáveis também aos recursos das decisões de reconhecimento de decisões de confisco, por estar em causa matéria cível.

Veja-se:

“A intervenção desta formação ao abrigo do artigo 672.º, n.º 3 do CPC está essencialmente focada na apreciação da admissibilidade de recursos de revista excepcional interpostos no âmbito de processos cíveis. Porém, essas atribuições são alargadas a recursos interpostos no âmbito de processos de natureza criminal, na parte em que estejam em causa questões de natureza cível (normalmente ligadas à dedução de pedido de indemnização cível) cuja impugnação, segundo a legislação específica, obedeça aos requisitos previstos para as decisões proferidas no âmbito de processos de natureza cível.”

15. Mas, em qualquer caso, o entendimento vertido no acórdão da 3.ª secção do STJ, de 27.01.2021, emitido no âmbito do Proc. n.º 266/07.5TATNU.E1, não tem como consequência a inadmissibilidade do recurso interposto ao abrigo do artigo 629.º, n.º 2, al. a), pois, conforme oportunamente alegado, o presente recurso rege-se pelas normas do processo civil tendo em conta a natureza do confisco, e nos termos do disposto nos artigos 400.º, nº 2 e 3, do CPP, bem como do artigo 510.º do mesmo Código.

16. Aquele acórdão também vem considerar aplicável o regime do recurso de revista previso no artigo 671.º do CPC, incluindo o disposto no n.º 3 deste artigo, referente à regra da dupla conformidade como obstáculo à interposição de recurso.

17. O n.º 3 do artigo 671.º do CPC refere expressamente que “sem prejuízo dos casos em que o recurso é sempre admissível, não é admitida revista do acórdão da Relação que confirme, sem voto de vencido e sem fundamentação essencialmente diferente, a decisão proferida na 1.ª instância, salvo nos casos previstos no artigo seguinte.”

18. Ora, no que releva para os presentes autos, o recurso é sempre admissível nos termos do artigo 629.º, n.º 2 a) e b) do CPC.

19. Sendo, como defendido no citado acórdão, o artigo 671.º do CPP, incluindo o seu n.º 3, aplicável ao segmento cível da decisão proferida no âmbito de processo penal, tem necessariamente de ser aplicável todo o seu conteúdo, inclusivamente a primeira parte do mesmo, que ressalva a admissibilidade de recurso nos casos em que este é sempre admissível, os casos previstos no artigo 629.º, n.º 2, do CPC.

20. Em qualquer caso, não pode afirmar-se que nestes autos exista dupla conforme que permitisse tornar irrecorrível a decisão, já que a decisão da primeira instância foi proferida sem audição e contraditório do Requerido, pelo que é insusceptível de fundar uma dupla conforme que impeça a interposição de recurso nos termos do artigo 671.º, n.º 3, do CPP (ainda que não fosse aplicável o artigo 629.º, n.º 2, al. a).

21. Com efeito, a função daquela norma é limitar o recurso quando a parte interessada tenha tido oportunidade de apresentar a sua posição em duas instâncias, tendo ambas proferido decisão de sentido idêntico.

22. O que não aconteceu in casu (sendo, aliás, esse defeito estrutural do processo, que não permitiu que o Requerido, aqui Recorrente, influísse na decisão da causa na primeira instância, um dos aspectos discutidos nas questões de mérito do recurso).

23. O Requerido, quanto à admissibilidade do recurso, explicou que a aplicação das regras do processo civil são aplicáveis aos recursos de decisões proferidas ao abrigo da Lei 88/2009, de 31.08 (art. 400.º, n.º 2 e 3, do CPP).

24. Esta conclusão retira-se, desde logo, partindo da própria natureza das decisões de confisco:

25. Como afirma Conde Correia, “[…] No entanto, apesar da similitude com as penas, a verdade é que tirando casos muito limitados em que como tal deva ser considerado (v.g. art. 8.º, al. a), do Dec-Lei n.º 28/84), o confisco não é hoje uma sanção, mas um mecanismo civil, inserido no processo penal, de restituição do arguido ao status patrimonial anterior à prática do crime” (in Apreensão ou Arresto Preventivo dos Proveitos do Crime?, João Conde Correia, RPCC 25 (2015), p. 533).

26. No ordenamento jurídico português existem várias garantias processuais penais do confisco: a apreensão de instrumentos, produtos, recompensas ou vantagens da prática do crime (arts. 109.º e 111.º, n.ºs 1, 2, e 3, do CP e 178.º do CPP), o arresto para garantir a perda do valor das vantagens que não podem ser apreendidas (111.º, n.º 4, do CP e art. 228.º do CPP) e o arresto de bens suficientes para garantir o valor do património incongruente (arts. 7.º e 10.º da Lei n.º 5/2002).

27. O art. 10.º da Lei 5/2002, de 11.01, que prevê o arresto configurado para garantia do pagamento do valor da perda alargada de bens (cfr. art. 7.º da Lei 5/2002 de 11.01), remete para o Código de Processo Penal que, por sua vez, no seu artigo 228.º, n.º 1, remete para os termos da Lei Processual Civil.

28. Tendo tido a decisão de reconhecimento em causa nestes autos origem numa decisão de perda, de natureza civil, ainda que associada a um processo penal, deverá aplicar-se, em matéria de recursos, a disciplina do C.P.C., por remissão operada pelo artigo 400.º, n.º 2 e 3 do C.P.P. ex vi art. 17.º, n.º 2 da Lei n.º 88/2009, de 31.08.

29. Tal resulta também claro do Acórdão proferido pelo Supremo Tribunal de Justiça, em 11.09.2019, no âmbito do Processo n.º 159/17.8JAPDL.L1.S1, que

“II. – A decisão (judicial) que declara, ou decreta, a final, a perda alargada de bens, é recorrível, nos mesmos termos da decisão que decide o pedido cível processado em processo penal – artigo 400º, nº 3 do Código de Processo Penal.”

30. Assim, a execução da decisão de confisco segue o regime cível e a sua recorribilidade deverá ser aferida segundo os critérios da lei cível.

31. Logo, e num primeiro momento, atentando na última parte do n.º 3 do artigo 400.º do C.P.P., “mesmo que não seja admissível recurso quanto à matéria penal, pode ser interposto recurso da parte da sentença relativa à indemnização civil.”

32. O que significa que as regras que prevêem a inadmissibilidade do Recurso, nomeadamente as previstas nas várias alíneas do n.º 1 do artigo 400.º do C.P.P., caso se considerem verificadas, devem ser desconsideradas no momento de aferir a recorribilidade de um segmento civil da causa principal.

33. O que é o caso da decisão de confisco, e, por maioria de razão, da decisão de reconhecimento de decisão de confisco estrangeira ao abrigo da Lei 88/2009, de 31.08, pois sem esta última decisão a primeira não poderá ter eficácia em Portugal - a eficácia de uma depende da prolação da outra.

34. Em qualquer caso, dúvidas houvesse, e porque estamos em matéria de reconhecimento e execução de decisão de perda de bens, é o próprio artigo 510.º, do CPP, que determina a aplicação à execução de bens em processo penal do disposto no Código de Processo Civil.

35. Assim, deve a recorribilidade desta decisão ser assegurada nos mesmos termos da recorribilidade de decisões de confisco proferidas em território nacional, sendo-lhe aplicável a regra do n.º 2 e 3 do artigo 400.º do C.P.P., devendo o presente Recurso ser admitido por aplicação das regras do Processo Civil.

36. Mais, o presente processo é um processo de reconhecimento e execução de sentença estrangeira, nos termos do disposto na Lei n.º 88/2009, de 31.08.

37. O reconhecimento e execução de decisão ao abrigo da Lei 88/2009, de 31.08, não é automático.

38. Exige, pelo contrário, a apreciação – e apreciação pela primeira vez, em primeira instância – da verificação dos fundamentos de recusa de reconhecimento e execução consagrados no artigo 13.º da referida Lei, fundamentos não apreciados no Estado de emissão.

39. Pelo que inexiste qualquer motivo para tratar diferentemente o regime processual do recurso desta decisão face ao recurso da decisão proferida em Portugal, ainda que possam existir diferenças quanto ao objecto e limites do tema em discussão.

40. A pretensão, num processo de reconhecimento e execução de uma sentença penal estrangeira é, precisamente, o pedido de reconhecimento da validade desta no ordenamento jurídico receptor, que deverá ser aferido em função dos motivos que permitam ou imponham a este Estado o reconhecimento ou o não reconhecimento dessa decisão.

41. O objecto deste processo é precisamente a decisão de conferir ou recusar o reconhecimento da decisão emitida em outro Estado-Membro da União Europeia, para efeitos da sua execução em Portugal.

42. Tendo em conta que as decisões de confisco estrangeiras não têm eficácia em Portugal na ausência daquela decisão de reconhecimento e execução, a decisão em causa tem efeito idêntico ao da prolação de uma decisão de confisco ou perda proferida em Portugal, altamente restritivo do direito de propriedade constitucionalmente consagrado no art. 62.º da Constituição da República Portuguesa, pois opera em Portugal uma supressão deste direito, com base numa decisão proveniente de outra jurisdição.

43. A decisão de reconhecimento e execução é aliás a única e primeira decisão que recai sobre a existência ou ausência de causas de recusa de reconhecimento e execução, na sua grande maioria destinadas a proteger direitos fundamentais e princípios de ordem pública, seja de natureza europeia, seja constitucional interna (a verificação da existência de uma decisão autêntica de perda que possa ser reconhecida, o ne bis in idem, o direito a estar presente em julgamento, as imunidades e privilégios decorrentes da lei portuguesa que obstem à execução, a incriminação do facto em Portugal, a subsistência da pretensão punitiva apesar do decurso do tempo – cf. art. 13.º, n.º 1 e 2, da Lei 88/2009, de 31.08).

44. Assim, ainda que se considerasse aplicável o artigo 400.º, n.º 1, al. c), do CPP (norma que não é claramente aplicável, tendo em conta a natureza civil das questões suscitadas), a decisão de reconhecimento e execução de decisões dessa natureza proferidas em outro Estado-Membro da União Europeia é claramente decisão que versa sobre o objecto da causa, decidindo em Portugal (Estado competente para o efeito) sobre a verificação ou não verificação dos motivos que impedem o reconhecimento e ou a execução da decisão estrangeira em causa.

45. Pelo que nunca faria qualquer sentido a aplicação do disposto no artigo 400.º, n.º 1, al. c), do CPP.

Concretamente, quanto à competência internacional (art. 629.º, n.º 2, al. a), do CPC):

46. Sinteticamente, remetendo-se no demais para o exposto nas alegações de Recurso:

47. A decisão recorrida decidiu sobre várias matérias, alegadas pelo aqui Recorrente no seu recurso para o Tribunal da Relação .... No ponto 4.4 daquele recurso, o Recorrente invocou a violação do art. 13.º, n.º 2, al. c) da Lei n.º 88/2009, de 31 de Agosto, que prevê que o tribunal português pode recusar o reconhecimento e a execução de decisão de perda quando tenham decorrido os prazos de prescrição do procedimento criminal ou da pena, de acordo com a lei portuguesa, desde que os tribunais portugueses sejam competentes para o conhecimento dos factos a que se refere a decisão.

48. De acordo com o Recorrente, tivesse sido o imóvel sito em Portugal obtido com dinheiro doado a terceiro, resultado da actividade criminosa do Recorrente (como o Tribunal recorrido considerou provado), os tribunais portugueses seriam competentes para conhecer os factos, pois que ocorreram em Portugal, por aplicação dos critérios do art. 4.º alínea a), e 7.º, n.º 1, ambos do Código Penal.

49. O Tribunal da Relação ... considerou que os tribunais portugueses são incompetentes para conhecer dos factos, “dado que o crime de burla consumou-se na ... e aqui em Portugal apenas foi escondido o dinheiro proveniente de tal ilícito criminal, que já havia sido obtido com a consumação do crime no Estado de emissão.”

Mas a verdade é que a decisão de confisco assenta precisamente nos factos praticados em Portugal, concretamente a “tainted gift” através da qual é adquirido o imóvel.

50. A matéria em apreço neste segmento refere-se à competência internacional.

51. O recurso das decisões que versem sobre competência internacional é, em geral, de acordo com o disposto no artigo 629.º, n.º 2, al. a) do Código de Processo Civil, sempre admissível.

52. Sendo aplicáveis as normas do processo civil aos presentes autos, nos termos já expostos, nos termos do artigo 671.º, n.º 3 do CPC aos presentes autos (como até decorre do próprio parecer do Ministério Público) é necessariamente aplicável também o disposto no artigo 629.º, n.º 2, a), do CPC, ou seja, o caso em que o recurso é sempre admissível por estarem em causa questões de competência internacional.

53. Assim, ainda que se considere ter havido confirmação pelo Tribunal da Relação ... da decisão de reconhecimento do confisco emitida pela 1ª instância (sendo que, como referimos, para efeitos de recorribilidade não deverá considerar-se ser o caso), haverá recurso nos casos em que o recurso é sempre admissível, ou seja, nos casos previstos na alínea a) do n.º 2 do artigo 629º do CPC, em particular nos casos em que na decisão é discutida a competência internacional.

54. No acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 24.01.2018, proc n.º 5007/14.8TDLSB.L1.S1, o Tribunal decidiu o seguinte:

“Porém, os casos previstos no art. 629.º, n.º 2, do CPC, nomeadamente, a questão de violação de regras da competência em razão da matéria – são susceptíveis de recurso de revista (dita normal), mesmo que estejamos perante uma situação de dupla conforme. X - O tribunal criminal é competente para em sede de enxerto cível apreciar pedido de indemnização civil tendo por base causação de lesão determinada por crime de abuso de confiança contra a Segurança Social. XI Relativamente ao recurso de revista excepcional cabe à formação constituída pelos três juízes Conselheiros das Secções Cíveis, a que alude o n.º 3 do art. 672.º do CPC pronunciar-se sobre as questões alegadas e da admissibilidade do mesmo ou não, pelo que, deverão os autos ser remetidos à referida formação, nos termos e para os efeitos de apreciação preliminar sumária do recurso de revista extraordinária interposto.”

Quanto à questão relativa à ofensa de caso julgado (art. 629.º, n.º 2, al. a), do CPC):

55. Sinteticamente, remetendo-se no demais para o exposto nas alegações de Recurso:

56. O Requerido alegou ainda, no ponto 4.2 do seu recurso para o Tribunal da Relação ..., a violação do art. 13.º, n.º 1 al. b) da Lei 88/2009, de 31.08., pois, “pelos mesmos factos típicos, o Recorrente foi condenado numa pena de prisão já cumprida, numa sanção de confisco e numa segunda pena de 3 anos de prisão pelo não pagamento do valor atribuído aquele confisco” e ainda em pena acessória de inibição de funções.

57. Neste sentido, o recorrente entende que o reconhecimento da decisão de confisco teria de ser recusado, por decorrer claramente das informações constantes da certidão que a execução da decisão de perda é contrária ao princípio do ne bis in idem.

58. O princípio do ne bis in idem visa impedir a sobreposição de julgados com o mesmo objecto, tal como a excepção de caso julgado.

59. Por esta razão, é também admissível recurso para o Supremo Tribunal de Justiça, nos termos do artigo 671.º, n.º 3, pois, ainda que se considere ter havido confirmação pelo Tribunal da Relação ... da decisão de reconhecimento do confisco emitida pela 1ª instância (sendo que, como referimos, para efeitos de recorribilidade não deverá considerar-se ser o caso), haverá recurso para o STJ nos casos em que o recurso é sempre admissível, ou seja, nos casos previstos no n.º 2 do artigo 629.º do C.P.C., em particular nos casos em que na decisão é discutida a ofensa de caso julgado.

60. No demais, e no que se refere à questão da admissibilidade do recurso de revista, e por o Ministério Público, no seu Parecer junto deste Colendo Tribunal, e Resposta junto do Tribunal a quo não ter trazido outros argumentos inovadores (ou convincentes, na humilde perspectiva do Recorrente), e tendo em conta a extensa exposição já apresentada nas alegações de recurso, dão-se as mesmas por integralmente reproduzidas, incluindo a arguição das inconstitucionalidades suscitadas na referida peça.


***


61. Suscitando-se ainda, à cautela, a inconstitucionalidade da norma segundo a qual em processo de reconhecimento e execução de decisão de confisco ao abrigo da Lei 88/2009, de 31 de Agosto, o acórdão proferido pelo Tribunal da Relação sobre o recurso da decisão final é irrecorrível para o Supremo Tribunal de Justiça, norma extraída do artigos 400.º, n.º. 1, al. c), do CPP.

Inconstitucionalidade por violação dos artigos 13.º, 20.º, n.º 1 e 4, 32.º, n.º 1, e 62.º, do CRP.

62. E, também à cautela, a inconstitucionalidade da norma segundo a qual em processo de reconhecimento e execução de decisão de confisco ao abrigo da Lei 88/2009, de 31 de Agosto, o acórdão proferido pelo Tribunal da Relação sobre o recurso da decisão final que confirme a decisão da primeira instância proferida sem audição prévia do Requerido é irrecorrível para o Supremo Tribunal de Justiça, norma extraída do artigos 671.º, n.º 3, do CPC, ex vi artigo 400.º, n.º 2 e 3, e 510.º do CPP. Inconstitucionalidade por violação dos artigos 13.º, 20.º, n.º 1 e 4, 32.º, n.º 1, e 62.º, do CRP.

63. E, igualmente à cautela, a inconstitucionalidade da norma segundo a qual em processo de reconhecimento e execução de decisão de confisco ao abrigo da Lei 88/2009, de 31 de Agosto, o acórdão proferido pelo Tribunal da Relação sobre o recurso da decisão final é irrecorrível para o Supremo mesmo quando tenha como fundamento a violação das regras sobre competência internacional ou a ofensa do caso julgado, norma extraída do artigo 671.º, n.º 3, e 629.º, n.º 2, al. a), do CPC, ex vi artigo 400.º, n.º 2 e 3, e 510.º do CPP.

Inconstitucionalidade por violação dos artigos 13.º, 20.º, n.º 1 e 4, e 62.º, do CRP.

II – Do mérito do recurso de revista

64. O Recorrente apenas abordará perfunctoriamente, para recordar o que está em causa, o mérito do recurso interposto, tendo em conta que, salvo melhor opinião, o processo deve prosseguir para alegações orais, nos termos do artigo 681.º do CPC, aqui aplicável, tendo em conta que estamos perante matéria civil, em particular no que se respeita às questões suscitadas em sede de revista excepcional já admitida.

65. Com efeito, tendo em conta a novidade e complexidade das questões (e a ocorrência do Brexit, infra referida), o Recorrente crê que teria toda a utilidade para a boa decisão da causa a realização de audiência oral para discussão do objecto do recurso, cujo âmbito poderá ser limitado pela Colenda Conselheira Relatora, nos termos daquela norma, às questões que considere de maior complexidade, ou a exigirem exposição e debate mais detalhado e contraditório - com todos os benefícios que tal acarreta para a melhoria da aplicação do Direito - evitando-se assim mais longas exposições escritas sobre a matéria e beneficiando-se a concisão e delimitação do objecto da causa.

66. Além do mais, tendo em conta as questões de direito da União Europeia suscitadas, e a eventual pertinência da colocação de questões a título prejudicial ao TJUE, nos termos do artigo 267.º, do TFUE, de entre as quais as suscitadas nesta peça e nas alegações de recurso, a realização de audiência oral permitiria o debate sobre a pertinência, delimitação e formulação exacta das mesmas (sendo que o Ministério Público não tomou posição especificada sobre a matéria).

67. Requer assim a V. Exa. se digne, após admitido o Recurso, ordenar a realização da audiência oral.

68. No demais, e no que se refere à questão do mérito do recurso de revista, por o Ministério Público, no seu Parecer e Resposta, não ter trazido qualquer argumento inovador, e tendo em conta a extensa exposição já apresentada nas alegações de recurso, dão-se as mesmas por integralmente reproduzidas, incluindo a arguição das inconstitucionalidades suscitadas na referida peça.

III – Da questão jurídica superveniente - Brexit e final do período transitório

69. Como referiu a douta decisão da Formação de Apreciação Preliminar das secções cíveis, a intervenção deste Colendo Tribunal “mais se impõe quando se verifica que está em causa a execução de uma decisão emanada de Tribunal ... que, na altura em que foi proferida e em que foi iniciado este processo, ainda integrava a União Europeia”.

70. O Ministério Público não se pronunciou sobre as consequências deste facto jurídico notório, cujas consequências e complexidade não são de somenos e importa deixar dirimidas, constituindo o presente processo uma oportunidade para o efeito.

71. Em 31 de Janeiro de 2020, o Reino Unido saiu da União Europeia.

72. Foi instituído um período transitório no qual se mantiveram em vigor as normas do até então aplicáveis nas relações entre o Reino Unido e os restantes Estados-Membros da UE.

73. Este período terminou em 31 de Dezembro de 2020, já depois da interposição do presente recurso.

74. O regime jurídico aplicável passa a ser o determinado no Acordo de Comércio e Cooperação entre a União Europeia e a Comunidade Europeia da Energia Atómica, por um lado, e o Reino Unido da Grã-Bretanha e da Irlanda do Norte, por outro (doravante, “ACC”)1.

75. O Acordo é composto de 1259 páginas, sendo toda a Parte Terceira dedicada expressamente à cooperação em matéria penal, sendo ainda relevantes as disposições comuns (Parte Primeira), bem como as disposições finais (Parte Sétima).

76. Trata-se de regulamentação nova e cujas implicações jurídicas são de manifesta complexidade, dado o carácter inédito da situação jurídica da saída de um Estado-Membro da UE.

77. Desde logo, a saída de um Estado-Membro da UE tem uma consequência imediata:

78. a cooperação com o Reino Unido deixa de ser feita ao abrigo do princípio do reconhecimento mútuo, passando a ser regida pelos princípios clássicos de cooperação internacional penal.

79. Fica assim ao abrigo do “princípio” ou “modelo do pedido”, em particular pelo princípio da reciprocidade e da não limitação /taxatividade das causas de recusa de cooperação, bem como da sujeição a um crivo mais apertado de controlo da compatibilidade da execução de decisões estrangeiras com a ordem pública interna, nomeadamente os direitos fundamentais.

80. As Convenções em vigor neste domínio emanadas do Conselho da Europa, embora prevejam já a obrigação de cooperar “na mais ampla possível medida” e tenham alguns traços que divergem do clássico auxílio judiciário (por exemplo, já há envio directo de pedidos entre autoridades judiciárias), regem-se ainda pelo “modelo do pedido”.

81. Ou seja, um Estado pede (roga) a outro Estado que lhe providencie assistência para efeitos de prossecução penal ou execução de penas ou sanações num processo do Estado requerente.

82. À aceitação do pedido de cooperação podem ser levantados inúmeros obstáculos, não necessariamente tipificados em instrumentos internacionais e que poderão ser, entre outros, motivos de oportunidade política (criminal ou outra).

83. O sistema dito “clássico” de cooperação em matéria penal tem como características a natureza política da cooperação, a exigência de controlo da dupla incriminação (ainda que em determinados normativos restrita às medidas coactivas), a não taxatividade e discricionariedade quanto a motivos de não concessão de cooperação (sendo aplicáveis todos os motivos de recusa decorrentes do direito interno na medida em que não sejam explicitamente afastados pela Convenção), a inexistência de formulários vinculativos, a ausência de consequências para os Estados que não cooperem, a inexistência de prazos para o cumprimento dos pedidos e a possibilidade de intervenção político-administrativa (manifestações do modelo do “pedido”).

84. São apontadas (Cf. KLIP, André, European Criminal Law, 2.ª Ed., Antwerpen: Intersentia, 2012, p. 342-358, onde o autor distingue o “modelo do pedido” dos modelos do “reconhecimento mútuo” e da “disponibilidade”) como sendo as principais características dos instrumentos de reconhecimento mútuo, que os diferenciam dos instrumentos clássicos de auxílio, a ausência (parcial) de controlo da dupla incriminação do facto, a sua rigidez quanto aos fundamentos de recusa (fundamentos de recusa limitados e tipificados), a utilização de formulários vinculativos, o carácter de “ordem”, dotada de coercibilidade e podendo portanto a sua execução ser sindicada judicialmente, a existência de prazos e a horizontalidade e judiciarização da cooperação.

85. No modelo de reconhecimento mútuo - já não aplicável nestes autos – não estamos perante um Estado que solicita assistência a outro Estado, mas perante um Estado que ordena a execução de uma medida processual ou decisão penal no território de outro Estado e que, por princípio, este último deve reconhecer e executar, como se de uma decisão interna se tratasse.

86. No caso da Convenção que vincula Portugal e o Reino Unido nesta matéria-Convenção do Conselho da Europa Relativa ao Branqueamento, Detecção, Apreensão e Perda dos Produtos do Crime e ao Financiamento do Terrorismo (STE n.º 198, disponível em https://gddc.ministeriopublico.pt/instrumento/convencao-do-conselho-da-europa-relativa-ao-branqueamento-deteccao-apreensao-e-perda-d-0) - doravante “Convenção de Varsóvia” prevê-se, neste sentido, no art. 15.º, n.º 1: “As Partes cooperarão entre si, na mais ampla medida possível, para fins de investigação e de procedimento com vista à perda dos instrumentos e dos produtos.”

87. O mesmo se passando com o ACC, no seu artigo 656.º, em matéria de perda:

“O objetivo do presente título é assegurar que o Reino Unido, por um lado, e os Estados- -Membros, por outro, cooperem mutuamente, na medida mais ampla possível, nas investigações e procedimentos destinados ao congelamento de bens tendo em vista uma eventual perda posterior, assim como nas investigações e procedimentos destinados à perda de bens no âmbito de processos em matéria penal.

Tal não exclui outras formas de cooperação nos termos do artigo 665.º, n.ºs 5 e 6. O presente título prevê igualmente a cooperação com organismos da União por esta designados para efeitos do presente título.”

88. Ou seja, é inteiramente aplicável o princípio e o modelo do pedido.

89. Em segundo lugar, a União Europeia passa a ter apenas competências para regular as relações com o Estado que é agora um Estado terceiro naqueles domínios em que o Tratado lhe atribua competência.

90. Ora, quanto à cooperação com Estados terceiros, em matéria de cooperação penal (ao contrário do que sucede, por exemplo, em matéria aduaneira), a União não tem competências para vincular os Estados-Membros só por si, porquanto estamos no âmbito de competências partilhadas (cf. artigo 3.º e 4.º do TFUE).

91. Ainda que possa negociar instrumentos de cooperação, estes carecem sempre de ser ratificados pelos Estados-Membros de acordo com as respectivas regras constitucionais internas.

92. O que sucede por a União não ter competência para regular as relações externas em matéria de cooperação internacional penal (cf. artigo 4.º, n.º 1, 5.º do TUE).

Um mero exemplo:

93. O Acordo entre a União Europeia e os Estados Unidos da América sobre auxílio judiciário mútuo3) que, para entrar em vigor em Portugal, teve de ser ratificado, nos termos do disposto no artigo 161.º, al. i), e do artigo 166.º, n.º 5, da Constituição (e do artigo 3.º do Acordo, bem como do Tratado da União Europeia).

94. Sucede que, tanto quanto seja do conhecimento do Recorrente, inexiste qualquer instrumento de ratificação do Acordo de Comércio e Cooperação entre a União Europeia e a Comunidade Europeia da Energia Atómica, por um lado, e o Reino Unido da Grã-Bretanha e da Irlanda do Norte, por outro4),

95. Em flagrante violação do disposto no artigo 161.º, n.º 1, al. i), e 165.º. n.º 1, al. c), da CRP, pelo que tal Acordo não é aplicável em Portugal.

96. Pelo que o referido Acordo, nesta matéria, não pode ser aplicado em Portugal, padecendo de inconstitucionalidade orgânica, por violação do artigo 8.º, n.º 2 e 4, da CRP, que se deixa invocada para os devidos efeitos.

97. E sendo violador do próprio direito da UE (cf. artigo 4.º, n.º 1, 5.º do TUE).

98. Sendo assim aplicáveis as disposições previstas na Lei 144/99, de 31.08, bem como nos Tratados Relevantes do Conselho da Europa que estejam em vigor entre Portugal e o ..., em particular a Convenção do Conselho da Europa Relativa ao Branqueamento, Detecção, Apreensão e Perda dos Produtos do Crime e ao Financiamento do Terrorismo (STE n.º 198, disponível em https://gddc.ministeriopublico.pt/instrumento/convencao-do-conselho-da-europa-relativa-ao-branqueamento-deteccao-apreensao-e-perda-d-0), conhecida por “Convenção de Varsóvia”.

99. Desta forma, e com relevo sobre as questões invocadas no recurso,

100. Ainda que se considerasse que o referido Acordo era válido, o mesmo não deixaria de ter implicações para o presente processo, porquanto as normas nele estabelecidas nesta matéria (e muito idênticas às da Convenção do Conselho da Europa supra referidas) estabelecem motivos de recusa de reconhecimento e execução mais amplos e aplicáveis in casu.

101. Desde logo, o artigo 665.º do ACC decreta que a execução de uma decisão de perda estrangeira sobre bens situados no território do Estado que receba o pedido incide sobre: a. Bens declarados perdidos (cf. artigo 665.º, n.º 1, equivalente ao artigo 23.º da Convenção de Varsóvia) o que não é o caso do presente processo);

b. No caso de decisão de perda que consista na obrigação de pagar um valor (que é o caso do presente processo), através da execução de outros bens disponíveis (artigo 665.º, n.º 3, do ACC, equivalente ao artigo 23.º, n.º 3, da Convenção de Varsóvia).

102. O artigo 666.º dispõe que o procedimento para a execução da decisão de perda se rege pelo direito interno do Estado requerido (equivalente ao artigo 24.º da Convenção de Varsóvia).

103. Ao nível dos motivos de recusa de reconhecimento e execução, estes encontram-se regulados no artigo 670.º, disposição que não tem qualquer correspondência com a Decisão-Quadro 2006/783/JAI, transposta pela Lei 88/2009, de 31 de Agosto, sendo muito próxima da disposição equivalente da Convenção de Varsóvia (artigo 28.º).

104. Os motivos de recusa poderão ter natureza obrigatória ou facultativa, consoante o direito interno de cada Estado - no caso de Portugal, a Lei 144/99, de 31.08.

105. O artigo 670.º, n.º 1, al. a), prevê como motivo de recusa a contrariedade ao princípio ne bis in idem, como considerado pelo Estado requerido (também presente no artigo 28.º, n.º 1, al. f), da Convenção de Varsóvia).

106. O que, conjugado com a eliminação do princípio do reconhecimento mútuo, não pode deixar de impor a análise da violação deste princípio, invocado no recurso, à luz da perspectiva do direito interno, ordinário e constitucional, português.

107. O artigo 670.º, n.º 5, prevê ainda motivos específicos de recusa de pedidos de execução de decisões de perda.

108. Sendo os seguintes relevantes para os presentes autos (cf. artigo 670.º, n.º 5, al. b), do ACC, equivalentes ao disposto no artigo 28.º, n.º 4, al. b), da Convenção de Varsóvia):

a. Contrariedade com os princípios do direito interno do Estado requerido relativamente aos limites do confisco no que respeita à possibilidade de perda com referência à relação entre a infração e:

i. uma vantagem económica que possa ser qualificada como seu produto, ou

ii. bens que possam ser qualificados como seus instrumentos

109. Daqui decorre que, para o caso em apreço, estando em causa a determinação do montante da perda com base em um “tainted gift”, é, no mínimo, altamente questionável que possa considerar-se susceptível de perda de acordo com o direito português no qual, tanto quanto ao Recorrente é permitido conhecer, não tem qualquer figura equivalente.

110. Decorre ainda do artigo 670.º, n.º 5, als. c), do ACC, equivalente ao disposto no artigo 28.º, n.º 4, al. c), da Convenção de Varsóvia), o seguinte motivo de recusa específico:

a. Face ao direito nacional do Estado requerido, a decisão de perda não puder já ser proferida ou executada por motivo de prescrição.

111. Ou seja, a prescrição obsta ao reconhecimento independentemente da competência internacional para o conhecimento dos crimes em causa, deixando de existir esta limitação que constava da Decisão-Quadro 2006/783/JAI, e passando a ser aplicáveis, sem mais, as regras de prescrição portuguesas.

112. Prevê-se ainda seja recusada a cooperação, nos termos do artigo 675.º, nº 2 (correspondente ao artigo 32.º da Convenção de Varsóvia), para tutela de direitos de terceiros:

“a) Se terceiros não tiverem tido possibilidade efetiva de fazer valer os seus direitos” [...]

c) Se for contrário à ordem pública do Estado requerido”;

113. O relatório explicativo da Convenção de Varsóvia (disponível em https://rm.coe.int/16800d3813), refere o seguinte a propósito desta norma (tradução nossa):

“254. Esta disposição mantém-se inalterada em relação à Convenção de 1990. O artigo 32º descreve como os direitos de terceiros devem ser considerados ao abrigo da Convenção de 1990 e da presente Convenção. A prática tem demonstrado que os criminosos utilizam frequentemente "compradores" ostensivos para adquirir bens. Parentes, esposas, filhos ou amigos podem ser utilizados para enganar. No entanto, os terceiros podem ser pessoas que tenham uma reivindicação legítima sobre bens que tenham sido objecto de uma ordem de confisco ou de apreensão. O artigo 9º obriga as Partes da presente Convenção a protegerem os direitos de terceiros.

255. Por terceiros a comissão que redigiu a Convenção de 1990 compreendeu qualquer pessoa afectada pela execução de uma ordem de confisco ou envolvida num processo de confisco nos termos do artigo 23, parágrafo 1.b, mas que não é o infractor. Isto poderia também incluir, dependendo da lei nacional, pessoas contra as quais a decisão de confisco poderia ser dirigida. Ver também o comentário ao abrigo do artigo 8º.

256. Os direitos de terceiros poderão ter sido considerados ou no Estado requerente ou não considerados nesse Estado. Neste último caso, o terceiro afectado terá sempre o direito de apresentar o seu pedido no Estado requerido, de acordo com a lei deste. De facto, isto acontece frequentemente uma vez que, em alguns Estados como o ..., os direitos de terceiros são salvaguardados na fase de execução da ordem de confisco e não na fase de decisão. Uma consequência disto é que os Estados não podem, neste caso, invocar qualquer dos fundamentos de recusa, tais como o Artigo 28, parágrafo 1.ªa, com base no facto de os direitos de terceiros não terem sido examinados.

257. No caso em que os direitos de terceiros já tivessem sido tratados no Estado requerente, a Convenção de 1990 e esta Convenção baseiam-se no princípio de que a decisão estrangeira deve ser reconhecida. No entanto, quando qualquer das situações enumeradas no parágrafo 2 existe, o reconhecimento pode ser recusado. Em particular, quando os terceiros não tiveram oportunidade adequada para fazer valer os seus direitos, o reconhecimento pode ser recusado. Isto não significa, contudo, que o pedido de cooperação deva ser recusado. Poderá ser apropriado remediar esta situação na Parte requerida, caso em que a recusa não parece ser necessária. O artigo 30º poderá também ser utilizado na medida em que a Parte requerida possa fazer depender a cooperação da protecção dos direitos de terceiros.

258 Segue-se que o artigo 24, parágrafo 2, não diz respeito à adjudicação de direitos em relação a terceiros. O presente artigo trata exclusivamente dos direitos de terceiros. Nada na Convenção de 1990 e na presente Convenção deve ser interpretado como prejudicando os direitos de terceiros de boa-fé..

114. O que reforça ainda mais a tutela dos direitos de terceiro, outro dos problemas jurídicos que o caso convoca.

115. Prevê-se ainda que seja recusada a cooperação, nos termos do artigo 675.º, nº 2 (correspondente ao artigo 32.º da Convenção de Varsóvia), para tutela de direitos de terceiros:

“[...] d) Se a decisão tiver sido proferida contrariamente às disposições em matéria de competência exclusiva previstas pelo direito interno do Estado requerido”

116. Sendo de salientar que, segundo o artigo 24.º, n.º 1, do Regulamento (UE) n.º 1215/2012, de 12 de Dezembro, relativo à competência judiciária, ao reconhecimento e à execução de decisões em matéria civil e comercial:

“Têm competência exclusiva os seguintes tribunais de um Estado-Membro, independentemente do domicílio das partes: a) Em matéria de direitos reais sobre imóveis e de arrendamento de imóveis, os tribunais do Estado-Membro onde se situa o imóvel. [...]“

117. Pelo que os Tribunais ..., quer anteriormente, quer actualmente, não têm competência para conhecer do direito de propriedade sobre um imóvel em Portugal, mais a mais contra terceiros não intervenientes no processo.

118. A Convenção de Varsóvia prevê ainda como motivos de recusa as situações em que (artigo 28.º, n.º 1):

“a) A medida solicitada contrarie os princípios fundamentais do ordenamento jurídico da Parte requerida; ou

b) A execução do pedido seja susceptível de pôr em causa a soberania, a segurança, a ordem pública e outros interesses essenciais da Parte requerida; ou

c) A Parte requerida considere que a importância do caso não justifica que seja tomada a medida solicitada; [...]“

119. As presunções da decisão do Estado requerente, com base nas quais se considerou que o valor do “tainted gift” tinha relação com o crime pelo qual o Recorrente tinha sido condenado são aliás incompatíveis com o princípio da presunção da inocência e do ónus da prova da acusação, cabendo este problema jurídico na disposição do artigo 28.º, n.º 1, al. a), da Convenção de Varsóvia (cf. §204, §e), do Relatório Explicativo:

“e) quando a decisão de confisco é determinada com base numa presunção de que certos bens representam um produto, enquanto o ónus da prova quanto à sua origem legítima recaía sobre a pessoa condenada, e tal determinação seria, segundo a lei da Parte requerida, contrária aos princípios fundamentais do seu sistema jurídico. [...]”

120. Em suma, ao abrigo quer da Convenção de Varsóvia, quer do ACC, encontramos um quadro jurídico que resulta na existência de disposições de carácter substantivo (já que regulam os limites da interferência no direito de propriedade e outros direitos fundamentais, por força da imposição de uma decisão de perda de bens) que não só reforçam a argumentação já aduzida pelo Recorrente quanto às causas de recusa aplicadas, mas que deverão ser elas próprias consideradas imediatamente aplicáveis ao caso.

121. Como referimos, o ACC não pode ser aplicado, por violação do artigo 8.º, n.º 2 e 4, bem como do artigo 161.º, al. i), e do artigo 166.º, n.º 5, da Constituição.

122. No entanto, caso assim não se considere, terá de aplicar-se as normas substantivas mais favoráveis constantes desse Acordo.

123. Caso assim se considere, terão de aplicar-se as normas substantivas mais favoráveis constantes da Convenção de Varsóvia.

124. Devendo entender-se a referência do artigo 62.º., n.º 1, al. e), do Acordo sobre a saída do Reino Unido da Grã-Bretanha e da Irlanda do Norte da União Europeia e da Comunidade Europeia da Energia Atómica (2019/C 384 I/01)6, que determina a aplicação da DQ 2006/783/JAI “[...] às decisões de perda recebidas antes do termo do período de transição pela autoridade central ou pela autoridade competente do Estado de execução [...]”, no sentido de se referir tão só aos aspectos procedimentais (pois se assim não fosse os processos teriam de ser arquivados e enviado um novo pedido cumprindo os requisitos formais e sendo tramitado segundo as regras do ACC ou outras Convenções em vigor - ou seja, em Portugal, através do processo de revisão e confirmação de sentença estrangeira, para o qual é competente em primeira instância a Relação, nos termos dos artigos 95.º e ss. da Lei 144/99, de 31.08) e não às normas substantivas cuja aplicação imediata não pode ser afastada.

125. Desde logo porque, com o Brexit, como vimos, a base para aplicação de qualquer instrumento de reconhecimento mútuo - pertença à União Europeia - desapareceu.

126. Desde já se suscita a inconstitucionalidade de norma extraída do artigo 62.º, n.º 1, e) do Acordo de Comércio e Cooperação entre a União Europeia e a Comunidade Europeia da Energia Atómica, por um lado, e o Reino Unido da Grã-Bretanha e da Irlanda do Norte, por outro, segundo a qual as normas substantivas mais favoráveis, nomeadamente as causas de recusa de cooperação, mais favoráveis resultantes dos instrumentos jurídicos em vigor entre Portugal e o ... após o Brexit e o decurso do período transitório não são aplicáveis imediatamente aos processos de execução de decisão de perda pendentes naquelas datas, por violação do artigo 2.º, 18.º, n.º 2, 20.º, n.º 1 e 4, 62.º da CRP.

127. Com efeito, decorre do princípio do Estado direito, do princípio da proporcionalidade, necessidade e adequação nas restrições de direitos fundamentais, do direito de acesso à tutela jurisdicional efectiva e ao processo equitativo, todos aplicáveis face ao direito de propriedade, que não pode limitar-se o direito de propriedade ou posse recusando a aplicação imediata de normas mais favoráveis de conteúdo substantivo cuja aplicação em processo de reconhecimento de decisão de perda de bens resultaria na conservação da propriedade ou posse de um bem, constitucionalmente tutelada.

Termos em que, sem prejuízo da Revista excepcional já admitida, deve a Revista “normal” ser admitida, também com fundamento no artigo 629.º, nº 2, e 671.º, n.º 3, do CPC, ex vi artigos 399.º, 400.º, nº 2 e 3, e 510.º do CPP, ex vi do artigo 17.º, n.º 2, e 21.º, nº 2, da Lei nº 88/2009, de 31 de Agosto, requerendo-se que o processo prossiga para alegações orais, nos termos do artigo 681.º do CPC, com objecto a delimitar pela Colenda Conselheira Relatora, em particular no que se respeita às questões suscitadas em sede de Revista excepcional já admitida e daquelas pertinentes ao Direito da UE e ao Brexit.”

O processo foi aos vistos e teve lugar a conferência.


1.2. O acórdão recorrido tem o seguinte teor:

“Acordam, em Conferência, os Juízes que compõem a Secção Criminal do Tribunal da Relação ...;

I. Por sentença de 17-10-2017, proferida no processo com o n° acima indicado do Tribunal Judicial da Comarca ... (Juízo Local Criminal ... - Juiz ...) decidiu-se reconhecer a decisão de confisco da propriedade sita em ..., Quinta ..., descrita na Conservatória do Registo Predial de ... sob o n° ...15 e inscrita na respectiva matriz com o artigo ...62, proferida e transitada em julgado em 14 de Novembro de 2014, contra AA, no Processo com a ref ..., pelo Tribunal Penal ....

Inconformado o requerido recorreu, tendo extraído da motivação as seguintes conclusões:

«I.O Recorrente desde já declara que, com a interposição do presente recurso, não perde o interesse em obter decisão sobre o recurso anteriormente interposto anteriormente, fazendo expressa menção de que não prescindia do direito de interpor da decisão de reconhecimento e execução proferida, dentro do prazo que ainda não havia decorrido, o qual foi admitido e ainda se encontra em tramitação. Entende o Recorrente que o presente recurso não torna inútil a decisão sobre o anterior, ainda que pontualmente por mera cautela, sejam aqui invocados alguns dos argumentos ali aduzidos, já que foi suscitada a sua irrecorribilidade por meio de recurso interlocutório.

II. O presente recurso é interposto da Sentença proferida em 17/10/2017 e notificada ao Recorrente em 26/02/2019, a qual reconheceu a decisão de confisco proferida em 14 de Novembro de 2014, no processo com a referência ..., peio Tribunal Penal ..., determinando que a mesmo fosse executada, através do registo da aquisição do imóvel sito em ..., Quinta ..., ... descrito na Conservatória do Registo Predial de ... sob o n° ...15 Cl inscrito na respectiva matriz com o artigo ...62.

III. O Recorrente não se conforma com tal decisão e vem impugnar toda a matéria da mencionada sentença através do presente recurso, o qual tem efeito suspensivo do processo, nos termos da segunda parte do n° 2 do art° 17° da Lei n° 88/2009, de 31 de Agosto.

IV. Este efeito suspensivo do processo deve ser entendido, por um lado, no sentido de que impede a prática de quaisquer actos em conformidade com o decidido na sentença recorrida e, por outro, que deve ser assegurado que não sobrevêm mais efeitos da execução já produzida, devendo de imediato ser promovido o seu registo na Conservatória de Registo Predial.

V. É inconstitucional a interpretação dos arts. 12° n° 1, 14° e 17.°n.° 2 da Lei 88/2009, de 31 de Agosto no sentido de que a execução, independentemente do recurso interposto, prossegue os seus trâmites normais, por configurar uma ablação do direito de propriedade, bem como implicar com outros direitos incidentes sobre os bens objecto de execução, por a mesma significar violação do direito à tutela judicial efectiva, ao processo equitativo e às garantias de defesa, em especial ao recurso, consagrados nos arts, 20° nDl e 4, e 32°, n° 1, da CRP, na dimensão na qual impõem que qualquer cidadão que considere um direito legal ou constitucionalmente garantido seu violado tenha o direito de suscitar a apreciação judicial da referida violação, de participar no processo conducente à decisão judicial sobre a matéria, gozando das prerrogativas processuais de intervenção processual, bem como do contraditório, e ainda, em caso de decisão desfavorável, do direito a recorrer da mesma para uma instância de hierarquia superior, bem como poder obter, tendo ganho de causa, uma solução jurídica que efectivamente proteja os seus direitos.

VI. Considerando ainda que no processo de reconhecimento e execução de decisões de perda de bens, o Requerido, de acordo com a Lei 88/2009 de 31 de Agosto, não tem sequer a possibilidade de intervir apresentando a sua defesa em primeira instância, a interpretação das normas dos arts, 12° n° 1, 14° e 17° n.° 2 da Lei 88/2009, de 31 de Agosto conferindo ao recurso efeito devolutivo ou outro que não seja suspensivo do processo, é flagrantemente violadora daqueles princípios, o que se suscita para os devidos efeitos.

VII. Como questão prévia, o Recorrente invoca, desde já, a inconstitucionalidade do art. 17° da Lei 88/2009, de 31 de Agosto, por violação do direito à tutela judicial efectiva ao processo equitativo e às garantias de defesa, em especial ao recurso, consagrados nos arts, 20°, n° 1 e 4, e 32°, n° 1, da CRP, uma vez que a limitação da tutela judicial dos direitos do Requerido à interposição do recurso, conforme decorrente do art. 17°, viola aquelas garantias constitucionais, na dimensão supra indicada,

VIII. O conceito de recurso do art. 9o da DQ 2006/783/JAI, transposto no art, 17° da Lei 88/2009. de 31.08, é um conceito autónomo de direito da UE bem mais amplo do que o conceito de recurso do direito interno.

IX. Tanto a jurisprudência do T]UE, como a do TEDH a propósito da Convenção, exigem, nos respectivos âmbitos de aplicação, o direito a um "recurso efectivo" ou direito a "uma acção" perante os tribunais nacionais, na nomenclatura dos artigos 13.° da CEDH e 47° da CDFUE, para sindicar a violação da CEDH ou do direito da UE, respectivamente, exigência que também está presente no artigo 6o da CEDH, no segmento do "direito a um tribunal".

X. O direito a um "recurso efectivo", inequivocamente após o Tratado de Lisboa, é "por força dos artigos 47, n° 1, da Carta e 6.°, n° 1, do TUE, um direito fundamental protegido pela mesma, em consonância com o princípio do Estado de direito e o principio da tutela jurisdicional efetiva consagrados, respetivamente, nos artigos 2º e 19°, n° 1, §2. Do TUE".

XI. Se é certo que seria os Estados-Membros a regular, como entenderem os "recursos" ou acções destinadas a garantir a protecção dos direitos dos cidadãos decorrentes do direito da EU, esta liberdade tem como limite os princípios da equivalência e da efectividade.

XII. Da perspectiva da efectividade do "recurso" estabelecido na Lei 88/2009 de 31/08, interpretada no sentido de que inexiste um meio de defesa em primeira instância contra a decisão de reconhecimento e execução de uma decisão de perda de outro EM, o nosso regime, e em concreto o art. 17° daquele diploma é assim violador dos arts. 47° da CPFUE e 6.° e 13° da. CEDH.

XIII. A correcção deste deve fazer-se interpretando a norma em causa, conjuntamente com o art. 21°, n° 1 e 2, da mesma Lei, no sentido de serem aplicáveis no processo em causa meios de defesa em primeira instância, nomeadamente a apresentação de uma "oposição" que poderá ter os fundamentos permitidos pela DQ 2006/783/JAI, transpostos na Lei 88/2009, de 31.08, oposição essa que poderá basear-se, ou na aplicação analógica mutatis mutandis do regime da Lei 65/2003, de 23.08, ou do regime da oposição à execução do Código de Processo Civil, devidamente adaptado, no sentido de abranger também como fundamentos permitidos para a oposição aqueles constantes da Lei 88/2009, de 31.08.

XIV. A não aplicação de um destes regimes redundará na violação dos art. 47° da CDFUE e 6° e 13° da CEDH, na dimensão da obrigação de equivalência dos meios de impugnação aos existentes na ordem jurídica interna.

XV. Neste ponto, seja por consequência do juízo de inconstitucionalidade que venha a ser formulado, seja por consequência da aplicação do direito da União Europeia (arts. 9_° da DQ 2006/783/JAI; art, 47° da CDFUE), ou dos arts. 6.° e 13° da CEDH, deve ser considerado procedente o recurso, ordenando-se a nova notificação do Requerido para apresentar a sua oposição, com informação concreta de qual o meio de oposição de que dispõe para o efeito, para que do mesmo possa fazer uso efectivo (podendo, depois, recorrer da decisão judicial que venha a recair sobre tal meio de defesa).

XVI. Relativamente às questões de direito da União Europeia suscitadas, tratando-se de questões novas e até à data não tratadas, não sendo questões explicitamente e inequivocamente resolvidas pelo direito da UE desde já se requer o reenvio prejudicial das mesmas para apreciação pelo TJUE.

XVII. As questões interpretativas de direito da União Europeia devem ser submetidas à apreciação do Tribunal de Justiça da União Europeia (TJUE), por meio de reenvio prejudicial, sob pena de violação do art. 267° do TFUE e em particular o n° 3, já que o reenvio é obrigatório para o Tribunal de última instância, e do art,8° n° 4, da CRP, devendo o ora Recorrente ser notificado para propor, em concreto, a redacção das questões a apresentar àquele Tribunal (que, no essencial, tratam da compatibilidade do art, 17°, da Lei 88/2009, de 31 de Agosto, com o art. 9º da DQ 2006/783/JAI, na medida em que apenas prevê como meio de impugnação o recurso, o que pressupõe decidir sobre a interpretação desta norma deste instrumento da UE e, caso se conclua pela respectiva compatibilidade, decidir sobre a compatibilidade da DQ 2006/783/JAÍ com o art, 47° da CDFUE.

XVIII. O não reenvio para o TJUE de uma questão de interpretação do direito da União quando existam dúvidas interpretativas sobre o seu conteúdo e esta seja necessária para a decisão de um processo nacional pelo tribunal de última instância e inexistam decisões do TJUE sobre a questão suscitada é inconstitucional, por violação do art. 8° n° 4 da CRP, e do princípio do primado do direito da UE, e do art. 32° n° 9, da CRP, todos conjugados com o art0 267°, em particular o n° 3, do TFUE.

XIX. As questões de direito da União suscitadas são questões essenciais ao desfecho do presente processo - já que determinam qual o meio de defesa ou impugnação aplicável por parte do Requerido, sendo com isso susceptíveis de influir na conformação concreta do processo, na definição da amplitude dos direitos de defesa e intervenção do Requerido e, como tal, na decisão da causa; são questões novas, não decididas pelo TJUE, não resultando claro da jurisprudência existente até à data a resposta que o direito da União daria às mesmas, como interpretado pelo TJUF; e o Tribunal ad quem é a última instância neste processo.

XX. Assim, é obrigatório o reenvio da questão suscitada, ao abrigo do art. 7.° do CPP, ex do art. 21.° da Lei 88/2009, de 31 de Agosto, sob pena de violação do art, 267.°, em particular o n° 3, do TFUE, devendo o Recorrente ser notificado para indicar qual a formulação concreta das questões que pretende ver submetidas ao TJUE.

XXI. Desde já se suscita a inconstitucionalidade, por violação dos art, 8.°, n° 4, e 32.°, n° 9, da CRP, da interpretação do artigo 267.° do TFUE e do art. 7º do CPP, aplicável ex vi art, 21.° da Lei 88/2009, de 23.08, segundo a qual não é obrigatório o reenvio de questão de direito da União que corra termos perante tribunal de última instância em Portugal, sempre que se trate de questão decisiva, a sua solução não decorra claramente das normas de direito da União em causa, não tenha sido objecto de decisão pelo TJUE, ou a solução para a questão não decorra claramente dessa jurisprudência, constituindo consequentemente a decisão do tribunal de última instância em Portugal um desenvolvimento do direito da União à margem da jurisdição atribuída pelo TJUE pelo art. 267.°, do TFUE.

XXII. Ainda que assim não se entenda, então deverá subsidiariamente entender-se não só que os poderes de apreciação do Tribunal podem alargar-se a argumentos não tratados na decisão de primeira instância, como ser permitida a junção de documentos com o presente recurso, atento, além do mais, o disposto nos artigos 651.° e 425.° do CPC, aqui aplicável ex vi art. 17.° n° 2, e 21° da Lei 88/2009 e art. 4.° do CPP.

XXIII. Para melhor compreensão do pedido efetuado pelos serviços administrativos do ... ao Tribunal português, deverá ser conhecido o enquadramento fáctico em causa, bem como o resumo dos acontecimentos e do envolvimento do Recorrente nos factos, tal como desenvolvidos na motivação de recurso supra.

XXIV. Em primeiro lugar deveria ter sido recusado o reconhecimento e execução da decisão ... por violação do art° 13.° n° 1 a) da Lei n." 88/2009, de 31 de Agosto, por manifesta insuficiência da certidão junta,

XXV. Na verdade, dos autos não constam a decisão de perda originai ou a sua cópia autenticada (que, como é evidente, foi proferida em língua ...), nem a certidão original prevista no art. 4°, n° 2 (que, como é evidente, terá sido emitida em língua ...) e nem a cópia da decisão de perda traduzida para português nem a certidão traduzida para português se encontram assinadas pelas autoridades emitentes competentes,

XXVI. Constam sim, como se vê, apenas supostas traduções de tais documentos, cuja fidedignidade não é possível apurar, evidentemente, por inexistir qualquer original nos autos e por inexistir assinatura de alguém que certificasse a exatidão do seu conteúdo, sendo que a ausência de tais originais e certificação impedia também o Tribunal - e o Recorrente e seus mandatários - de poder verificar a autenticidade da decisão de perda, por um lado e da certidão prevista no art. 4o, n° 2, de acordo com o anexo à DQ 2006/7B3/JAI, ou a conformidade da respectiva tradução com o original, e ainda a conformidade entre a decisão do perda e a certidão emitida nos termos da Decisão-Quadro o que é, evidentemente, relevante não só para a decisão de reconhecimento e execução, mas também para o exercício dos meios de defesa, designadamente o previsto no art. 17.° n° 2, da. Lei 88/2009, de 31 de Agosto.

XXVII. Ora, com a míngua de documentação que instrui o presente processo e com as dúvidas que a documentação existente suscita, não podia o Tribunal a quo proferir decisão de reconhecimento, já que falece um pressuposto processual essencial para a prolação de tal decisão.

XXVIII. A proferir a decisão de reconhecimento ora em crise nos termos em que o fez, o Tribunal recorrido violou, além do mais, o disposto no art. 13° n° 1 al.a), da Lei n° 88/2009, de 31 de Agosto, com referência ao art. 8°, no segmento em que refere que a falta de apresentação da certidão a que se refere o artigo 8o, ou a sua incompletude.

XXIX. Em segundo lugar deveria ter sido recusado o reconhecimento e execução da decisão por violação do art, 13° n° 1 ai. a) da Lei n." 88/2009, de 31 de Agosto, por falta manifesta de correspondência entre certidão e a decisão de perda ....

XXX. Na verdade existem manifestas contradições nas alegadas traduções da certidão, dentro do seu próprio texto, e entre o texto da certidão e a alegada cópia traduzida da decisão ... de confisco de 14/11/2014.

XXXI. Esta cópia traduzida da sentença apenas refere a perda de dinheiro, de valores e não decide a perda do imóvel sito na Quinta ..., ..., ..., Portugal.

XXXII. Por outro lado, na alegada tradução da certidão, a fls. 6 dos presentes autos, assinala-se que a ordem de confisco diz respeito a um montante em dinheiro e que se acredita que a pessoa visada tem uma propriedade no Estado de Execução, que não seria, afinal, propriedade do visado, aqui Recorrente.

XXXIII. Não resulta das alegadas traduções subjacentes à decisão de reconhecimento e execução, menos ainda de forma clara e evidente como é exigível num processo desta natureza, que tenha sido decidido por um Tribunal ... o "confisco da propriedade sita em ..., Quinta ..., ..." propriedade de terceiros, tal como veio a ser reconhecido a fls. 159 dos presentes autos.

XXXIV. A decisão ... incluiu no montante realizável do Arguido o montante daquilo que considerou terem sido doações em dinheiro por ele feitas aos filhos e à esposa e não incluiu de forma alguma o imóvel sito no ... {cfr. Itens 70 a 72 da daquela decisão constantes de fls, 32 e dos autos e Parecer junto sob o n° 4, pontos 6, 7., 8. e, sobretudo, 9 e Documento n° 5 junto mandado de confisco).

XXXV. Acresce que dita certidão contém conclusões e afirmações que não resultam de qualquer decisão proferida por um Tribunal ..., incluindo aquela cuja tradução foi junta.

XXXVI. Designadamente, e ao contrário do que resulta traduzido de fls. 6v, a partir da 7ª linha, não ficou decidido que o dinheiro das doações era proveniente de qualquer actividade criminosa, (cfr, ponto 63 da decisão de confisco constante de fls, 31 v).

XXXVII. Também não ficou decidido, ao contrário do que se traduziu a fls. 7 dos autos, que o uso de uma entidade comercial era simplesmente um estratagema para disfarçar o facto de que o dinheiro da compra era oriundo de uma fraude substancial ou que existia um estratagema para transferir, esconder e ficar com lucros provenientes do crime.

XXXVIII. Ora, ao proferir a decisão de reconhecimento ora em crise nos termos em que o fez, o Tribunal recorrido violou, além do mais, o disposto no art. 13.° n° 1 al. a), da Lei n° 88/2009, de 31 de Agosto, no segmento em que refere que a (suposta tradução da) certidão não corresponde manifestamente à (tradução) da decisão.

XXXIX. Em terceiro lugar, deveria ter sido recusado o reconhecimento e execução da decisão de confisco por violação do art. 13o 1 ai. b) da Lei n° 88/2009, de 31 de Agosto.

XL. Na verdade, pelos mesmos factos típicos, o Recorrente foi condenado numa pena de prisão já cumprida, numa pena acessória de inibição de exercício de funções também já cumprida, numa sanção de confisco e numa segunda pena de 3 anos de prisão pelo não pagamento do valor atribuído aquele confisco.

XLI. In casu, existe violação mais flagrante ainda do no bis in idem porquanto o Requerido foi sancionado com a aplicação de uma pena de prisão pelo não pagamento do confisco e ao mesmo tempo está a ser sancionado com a execução da mesma decisão de confisco.

XLII. Observando formalmente os processos em causa, terá de constatar-se que apesar de existirem formalmente dois processos (o processo sobre a acusação penal propriamente dita e o processo de confisco) e de a existência de julgamento e condenação penal não impedir a existência de um processo e de uma decisão de confisco, ao pedir a execução da pena imposta por não pagamento de confisco está a transmutar-se a natureza da decisão de confisco que passa materialmente a ser uma pena, e por isso, do ponto de vista material, o Requerido passa a, ser julgado e condenado penalmente duas vezes pelo mesmo facto.

XLIII. Ainda que se considerasse que ambas as penas tinham sido impostas "num só processo", sempre teria de considerar-se que haveria violação do princípio ne bis in idem na vertente da proibição da cumulação de sanções porquanto estariam a impor-se para a mesma situação subjacente duas sanções privativas da liberdade, e ainda duas sanções acessórias muito gravosas.

XLIV. Da análise da informação disponível referente ao(s) o(s) processo(s) a que Recorrente foi sujeito no ... - em conjugação com o que consta da referida certidão - resulta sempre a violação do princípio ne bis in idem ínsito quer no art° 29.° n° 5 da CRP, independentemente de se avaliar a sua vertente processual ou material, quer do art. 13°, n° 1, al. b), da Lei 88/2009 de 31 de Agosto.

XLV. Quer se considere que foi instaurado segundo procedimento (cujo terminus consistiu decisão de confisco) pelos mesmos factos, quer se considere que se aplicou dupla sanção pelos mesmos factos no mesmo processo, quer se considere ainda que se verificou um cúmulo de qualificações numa única acção (no caso de se tratar de sentença compósita abrangendo o processo original e o de confisco), sempre o princípio ne bis in idem se encontra violado, porque as sanções dai resultantes para o Requerido são manifestamente desnecessárias e desproporcionadas (duas penas privativas da liberdade, uma pena acessória de inibição e uma decisão de perda).

XLVI. Pelo que se encontra preenchida a causa de recusa obrigatória do art° 13° n.° l al, b) da Lei 88/2009 de 31 de Agosto.

XLVII. Suscita-se a inconstitucionalidade, por violação dos arts, 18.°,n° 2, e 29° n° 5, da CRP, da interpretação do art, 13°, n° 1, al. b), da Lei 88/2009, de 31 de Agosto) ao abrigo da qual não é contrária ao princípio ne bis in idem para efeitos dessa norma, a execução de decisão de perda referente aos mesmos factos e crimes, relativamente aos quais o Requerido já tenha sido condenado em pena de prisão pela prática do crime, bem como em pena acessória de inibição de funções, já integralmente cumpridas, e ainda em pena de prisão não pagamento da decisão de perda cujo cumprimento tenha sido accionado.

XLVIII. Ao proferir a decisão de reconhecimento ora em crise nos termos em que o fez, o Tribunal recorrido violou, além do mais, o disposto no art. 13° n° 1 al. b), da Lei n° 88/2009, de 31 de Agosto.

XLIX. Em quarto lugar, a decisão de confisco ... deveria ter sido recusada em por violação do art. 13° n° l al. c) da Lei n° 88/2009, de 31 de Agosto, atenta a existência de direitos de partes interessadas, incluindo terceiros de boa fé, que importam acautelar,

L. Conforme consta de fls. 153 a 154 e 204 a 209 do presente processo, a propriedade do imóvel aqui em crise encontrava-se registada na Conservatória de Registo Predial em nome da sociedade T… Limited e não em nome do Recorrente - já desde 7 de Abril de 1989.

LI. Em 2003, BB adquiriu uma participação na T… Limited, utilizando para o efeito dividendos recebidos em virtude da sua participação social na empresa Tundra Capital Management ("TCM"), criada em 23 de julho de 2002 - cf. v.g. pontos 48 e ss. da tradução de decisão de perda, fls. 30v-31; cf. alegada tradução da certidão, fls, 6v-7; 15.

LII Ora, nem a T… Limited, nem BB foram ouvidas ou tiveram sequer oportunidade de serem ouvidas como parte interessada no processo judicial que determinou o confisco no ..., como decorre dos autos.

LIII. Até porque, uma vez que a decisão de confisco ... é uma ordem de pagamento de um valor, aqueles terceiros não têm direito a participar no julgamento, pois que sobre nenhum dos seus bens recaiu uma qualquer decisão de confisco.

LIV Por outro lado, não tendo sido decidido ou apurado que i) os valores da doação eram provenientes de actividade criminosa, nem que ii) a T… Limited fazia parte de um qualquer esquema criminoso, então parece-nos claro que, quer esta empresa, quer a Sra. BB, devem ser consideradas terceiros de boa fé cujos direitos de propriedade foram afetados - diríamos, eliminados - sem que tivessem oportunidade de apresentar a sua defesa.

LV. Aliás, sendo aplicável a lei portuguesa, a situação destes interessados, que seriam considerados de boa fé, não seria abrangida pela Lei 5/2002, nem pelas disposições do art° 111º do CP, pois não se verificarem os pressupostos de aplicação destas normas.

LVI. O que está em causa neste processo é uma decisão de perda de valor equivalente (que não objecto, instrumento ou produto do crime) proferida contra o Arguido e aqui Requerido e Recorrente, mas que está a ser executada com bens de terceiros, que nunca tiveram qualquer intervenção processual.

LVII. Ora, em Portugal e nas circunstâncias deste caso e tendo em conta a lei vigente à data da prática dos factos, que é a aplicável, a não ser que a mais recente seja mais favorável, não seria possível proferir e executar tal decisão contra terceiro, pelo que se encontra flagrantemente violada a alínea c), do n° 1, do art. 13.° a Lei 88/2009, de 31 de Agosto.

LVIII. A perda de bens de terceiro ao abrigo do CP vigente à data da prática dos factos pelo Arguido aqui Requerido, em Junho de 2002 (redacção do Decreto-Lei n°' 323/2001, de 17 de Dezembro, não abrangia a perda de vantagens pertencentes a terceiro.

LIX. É verdade que, a Lei 5/2002 prevê a perda de bens de terceiro. Porém, a Lei em causa não é aplicável ao crime de burla, logo é inaplicável in casu.

LX. Ainda que fosse aplicável a Lei 5/2002, seria necessário que ou o bem "estivesse na titularidade do arguido " ou este tivesse dele o "domínio e o benefício", o que não é o caso, ou que tenha sido doado a terceiro "nos cinco anos anteriores à constituição como arguido", o que também não é o caso - e nem sequer tal consta da decisão ... ou da certidão.

LXI. Em qualquer caso, nem sequer o regime da perda de vantagens de terceiro ou de valor equivalente é o que está em causa: recorde-se, em momento algum o Tribunal ... decidiu que a Senhora BB tinha recebido vantagens de actividade criminosa praticada pelo Requerido.

LXII. In casu, em primeiro lugar, a decisão de perda não relacionou o dinheiro entregue a BB com a actividade criminosa do arguido; em segundo lugar, o dinheiro foi entregue na forma de dividendos da sua participação social na TCM; em terceiro lugar, o negócio com a T… Limited, pessoa coletiva proprietária do imóvel há mais de duas décadas naquela altura, resumiu-se a acordo comercial, sem qualquer conexão com os factos pelos quais o arguido havia sido julgado, factos mais do que suficientes para considerar que a. T… Limited e BB são terceiros de boa fé e, como tal, merecem a protecção, se não mais, da lei e da Constituição portuguesas.

LXIII. A esta situação acresce ainda o facto de, não sendo possível a intervenção de terceiros no julgamento do confisco no ... e não sendo permitido a sua intervenção no presente processo, estarmos perante uma situação de escandalosa denegação de justiça: com a sentença de reconhecimento e execução proferida, a sociedade T… Limited e a Sra. BB viram-se espoliados de um imóvel seu, sem terem sido chamados à acção no Estado de emissão ou sequer informados do processo no próprio Estado de execução, para que pudessem exercer os seus direito de defesa em tempo útil.

LXIV. Os direitos da sociedade T… Limited e de BB, enquanto partes interessadas na decisão de reconhecimento (cfr. al. c) do n.° l do art, 13° da Lei 88/2009), tornam impossível a execução da decisão de perda.

LXV. Quando o Tribunal recorrido decidiu reconhecer a decisão de confisco sem antes ter dado possibilidade aos terceiros T… Limited e BB de se defenderem invocando o seu direito de propriedade registado e o seu direito de gozo, uso e usufruto do imóvel e sem lhes permitir o acesso à tutela judicial dos seus direitos e mediante um julgamento equitativo, violou assim o disposto no art. 8.° 11.° 1 e 9 da Diretiva 20Í4/42/UE do Parlamento Europeu e do Conselho de 3 de Abril de 2014.

LXVI. Violou ainda o Tribunal os arts. 47° a CDFUE, 6° e 13° da CEDH, e 20.°, n° 1 e 4, da CRP, normativos que obrigam a conferir a todos os cidadãos ou empresas o direto de acesso à tutela - e tutela útil e efectiva - dos seus direitos perante um Tribunal, e mediante um processo equitativo, o que in casu foi flagrantemente vedado quer à T… Limited, quer. a BB - pessoas sem intervenção no processo e na decisão de confisco de 11.14.2014, e sem intervenção no processo.

LXVII. Perante uma tal flagrante violação, compete ao Estado de execução recusar o reconhecimento e execução, nos termos do art, 8°, n.° 2, al, b), da DQ 2006/783/JAI, e do art. 13°,U° 1, al, c), da Lei 88/2009, de 31.08.

LXVIII. O que, aliás, é imposto pelos arts. 47° da CDFUE, 6º e 13 da CEDH e ainda, e ainda pelo art, 20.°, n.° 1 e 4, da CRP, e pelo próprio art. 6°u do TUE (cf considerando 13 e art. 1º, n° 2, da DQ 2006/783/JAI). normas violadas pelo Tribunal a Quo.

LXIX. E violou ainda o art, 347.°-A do CPP. que deve considerar-se aplicável ex vi art, 21°da Lei 88/2009, de 31 de Agosto, obrigando a citar ou notificar os terceiros que aliás estão devidamente identificados.

LXX. Ao proferir a decisão de reconhecimento ora em crise nos termos em que o fez, o Tribunal a quo violou, além do mais, o disposto no art. 13° n° 1 al, c) da Lei n.° 88/2009. de 31 de Agosto.

LXXI. Em quinto lugar, deveria ter sido recusado o reconhecimento e execução da decisão por violação do art. 13°, n.° 2, al, c) da Lei n° 88/2009, de 31 de Agosto.

LXXII. Na verdade, sem prejuízo do que se vem a defender, se a decisão de perda foi interpretada tal como o defendem os serviços administrativos ingleses e que foi aceite pelo Tribunal a quo, então ainda assim deveria ter sido recusado o seu reconhecimento e execução, pois que já decorreram os prazos máximos de prescrição aplicáveis.

LXXIII. Desde logo, aquela interpretação refere que o imóvel sito em Portugal ainda é fruto de dinheiro que havia sido doado a terceiro, dinheiro esse resultado da actividade criminosa do Recorrente, pelo que os tribunais portugueses seriam competentes para conhecer os factos, pois que ocorreram em Portugal (art. 4º alínea a) do CP), já que aqui se verificou um resultado da actividade criminosa (artº 7º n° 1 do CP).

LXXIV. Depois, relembre-se que os factos típicos ocorreram (como resulta da decisão ...) entre Novembro ou Dezembro de 1999/começo de 2000, a Junho de 2002 e originaram uma condenação em pena de prisão pela prática de um crime de "conspiracy to defraud” - burla - transitada a 5/08/2010, não tendo sido decidida nesta altura (ao contrário do que aconteceria se o julgamento ocorresse em Portugal) a perda de bens; esta decisão acontece cm 14.11.2014 autonomamente e não inclui qualquer aplicação de pena ou medida de segurança.

LXXV. Ora, à luz do disposto no n° 2 do art. 112°-A do CP, nos casos em que não tenha havido lugar a aplicação de pena ou de medida de segurança, aplicam-se os prazos de prescrição previstos para o procedimento criminal.

LXXVI. O procedimento criminal por crime de burla (considerando-a qualificada pelo valor - art, 218° n° 2 a) CP) prescreve no prazo de 10 anos (cfr. art, 118° n° 1 b) do CP), iniciando-se a sua contagem, nos termos do art. 119.° do CP, em Junho de 2002, pelo que, não se vislumbrando qualquer causa de suspensão, ainda que se considere o prazo de prescrição absoluta previsto no n° 3 do art, 121° do CP, o prazo de prescrição ocorreu já em Junho de 2017.

LXXVII. Nestes termos, deveria o Tribunal recorrido, também por este motivo, recusar o reconhecimento da decisão de confisco em causa e não o fazendo, violou o disposto nos artigos art. 13° n° 2 al. c) da Lei n° 88/2009, de 31 de Agosto, 112°-A, 118°,119°; 121°e 218° do Código Penal.

LXXVIII. Em sexto lugar, existem ainda fortes razões de discordância com a execução da decisão ..., a qual não deveria ter sido ordenada e muito menos nos termos em que o foi.

LXXIX. É que a execução da decisão ... se resumiu à transferência da. propriedade do imóvel identificado nos autos a favor do Estado de emissão.

LXXX. Na verdade, nos presentes autos foi ordenado e efectuado registo definitivo da propriedade da casa mencionada na titularidade do ..., sem que previamente tenha sido operada qualquer notificação neste processo, seja ao Requerido aqui Recorrente, seja à sociedade proprietária do imóvel sito em ..., Quinta..., ... Portugal, seja à sua ultimate beneficiai owner e possuidora que, como bem sabem as autoridades inglesas e, aliás, fizeram constar dos documentos transmitidos, é a Senhora BB e sem que tenha transitado em julgado a decisão de reconhecimento e execução proferida pelo Tribunal português,

LXXXI. Não pode o Recorrente aceitar o entendimento de que a decisão que fundamenta um registou predial do imóvel é a sentença do Estado ... de confisco, o qual coloca em causa os direitos do Recorrente, de forma potencialmente irreversível, bem como de terceiros de boa fé que nem sequer foram notificados da decisão (ou participaram no processo no Estado de emissão).

LXXXII. Na verdade, sem que o Recorrente ou qualquer outro visado tenha podido vir defender-se ou exercer o direito ao recurso previsto no art. 17° da Lei 88/2009, de 31 de Agosto, recurso esse que tem efeito suspensivo, e, portanto, sem que tenha havido trânsito em julgado da decisão proferida nestes autos, foi ordenada a transferência da propriedade e, consequentemente, foi o direito de propriedade registado total e definitivamente em nome do Estado ...,

LXXXIII. Decorre do direito internacional público que os poderes punitivos e coercivos dos Estados não têm efeitos no território de outros Estados, uma sentença estrangeira não tem força executiva directa em Portugal a não ser que aqui seja reconhecida e declarada executória, por decisão transitada em julgado, conforme decorre do art, 234° do CPP, o que, no caso das decisões de perda emitidas por outros Estados-Membros da UE, no presente, se faz através do procedimento consagrado na Lei 88/2009, de 31 de Agosto, e DQ 2006/2006/783/JAÍ.

LXXXIV. Será sempre necessário que a decisão de reconhecimento e execução seja proferida e que transite em julgado, o que só poderá ocorrer depois do exercício do direito ao recurso por parte dos visados, nos termos do art. 17°, n° 1 e 2, da Lei 88/2009, das disposições supletivas do CPP e do art. 628° do CPC, aplicável ex vi art. 21° daquele diploma.

LXXXV. Aliás, como decorre do art. 3º, n° 1, al. c), conjugado com a al, a), e com o art. 2º do Código do Registo Predial, só podem ser registadas decisões finais das acções judiciais, logo que transitem em julgado.

LXXXVI. Ora, nem a Lei 88/2009 foi cumprida (máxime artigos 12°. n° 1. 2 e 5. 14 n° 1 al. b). e 17° n° 1 e 2). nem afinal, o registo se fundamenta na decisão ....

LXXXVIÍ. Do modo como decorreram os presentes autos podemos concluir que não existiu qualquer procedimento de execução: existe apenas uma ordem de transferência de propriedade de um bem imóvel pertencente a um terceiro de boa fé, de forma imediata e definitiva, para a propriedade de um Estado estrangeiro.

LXXXVIÍI. Os titulares do direito de propriedade sobre aquele imóvel viram o registo alterado e sua propriedade transferida para uma outra entidade, sem que disso tivessem um mínimo aviso ou oportunidade de reagir.

LXXXIX. E isto porque foi permitido o registo definitivo da propriedade na esfera jurídica do Reino Unido, com base numa decisão que não podia ser directamente executada em Portugal, sem que a decisão que a reconhece tivesse transitado em julgado e sem que os legítimos titulares tivessem tido qualquer oportunidade de conhecer as intenções dos Estados emissor e Executor e, consequentemente, pudessem fazer valer os seus legítimos direitos e interesses.

XC. Ao proferir a decisão de execução ora em crise, o Tribunal a quo violou, além do mais, o disposto nos artigos 12° n° 1 e 2 e 5, 14° n° 1, al. b), e 17° n° 1 e 2, da Lei 88/2009, de 31 de Agosto, e, ex vi art. 510.° do CPP, as normas do Código de Processo Civil relativas à execução de decisões de perda, e, em especial, o art. 706.°, e bem assim o artº 3º, n° 1 al. c), conjugado com a al. a), e com o art. 2º do Código do Registo Predial.

XCI.    A decisão de registo da aquisição da propriedade a favor do Estado de emissão é uma decisão que afecta os direitos do visado no processo previstos na Lei nº 88/2009 de 31 de Agosto, cujo legítimo interesse é reconhecido, desde logo no artº 17°. n° 1 da referida lei, bem como os direitos de legítimos possuidores designadamente os direitos de propriedade, as garantias de defesa, incluindo o recurso, o direito de tutela jurisdicional efectiva, consagrados nos arts. 62°, 32º, n° 1, e 20.°, n° 1, da CRP. sendo o segundo um direito, liberdade e garantia fundamental e o primeiro um direito análogo como é reconhecido por jurisprudência unânime dos nossos Tribunais.

XCII. Assim, a interpretação dos arts, 12.° n° 1, 2 e 5, 14° n° 1, l b), e 17.°, n° 1 e 2, da Lei 88/2009, de 31 de Agosto, no sentido de que, não tendo transitado em julgado a decisão de reconhecimento e execução, por não ter decorrido o prazo para interposição de recurso pelos intervenientes processuais e terceiros, é admissível a execução da. mesma através do registo definitivo da aquisição da propriedade em nome do Estado de emissão, é inconstitucional, por violação daqueles normativos constitucionais,

XCIII. Por outra perspectiva, e na mesma dimensão, tal decisão é ainda violadora dos arts. 17.° e 47° da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia, instrumento que é aplicável in casu, nos termos do art, 51° n° 1, da mesma Carta.

XCIV. Tribunal a quo violou ainda o disposto no art, 468° c) do CPP, o qual não permite a execução de uma sentença penal estrangeira, enquanto esta não tiver sido revista e confirmada nos casos em que isso for legalmente exigido, ou seja, nos termos da mencionada Lei 88/2009 de 31 de Agosto e da DQ 2006/783/] AI por esta transposta.

Termos em, admitido o presente recurso e realizada a audiência requerida nos termos do alto 411°, n° 5, do CPP I ex vi arts, 21° e 17° da Lei 88/2009, de 31 de Agosto, que deve a sentença recorrida ser revogada e substituída por outra que não reconheça a decisão ...,

Fazendo-se assim a habitual e sã JUSTIÇA».

O Ministério Público respondeu ao recurso dizendo:

«1. Dos autos consta cópia autenticada da decisão de perda e a tradução para língua portuguesa, bem como a menção à assinatura pela autoridade competente

2. O imóvel sito na Quinta ..., ..., inclui-se no montante realizável.

3. Não se vislumbra qualquer violação do princípio ne bis in idem.

4. Não podem BB e T… Limited ser considerados terceiros de boa fé.

5. O ora recorrente foi condenado em pena de prisão.

6. Não é aplicável o regime previsto no artº 112°-A do Código Penal.

7. Não ocorreu ainda a prescrição.

8. Por tudo o exposto, deve a sentença recorrida ser confirmada e, em consequência negar-se provimento ao recurso

No entanto, Vossas Excelências ponderarão e farão, como sempre justiça».

Nesta Relação, o Exmo Procurador Geral Adjunto emitiu o seguinte parecer: «Concordo com o entendimento do Ministério Público na primeira instância constante da Resposta apresentada em 17/6/2019 com a referência ... no recurso apresentado por AA da sentença que decidiu "reconhecer a decisão de confisco da propriedade sita em ..., Quinta ..., ..., (..,), proferida e transitada em julgado em 14 de Novembro de 2014, contra AA, no Processo com a ref ..., pelo Tribunal Penal ....

Sou do entendimento que a sentença recorrida deve ser mantida».

Observou-se o disposto no art° 417° n° 2 do CPPenal, mas o requerido não respondeu.

Colhidos os vistos e realizada a Conferência, cumpre apreciar e decidir.

2. Fundamentação

O teor da decisão recorrida datada de 17 de Outubro de 2017 é o seguinte: Os presentes autos respeitam a pedido do Tribunal Penal ..., de reconhecimento pelo e execução em Portugal de decisão de confisco de uma propriedade sita em ..., Quinta ..., ..., registada em nome da sociedade "T… Limited", registada pela primeira vez em Guernseya 17 de Agosto de 1998, e em 25 de outubro de 2004 registada como uma sociedade de responsabilidade limitada em Malta, porque produto de um crime de fraude pelo qual foi condenado AA, de nacionalidade ..., nascido em .../.../1948, em ... e com última morada conhecida em ..., Quinta..., ... ...» decisão proferida no âmbito de processo penal por aquele tribunal, ao abrigo da decisão quadro 2006/783/JAI do Conselho de 06.10, relativa à aplicação do principio do reconhecimento mutuo às decisões de perda, cujo regime jurídico se mostra regulado pela Lei 88/2009 de 31.08 que aprovou o regime jurídico da emissão e execução de decisões de perda de instrumentos, produtos e vantagens do crime, transpondo para a ordem jurídica interna a referida Decisão Quadro.


*


O Ministério Público promoveu que se procedesse à execução do solicitado pelas autoridades ....

*


Foram nos presentes autos efetuadas diligências no sentido de obter certidão emitida pela Conservatória do Registo Predial de ... de teor das descrições e inscrições, relativamente, ao imóvel mencionado naquela decisão, bem como, a certidão da matriz.

O Tribunal é competente. O processo é o próprio.

Não se vislumbram questões prévias ou nulidades de que cumpra conhecer e que obstem ao conhecimento de mérito.

Dos factos:

Por sentença proferida em … de agosto de 2010, foi AA condenado a um período de prisão de 3 anos e meio, por conspiração para defraudar.

Nessa sequência em … de novembro de 2014, foi emitida uma ordem de confisco, que transitou em julgado nessa mesma data, no valor de £ 1.458.317,65 (um milhão, quatrocentos e cinquenta e oito mil, trezentos e dezassete libras e sessenta e cinco pences).

A propriedade sita em ..., Quinta ..., ..., Portugal, foi comprada em maio de 2003 e está registada em nome de uma sociedade de nome "T… Limited", tendo o tribunal considerado que a mesma foi comprada diretamente dos dividendos recebidos.

No julgamento considerou-se que uma propriedade na posse de uma companhia limitada pode ser considerada propriedade de um individuo se houver evidência que demostre que o individuo é o dono beneficiário da propriedade ou que o uso de uma entidade comercial é uma farsa, ou meio para conduzir à fraude.

In casu, considerou-se que o uso de uma entidade comercial foi um estratagema para disfarçar o facto de que o dinheiro da compra era oriundo de uma fraude substancial, ou seja, um estratagema para transferir, esconder e ficar com lucros provenientes do crime, o que constitui, branqueamento de capitais.

O tribunal ficou convencido que a propriedade em questão derivou de atividades criminosas da pessoa condenada (AA) durante um período que precedeu a sentença do crime em questão.

Por último, tendo o tribunal considerado que o arguido não satisfez o ónus probatório de provar que o montante que possa ser realizado é menor do que o benefício, determinou uma ordem de confisco no montante de £ 1.458.317,65 (um milhão, quatrocentos e cinquenta e oito mil, trezentos e dezassete libras e sessenta e cinco pences), e considerou que a propriedade portuguesa deveria ser tratada como uma oferta e desse modo é propriedade realizável para os propósitos de satisfazer o montante da ordem de confisco, ou seja, o imóvel em causa pode ser sujeito a procedimentos de execução para satisfazer a ordem de confisco.

Do direito:

A Lei 88/2009 de 31 de agosto, aprovou o regime jurídico da emissão e execução de decisões de perda de instrumentos, produtos e vantagens do crime, transpondo para a ordem jurídica interna a Decisão Quadro 2006/783/JAI do Conselho de 06 de outubro, relativa à aplicação do reconhecimento mútuo às decisões de perda, com a redação que lhe foi dada pela Decisão Quadro n° 2009/299/JAI.

De harmonia com o disposto no art° 3º n° 1 al. e) e i) são reconhecidas e executadas, sem controlo da dupla incriminação do facto, as decisões de perda que respeitem, entre outras, ao branqueamento de capitais e fraude, desde que, de acordo com a lei do Estado de emissão, estas sejam puníveis com pena privativa de liberdade de duração máxima não inferior a três anos.

Os presentes autos seguiram a forma de transmissão e mostram-se instruídos em conformidade com o disposto no art 8º da Lei n° 88/2009 de 31 de agosto.

De harmonia com o disposto no art. ° 11 ° n° 1 da mencionada Lei é competente para o reconhecimento e execução da decisão de perda recebida em Portugal o tribunal da comarca da área da situação do bem, acrescentando-se no seu n° 4 que, sem prejuízo da competência oficiosa dos tribunais para proceder ao reconhecimento e execução de decisões de perda, compete ao Ministério Público promover o processo nos termos previstos para as decisões proferidas por tribunal português.

Por sua vez estatui-se no art. 12° n° 1 do citado diploma legal que recebida a decisão de perda e verificada a sua competência para conhecer da mesma, o tribunal reconhece a decisão e sem mais formalidades, ordena as diligências necessárias à sua imediata execução, sem prejuízo do disposto nos art.°s 13° e 14°, sendo que este último se reporta às causa de adiamento da execução de uma decisão de perda as quais se reportam pois a momento ulterior ao presente e por tal não será este o momento para as apreciar.

O referido art° 13° enumera as causas de recusa de reconhecimento e de execução da decisão, nenhuma das quais se verificando no caso ora em análise posto que i) a certidão a que alude o art° 8o foi apresentada, encontra-se completa e corresponde à decisão de perda; ii) não decorre das informações constantes da aludida certidão que a execução da decisão de perda seja contrária ao principio ne bis in idem; iii) não se vislumbra em face dos elementos constantes dos autos que os direitos de qualquer parte interessada incluindo terceiros de boa fé, impossibilitem a execução da decisão de perda; iv) o visado esteve representado no julgamento; e v) não se verifica a existência de imunidade ou privilégio previsto na lei portuguesa que impossibilite a execução da decisão de perda relativamente ao bem em causa, sendo também certo que se não verifica qualquer das situações elencadas sob o n° 2 do referido art° 13°.

Como assim, importa concluir que se mostram reunidos os pressupostos necessários ao reconhecimento da decisão de confisco da propriedade sita em ..., Quinta ..., ..., registada em nome da sociedade "T… Limited", e descrita na Conservatória do Registo Predial de ... sob o n° ...15 e inscrita na respetiva matriz com o artigo ...62,

Decisão:

Por todo o exposto, decido reconhecer a decisão de confisco da propriedade sita em ..., Quinta ..., ..., descrita na Conservatória do Registo Predial de ... sob o n° ...15 e inscrita na respetiva matriz com o artigo ...62, proferida e transitada em julgado em 14 de novembro de 2014, contra AA, no Processo com a ref.ª ..., pelo Tribunal Penal ... (em audiência no Supremo Tribunal), determinando-se que à mesma seja dada execução.


*


Notifique, atento o disposto no art° 17° da Lei 88/2009 de 31 de agosto, e comunique à autoridade rogante, diligenciando pela prévia tradução, solicitando desde logo os bons ofícios com vista à notificação da sociedade "T… Limited" e remessa aos presentes autos de comprovativo da mesma.

Comunique à competente Conservatória do registo Predial de ..., com certidão da presente decisão.

Registe e deposite.

Oportunamente, vão os autos com vista ao Ministério Público a fim de se pronunciar nos termos e para os efeitos do disposto no art° 12° n° 2 da Lei 88/2009 de 31 de agosto.

IH - Apreciação do Recurso

O âmbito do recurso define-se pelas conclusões da respectiva motivação, sem prejuízo da apreciação das questões de conhecimento oficioso.

As conclusões do recurso destinam-se a habilitar o tribunal superior a conhecer as razões da discordância do recorrente em relação à decisão recorrida, a nível de facto e de direito, por isso, elas devem conter um resumo claro e preciso das razões do pedido (cfr. neste sentido, o Ac. STJ de 19-6-96, in BMJ 458, 98).

Perante as conclusões do recurso, as questões a decidir são as seguintes:

1ª - Do julgamento do recurso em audiência;

2ª- Da inconstitucionalidade do art° 17° da Lei n° 88/2009, de 31 de Agosto;

3ª- Do reenvio prejudicial para o Tribunal de Justiça da União Europeia;

4ª- Das causas de recusa de reconhecimento e de execução da decisão do tribunal … previstas no art° 13°, n° 1 als. a), b), c), e n° 2 al. c) da Lei n° 88/2009 de 31 de Agosto;.

5ª- Do registo da propriedade do imóvel na titularidade do ....


1ª - Do julgamento do recurso em audiência.

O recorrente veio requerer a realização de audiência, nos termos do art° 411ª n° 5 do CPPenal, ex vi dos arts° 21° e 17° da Lei n° 88/2009, de 31 de Agosto.

O artº 411° do CPPenal que trata da interposição e notificação do recurso dispõe no n° 5 que " no requerimento de interposição de recurso o recorrente pode requerer que se realize audiência, especificando os pontos da motivação do recurso que pretende ver debatidos".

Por sua vez, dispõe o art° 419° n° 3 do CP Penal que " O recurso é julgado em conferência quando: a)Tenha sido apresentada reclamação da decisão sumária prevista no n° 6 do artº 417°; b) a decisão recorrida não conheça, a final, do objecto do processo, nos termos da alínea a) do n° 1 do art° 97°; ou c) não tiver sido requerida a realização de audiência e não seja necessário proceder à renovação da prova nos termos do art° 430º".

Deste preceito resulta que os casos de julgamento em conferência são taxativamente enunciados no n° 3, entre eles, quando a decisão recorrida não conhece a final do objecto do processo, ou seja, afinal quando não se trate de julgar a final o mérito da causa.

Só se procede à audiência no Tribunal da Relação quando esta tiver sido requerida, e a situação não seja de enquadrar em qualquer das alíneas a) e b) do n° 3 do art° 419° do CPPenal. Pode também não ter sido requerida a audiência e não obstante ela vir a ter lugar, nos casos em que houver necessidade de proceder á renovação da prova, nos termos do art° 430° do CPPenal.

Ora, a decisão recorrida não julga a final o mérito da causa, mas sim a decisão proferida pelos tribunais … e não há lugar á renovação da prova, pelo que situação em apreço, integra-se na alínea b) do n° 3 do art° 419° do CPPenal, razão pela qual, o recurso é julgado em conferência.

Assim sendo, indefere-se o requerido no sentido de se proceder ao julgamento do recurso em audiência.

III - 2ª- Da inconstitucionalidade do art° 17° da Lei 88/2009, de 31 de Agosto.

O recorrente alega que, nos arts0 20° n° 1 e 4 e 32° da Constituição estão previstos o direito à tutela judicial, ao processo equitativo e às garantias de defesa e que o art° 17° da Lei n° 88/2009 de 31 de Agosto, ao limitar a tutela judicial dos seus direitos à interposição do recurso, sem que possa apresentar uma oposição em primeira instância contra a decisão de reconhecimento e execução de uma decisão de outro Estado membro viola aquelas garantias de defesa.

Cumpre decidir.

Após a sentença condenatória proferida no Estado de emissão em que é declarada a perda de instrumentos, produtos ou vantagens de um crime, a União Europeia pretende que sejam expeditos os termos de apreensão e perda de bens.

Dispõe o n° 2 do art. 13° da Decisão Quadro 2006/783/JAI, com a epígrafe -Amnistia, perdão, reapreciação da decisão de perda - que " Só o Estado de emissão pode autorizar um eventual pedido de recurso, tendo em vista a reapreciação da decisão de perda".

Por sua vez, o arr° 17° n° 1 da Lei n° 88/2008 de 31 de Agosto estabelece que, "

Todos os intervenientes processuais incluindo, terceiros de boa fé, podem recorrer da decisão de reconhecimento ou de execução de uma decisão de perda, com a finalidade de salvaguardar os respectivos direitos".

Destes preceitos resulta que, a decisão de perda só pode ser reequacionada pelo Estado de emissão, no caso concreto, o ..., razão pela qual os preceitos mencionados não permitem a oposição pretendida pelo recorrente, antes do decretamento da providência de execução de decisões de perda de instrumentos, vantagens e produtos do crime. Assim, inexiste qualquer analogia com as normas do mandado de detenção europeu, que preveem a audição do requerido e a possibilidade de ele apresentar oposição, ou com as normas da oposição à execução do processo civil, mas, apenas a defesa por via de recurso, com base nos fundamentos constantes do art° 8º da Decisão Quadro e 13° da Lei n° 88/2009.

O recorrente ao pretender incluir no conceito de "recurso", a oposição à execução, está a interpretar demasiado extensivamente tal conceito, o que os preceitos mencionados não permitem, dado que estão devidamente assegurados os seus direitos e garantias de defesa, através da interposição de recurso consignada no art° 17° da Lei n° 88/2009 e em consequência não se verifica a inconstitucionalidade invocada.

3ª- Do reenvio prejudicial para o Tribunal de Justiça da União Europeia

O recorrente alega que o conceito de " recurso" constante do artº 9º da Decisão-Quadro 2006/783/JAI e o do art° 17 da Lei n° 88/2009, de 31 -08 não são coincidentes, já que em direito comunitário tal termo tem um sentido próprio e mais amplo do que no direito interno e tanto a jurisprudência do TJUE, como a do TEDH, a propósito da Convenção exigem o direito a um "recurso efectivo" ou o direito a "uma acção" perante os tribunais nacionais, conforme resulta dos arts 13° da CEDH e 47° da CDFUE e por isso, o art° 17° deve interpretar-se conjuntamente com o artº 21°, n°s 1 e 2 da mesma Lei, no sentido de serem aplicáveis ao processo em causa os meios de defesa em primeira instância, nomeadamente a apresentação de uma "oposição", que poderá ter os fundamentos permitidos pela DQ n° 2006/783/JAI, transpostos na Lei 88/2009, de 31.08, oposição essa que poderá basear-se, ou na aplicação analógica do regime da lei n° 65/2003, de 23.08, ou no regime de oposição à execução do C. Processo Civil.

Mais alega que, estamos perante questões novas ( da compatibilidade do art° 17° da Lei n° 88/2009, de 31 de Agosto com o art° 9o da DQ 2006/783/JAI, na medida em que apenas prevê como meio de impugnação o recurso, o que pressupõe decidir sobre a interpretação desta norma e, caso se conclua pela respectiva compatibilidade decidir sobre a compatibilidade da DQ com o art° 47° da CDFUE) e por isso, estas questões interpretativas devem ser submetidas à apreciação do Tribunal de Justiça da União Europeia (TJUE), por meio de reenvio prejudicial, sob pena de violação do art° 267° do TFUE em particular com o n°3.

Cumpre decidir,

Dispõe o art° 267° do TFUE (Tratado de Funcionamento da União Europeia): «O Tribunal de Justiça da União Europeia é competente para decidir, a título prejudicial:

a)    Sobre a interpretação dos tratados;

b)    Sobre a validade e a interpretação dos actos adoptados pelas instituições, órgãos ou organismos da União.

- Sempre que uma questão desta natureza seja suscitada perante qualquer órgão jurisdicional de um dos Estados- Membros, esse órgão pode, se considerar que uma decisão sobre essa questão é necessária ao julgamento da causa, pedir ao Tribunal que sobre ela se pronuncie.

- Sempre que uma questão desta natureza seja suscitada em processo pendente perante um órgão jurisdicional nacional cujas decisões não sejam susceptíveis de recurso judicial previsto no direito interno, esse órgão é obrigado a submeter a questão ao Tribunal.

- Se uma questão desta natureza for suscitada em processo pendente perante um órgão jurisdicional relativamente a uma pessoa que se encontre detida, o Tribunal pronunciar-se-á com a maior brevidade possível».

Perante o teor deste preceito a jurisprudência do Tribunal Europeu nomeadamente dos acórdãos de 6 de Outubro de 1982, Cilfit e outros (procº C-283/819 ) e ainda a título nacional, vide o aresto do STA de 21 de Novembro de 2012 tem considerado que, o reenvio de determinada questão só será obrigatório, designadamente se a questão for pertinente ou relevante para a decisão da causa, competindo ao juiz nacional, a quem foi submetido o litígio e que deve assumir a responsabilidade pela decisão jurisdicional a tomar, apreciar, tendo em conta as especificidades de cada processo, tanto a necessidade de uma decisão prejudicial para poder proferir a sua decisão, como a pertinência das questões que submete ao Tribunal de Justiça.

Neste sentido, também refere Jónatas Machado "o reenvio não é um recurso ou uma faculdade processual das partes do processo principal (...) O reenvio integra uma competência exclusiva de natureza jurisprudencial (...) o facto de uma das partes suscitar uma questão de interpretação ou validade de um ato da UE não significa que haja lugar ao reenvio prejudicial (...)".

E mais adiante o mesmo autor refere "o reenvio prejudicial para o TJUE é em princípio facultativo, dependendo exclusivamente da decisão discricionária do tribunal nacional. No entanto, casos há de "reenvio obrigatório", sendo que pressuposto importante que vale independentemente de se tratar de reenvio facultativo ou obrigatório prende-se com a relevância da questão. Nos termos do art° 267° do TFUE, compete ao juiz nacional, a quem o litígio haja sido submetido, apreciar a necessidade de uma questão prejudicial para a prolação de uma decisão final e decidir sobre a pertinência das questões a submeter ao TJUE. A questão deve ser suficientemente relevante para o desfecho do caso concreto para justificar o reenvio (...)".

A Decisão-Quadro de 2006/783/JAI do Conselho, de 6 de Outubro foi transporta para a ordem jurídica interna, através da Lei n° 88/2009 de 31 de Agosto, O art° 9º da primeira, dispõe que "Cada Estado-Membro tomará as disposições necessárias para que qualquer parte interessada, incluindo terceiros de boa fé, disponha da possibilidade de interpor recurso relativamente ao reconhecimento ou à execução de uma decisão de perda, nos termos do art° 7º, a fim de salvaguardar os seus direitos". Esta disposição foi transporta para o art° 17 da Lei 88/2009 com igual teor.

Ora, ambas as disposições falam em "recurso", isto é, permitem a defesa por via de recurso, por parte dos interessados ou de terceiros de boa fé, para salvaguarda dos seus direitos, mas não permitem que no Estado de execução sejam postos em causa os fundamentos da decisão de perda proferida pelo Estado de emissão, como resulta do art° 13° n° 2 da Decisão Quadro, o que se compreende, dado que estamos apenas perante a execução de uma decisão proferida por outro Estado membro.

Por estas razões, como já referimos na questão anterior, não há motivos para fazer chamar à colação, a aplicação por analogia das normas do Mandado de detenção europeu, ou do processo civil, nem para interpretar o conceito de "recurso" constante da Decisão Quadro, de forma diferente do conceito de "recurso" constante da Lei n° 88/2009, pelo que inexiste motivo para reenviar a questão suscitada ao TJUE, nem se vislumbra que seja violado o disposto no art° 8º n°4 e 32° n° 9 da Constituição.

III- 4ª- Das causas de recusa de reconhecimento e de execução da decisão do tribunal … previstas no art° 13°, n° 1 als. a), b), c), n° 2 al. c) da Lei n° 88/2009 de 31 de Agosto.

O recorrente vem alegar que, com a míngua da documentação que instrui o processo, nomeadamente por não constar dos autos a decisão de perda original, ou a sua cópia autenticada, a certidão prevista no art° 4º n° 2 e por não se encontrarem assinadas pela autoridade emitente a cópia da decisão de perda traduzida para português e a certidão traduzida para português, o tribunal devia ter sido recusado o reconhecimento e execução da decisão ... por violação do art° 13°, n° 1 al. a) da Lei n° 88/2009, de 31 de Agosto, com referência ao art° 8º, no segmento em que refere a falta de apresentação da certidão a que se refere este preceito, ou a sua incompletude.

Vejamos.

Dispõe o art. 8° da Lei n°88/2009 de 31 de Agosto, sob a epígrafe, forma de transmissão;

"1 - A transmissão de uma decisão de perda é feita mediante a remessa da decisão, ou da sua cópia autenticada, acompanhada da certidão emitida de acordo com o modelo anexo à presente lei.

2 - A certidão é traduzida para a língua oficial, ou para uma das línguas oficiais do Estado de execução, ou para outra que este indique aceitar nos termos do n° 2 do art° 19° da Decisão Quadro n° 2006/783/JAI.

3 - A certidão deve ser assinada pela autoridade emitente, a qual certifica a exactidão do seu conteúdo.

4 e 5-(...)

6 - O original da decisão ou a sua cópia autenticada, bem como o original da certidão, são enviados ao Estado de execução se este o solicitar"

Dos autos consta uma cópia autenticada da decisão de perda, que está acompanhada da certidão emitida de acordo com o modelo anexo à presente lei, que estão devidamente certificadas pelas entidades competentes.

Nos termos do n° 6 do preceito mencionado o original da decisão, bem como o originai da certidão, só são enviados ao Estado de execução se este o solicitar.

Considerando que dos autos constam os elementos, a que se alude no penúltimo parágrafo, entendeu a Mma Juiz não solicitar os respectivos originais, o que não nos merece reparo.

Mais alega que, devia ter sido recusado o reconhecimento da decisão nos termos do artº 13°, n° 1 al. a) por existirem manifestas contradições nas alegada traduções da certidão, dentro do seu próprio texto, e entre o texto da certidão e a alegada cópia traduzida da decisão ... de confisco de 14-11-2014, que esta cópia traduzida da sentença apenas refere a perda de dinheiro, de valores e não decide a perda do imóvel sito na Quinta ...; que a decisão ..., inclui no montante realizável do arguido o montante daquilo que considerou terem sido doações em dinheiro por ele feitas aos filhos e à esposa e não inclui de forma alguma o imóvel sito no ...; que não ficou decidido que o dinheiro das doações eram proveniente de qualquer actividade criminosa, nem que como consta de fls. 7 que o uso de uma entidade comercial era simplesmente um estratagema para disfarçar o facto de que o dinheiro da compra era oriundo de uma fraude substancial ou que existia um estratagema para transferir, esconder e ficar com os lucros provenientes do crime.

Vejamos.

Como consta da decisão de confisco, foi suscitada durante a audiência a questão de saber, se havia qualquer razão para duvidar da declaração de culpado (do recorrente) numa reunião entre os representantes da acusação e da defesa, em que havia um acordo com o SFO para manter a propriedade portuguesa, em relação ao processo de confisco. O requerido foi aconselhado pelos Srs. Advogados em relação à possibilidade de pedir a remoção da sua declaração, caso a mesma tivesse sido feita sob falsas declarações, relativamente à mens rea necessária ao crime de conspiração para defraudar. E também o aconselharam a fazer um requerimento de abuso do processo, relativamente ao alegado acordo com o futuro da casa em Portugal.

Foi formulado um pedido de abuso do processo nos autos de confisco e em consequência havia que apurar se, tinha havido ou não um acordo entre o departamento do SFO (Serious Fraud Office) e os representantes do requerido para excluir a propriedade portuguesa como activo no processo de confisco, tendo a Mma Juiz concluído; " (...) Eu rejeito a evidência do mesmo de que acreditava genuinamente, quando se declarou culpado, que tinha assegurado a exclusão da propriedade portuguesa para benefício e segurança da sua esposa".

Interposto recurso para o Tribunal Superior sobre a questão em causa foi indeferido, pelo que o arguido se declarou culpado, sabendo que não existia qualquer garantia no sentido de excluir a propriedade portuguesa do processo de confisco.

Na decisão de confisco considerou-se que o arguido beneficiou com a sua actividade criminosa, e com os proventos ilícitos auferidos, fez doações, ofertas à esposa num total de £ 1.691.179 e por isso, se incluem no "montante realizável". Mais se considerou que "o activo principal, nomeadamente a propriedade portuguesa foi comprada directamente de dividendos que foram recebidos".

Nesta sequência, o tribunal considerou que a propriedade portuguesa foi adquirida com dinheiro proveniente da actividade crimina! do arguido e que devia ser tratada como uma oferta e, desse modo, propriedade realizável para os propósitos de satisfazer o montante na ordem de confisco, ou seja, o imóvel em causa pode ser sujeito a procedimentos de execução para satisfazer o montante na ordem de confisco.

Quanto ao que consta de fls. 7 da certidão, que o uso de uma entidade comercial era simplesmente um estratagema para disfarçar o facto de que o dinheiro da compra era oriundo de uma fraude substancial, mais não é do que a ilação que o Mmo Juiz extraiu da actuação do requerido e da Srª BB, dado que esta comprou a propriedade portuguesa, que estava inscrita na Conservatória a favor T… Limited, situação que se manteve após a compra.

Assim, não assiste razão ao recorrente ao alegar que, não ficou decidido que o dinheiro das doações feitas aos filhos e à esposa não era proveniente de qualquer actividade criminosa e que o imóvel do ... não foi incluído nas mesmas.

Improcede, assim o alegado pelo recorrente.

O recorrente alega que foi violado o princípio ne bis in idem (art° 13° n° 1 al. b) da Lei n° 88/2009) porque as sanções aplicadas pelo crime (fraude) são manifestamente desnecessárias desproporcionadas (duas penas privativas da liberdade, uma pena acessória de inibição e uma decisão de perda) (conclusões XXXIX a XLVIII)

Vejamos.

O arguido foi condenado, a 5 de Agosto de 2010, no ... (no Tribunal Criminal ...), pela prática do crime de participação em conspiração para cometer fraude em investimento de capitais em 3 anos e 6 meses de prisão, que cumpriu, tendo ficado consignado na sentença, que as questões relativas à perda (confisco), compensações e custas foram adiadas para que sejam tratadas numa fase posterior, não obstante, antes da sentença, o Ministério Público ter iniciado o processo de confisco contra o arguido.

A 14 de Novembro de 2014, no mesmo processo e Tribunal, foi proferida decisão de confisco, transitada em julgado pelo montante de £ 1.458.317,66, a pagar em 6 meses, tendo sido fixada em 3 anos de prisão a sanção pelo incumprimento.

Dispõe o art° 29° n° 5 da Constituição que "Ninguém pode ser julgado mais que uma vez pela prática do crime".

A expressão "crime" deve ser entendida, como um dado de facto ou acontecimento histórico que, porque subsumível em determinados pressupostos de que depende a aplicação da lei penal constitui um crime.

Este princípio constitui um princípio basilar do Estado de Direito democrático e está também consagrado nos textos internacionais pertinentes à salvaguarda dos direitos, liberdades e garantias fundamentais, nomeadamente no art° 14° n° 7 do Pacto Internacional Sobre Direitos Civis e Políticos e no art° 4 do Protocolo n° 7 à Convenção Europeia dos Direitos do Homem.

Deste princípio resulta, pois, que um cidadão não pode ser julgado mais do que uma vez pela prática do mesmo facto ou acontecimento histórico, mas não obsta a que um arguido possa ser sujeito a mais do que uma sanção, principal e acessórias.

Ora, no caso em apreço, o arguido foi julgado pelo mesmo facto ou acontecimento histórico uma só vez e foi condenado nas penas referidas, previstas para o crime cometido.

Não se nos afigura que as sanções aplicadas ao recorrente sejam desnecessárias ou desproporcionadas e que violem o disposto no art° 18º n° 2 e 29° n° 5 da CRP, dado que estamos apenas perante um sistema de penas, que é diferente do nosso.

O recorrente alega que, a decisão de confisco devia ter sido recusada nos termos do art° 13° n° 1 al. c) atenta a existência de direitos de terceiros de boa fé, nomeadamente da sociedade T… Limited e BB. (Conclusões XLIX a LXX).

Fundamenta a sua pretensão alegando que, o imóvel em causa está registado na Conservatória de Registo Predial a favor da T… Limited, desde 7 de Abril de 1989 (fls. 204 a 209); que em 2003 BB adquiriu uma participação na T… Limited, utilizando para o efeito dividendos recebidos da sua participação social da empresa Tundra Capital Management ("TCM"), criada em 23 de Julho de 2002-c.f. pontos 48 e ss, da tradução da decisão de perda, fls. 30v-31; cf. alegada certidão, fls. 6v-7.

Cumpre decidir.

Dispõe o art° 13° ai. c) da Lei n° 88/2009, de 31 de Agosto que "o tribunal português recusa o reconhecimento e a execução da decisão de perda quando os direitos de qualquer parte interessada, incluindo terceiros de boa fé, ao abrigo da lei portuguesa, impossibilitam a execução da decisão de perda".

O imóvel em causa nestes autos está registado na Conservatória do Registo Predial desde 7 de Abril de 1989 (fls. 204 a 209) a favor de T… Limited.

BB como consta da decisão de confisco "confirmou em evidência durante a audiência de 30 de Janeiro de 2012, que não tinha subscrevido qualquer dinheiro pelas acções supostamente na sua posse" e em consequência o tribunal considerou que quaisquer acções que tinha na TCM e, alternativamente quaisquer pagamentos que a mesma recebeu foram o resultado de ofertas que lhe foram feitas pelo Srº AA".

A Srª BB recebeu ofertas do marido, no montante de £ 1.691.179 GBP, (entre 10 de Abril de 2003 e 31 de Maio de 2006) o que representa pagamentos de dividendos das companhias das quais o Sr0 AA era director, nomeadamente Tundra Capital Management Ltd (Bahamas), Atlantic Management Holdings Ltd (Bahamas) e Aipha Toronto n° 2. Os activos detidos por estas companhias, e assim sendo as fontes dos dividendos pagos à Sra. BB estavam ligados a lucros provenientes da actividade criminosa do arguido, que foi condenado pelo crime de burla (participação em conspiração para cometer fraude em investimento de capitais).

A propriedade sita em ..., Quinta ..., ..., foi comprada em Maio de 2003 pela Srª BB, através de fundos transferidos para a sua conta que foram autorizados pelo arguido como Director da Tundra (TCM), no entanto, a propriedade estava inscrita na Conservatória do Registo Predial, a favor da T… Limited e continuou na mesma situação após a compra.

Ora, se BB recebeu determinadas quantias em dinheiro provenientes da actividade criminal do arguido e se a propriedade, que está na posse do requerido e da sua esposa, foi comprada com tais quantias então tinha conhecimento da proveniência ilícita do dinheiro, bem como a sociedade T… Limited, a que acresce o facto de o uso desta ser um meio para disfarçar a entrada de dinheiro de proveniência criminal, pelo que não podem ser considerados como terceiros de boa fé.

O recorrente alega ainda que, devia ter sido recusado o reconhecimento, com fundamento na prescrição nos termos do art° 13°, n° 2, al. c) da Lei n° 88/2009 de 31 de Agosto (conclusões LXXI a LXXVII).

Diz o art° 13 de Lei n° 88/2009 no n°2 al. c) que " O tribunal português pode recusar o reconhecimento e a execução da decisão de perda quando tenham decorrido os prazos de prescrição do procedimento criminal ou da pena, de acordo com a lei portuguesa, desde que os tribunais portugueses sejam competentes para o conhecimento dos factos a que se refere a decisão".

Ora, a decisão é a condenação pelo crime de burla ocorrida na ... e não a "decisão de perda" de bens registados em Portugal.

O recorrente alega na conclusão LXXIII, "Desde logo, aquela interpretação refere que o imóvel sito em Portugal ainda é fruto de dinheiro que havia sido doado a terceiro, dinheiro esse resultado da actividade criminosa do recorrente, pelo que os tribunais portugueses seriam competentes para conhecer os factos, pois que ocorreram em Portugal (art° 4 alínea a) do C. Penal), já que aqui se verificou um resultado da actividade criminosa (art° 7º n° 1 do CP)".

De acordo com o art° 4 n° 1 al. a) do C. Penal, a lei portuguesa é aplicável a factos praticados: a) em território português, seja qual for a nacionalidade do agente" e nos termos do art° 7º n° 1 "o facto considera-se praticado tanto no lugar em que, total ou parcialmente e sob qualquer forma de comparticipação, o agente actuou, ou, no caso de omissão, devia ter actuado, como naquele em que o resultado típico ou o resultado não compreendido no tipo de crime se tiverem produzido".

Não assiste razão ao recorrente quanto ao alegado, dado que o crime de burla consumou-se na ... e aqui em Portugal apenas foi escondido o dinheiro proveniente de tal ilícito criminal, que já havia sido obtido com a consumação do crime no Estado de emissão.

Mais alega o recorrente: « Depois, relembre-se que os factos típicos ocorreram (como resulta da decisão ...) entre Novembro ou Dezembro de 1999/começo de 2000, a Junho de 2002 e originaram uma condenação em pena de prisão pela prática de um crime de "conspiracy to defraud" - burla- transitada a 5/08/2010, não tendo sido decidida nesta altura (ao contrário do que aconteceria se o julgamento ocorresse em Portugal) a perda de bens; esta decisão acontece em 14.11.2014 autonomamente e não incluiu qualquer aplicação de pena ou medida de segurança (conclusão LXXIV)» e conclui que à luz do disposto no n°2 do art° 112-A do C. Penal, está extinto o procedimento criminal.

Estabelece o art. 112-A do C.Penal (com a epigrafe - Pagamento do valor declarado perdido a favor do Estado-) no seu n° 2 do C. Penal, "nos casos em que não tenha havido lugar a aplicação de pena ou medida de segurança", aplicam-se os prazos de prescrição previstos para o procedimento criminal".

No caso concreto, a pena principal foi aplicada. Assim, sempre se teria em conta a prescrição da pena e não do procedimento criminal.

Por outro lado, dado que os tribunais portugueses são incompetentes para conhecer dos factos, nos termos do art° 13, n° 2 al. c) da Lei n° 88/2009, também lhes está vedado conhecer da prescrição, como causa de recusa de reconhecimento e de execução da decisão estrangeira, pelo que também não assiste razão ao recorrente quanto a este segmento da decisão.

5ª- Do registo da propriedade do imóvel na titularidade do ....

Após a prolação da decisão do tribunal da Ia instância e sem que a mesma tivesse transitado em julgado, foi ordenado o registo definitivo da propriedade em causa nestes autos na titularidade do ..., com o argumento de que a sentença do Estado ... havia transitado em julgado.

Ora, uma decisão de perda de instrumentos, produtos e vantagens de um crime, de um país da União Europeia para ter força executiva em Portugal tem de ser reconhecida e tem de transitar em julgado, o que só poderá ocorrer após o exercício do direito ao recurso previsto no art° 17° n° 1 e 2 da Lei 88/2009 de 31 de Agosto.

Dispõe o ao art. 2º n° 1 al. a) do Código de Registo Predial que "estão sujeitas a registo: os factos jurídicos que determinem a constituição, o reconhecimento, a aquisição ou a modificação dos direitos de propriedade (...)".

Por sua vez, estabelece o artº 3º n° 1 do mesmo diploma que estão sujeitas a registo:

a) As acções que tenham por fim principal ou acessório, o reconhecimento, a constituição, a modificação ou a extinção de algum dos direitos referidos no artigo anterior.

b) (...)

c) As decisões finais das acções referidas nas alíneas anteriores, logo que transitem em julgado".

Da conjugação destes preceitos resulta que só podem ser registadas as decisões finais das acções judiciais, após o trânsito em julgado.

Assim, o registo da propriedade do imóvel na Conservatória na titularidade do Estado ..., antes do trânsito em julgado da decisão proferida nestes autos é prematuro, por isso, deverão os autos aguardar o trânsito deste acórdão a fim de, se decidir se é de manter ou não tal registo.

IV- Decisão

Termos em que acordam os Juízes deste Tribunal da Relação em indeferir o julgamento do recurso em audiência e negar provimento ao recurso, mantendo a decisão recorrida no sentido de reconhecer a decisão de confisco da propriedade sita em ..., Quinta ..., ..., descrita na Conservatória do Registo Predial de ... sob o n° ...15 e inscrita na respetiva matriz com o artigo ...62, proferida e transitada em julgado em 14 de novembro de 2014, contra AA, no Processo com a ref.ª ..., pelo Tribunal Penal ..., sem prejuízo do determinado na questão n° 5, quanto ao registo da propriedade.”


2. Fundamentação

Da inadmissibilidade do recurso

Como se disse, o arguido vem interpor recurso de um acórdão da Relação que, em recurso, confirmou decisão do tribunal de primeira instância. Essa decisão consistiu no reconhecimento da decisão de decretamento do confisco da propriedade sita em ..., Quinta ..., Portugal, proferida pelo Tribunal Penal ..., ..., ....

Como a Sra. Procuradora-Geral Adjunta situou no parecer, em conformidade com os elementos do processo, o recorrente fora condenado, por decisão de 5 de Agosto de 2010, proferida no ..., Tribunal Criminal ..., pela prática do crime de participação em conspiração para cometer fraude em investimento de capitais em três anos e seis meses de prisão, que cumpriu, tendo ficado consignado na sentença que as questões relativas à perda (confisco), compensações e custas seriam tratadas posteriormente. E a 14 de Novembro de 2014, foi então proferida no mesmo processo a decisão de confisco, pelo montante de £ 1.458.317,66, a pagar em 6 meses, tendo sido fixada em três anos de prisão a sanção pelo incumprimento.

É desta decisão posterior à sentença condenatória do arguido, que foi solicitado a Portugal o reconhecimento e execução do confisco da propriedade em causa. E o reconhecimento teve lugar por iniciativa do Ministério Público em Portugal, que, ao abrigo da Lei 88/2009 de 31.08, promoveu que se procedesse à execução do solicitado pelas autoridades ....

No contraditório do presente recurso, defende o Ministério Público, tanto na Relação como no Supremo, que o acórdão proferido a 28.04.2020/22.09.2020 na Relação ... não é susceptível de recurso ordinário para o Supremo Tribunal de Justiça, de acordo com o que resulta das normas do processo penal, os arts. 400.º, n.º 1, al. c), 432.º e 434º. do CPP.

E o Ministério Público tem razão.

Ciente, aliás, da irrecorribilidade da decisão à luz das normas que disciplinam os recursos no Código de Processo Penal, o recorrente pretende agir apenas ao abrigo de normas que regem em matéria de recurso no processo civil. Assim resulta das conclusões do recurso que interpôs, mostrando-se inequívoco que age ao abrigo de normas do Código de Processo Civil, as quais pretende ver aplicadas por força do art. 4.º do CPP (o art. 4.º do CPP trata da “Integração de lacunas”, dispondo que “nos casos omissos (…) observam-se as normas do processo civil que se harmonizem com o processo penal (…)”).

Assim, não se apresenta controvertido que o acórdão da Relação que se pretende impugnar é irrecorrível à luz do Código de Processo Penal. Ou seja, num caso como o presente, a lei processual penal não prevê, vedando até, a possibilidade de uma nova reacção processual com vista à obtenção de um novo reexame da decisão por um tribunal superior.

Na verdade, o acórdão da Relação é já uma decisão que, em recurso, conheceu da impugnação do arguido da decisão da primeira instância, e esta constatação será também importante no juízo de conformidade constitucional da solução que se propugna.  Na verdade, a irrecorribilidade do acórdão da Relação impõe-se aqui, pois a decisão sub judice não beneficia, por nenhuma via, da possibilidade de um duplo grau de recurso, mostrando-se já assegurado o recurso constitucionalmente garantido.

A Constituição assegura o direito ao recurso, como garantia constitucional do arguido (art. 32.º, n.º 1, da CRP), mas bastando-se para tanto com a concretização de um grau de recurso, na interpretação desde sempre prosseguida pelo Tribunal Constitucional.

Assim, e desde logo, o art. 400.º do CPP é uma norma de excepção ao regime-regra de recorribilidade dos acórdãos, das sentenças e dos despachos, regime-regra afirmado no art. 399.º do CPP. E da limitação do direito ao recurso consagrada na norma em causa (art. 400.º do CPP), designadamente do seu n.º 1, al. c), decorre que não é admissível recurso “de acórdãos proferidos, em recurso, pelas relações, que não conheçam, a final, do objecto do processo”. Previsão que se verifica no caso sub judice, como se deixou enunciado.

Daí que, ciente da irrecorribilidade do acórdão à luz do Código de Processo Penal, pretenda o recorrente ver aplicadas normas do Código de Processo Civil, por via da utilização concomitante do art. 4.º do CPP, como se disse. Só que a convocação desta norma processual penal pressupõe a existência de uma lacuna, a qual não se verifica aqui.

Numa peça processual bem estruturada, começa o recorrente por frisar que o procedimento de emissão e execução de decisões de perda de instrumentos, produtos e vantagens do crime, entre Estados-Membros da UE se rege pelo disposto na Lei n.º 88/2009, de 31.08, que a impugnação de decisões de reconhecimento emitidas no seu âmbito se rege pelo art. 17.º que prevê o direito ao recurso, e que o n.º 2 do art. 17.º determina que o recurso se rege pelas regras gerais do direito processual penal. E, nesta parte, assim sucede.

Não se mostra controvertido que o presente recurso se rege pelas regras gerais do direito processual penal. Será, pois, no Código de Processo Penal que essas regras se situam, e são elas que disciplinam o “objecto penal”, todo o objecto tramitado no processo penal. “Objecto penal” que inclui assim todas as matérias e todas as consequências do crime apreciado no processo. O que inclui a perda de vantagens e o confisco de bens.

Consequentemente, aos recursos interpostos no processo penal, particularmente e especialmente na situação como a que ocorre agora – respeitante a matéria atinente à perda de vantagens e ao confisco de bens relacionados com a prática de um crime - são inaplicáveis as normas processuais civis, o que inclui necessariamente as que respeitam aos tipos de recursos interpostos para o Supremo Tribunal de Justiça.  Desde logo porque o regime dos recursos e suas espécies consagrado no Código de Processo Penal se caracteriza pela auto-suficiência, taxatividade e exaustão, como melhor se concretizará.

Defende então o recorrente que a decisão de reconhecimento em causa teve origem “numa decisão de perda, de natureza civil, ainda que associada a um processo penal”, pelo que se deveria “aplicar a disciplina do CPC, por remissão operada pelo artigo 400.º, n.º 2 e 3 do CPP ex vi art. 17.º, n.º 2 da Lei n.º 88/2009, de 31.08.”.

Sucede que, por um lado, das normas citadas não decorre tal conclusão, pois é o Código de Processo Penal que disciplina exaustivamente em matéria de recursos que tratem do “objecto penal”, tramitado no processo penal, no sentido enunciado. “Objecto penal” que abarca todas as consequências do crime apreciado (e apreciadas) no processo, incluindo o confisco de bens, como se disse.

Por outro lado, é importante frisar (e aditar como elemento de ponderação na decisão do problema colocado) que o confisco de bens tão pouco se reveste, seguramente, de uma natureza estritamente civil, no sentido propugnado pelo recorrente.

Na verdade, independentemente da posição que se prossiga sobre a precisa natureza jurídica do confisco, é claramente de afastar que esta se situe num plano estritamente civil. Desde logo, porque na base do seu decretamento está sempre a prática de um crime e esta prática é pressuposto de tal decretamento.

“É pressuposto do confisco que tenha sido praticado um facto ilícito típico, o que arrasta a natureza penal da solução”, refere acertadamente João conde Correia, na obra “Da Proibição do Confisco à Perda Alargada”, a p. 78 (itálico nosso).

São conhecidas as divergências doutrinárias e jurisprudenciais sobre a natureza jurídica do confisco. Mas independentemente de se poder considerar tratar-se mais de uma verdadeira pena acessória, ou antes de uma medida de segurança, ou até de uma providência sancionatória de natureza análoga à da medida de segurança (ob. cit. pp. 77 e 78), o que seguramente o confisco não tem é uma natureza estritamente civil. Assim, não importa convocar argumentos que radicariam numa pretensa natureza estritamente civil do confisco, como se de um simples pedido de indemnização cível enxertado em acção penal se tratasse, porque essa situação não ocorre aqui e esses argumentos não são convocáveis para o caso presente.

Inexiste assim, em concreto, qualquer factor que exija, agora aqui, alguma ponderação particular ou especial, que possa eventualmente influir, no sentido pretendido pelo recorrente, em tudo o que se disse e no que mais se dirá sobre a suficiência do processo penal em matéria de recursos. Ou seja, o problema colocado – sobre a (in)admissibilidade em concreto do recurso interposto pelo arguido – respeita a recurso de uma decisão de natureza seguramente ainda penal.

Perde igualmente sentido a argumentação de que “deve a recorribilidade desta decisão ser assegurada nos mesmos termos da recorribilidade de decisões de confisco proferidas em território nacional, sendo-lhe aplicável a regra do n.º 2 e 3 do artigo 400.º do CPP, devendo o presente Recurso ser admitido por aplicação das regras do Processo Civil”. Perde sentido, porque não há qualquer diferença de tratamento em matéria de recursos, em relação à recorribilidade de decisões de confisco proferidas em território nacional ou fora dele.

E consequentemente esvazia-se também de sentido a suscitação de “inconstitucionalidade, por violação do artigo 20.º, n.º 1 e 4, 32.º, n.º 1, e 62.º, do CRP, da norma extraída dos artigos 399.º, 400.º, n.º 1, 2 e 3, 510.º e do Código de Processo Penal, ex vi arts. 17.º, n.º 1 e 2, e 21.º da Lei 88/2009, de 31.08, segundo a qual à recorribilidade da decisão de reconhecimento e execução de uma decisão de confisco estrangeira não são aplicáveis as normas reguladoras dos recursos em processo civil”.

Prossegue o recorrente com a defesa de que o recurso deverá ser admitido por versar sobre a questão da competência internacional, por o recurso das decisões que versem sobre competência internacional ser sempre admissível de acordo com o disposto no art. 629.º, n.º 2, al. a) do CPC. E de acordo com esta mesma norma, admissível seria ainda por visar discutir a ofensa de caso julgado, que permite também sempre o recurso para o Supremo Tribunal de Justiça.

Assim, na tese do recorrente, a recorribilidade da decisão justificar-se-ia sempre por convocação de norma do processo civil - o art. 629.º, n.º 2, al. a) do CPC.  E a não se entender assim, configurar-se-ia “inconstitucionalidade, por violação do artigo 20.º, n.º 1 e 4, 32.º, n.º 1, e 62.º, do CRP, da norma extraída dos artigos 399.º, 400.º, n.º 1, 2 e 3, 510.º e do Código de Processo Penal, ex vi arts. 17.º, n.º 1 e 2, e 21.º da Lei 88/2009, de 31.08, segundo a qual à recorribilidade da decisão de reconhecimento e execução de uma decisão de confisco estrangeira não são aplicáveis as normas reguladoras dos recursos em processo civil, nomeadamente o fundamento de recurso para o Supremo Tribunal de Justiça previsto na alínea a) do n.º 2 artigo 629.º, do CPC, na parte em que se refere à matéria da competência internacional”, identicamente sucedendo relativamente à matéria referente a ofensa de caso julgado.

E suscita ainda a “inconstitucionalidade, por violação do artigo 20.º, n.º 1 e 4, 32.º, n.º 1, e 62.º, do CRP, da norma extraída dos artigos arts. 4.º, 399.º, 400.º, 427.º, 432.º, 433.º, 437.º, 446.º, 447.º, 449.º do Código de Processo Penal, ex vi arts. 17.º, n.º 1 e 2, e 21.º da Lei 88/2009, de 31.08, segundo a qual não é aplicável em processo de decisão de reconhecimento e execução da decisão de confisco ou perda de bens ao abrigo da Lei 88/2009, de 31.08, o fundamento de recurso para o Supremo Tribunal de Justiça previsto na alínea a) do n.º 2 artigo 629.º, do CPC, na parte em que se refere à matéria da ofensa de caso julgado, directamente por via de remissão operada pelo artigo 4.º do CPP”.

Toda a argumentação desenvolvida continua a gravitar em torno do pressuposto da existência de uma lacuna em matéria de recursos em processo penal, e na consequente viabilidade da utilização das espécies de recurso do processo civil em processo penal, mormente num caso como o presente, em que o thema decidendum respeita a questão penal. Pressuposto que, como se disse, não se verifica, conforme tem sido o entendimento uniforme desta 3.ª Secção do Supremo Tribunal de Justiça. Este entendimento tem conformidade constitucional, não se mostrando violado nenhum dos preceitos constitucionais invocados: mostra-se assegurado no processo o direito ao recurso, que constitucionalmente se basta com um grau de recurso, tendo já sido a decisão de primeira instância reexaminada a pedido do arguido por um tribunal superior; e não lhe foi sonegado o acesso ao direito e aos tribunais.

Por último, pugnou o arguido pela admissibilidade do seu recurso como Recurso de Revista Excepcional, por “a matéria em apreciação nos autos ser dotada de considerável relevância jurídica, tendo em conta que não existe um registo suficiente de decisões capaz de dar resposta às questões em apreço”. Invocou novamente norma processual civil,  defendendo que “a Revista Excepcional deve ser admitida, por estarem verificados os requisitos das alíneas a) e b) do n.º 1 do artigo 672.º do CPC, ex vi artigo 400.º, n.º 2 e 3 do C.P.P, e artigos 17.º, n.º 2 e 21.º, n.º 2 da Lei 88/2009 de 31.08, nomeadamente por estarem em causa questões que devem ser decididas para que se assegure a boa aplicação do Direito em casos futuros de reconhecimento de decisões de confisco estrangeiras, e que tocam interesses de particular relevância social”.

E suscitou nova “inconstitucionalidade, por violação dos artigos 13.º, 20.º, n.º 1 e 4, 32.º, n.º 1, e 62.º, do CRP, da norma extraída dos artigos arts. 4.º, 399.º, 400.º, 427.º, 432.º, 433.º, 437.º, 446.º, 447.º, 449.º do Código de Processo Penal, ex vi arts. 17.º, n.º 1 e 2, e 21.º da Lei 88/2009, de 31.08, segundo a qual não é aplicável em processo de decisão de reconhecimento e execução da decisão de confisco ou perda de bens ao abrigo da Lei 88/2009, de 31.08, o recurso de revista excepcional previsto no art. 672.º, do CPP, directamente por via de remissão operada pelo artigo 4.º do CPP”.

Na coerência de tudo o que se disse, resulta que este recurso, de revista excepcional, é também inadmissível em processo penal, e por todas as razões avançadas, transponíveis para aqui.

É certo que, no Supremo, a Sra. Procuradora-Geral Adjunta na primeira vista que teve do processo promovera o cumprimento do disposto no art. 672.º n.º 3 do CPC, promoção que foi então deferida. E pela formação a que se refere o art. 672.º, n.º 3, do CPC, foi depois proferida decisão no sentido de se justificar “a admissão da revista, considerando o relevo jurídico, nos termos do art. 672.º, n.º 1, al. a), do CPC”.

A decisão da formação é definitiva, mas esgota-se, logicamente, na questão que decidiu e sobre a qual foi chamada a pronunciar-se: a da verificação dos pressupostos referidos no n.º 1 do art. 672.º do CPC, em apreciação preliminar sumária.

E a apreciação preliminar sumária da formação não condiciona a admissão do recurso pela Secção Criminal, pois não interfere com a decisão sobre a (ir)recorribilidade do acórdão da Relação, decisão que só a secção criminal pode proferir. Não vincula, pois, a Secção Criminal sobre a (ir)recorribilidade do acórdão da Relação, questão que se mantém em aberto até ao presente.

Sucede que posteriormente ao despacho de envio do processo à formação se procedeu a reponderação do problema colocado - sobre a (in)admissibilidade dos recursos cíveis em processo penal, num caso em que, tal como o presente, se decide sobre questão que não reveste natureza estritamente civil - conforme acórdão entretanto publicado que teve a mesma relatora do presente, e como adjunto o Conselheiro Lopes da Mota. Trata-se do acórdão do STJ de 02.12.2021, em cujo sumário pode ler-se: “Em matéria de recursos, o Código de Processo Penal prevê e regula autónoma e exaustivamente o modelo e os tipos de recurso. E se a lei processual penal contém norma expressa que veda o duplo grau de recurso, é inviável a interposição de recurso para o Supremo por via do artigo 629.º, n.º 2, al. a), do CPC, pois a norma processual civil não tem aplicação em processo penal.”

O tema problematizado pelo recorrente no recurso que interpõe é sempre o mesmo, em qualquer uma das vertentes que apresentou: o da autonomia dos recursos em processo penal.

Pugna o recorrente pela aplicação das normas do processo civil, directamente ou por via da aplicação concomitante do art. 4.º do CPP, que trata da “Integração de lacunas”. Mas a lacuna, como se disse, não ocorre em processo penal em matéria de recursos. E seguramente não ocorre quando a questão objecto do recurso se reveste ainda de natureza penal.

Como se adiantou, não se apresenta controvertido em recurso que o acórdão da Relação que se visa impugnar é irrecorrível à luz do Código de Processo Penal. Ou seja, a lei processual penal não prevê, vedando mesmo, a possibilidade de nova reacção processual com vista à obtenção de um reexame da decisão por um tribunal superior, num caso como o presente. O presente acórdão da Relação é já uma decisão que, em recurso, conheceu da impugnação do arguido da decisão da primeira instância. E a irrecorribilidade do acórdão da Relação impõe-se por a decisão sub judice não beneficiar da possibilidade de duplo grau de recurso, mostrando-se já assegurado um grau de recurso. Pois da limitação do direito ao recurso consagrada no art. 400.º, n.º 1, al. c), do CPP decorre que não é admissível recurso “de acórdãos proferidos, em recurso, pelas relações, que não conheçam, a final, do objecto do processo”, como logo se adiantou.

Em processo penal e em matéria de recursos, o Código (de processo penal) prevê e regulamenta autónoma e exaustivamente o modelo e os tipos de recurso, e a lei processual penal contém norma expressa que veda o duplo grau de recurso no caso sub judice. Duplo grau de recurso que a Constituição não consagra, sendo jurisprudência desde sempre pacífica, do Tribunal Constitucional, que o direito ao recurso constitucionalmente assegurado se basta com a garantia de um grau de recurso. Grau este que, no presente caso, se mostra já assegurado.

E as normas processuais civis cuja utilização se pretende não tem aplicação em processo penal, desde logo porque o art. 4.º do CPP pressupõe a existência de uma lacuna, a qual não ocorre em matéria de recursos ao nível das grandes linhas de organização do modelo e de classificação dos vários tipos de recurso. 

Logo na fundamentação do Acórdão para Fixação de Jurisprudência n.º 9/2005, o Supremo Tribunal de Justiça reafirmou a autonomização dos recursos em processo penal prosseguida pelo Código de Processo Penal vigente, jurisprudência que o decurso do tempo só veio consolidar. Fê-lo ali, ao que ora interessa, nos seguintes termos:

“O regime de recursos em processo penal, tanto na definição do modelo como nas concretizações no que respeita a pressupostos, à repartição de competências pelos tribunais de recurso, aos modos de decisão do recurso e aos respectivos prazos de interposição, está construído numa perspectiva de autonomia processual, que o legislador pretende própria do processo penal e adequada às finalidades de interesse público a cuja realização está vinculado.

O regime de recursos em processo penal, tributário e dependente do recurso em processo civil no Código de Processo Penal de 1929 (CPP/29), autonomizou-se com o Código de Processo Penal de 1987 (CPP/87), constituindo actualmente um regime próprio e privativo do processo penal, tanto nas modalidades de recursos como no modo e prazos de interposição, cognição do tribunal de recurso, composição do tribunal e forma de julgamento.

No CPP/29, o recurso em processo penal seguia a forma do processo civil, sendo processado e julgado como o agravo de petição em matéria cível (artigo 649.º do CPP/29); não existia, então, como regra, regulamentação própria e autónoma, privativa do processo penal.

A autonomização do modelo de recursos constituiu mesmo um dos momentos de reordenamento do processo penal no CPP/87. A lei de autorização legislativa (Lei n.º 43/86, de 26 de Setembro), que concedeu autorização para a aprovação de um novo Código de Processo Penal, definiu expressamente como objectivo a construção de um modelo, que se pretendia completo, desde a concepção das fases do processo até aos termos processuais da reapreciação das decisões na concretização da exigência - que é de natureza processual penal no plano dos direitos fundamentais - de um duplo grau de jurisdição. A lei consagrou imposições determinantes no que respeitava ao regime de recursos, apontando para uma perspectiva autónoma e para uma regulação completa.

Os pontos 70 a 75 do n.º 2 do artigo 2.º da lei de autorização (sentido e extensão), referidos especificamente às orientações fundamentais em matéria de recursos, impunham, decisivamente, a construção de um modelo com autonomia, desligado da tradição da referência aos recursos em processo civil.

Por seu lado, a nota preambular do CPP/87, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 78/87, de 17 de Fevereiro, qualifica o regime de recursos como «inovador», estabelecido na perspectiva da obtenção de um amplo efeito («potenciar a economia processual numa óptica de celeridade e eficiência e, ao mesmo tempo, emprestar efectividade à garantia contida num duplo grau de jurisdição autêntico»), assim autonomizado como modelo próprio para realizar finalidades específicas do processo penal.

A intenção e a autonomia do modelo mantêm-se após a reformulação do regime de recursos na reforma de 1998 (Lei n.º 58/98, de 25 de Agosto), a formulação reguladora das diversas modulações nos recursos (tribunal singular, tribunal colectivo e tribunal do júri; matéria de facto e matéria de direito; tribunais da relação e Supremo Tribunal de Justiça; oralidade e audiência no tribunal de recurso) continua a constituir um sistema com regras próprias e específicas do processo penal (cf. a exposição de motivos da proposta de lei n.º 157/VII, n.os 15 e 16).

A autonomia do modelo e das soluções processuais que contempla coloca-o a par dos regimes de recursos de outras modalidades de processo, independente e com vocação de completude, com soluções que pretendem responder, por inteiro e sem espaços vazios, às diversas hipóteses que prevê.

Não obstante alguma proximidade ou «analogia semântica» nos nomina de designação entre as categorias de recursos (uma «civilprocessualização» do recurso em processo penal, como refere Damião da Cunha, in Caso Julgado Parcial, 2002, a pp. 528 e 529), a similitude não se verifica, no rigor das coisas, no plano da regulamentação e no modo operativo; nem o recurso em processo penal para o Tribunal da Relação constituiu uma apelação em processo civil, como o recurso para o Supremo Tribunal de Justiça constitui, mais que um recurso de revista (revision), uma espécie autónoma de revista (revista alargada) em que o poder de cognição se estende a importantes domínios atinentes ao complexo material ainda pertencente ao âmbito - alargado - da matéria de facto.”

A autonomia total do modelo e regime de recursos em processo penal, a par da regra da suficiência do processo penal consagrada no art. 7.º, n.º 1 do CPP, mantém-se até ao presente. E mantém-se com o sentido conhecido dado pela jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça, sempre sem censura de constitucionalidade, e em interpretação necessariamente sabida e até agora não adversariada pelo legislador.

Na verdade, não ocorreu qualquer alteração legislativa nesta parte, nomeadamente nas grandes reformas operadas pelas Leis n.ºs 48/2007, de 29 de Agosto, e 20/2013, de 21 de Fevereiro, nem tão pouco na recentíssima Lei n.º 94/2021, de 21 de Dezembro, ainda não entrada em vigor, que introduz também alterações em matéria de recursos.  O que podia ter sido feito, se essa fosse a intenção do legislador. Tanto mais que, repete-se, é conhecida a jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça a este propósito, bem como a ausência de censura por parte do Tribunal Constitucional a tal interpretação.

   Como se disse no acórdão do STJ de 27.01.2021 (Rel. Nuno Gonçalves), “Como este mesmo Tribunal e secção – e com o mesmo relator – sustentou e aqui se repete, a autonomização dogmática e metodológica do regime dos recursos processo penal, em matéria criminal, em relação à lei adjectiva do processo civil, foi uma das preocupações do legislador do vigente CPP, informado pelo ideário de estabelecer um sistema integrado - e completo - de soluções potenciadoras da “economia processual numa óptica de celeridade e de eficiência e, ao mesmo tempo, emprestar efectividade à garantia contida num duplo grau de jurisdição autêntico”, de modo a obviar “ao reconhecido pendor para o abuso dos recursos”. “Complementarmente, procurou simplificar-se todo o sistema, abolindo-se concretamente a existência, por regra, de um duplo grau de recurso” – cf. preâmbulo do CPP de 1987.

Posteriormente, retocando a arquitectura do edifício assim erigido, o legislador, – na Proposta de Lei n.º 109/X que se converteu na Lei n.º 48/2007:

- Insistiu em “restringir o recurso de segundo grau perante o Supremo Tribunal de Justiça aos casos de maior merecimento penal”.

Expressando que “para garantir o respeito pela igualdade, admite-se a interposição de recurso da parte da sentença relativa à indemnização civil mesmo nas situações em que não caiba recurso da matéria penal”.

Na doutrina, Leal Henriques e Simas Santos não podiam ser mais claros neste aspecto, entendendo que “com o Código de Processo Penal de 1987, o regime dos recursos em processo penal sofreu uma autêntica revolução que obedeceu a uma ideia concreta: ruptura praticamente total com o sistema de recursos em processo civil que lhe servia de amparo, mercê da criação de um estatuto autónomo e próprio que independentizasse, de uma vez por todas, o esquema processual até então vigente”.

“Traçou, assim, o legislador a ossatura do regime dos recursos em processo penal que, em traços grossos e breves: como alicerce, o rompimento com a subordinação da matéria ao esteio do processo civil”.

“Esta filosofia de base manteve-se nas alterações introduzidas no texto que não puseram em causa o princípio original de autonomia dos recursos penais” Também M. Maia Gonçalves entendeu que “não há qualquer lacuna do sistema legal dado o texto deste art.º 400.º, não funciona em processo penal o normativo do art.º 678º n.º 2 do CPC relativo aos recursos para o STJ baseados em ofensa do caso julgado ou das regras de competência internacional e em razão da matéria ou da hierarquia”.

Assim mesmo, no acórdão inicialmente citado – com o mesmo relator -, sustentou-se “que as excepções ao princípio geral da recorribilidade das decisões em processo penal estão expressamente previstas no CPP, não existindo qualquer lacuna, nem, consequentemente, margem para convocar a aplicabilidade da norma do artigo 629. ° n.º 2, do Código de Processo Civil”.

Também citados no mesmo acórdão do STJ de 27-01-2021 (Rel. Nuno Gonçalves) podem ver-se, entre muitos outros:

- O acórdão do STJ de 16-06-2020 (Rel. Margarida Blasco), no sentido de não ser “convocável em recurso da matéria penal a aplicação supletiva do artigo 629.º, n.º 2, al. a), do CPC. O regime de recursos em processo penal é hoje, e, em princípio, auto-suficiente, não havendo lacuna que permita, a coberto do artigo 4.º, do CPP, que seja lançada mão do disposto no artigo 629.º, n.º 2, al. a), do CPC relativamente ao recurso em matéria penal para o STJ com base em ofensa ao caso julgado. Sendo que a jurisprudência mais recente deste Supremo Tribunal assim tem decidido”;

- O acórdão do STJ de 06-05-2020 (Rel. Raul Borges), no sentido de “no domínio do processo penal, a recorribilidade para o Supremo Tribunal de Justiça da parte da sentença relativa à matéria criminal está essencialmente dependente da medida concreta da pena aplicada ao arguido.

(…) Não tem aplicação em processo penal a recorribilidade com base em incompetência material ou violação de caso julgado. - art.º 629.º, n. º 2, al. a), do CPC.

(…) Este Supremo Tribunal já se pronunciou no sentido de inexistência de lacuna e de não ser aplicável em processo penal o disposto no artigo 629.º, n.º 2, alínea a), do CPC, como consta do sumário do acórdão de 7 de Janeiro de 2016, proferido no processo n.º 204/13.6YUSTR.L1-A.S1, da 5.ª Secção.

No sentido de inexistência de lacuna e de não aplicação da revista excepcional em matéria penal, pronunciaram-se os acórdãos de 06-10-2016, proferido no processo n.º 535/13.5JACBR.C1.S1 - 5.ª Secção e de 4-12-2019, proferido no processo n.º 354/13.9IDAVR.P2.S1, da 3.ª Secção, in CJSTJ 2019, tomo 3, págs. 230 a 235.”;

- O acórdão do STJ de 04.12.2019 (Rel. Manuel Matos), no sentido de

“V - O artigo 432.º do CPP delimita exaustivamente os casos de recurso para o STJ, sendo que a vigente lei processual penal contempla taxativamente os recursos extraordinários previstos, quais sejam, o recurso para fixação de jurisprudência, o recurso interposto de decisão proferida contra jurisprudência fixada pelo Supremo Tribunal de Justiça (artigos 437.º e 446.º do CPP) e o recurso de revisão (artigo 449.º do CPP), não prevendo a revista excepcional sobre objecto penal.

VI - Tendo o regime processual dos recursos penais sido autonomizado no Código de 1987, só em caso de lacuna do regime processual penal, que careça de integração, é lícito ao intérprete socorrer-se dos atinentes preceitos processuais civis (art. 4.º do Código de Processo Penal).

VII – No caso presente, não se nos afigura que se possa afirmar a existência de uma lacuna que careça de ser integrada. As necessidades de certeza e segurança do direito obrigam o legislador a uma «hierarquização de valores», originando a exclusão de situações que, embora alguns possam considerar carecidas de tutela, não foram realmente na hipótese contempladas. Pelo que, nesta perspectiva, o intérprete terá de presumir, em princípio, que o legislador elaborou um «sistema completo», não podendo, sem risco de subversão das regras hermenêuticas, recuperar por sua conta aquelas situações.

IX – Já relativamente à matéria penal, ao objecto penal tramitado no processo penal, observa-se a inaplicabilidade das normas processuais civis relativamente aos recursos aí interpostos e, muito em particular, aos recursos interpostos perante o STJ. Neste ponto, o regime jurídico-processual dos recursos e respectivas espécies, consagrado no CPP pauta-se pela suficiência (princípio da auto-suficiência), é taxativo, exaustivo e completo.

X - Ora, reafirmando-se, o regime processual penal português vigente não prevê a existência do recurso de revista excepcional em matéria penal, não se vislumbrando, ao invés do que o recorrente pretende, razões ou fundamentos que permitam concluir no sentido de o sistema jurídico reclamar, por via interpretativa ou integrativa, a aplicabilidade do recurso à revista excepcional para ultrapassar os efeitos decorrentes de duas decisões conformes (da 1.ª instância e da Relação) quanto ao objecto penal.”.

- O acórdão do STJ de 17.06.2015 (Rel. João Miguel) em que se notou que “O TC já afastou a prevalência do caso julgado como fundamento de recurso por referência a normas do processo civil e do processo penal, não surpreendendo nessa interpretação desconformidade constitucional, não tendo o acórdão reclamado levado a cabo interpretação tida por inconstitucional de qualquer norma do CPP”, citando-se aqui os acórdãos do Tribunal Constitucional  n.º 630/2011, de 19 de dezembro de 2011, e n.º 33/2015, de 14 de janeiro de 2015.

No sentido da conformidade constitucional da presente decisão podem ainda ver-se os acórdãos do Tribunal Constitucional n.º 682/2006 (“o “direito a um duplo grau de jurisdição em matéria penal”, apenas garante àquele que é declarado culpado o direito de se fazer examinar por uma jurisdição superior, resultando o mesmo do art. 32º da CRP, que referencia o direito ao recurso como uma garantia de defesa do processo criminal, ou seja, garante-se aos arguidos o segundo grau de jurisdição (…)”; n.º 451/2003 (“(…) a resolução da questão de constitucionalidade passa por saber quais os limites de conformação que o artigo 32.º n.º 1 da CRP impõe ao legislador ordinário, em matéria de recurso penal. E a resposta é dada no Acórdão n.º 189/01 no sentido de não haver vinculação a um triplo grau de jurisdição e de ser constitucionalmente admissível uma restrição ao recurso se ela não for desrazoável, arbitrária ou desproporcionada.”); n.º 377/2003 (“O direito de recurso conta-se entre “todas as garantias de defesa” conferidas pelo art.º 32.º, n.º 1 da CRP. Todavia, no domínio do processo penal, esse direito ao recurso basta-se com a existência de um duplo grau de jurisdição. Do art.º 20.º, n.º 1 da CRP não resulta que os interessados tenham de ter assegurados todos os graus de recurso abstractamente configuráveis ou um direito irrestrito ao recurso.”); n.º 49/2003 (“(…) os fundamentos do direito ao recurso entroncam verdadeiramente na garantia do duplo grau de jurisdição. A ligação entre o direito ao recurso e o duplo grau de jurisdição é, pois, evidente. (…) o acórdão da relação, proferido em 2ª instância, consubstancia a garantia do duplo grau de jurisdição, indo ao encontro precisamente dos fundamentos do direito ao recurso. (…) estando cumprido o duplo grau de jurisdição, há fundamentos razoáveis para limitar a possibilidade de um triplo grau de jurisdição, mediante a atribuição de um direito de recorrer de decisões condenatórias. (…) Não se pode, assim, considerar infringido o n.º 1 do artigo 32.º da Constituição pela norma que constitui o objecto do presente recurso, já que a apreciação do caso por dois tribunais de grau distinto tutela de forma suficiente as garantias de defesa constitucionalmente consagradas.”

Por último, de referir que a posição que se sufraga respeita ainda a Convenção Europeia dos Direitos Humanos, pois nem do seu art. 13.º (Direito a um recurso efectivo), nem do art. 2.º do Protocolo 7 Adicional à Convenção, que consagra o direito ao recurso (Direito a um duplo grau de jurisdição em matéria penal), resulta a obrigatoriedade de um duplo grau de recurso, naquela que tem sido sempre a jurisprudência do TEDH. Veja-se, por exemplo, o Caso S.K. v. Rússia (processo n.º 52722/15, de 14-05-2017) - “O artigo 13.º da Convenção não obriga os Estados Contratantes garantir um segundo grau de recurso” – e note-se que o art. 2.º do Protocolo 7 prevê que mesmo o duplo grau de jurisdição (um grau de recurso) pode ser excepcionado nas três situações que contempla.

E assim, não sendo admissível o presente recurso, não cumpre conhecer de nenhuma questão suscitada que pressupusesse, como necessária condição de conhecimento, essa admissão. E não cumpre designadamente conhecer da matéria aditada na resposta ao parecer da senhora Procuradora-Geral Adjunta, por respeitar a factos e a circunstâncias ocorridas após prolação da última decisão (a decisão final) proferida nos autos. Ou seja, após o acórdão do Tribunal da Relação ....

Por último, consigna-se que o facto de o recurso ter sido admitido nunca vincularia o Supremo Tribunal de Justiça, conforme disposto no art. 414.º, n.º 3 do CPP.

           

3. Decisão

Face ao exposto, acordam na 3.ª Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça em rejeitar o recurso por irrecorribilidade da decisão.

Pagará o recorrente 5 UC de taxa de justiça e a importância de 3UC nos termos do art. 420.º, n.º 3 CPP.


Lisboa, 12.01.2022

           

Ana Barata Brito, relatora


Maria Helena Fazenda, adjunta