Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
78/23.9YRCBR.S2
Nº Convencional: 3.ª SECÇÃO
Relator: LOPES DA MOTA
Descritores: EXTRADIÇÃO
CUMPRIMENTO DE PENA
TORTURA
TRATAMENTOS CRUÉIS
DESUMANOS E DEGRADANTES
CONVENÇÃO EUROPEIA DOS DIREITOS HUMANOS
TRIBUNAL EUROPEU DOS DIREITOS HUMANOS
PRESTAÇÃO DE GARANTIAS PELO ESTADO REQUERENTE
RECUSA DE COOPERAÇÃO
REVELIA
Data do Acordão: 09/13/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: EXTRADIÇÃO/M.D.E./RECONHECIMENTO DE SENTENÇA ESTRANGEIRA
Decisão: NEGADO PROVIMENTO
Sumário :
I. Como se afirmou no anterior acórdão de 31.05.2023, sem prejuízo de a alegação dever ser considerada, a prova das más condições das prisões no Estado requerente não constitui ónus imposto ao extraditando, pelo que a não pronúncia sobre prova que o extraditando pretendia ver produzida sobre as condições das prisões no Estado requerente não constitui nulidade do acórdão recorrido.

II. A questão da relevância, no âmbito da extradição, das más condições das prisões no Estado requerente, atentatórias da dignidade humana, por sobrelotação e graves deficiências de organização e funcionamento pondo em risco a saúde, a segurança, a integridade física ou psicológica ou a vida dos reclusos, situa-se a um nível diverso, a que são aplicáveis normas de direito internacional público (de jus cogens) que vinculam os Estados ao sistema internacional de proteção dos direitos humanos; estas condições constituem ou apresentam sério risco de constituírem tortura ou tratamento desumano ou degradante proibido por instrumentos internacionais, nomeadamente pelo artigo 3.º da CEDH.

III. De acordo com a jurisprudência bem estabelecida do Tribunal Europeu dos Direitos Humanos (TEDH), a partir do caso Soering c. Reino Unido (n.º 14038/88, de 7.7.1989), a proteção contra o tratamento proibido pelo artigo 3.º da CEDH é absoluta.

IV. O risco de tratamento da pessoa em violação do artigo 3.º da CEDH obriga o Estado requerido a fazer uma “avaliação adequada” desse risco e a adotar as medidas ao seu alcance necessárias à sua prevenção – nomeadamente solicitando ao Estado requerente a prestação de garantias de que a pessoa requerida não será sujeita a este tipo de tratamentos – e a não extraditar em caso de não prestação de garantias ou insuficiência das garantais prestadas e de subsistência daquele risco.

V. Em cumprimento e na sequência do decidido no acórdão de 31.05.2023 deste Supremo Tribunal de Justiça, que declarou a nulidade do anterior acórdão por omissão de pronúncia quanto às garantias prestadas pelo Estado requerente, o Tribunal da Relação solicitou às autoridades brasileiras, diretamente ao tribunal da condenação, por via diplomática e através da autoridade central, a concretização de garantias de não sujeição do extraditando a tratamentos desumanos e degradantes devido às condições das prisões descritas nas “observações conclusivas” do Comité contra a Tortura (Nações Unidas), de abril de 2023, e procedeu à avaliação dessas garantias em termos que podem considerar-se adequados.

VI. Tendo em conta as implicações dos princípios da boa fé e da cooperação leal que se impõem na aplicação dos tratados internacionais e na cooperação penal entre Estados, bem como os critérios de avaliação da qualidade e de aplicação prática, nomeadamente no que respeita à entidade que emite a garantia e à sua posição institucional, à sua força vinculativa e ao seu conteúdo, ao quadro legal de proteção contra a tortura e os maus tratos, à prática do Estado requerente neste domínio e às possibilidades de verificação e controlo do cumprimento e o direito de acesso a um tribunal [cfr. acórdão Othman (Abu Qatada) c. Reino Unido], não se encontra motivo que coloque em crise a avaliação, pelo tribunal recorrido, da suficiência das garantias prestadas, em suprimento da nulidade declarada no anterior acórdão deste Supremo Tribunal de Justiça.

VII. Não ocorrendo qualquer das nulidades invocadas no recurso e em concordância com a avaliação a que se procede no acórdão recorrido, no sentido de que as garantias prestadas são “satisfatórias”, conclui-se pela improcedência do recurso nesta parte.

VIII. A “revelia” a que se refere a al. e) do artigo 4.º da Convenção da CPLP, que constitui motivo de recusa facultativa da extradição, é a que se traduz na ausência, no desconhecimento e na não participação no processo da condenação, visando a norma assegurar a realização de novo julgamento ou recurso ou prestação de outra garantia que permita ao extraditando exercer plenamente o contraditório, com respeito pelas regras do processo justo e equitativo, que inclui o direito de estar presente na audiência de julgamento e exercer efetivamente os direitos de defesa.

IX. A definição do conceito de revelia compreende as situações descritas no artigo 4.º-A da Decisão-Quadro 2009/299/JAI do Conselho, que altera, além de outras, a Decisão-Quadro 2002/584/JAI relativa ao MDE, reforçando os direitos processuais das pessoas e promovendo a aplicação do princípio do reconhecimento mútuo no que se refere às decisões proferidas na ausência do arguido, refletindo a jurisprudência do TEDH e os standards de direito europeu e internacional na matéria.

X. Não ocorre este motivo de recusa facultativa de extradição (condenação à revelia no Estado requerente), pelo que igualmente improcede o recurso nesta parte.

XI. Encontra-se, assim, prejudicada a pretensão de cumprimento da pena em Portugal, a qual, pressupondo a prévia recusa de extradição, a justificar-se, teria de ocorrer em procedimento próprio.

Decisão Texto Integral:

Acordam na 3.ª Secção do Supremo Tribunal de Justiça:


I. Relatório

1. AA, com a identificação que consta dos autos, interpõe recurso do acórdão de 29 de junho de 2023 do Tribunal da Relação de Coimbra, proferido em cumprimento do acórdão de 31 de maio de 2023 deste Supremo Tribunal de Justiça, que declarou a nulidade do anterior acórdão daquele mesmo tribunal de 26 de abril de 2023, e que autoriza a sua extradição para a República Federativa do Brasil para efeitos de cumprimento das penas de 4 meses e 10 dias de detenção no regime aberto e 7 anos, 7 meses e 27 dias de reclusão, em que foi condenado pela 3.ª Vara de Violência Doméstica de .../MG, pela prática de crimes que, verificada a dupla incriminação, correspondem, na lei portuguesa, aos crimes de ofensa à integridade física qualificada, de ofensa à integridade física grave, de violência doméstica e de maus tratos, previstos e punidos pelos artigos 145.º, n.ºs 1, al. c), e 2, 144.º, al. d), 152.º, n.ºs 1, al. e), 2, al. a), e 3, al. a), 152.º-A, n.ºs 1, al. a), e 2, al. a), do Código Penal.

2. Apresenta recurso com motivação de que extrai as seguintes conclusões:

«I. Para justificar um decisão de recusa de extradição AA suscitou, em sede de recurso do acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Coimbra a 26 de Abril de 2023, as condições degradantes e tortuosas dos Estabelecimentos Prisionais brasileiros, tendo em vista a recusa da sua extradição com base no disposto no art.º 6.º, n.º 1 da Lei n.º 144/99, de 31 de Agosto, para além do disposto no art.º 5.º da DUDH e ainda 3.º da CEDH, para além de aflorar o facto de não ter tido acesso, na sua verdadeira extensão a um processo equitativo no Brasil, nos termos do art.º 20.º, n.º 4 da CRP;

II. Face à declaração de nulidade pelo Supremo Tribunal de Justiça do acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Coimbra, foi proferido novo acórdão, contudo em contravenção ao ordenado por este Supremo Tribunal, dado que em momento algum foi mencionado o teor do Relatório do Comité contra a Tortura das Nações Unidas, de abril de 2023, sendo apenas feita alusão à declaração emitida pelas autoridades brasileiras;

III. Quatro das seis testemunhas arroladas pelo recorrente são colegas de trabalho e de nacionalidade brasileira, incidindo o objecto do seu depoimento sobre a realidade brasileira, face à assimetria de condições nos estabelecimentos prisionais e ao tratamento desumano existente nos mesmos, quer por parte da administração pública e/ou privada dos EPs, quer advinda dos restantes reclusos, pelo que se impunha a sua inquirição - em cumprimento do disposto no n.º 2 do art.º 56.º da Lei n.º 144/99, de 31 de Agosto – e ter sido realizada audiência para o efeito e não uma tomada de decisão sem observância por todos os meios de prova, não obstante dar credibilidade às declarações do arguido no que diz respeito às questões que o Tribunal presumiu que as testemunhas iriam responder;

IV. Estamos perante uma nulidade por omissão de pronúncia no que concerne ao Relatório elaborado pelas Nações Unidas e que era expressamente referido pelo STJ como sendo de referência para aquilatar da viabilidade da extradição ou não e ainda de diligências que foram consideradas como profícuas para a defesa do extraditando, pelo que se requer a declaração de nulidade do acórdão recorrendo, com as legais consequências dos arts. 118.º, 120.º, n.º 2, al. d) e 379.º, n.º 1, al. c), do CPP, subsidiariamente aplicável ao presente caso concreto, devendo ser determinada a audição das testemunhas, nos termos do art.º 56.º da Lei n.º 144/99, de 31 de Agosto;

V. O Tribunal a quo não curou de instruir de forma adequada, logo exaustiva, os autos, com o fito de melhor se munir de informação para tomar uma decisão que em nada perigasse os valores e princípios que enformam o ordenamento jurídico português, para além da ordem jurídica internacional, mormente no que tange aos direitos humanos;

VI. Num relatório elaborado oficiosamente pelo República Federal do Brasil, é afirmado por uma perita que os estabelecimentos prisionais têm diversas falhas e que há uma inércia generalizada para melhorar as condições dos reclusos, em virtude de o espaço de reclusão não dever servir para estigmatizar e retirar dignidade ao recluso, devendo ao inverso, ter como móbil a ressocialização do agente para que este não venha a reincidir no futuro e para criar condições para este vir a reinserir-se na sociedade de forma profícua para esta e para o agente;

VII. O Brazil 2022 Human Rights Report, dá nota da situação deplorável e inaceitável da generalidade do sistema prisional Brasileiro;

VIII. É reportado pelas Nações Unidas - e no relatório elaborado pelo Bureau of Democracy, Human Rights and Labor Americano - que existem casos de tortura e tratamentos desumanos, para além da sobrelotação, a qual constitui um problema inegável do sistema prisional brasileiro, circunstância que foi igualmente evidenciada por este Supremo Tribunal ao referir-se ao Relatório elaborado pela Comité do Human Rights Watch, de abril de 2023;

IX. São consabidas as condições desumanas dos EPs brasileiros e do tratamento tortuoso a que os condenados e presos preventivos são sujeitos, quer pelos guardas prisionais (há dezenas e dezenas de relatos de brutalidade policial), quer pelos restantes reclusos, por conseguinte, salvo se o Estado Brasileiro tivesse facultado a indicação do EP para onde AA fosse cumprir pena e a garantia das condições desse EP - enquanto excepção ao facto notório e público das condições insalubres, degradantes e “indignificantes” dos EPs a nível federal – a extradição de AA tem de ser rejeitada, por violação do disposto no na al. a) do n.º 1 do art.º 6.º da Lei n.º 144/99;

X. Bem sabemos que o princípio da reciprocidade, com assento legislativo no art.º 4.º da Lei n.º 144/99, de 31 de Agosto e no art.º 1.º da Convenção de extradição entre os Estados Membros da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa, não deve ser perigado, pois em situações de extradição futura onde os papéis se invertam, a República Federal do Brasil poderá invocar a falta de reciprocidade portuguesa, mas certo é que o princípio não pode ser cego;

XI. Não podemos fingir que o Sistema Prisional Brasileiro não padece de graves enfermidades e que tem de ser objecto de um trabalho intenso e imediato e que, por via disso, estão reunidas condições para um pedido de extradição ser negado;

XII. Foi junto aos autos pelas autoridades brasileiras um documento que apenas reproduz normas legais, e tal tem dignidade suficiente para afiançar condições diferentes das conhecidas, designadamente porque a 5 de junho de 2023 o Tribunal a quo, quando pede garantias ao Estado requerente, faz questão de requerer a necessária concretização das garantias, e tal, salvo o devido respeito, não é cumprido;

XIII. A protecção contra tratamentos desumanos e degradantes é absoluta face ao disposto no art.º 3.º da CEDH, sendo igualmente trazidos à discussão o “artigo 7.º do Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos (PIDCP) (ONU, Nova Iorque, 1966), que constitui um tratado de âmbito universal, de que a República Portuguesa e a República Federativa do Brasil são Estados-Partes; no artigo 5.º da Convenção Americana dos Direitos Humanos, de que o Brasil é Estado-Parte; no artigo 3.º na Convenção Europeia dos Direitos Humanos (CEDH), ratificada por Portugal; nos artigos 1.º, 2.º, 3.º e 16.º da Convenção contra a Tortura e Outras Penas ou Tratamentos Cruéis, Desumanos ou Degradantes (ONU, 1984) e no respetivo Protocolo Facultativo, de 2002, em vigor no Brasile em Portugal; na Convenção Interamericana para Prevenir e Punir a Tortura (1985), em vigor no Brasil, e na Convenção Europeia para a Prevenção da Tortura e Penas ou Tratamentos Desumanos e Degradantes (1987), bem como por soft law como as Regras Mínimas das Nações Unidas para Tratamento de Prisioneiros de 1995 e as “Regras de Nelson Mandela” (2015)8” que traçam essa realidade;

XIV. No presente caso concreto as garantias prestadas pelas autoridades brasileiras são vazias de sentido, pois contrariam toda a literatura sobre o assunto, para além de contrariarem ainda os Relatórios elaborados pelas Nações Unidas, onde está inequivocamente assente que o sistema prisional brasileiro não está em condições para assegurar um tratamento que não seja desumano, independentemente de ser afirmado (sem prova) que se dá garantias do contrário;

XV. O risco para AA é real e não meramente hipotético, pelo que impendia sobre o Estado Requisitante a obrigação de fazer uma avaliação adequada e séria do risco para poder afirmar que cumpre com os requisitos internacionalmente exigidos para efeitos de extradição;

XVI. Acresce ainda que não sendo suficiente uma declaração da envergadura da emitida pelas autoridades brasileiras remetidas aos presentes autos, cabia às autoridades portuguesas proceder a uma avaliação adequada da situação, o que não aconteceu;

XVII. Esta ausência de um “proper assessment” poderá determinar a condenação do Estado Português por violação de uma obrigação que recaía sobre si, independentemente das relações diplomáticas existentes, face ao disposto no art.º 3.º da CEDH, pois estamos perante uma norma de ius cogens que não admite derrogação por acautelarem valores e direitos absolutos, neste caso não ser submetido a tratamentos desumanos e degradantes no sistema prisional brasileiro, tal como já abordado na jurisprudência do TJUE;

XVIII. A reiteração da garantia genérica que instruiu o pedido de extradição, se nos permitem a ousadia, é apenas “mais do mesmo” (apesar da reprodução de normas em vigor no ordenamento jurídico brasileiro, designadamente o art.º 41.º da Lei das Execuções, art.º 5.º da Constituição Brasileira e genericamente a DUDH) e não cumpre com o que é exigido no direito nacional e internacional, pelo que cumpria ao tribunal recorrido, neste caso o Juízo que julgou os autos no Tribunal da Relação de Coimbra, a recolha de informações sérias e imparciais que permitissem um juízo final justo e adequado, mesmo que enveredasse pela extradição do recorrente;

XIX. Consequentemente, deve ser recusada a extradição de AA com base no disposto na al. a) do n.º 1 do art.º 6.º da Lei n.º 144/99 de 31 de Agosto, sem artigo congénere na Convenção de Extradição entre os Estados Membros da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa, no art.º 5.ºda DUDH e art.º 3.º da CEDH;

XX. Nos presentes autos não se denotam circunstâncias claras que se subsumam ao regime do n.º 6 do art.º 33.º da CRP, dado que, alegadamente, e de acordo com o que vem concretizado no pedido de extradição, qualquer pena considerada desumana pelo Estado Português, será comutada em outra que cumpra com os requisitos da reciprocidade, mas o Estado não pode comutar aquilo sobre o qual não tem domínio directo, salvo no que concerne ao sistema prisional;

XXI. O Colendo Colectivo de juízes que compunham o Tribunal a quo concordou com a defesa no sentido de que, independentemente de o processo ter tramitado no estrangeiro, não poder ser postergada a garantia de um processo justo e equitativo (due process), presente nos arts.º 20.º, n.º e 32.º, n.º 1 da CRP, onde devem ser observadas todas as garantias de defesa, incluindo o recurso;

XXII. Não foram respeitadas todas as garantias de defesa do extraditando, pois é inequívoco que da instrução do pedido de extradição se retira que AA teria de ser pessoalmente, ou pelo seu mandatário, intimado pelo STJ Brasileiro no sentido de colmatar a lacuna verificada numa alegada cadeia (in)completa de substabelecimento, dado que tal intimação tinha por objecto colmatar o facto de inexistir legitimidade do Dr. BB para o representar, impossibilitando o conhecimento do recurso por aquele Tribunal Superior;

XXIII. Não ficou evidenciado nos autos que a certidão para saneamento de óbices tenha sido regulamente notificada ao requerido, ou ao mandatário subscritor do recurso, o que determinou liminarmente que o recurso fosse rejeitado – para além de o recurso ter sido remetido para o STJ Brasileiro por email, meio considerado como inidóneo para o efeito;

XXIV. O requerido não teve conhecimento de todas as circunstâncias atinentes à sua condenação, dado que não foi notificado das diversas decisões e resultados das mesmas, nem tampouco dos vícios formais verificados, quer no que concerne à legitimidade do mandato do Advogado subscritor do recurso, quer no que se refere ao meio inidóneo para interposição de recurso perante o STJ Brasileiro, impossibilitando que tivesse acesso a uma defesa condigna, dado que, para todos os efeitos, o mesmo deixou de estar representado por advogado na pendência do processo;

XXV. O entendimento do Tribunal a quo não é sufragável, pois continuamos com a convicção de que estamos perante uma situação de recusa facultativa, dado que AA ao não ter acesso a uma notificação que podia perigar a viabilidade da demonstração da sua inocência, viu ser-lhe retirado um momento imprescindível da sua defesa, e a cadeia de acesso à informação que permite a existência de um processo equitativo não sendo transparente, revela-se que foram perigadas as suas garantias de defesa, subsumindo-se o entendimento do extraditando a uma situação e revelia, logo, de recusa facultativa de extradição, nos termos da al. e) do art.º 4.º da Convenção de Extradição entre os Estados Membros da CPLP;

XXVI. Considera-se, por conseguinte, que estamos perante uma situação que em nada vai perigar as nossas relações diplomáticas com a República Federal do Brasil, uma vez recusado o pedido de extradição para pelos motivos supra enunciados – de cariz material e formal –, pelo que deverá ser recusada a sua extradição e, caso as autoridades brasileiras assim o entendam, deverão requerer ao Estado Português que AA cumpra a pena em que tiver sido condenado a título definitivo em Portugal e não no Brasil, nos termos conjugados de recusa al. a) do n.º 1 do art.º 6.º al. b) e g) do n.º 1 do art.º 23.º e al. c) do n.º 2 do art.º 44.º; n.º 2 e 3 do art.º 31.º, 95.º, 96.º, n.º 1 da Lei n.º 144/99, de 31 de Agosto, apenas assim se fazendo Justiça.»

3. Respondeu o Ministério Público, concluindo pela improcedência do recurso, nos seguintes termos:

«(…)

7. O Tribunal a quo tratou a questão da inquirição das testemunhas, igualmente, como questão prévia, considerando tal diligência desnecessária, em virtude do pedido que os factos sobre quais iriam depor as testemunhas pretendiam sustentar não ser admissível (cumprimento da pena de prisão em Portugal), pelo que a sua realização, configurando um ato inútil, estaria, por esse motivo, vedada nos termos do artigo 130.º do Código de Processo Civil, ex vi artigo 4.º do Código do Processo Penal.

8. E no que concerne ao teor das observações do Relatório do Comité contra a Tortura das Nações Unidas, de abril de 2023, as suas conclusões constam do acórdão do STJ que determinou a prolação do acórdão recorrido, pelo que a avaliação neste efetuada decorre do mesmo – conforme remissão expressa a fls. 23 do acórdão recorrido – e a ausência da repetição cópia do seu teor não integra qualquer omissão de pronúncia nem assume relevância jurídica autónoma da própria avaliação das garantias prestadas pelo Estado Brasileiro (a não ser assim qualquer referência a um novo estudo ou avaliação poderiam integrar uma omissão de pronúncia);

9. Conforme esclarece o próprio recorrente, estas testemunhas de nacionalidade brasileira são seus colegas de trabalho em Portugal, e os seus depoimentos visavam precisamente atestar a realidade brasileira, face à assimetria de condições que diz existir nos estabelecimentos prisionais e ao tratamento desumano presente nos mesmos, quer por parte da administração pública e/ou privada dos EPs, quer advinda dos restantes reclusos.

10. O STJ no seu douto acórdão de 31-05-2023 pronunciou-se expressamente sobre esta questão referindo “…a prova das más condições das prisões no Estado requerente não constitui ónus imposto ao extraditando…

Assim sendo, não constituindo objeto de prova a produzir pelo extraditando, não pode, por este motivo, como pretende o recorrente, considerar-se o acórdão recorrido ferido da alegada nulidade por omissão de pronúncia quanto à pretensão do recorrente”, pelo que se trata de caso decidido nestes autos.

11. No que concerne à avaliação da suficiência das garantias prestadas em vista da efetiva proteção, na prisão, da pessoa procurada contra a tortura, tratamentos desumanos ou degradantes, o acórdão recorrido considerou suficientes as garantias prestadas pelo Estado Brasileiro, não apenas pela suficiência das garantias gerais mas, especialmente pelas garantias concretas relativas especificamente ao extraditando AA, que lhe permitirão reagir a qualquer eventual violação recorrendo aos meios judiciais, quer internos, quer externos.

12. Trata-se, pois, de uma decisão ponderada assente na confiança na boa-fé do Estado Brasileiro e na sua vinculação à obtenção do resultado, protegendo os concretos direitos do extraditando, sem prejudicar a continuidade da cooperação judiciária internacional.

No mais …

13. Dir-se-á que o recorrente, perante o Supremo Tribunal de Justiça, mais não faz do que repetir as questões que oportunamente suscitou perante o Tribunal da Relação de Coimbra, todas elas apreciadas de forma exaustiva e doutamente decididas no acórdão recorrido, em que nos revemos sem reserva, o que nos dispensaria de quaisquer considerações complementares.

14. Assim, considerando a que recusa facultativa de extradição, prevista no artigo 4.º, alínea e) da Convenção de Extradição CPLP, respeita, efetivamente, apenas à situação de o extraditando ter sido absolutamente alheio à realização do julgamento, sem ter conhecimento prévio do mesmo e sem ter constituído mandatário para sua representação, estamos em crer que as eventuais anomalias procedimentais no cumprimento do mandato judicial que se possa efetivamente surpreender, não serão ainda assim suficientes para considerar beliscadas as suas garantias de defesa.

15. Aliás, por mais dificuldades de comunicação que possam, na verdade, ter existido entre o extraditando e os seus advogados ou por mais reparos que a atuação destes possa na realidade merecer, certo é que os autos não documentam minimamente falhas ou erros tais que, sem colocar em causa a liberdade, autonomia e independência dos advogados, justificassem um qualquer tipo de controlo judicial na efetividade da defesa (técnica) do extraditando.

16. Conforme o explanado na decisão ora em crise, verifica-se que, no processo brasileiro, terão sido plenamente asseguradas todas as garantias de defesa do processo criminal, não só estando o extraditando assistido por advogado, como também se lhe proporcionou plenamente o direito de recorrer das decisões que lhe foram desfavoráveis, que o mesmo não deixou, aliás, de exercer, em mais de uma ocasião, ficando, por isso, salvaguardada a sua efetiva participação na formação das decisões que o foram afetando (direito de defesa).

17. No que toca à possibilidade de cumprimento da pena em Portugal (que, como referido, já constituía fundamento da oposição apresentada pelo extraditando), além da singela razão de carecer em absoluto de fundamento legal, como judiciosamente considerou a decisão ora em crise, dependia da não concessão da extradição, de requerimento do Estado de condenação e da revisão de sentença estrangeira, não se verificando nenhuma destas circunstâncias.

18. Em conclusão, as razões apresentadas pelo extraditando, ora recorrente não constituem qualquer fundamento para a recusa de cumprimento do Pedido de Extradição e, não estando em causa qualquer vício, quer de natureza formal, quer de natureza substantiva, nos necessários pressupostos e fundamentos que conduziram à decisão em recurso, nenhuma censura merece o acórdão proferido por este Tribunal da Relação de Coimbra, que autorizou a extradição do recorrente AA, razão pela qual se entende que o mesmo deverá ser confirmado, improcedendo assim o presente recurso.»

4. Colhidos os vistos, o recurso foi à conferência, para julgamento – artigos 3.º, n.º 2, e 59.º da Lei n.º 144/99, de 31 de agosto, e 419.º, n.º 3, alínea c), do Código de Processo Penal (CPP).

II. Fundamentação

5. Nas relações entre a República Portuguesa e a República Federativa do Brasil é aplicável, em matéria de extradição, a Convenção de Extradição entre os Estados Membros da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa («Convenção CPLP»), aprovada para ratificação pela Resolução da Assembleia da República n.º 49/2008, de 15/09, e ratificada pelo Decreto do Presidente da República n.º 67/2008, de 15/09, também ratificada pela República Federativa do Brasil, onde entrou em vigor em 1.6.2009 (Aviso n.º 183/2011, do Ministério dos Negócios Estrangeiros, DR 1.ª Série de 11.8.2011). Na falta ou insuficiência das normas da Convenção, que prevalecem sobre o direito interno, são aplicáveis as disposições da Lei n.º 144/99, de 31 de agosto (artigos 3.º deste diploma e 229.º do CPP).

Nos termos do artigo 1.º da Convenção CPLP, os Estados Contratantes obrigam-se a entregar, reciprocamente, segundo as regras e as condições estabelecidas na presente Convenção, as pessoas que se encontrem nos seus respetivos territórios e que sejam procuradas pelas autoridades competentes de outro Estado Contratante, para fins de procedimento criminal ou para cumprimento de pena privativa da liberdade por crime cujo julgamento seja da competência dos tribunais do Estado requerente.

6. Ouvido, o extraditando não deu o seu consentimento à extradição e deduziu oposição, nos termos do artigo 55.º da Lei n.º 144/99. Dispõe este preceito que, após a audição do extraditando, o processo é facultado ao seu defensor ou advogado constituído para, em oito dias, deduzir por escrito oposição fundamentada ao pedido de extradição e indicar meios de prova admitidos pela lei portuguesa, sendo, porém, o número de testemunhas limitado a 10 (n.º 1), e que a oposição só pode fundamentar-se em não ser o detido a pessoa reclamada ou em não se verificarem os pressupostos da extradição (n.º 2).

Na oposição, alegou, em síntese, que foi julgado à «revelia», o que, nos termos do artigo 4.º, al. e), da Convenção CPLP, constitui motivo de recusa facultativa de extradição, em processo que não lhe proporcionou todas as garantias de defesa, que o processo se encontra afetado de “falhas formais que [o] tornam pouco claro, violando o princípio da legalidade”, e que, recusada a extradição, pretende cumprir a pena em Portugal “caso a mesma tenha transitado em julgado, dado que tem a sua esposa em Portugal” e se encontra integrado na sociedade portuguesa.

Juntou prova documental sobre a sua situação pessoal e pediu a inquirição de testemunhas.

7. A decisão do Tribunal da Relação assenta na seguinte fundamentação:

7.1. «II – Fundamentação de Facto

A - Questão prévia

Da inquirição das testemunhas:

O arguido, na sua oposição, veio juntar documentos e requerer a inquirição de uma testemunha (a sua mulher); posteriormente veio ainda adicionar uma testemunha ao rol.

Como se depreende dos requerimentos de prova, os depoimentos das testemunhas incidiriam sobre os factos alegados na oposição sob os números 37ª a 44ª, onde se invoca a sua inserção social, familiar e profissional em Portugal com os quais pretende o arguido sustentar o requerimento de cumprimento da pena em Portugal.

Ora para além de se aceitar a verificação daqueles factos (que decorrem das declarações prestadas pelo arguido - das quais não temos motivo para duvidar - e do documento junto aos autos), como veremos infra o pedido que esses factos pretendem sustentar – o cumprimento da pena de prisão em Portugal – não é admissível, pelo que, sob pena de se incorrer na prática de actos inúteis (art 130.º do CPC), não será determinada a requerida inquirição.

Por outro lado, não havendo pelas razões mencionadas lugar a produção de prova, revela-se igualmente inútil o cumprimento do n.º 2 do art. 56.º da Lei 144/99, uma vez que o extraditando deduziu a referida oposição escrita e o Ministério Público pronunciou-se por escrito relativamente a essa mesma oposição apresentada pelo arguido, pelo que nada haverá a acrescentar, uma vez que a matéria de facto e de direito a considerar é a que já consta do requerimento inicial e da oposição – cfr. n.º 2 do art 56.º da Lei 144/99, onde se refere que será dada novamente palavra a ambos para se pronunciarem “terminada a produção de prova”, que no caso não ocorreu.

B – Factos provados

a) As autoridades judiciárias da República Federativa do Brasil emitiram um pedido de detenção provisória de AA, com vista à sua extradição, para cumprimento das penas de 4 meses e 10 dias detenção, no regime aberto e 7 anos, 7 meses e 27 dias de reclusão em que foi condenado, na 3.ª Vara de Violência Doméstica .../MG (Brasil), decisão transitada em julgado, não tendo o arguido estado presente no tribunal quando a sentença foi proferida.

b) O arguido foi ali condenado nas penas referidas em a) pela prática do crime de ofensas à integridade corporal ou saúde de outrem, p.p. nos termos do disposto no artigo 129.º - §9° do Código Penal Brasileiro e do crime de ofensas à integridade corporal ou saúde de outrem e tortura, p.p. nos termos do disposto no artigo 129.º-§1.º e 10° do Código Penal Brasileiro e do artigo 1.º, II, c/c, §4.º, II da Lei n.º 9455/1997, porquanto, no período compreendido entre ... e ...de dezembro de 2013, no interior da sua residência em .../MG, abeirou-se da sua enteada, com quem vivia, que tinha apenas 5 anos de idade, e colocou-se intencionalmente por cima dela e pisou-lhe o abdómen, provocando rotura do seu intestino, causando-lhe direta e necessariamente lesões que a impossibilitaram de exercer as suas atividades habituais durante mais de 30 dias, e bem assim perigo para a sua vida. Também perto do dia ... de ... de 2013, o arguido AA mordeu intencionalmente as nádegas da supra referida enteada, provocando-lhe hematomas, como forma de lhe infligir castigos pessoais, encostando-lhe, outrossim, uma colher quente na sua pele, causando-lhe direta e necessariamente queimaduras nos braços e mãos, que lhe produziu intenso sofrimento físico.

c) Ouvido no Tribunal da Relação de Coimbra em ... de ... de 2023, no âmbito do Processo n.º 51/23.7..., da 5ª Secção, foi a verificada e confirmada a detenção, que ainda se mantém.

d) Ao abrigo da «Convenção de Extradição entre Estados Membros da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa» (CPLP), assinada na Cidade da Praia, em 23 de novembro de 2003 e aprovada pela Resolução da Assembleia da República n.º 49/2008 (publicada no DR, 1.ª série de 15 de setembro de 2008), com vista ao cumprimento da pena em que o requerido foi condenado no processo acima referido e a que se reporta o pedido de extradição anexo, a República Federativa do Brasil solicitou ao Estado Português a extradição do nacional brasileiro acima identificado.

e) O Pedido Formal de Extradição foi atempadamente apresentado às Autoridades Portuguesas, tendo Sua Excelência a Ministra da Justiça, por despacho de 30.03.2023, considerado admissível o pedido de extradição.

f) As Autoridades da República Federativa do Brasil declararam que prestam garantias, sustentadas pela respectiva legislação interna, de que não submetem o extraditando a prisão ou processo por facto anterior ao pedido de extradição, de que irão computar o tempo da prisão que foi imposta por força a extradição; não entregarão o extraditando, sem consentimento do Estado requerido, a outro Estado que o reclame; não considerarão qualquer motivo político para agravar a pena; e não submeterão o extraditando a tortura ou a outros tratamentos ou penas desumanos ou degradantes.

g) Na sequência do solicitado por este Tribunal da Relação (cfr. supra I, 3. e 4.) as mesmas autoridades brasileiras adicionaram declaração na qual manifestaram que “que estão em condições de condições de garantir a efectiva protecção do extraditando em meio prisional, contra a tortura, tratamentos desumanos ou degradantes, nos termos das disposições dos instrumentos internacionais de protecção dos direitos humanos aplicáveis, assegurando-lhe um tratamento digno, quer ao nível da sua segurança, quer das condições prisionais a que ficará sujeito (sanitárias, higiene, acesso a água portável, ventilação suficiente, luz natural, quantidade e adequação de alimentos, número adequado de reclusos por cela), acesso a cuidados médicos de que venha a necessitar, facultando-lhe o acesso a programas e proporcionando-lhe os contactos, v.g. familiares, tendo em vista a respectiva ressocialização e reinserção social”.

h) E acrescentaram ainda que as garantias do extraditando serão asseguradas, face ao art. 1.° Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, (que estabelece o princípio da dignidade da pessoa humana como principio basilar do Estado Democrático de Direito), do artigo 5.° também da Constituição (que garante que ninguém será submetido a tortura nem a tratamento desumano ou degradante), e à Declaração Universal Declaração Universal do Direitos Humanos, da qual o Brasil é signatário, declarando ainda que a pena será cumprida em estabelecimento distinto, de acordo com a natureza do delito, a idade e o sexo do condenado, sendo assegurado ao preso o respeito a integridade física e moral, nos termos do artigo 41º, da Lei de execuções, o qual garante alimentação suficiente e vestuário, atribuição de trabalho e sua remuneração, previdência social, constituição de pecúlio, proporcionalidade na distribuição do tempo para o trabalho, o descanso e a recreação, exercício das atividades profissionais, intelectuais, artísticas e desportivas anteriores, desde que compatíveis com a execução da pena, assistência material, à saúde, jurídica, educacional, social e religiosa, protecção contra qualquer forma de sensacionalismo, entrevista pessoal e reservada com o advogado, visita do cônjuge, da companheira, de parentes e amigos em dias determinados, chamamento nominal, igualdade de tratamento salvo quanto às exigências da individualização da pena, audiência especial com o diretor do estabelecimento, representação e petição a qualquer autoridade, em defesa de direito, contacto com o mundo exterior por meio de correspondência escrita, da leitura e de outros meios de informação que não comprometam a moral e os bons costumes, atestado de pena a cumprir, emitido anualmente, sob pena da responsabilidade da autoridade judiciária competente.

i) Não se encontra atualmente pendente perante os Tribunais Portugueses qualquer processo criminal contra o extraditando, por outros, ou pelos mesmos factos que fundamentam o presente pedido de extradição.

j) O requerido está social, familiarmente e profissionalmente inserido em Portugal.

k) O extraditando após ter sido condenado nas penas referidas em a) em 1-4-2019, recorreu para o Tribunal da Apelação, o qual confirmou a decisão de 1ª instância, e desta decisão interpôs embargos de declaração, e desta decisão interpôs ainda recurso para o S.T.J. do Brasil, o qual não admitiu o recurso.»

7.2. Fundamentação da decisão de facto:

«C - Motivação:

Documentos juntos aos autos pelo Ministério Público, designadamente, quanto ao trânsito em julgado e à tramitação do processo crime no S.T.J. do Brasil, fls. 165 a 174; quanto ao mandado de prisão, fls. 175; quanto ao pedido de extradição e às garantias oferecidas, fls. 177, 178; quanto aos factos relativos à sentença de 1ª instância, fls. 71 a 104; quanto aos factos relativos ao recurso da sentença de 1ª instância e aos embargos de executado fls. 105 a 115; quanto à audição do extraditando neste tribunal da Relação de Coimbra fls. 128 a 131.

No que concerne às garantias adicionais prestadas pelo Estado requerente da extradição - (factos g) e h) -, os anexos juntos ao ofício 263748.23 em especial documento. N.º 4 e n.º 5, ref. Citius 224041 de 15-6-2023.

Quanto ao facto relativo à reinserção social e laboral do extraditando documento fls. 151 a 161, e fls. 130.»

Objeto e âmbito do recurso

8. O recurso tem, pois, por objeto um acórdão proferido pelo Tribunal da Relação em 1.ª instância – artigos 12.º, n.º 3, al. c), do CPP e 73.º, al. d), da Lei n.º 62/2013, de 26 de agosto –, em decisão final do processo de extradição, a que é subsidiariamente aplicável o Código de Processo Penal, com as especificidades previstas nos artigos 58.º e 59.º do Lei n.º 144/99, de 31 de agosto (artigos 229.º do CPP e 3.º, n.º 3, e 49.º, n.º 3, da Lei n.º 144/99).

Nos termos do artigo 432.º, n.º 1, al. a), do CPP, na redação introduzida pela Lei n.º 94/2021, de 21 de dezembro, recorre-se para o Supremo Tribunal de Justiça de decisões das relações proferidas em 1.ª instância, visando exclusivamente o reexame da matéria de direito ou com os fundamentos previstos nos n.ºs 2 e 3 do artigo 410.º (vícios e nulidades), que não vêm invocados.

O âmbito do recurso, que circunscreve os poderes de cognição deste tribunal, delimita-se pelas conclusões da motivação (artigos 402.º, 403.º e 412.º do CPP), sem prejuízo dos poderes de conhecimento oficioso, se for caso disso, em vista da boa decisão do recurso, de vícios da decisão recorrida a que se refere o artigo 410.º, n.º 2, do CPP (acórdão de fixação de jurisprudência n.º 7/95, DR-I, de 28.12.1995), de nulidades não sanadas (n.º 3 do mesmo preceito) e de nulidades da sentença (artigo 379.º, n.º 2, do CPP, na redação da Lei n.º 20/2013, de 21 de fevereiro).

9. O acórdão recorrido verificou os pressupostos positivos e negativos de que depende a extradição, nos termos dos artigos 1.º (obrigação de extraditar), 2.º (factos determinantes da extradição e dupla incriminação) e 3.º (inadmissibilidade da extradição) da Convenção CPLP, não se suscitando, a este respeito, qualquer questão que deva ser conhecida.

Das conclusões da motivação (supra, 2) extrai-se que são as seguintes as questões colocadas pelo recorrente à apreciação e decisão deste tribunal:

a. Nulidade do acórdão recorrido por omissão de pronúncia “no que concerne ao Relatório elaborado pelas Nações Unidas e que era expressamente referido pelo STJ como sendo de referência para aquilatar da viabilidade da extradição ou não e ainda de diligências que foram consideradas como profícuas para a defesa do extraditando (…) devendo ser determinada a audição das testemunhas, nos termos do art.º 56.º da Lei n.º 144/99, de 31 de Agosto” – conclusões II a IV;

b. Não prestação de garantias concretas pelo Estado requerente de que o extraditando não será submetido a tratamento desumano ou degradante devido às más condições no interior das prisões brasileiras, que representam sério risco de que tal venha a suceder após a entrega para cumprimento da pena, e falta de avaliação adequada da “situação” perante a declaração prestada pelas autoridades brasileiras de que o extraditando, uma vez entregue, não será sujeito a esse tipo de tratamento, o que, na sua alegação, deverá conduzir à recusa de extradição, com base na al. a) do n.º 1 do artigo 6.º da Lei n.º 144/99, no artigo 5.º da DUDH e no artigo 3.º da CEDH – conclusões VI a XIX;

c. Desrespeito pelas garantias de um processo equitativo no Estado requerente “subsumindo-se a uma situação de revelia”, que constitui motivo de recusa facultativa de extradição nos termos da al. e) do artigo 4.º da Convenção CPLP – conclusões XXI a XXV.

d. Pretensão de cumprimento da pena em Portugal, em consequência da recusa da extradição – conclusão XXVI.

a) Quanto às alegadas condições das prisões no Estado requerente – ponto 9, questões (a) e (b)

10. Por se encontrarem interrelacionadas, apreciam-se conjuntamente as questões a) (alegada nulidade do acórdão recorrido por alegada não pronúncia sobre o relatório do Comité das Nações Unidas contra a tortura e por não inquirição das testemunhas sobre as condições das prisões) e b) (pretendida recusa da extradição por não prestação de garantias de não sujeição a tratamento desumano e degradante e alegada não avaliação adequada das garantias prestadas).

11. Como resulta do anteriormente exposto e se consignou no anterior acórdão deste Supremo Tribunal de Justiça, o extraditando não suscitou expressamente, na oposição, a questão das más condições prisionais, suscetíveis de constituir motivo de tratamento desumano e degradante, como fundamento de recusa da extradição. Ao que se depreende, veio posteriormente pedir a inquirição de quatro testemunhas para fazer prova da “realidade” das prisões brasileiras, com o objetivo de ver recusada a extradição e, em consequência, ser ordenado o cumprimento da pena de prisão em Portugal.

12. Como se explicitou no acórdão anterior, que seguidamente se transcreve e segue de perto, o artigo 55.º, n.º 2, da Lei n.º 144/99 apenas admite oposição à extradição com fundamento em não ser o detido a pessoa reclamada ou em não se verificarem os pressupostos da extradição, sendo os meios de prova a apresentar os destinados à comprovação destes fundamentos (n.º 1).

Sem prejuízo de a alegação dever ser considerada, a prova das más condições das prisões no Estado requerente não constitui ónus imposto ao extraditando.

A produção de prova sobre as condições prisionais não se inscreve na comprovação da não verificação dos pressupostos da extradição, os quais se relacionam com a medida da pena a cumprir – pena de duração superior a um ano –, com os motivos de inadmissibilidade (recusa obrigatória) de extradição – pena de morte ou outra de que resulte lesão irreversível da integridade física, crime político ou crime com ele conexo, crime militar, amnistia, perdão, julgamento por tribunal de exceção ou prescrição do procedimento ou da pena – ou com os motivos de recusa facultativa de extradição – nacionalidade da pessoa reclamada, pena ou medida de segurança com caráter perpétuo ou de duração indeterminada, ne bis in idem, inimputabilidade em razão da idade ou condenação à revelia (artigos 2.º, 3.º e 4.º da Convenção).

Assim sendo, não constituindo objeto de prova a produzir pelo extraditando, não pode, por este motivo, como pretende o recorrente, considerar-se o acórdão recorrido ferido da alegada nulidade por omissão de pronúncia quanto à pretensão do recorrente de produzir prova testemunhal para demonstração das condições prisionais.

13. A questão da relevância, no âmbito da extradição, das más condições das prisões no Estado requerente, atentatórias da dignidade humana, nomeadamente por sobrelotação e deficiências graves de organização e funcionamento, pondo em risco a saúde, a segurança, a integridade física ou psicológica ou a vida dos reclusos, situa-se a um nível diverso, nas relações entre Estados, reguladas por normas de direito internacional público que vinculam os Estados ao sistema internacional de proteção dos direitos humanos, na medida em que constituam ou apresentem sério risco de constituírem tortura ou tratamento desumano ou degradante.

Como se salientou, a proteção da pessoa contra estas formas de tratamento, quer internamente, quer nas relações com outros Estados, no âmbito da extradição, encontra-se especificamente garantida no artigo 7.º do Pacto Internacional sobre os Direitos Civis e Políticos («PIDCP») (ONU, Nova Iorque, 1966), que constitui um tratado de âmbito universal de que a República Portuguesa e a República Federativa do Brasil são Estados-Partes1; no artigo 5.º da Convenção Americana dos Direitos Humanos, de que o Brasil é Estado-Parte2; no artigo 3.º na Convenção Europeia dos Direitos Humanos («CEDH»), ratificada por Portugal3; nos artigos 1.º, 2.º, 3.º e 16.º da Convenção contra a Tortura e Outras Penas ou Tratamentos Cruéis, Desumanos ou Degradantes (ONU, 1984) e no respetivo Protocolo Facultativo, de 2002, em vigor no Brasil4e em Portugal5; na Convenção Interamericana para Prevenir e Punir a Tortura (1985), em vigor no Brasil6, e na Convenção Europeia para a Prevenção da Tortura e Penas ou Tratamentos Desumanos e Degradantes (1987)7, bem como por soft law como as Regras Mínimas das Nações Unidas para Tratamento de Prisioneiros de 1995 e as “Regras de Nelson Mandela” (2015)8.

Dispõe o artigo 7.º do PIDCP: “Ninguém será submetido à tortura nem a pena ou a tratamentos cruéis, inumanos ou degradantes”.

E o artigo 3.º da CEDH: “Ninguém pode ser submetido a torturas, nem a penas ou tratamentos desumanos ou degradantes”.

Por sua vez, o artigo 3.º da Convenção contra a Tortura (Nações Unidas, 1984) estabelece:

“1 - Nenhum Estado parte expulsará, entregará ou extraditará uma pessoa para um outro Estado quando existam motivos sérios para crer que possa ser submetida a tortura.

2 - A fim de determinar da existência de tais motivos, as autoridades competentes terão em conta todas as considerações pertinentes, incluindo, eventualmente, a existência no referido Estado de um conjunto de violações sistemáticas, graves, flagrantes ou massivas dos direitos do homem.”

No Comentário n.º 20 (n.º 9), do Comité dos Direitos Humanos (instituído pelo PIDCP), ao artigo 7.º do PIDCP, lê-se que “os Estados têm a obrigação de não extraditar a pessoa no caso de, por virtude da extradição, esta ser exposta ao risco de tratamentos desumanos ou degradantes”.

Os Estados-Partes da CEDH são responsáveis pela violação dos direitos consagrados na Convenção se a extradição representar um risco real e grave de sujeição da pessoa a tratamentos desumanos ou degradantes inerentes às condições das prisões.

14. De acordo com a jurisprudência bem estabelecida do Tribunal Europeu dos Direitos Humanos («TEDH»), a partir do caso Soering c. Reino Unido (n.º 14038/88, de 7.7.1989), a proteção contra o tratamento proibido pelo artigo 3.º da CEDH é absoluta. Como resultado, a extradição de uma pessoa por um Estado Contratante pode, sob esta disposição, envolver a responsabilidade do Estado em questão nos termos da Convenção, quando houver motivos sérios para acreditar que, se a pessoa for extraditada para o país requerente, corre o risco real (não bastando a simples possibilidade – assim, acórdão Vilvarajah c. Reino Unido) de ser submetida a tratamento contrário ao artigo 3.º; esta disposição impõe uma obrigação de não extraditar ou expulsar a pessoa para esse país, não fazendo o TEDH distinção entre estes dois procedimentos. Para além disso, o TEDH não estabelece qualquer distinção entre as várias formas de tratamento previstas no artigo 3.º para efeitos de avaliação do risco (Harkins and Edwards c. Reino Unido, 2012, § 120; Trabelsi c. Bélgica, 2014, § 116)9.

No caso Romeo Castaño c. Bélgica (n.º 8351/17, de 9.10.2019), seguindo a mesma jurisprudência, o TEDH voltou a sublinhar, agora no contexto da execução de um mandado de detenção europeu («MDE» – Decisão-Quadro 2002/584/JAI, que substituiu as convenções de extradição anteriormente aplicáveis nas relações entre os Estados-Membros da União Europeia), que, do ponto de vista da Convenção, um risco de tratamento desumano e degradante da pessoa cuja entrega é pedida pode constituir um motivo legítimo de recusa de entrega, por causa das condições de detenção no Estado de emissão do MDE10.

15. O risco de tratamento da pessoa em violação do artigo 3.º da CEDH obriga o Estado requerido a fazer uma “avaliação adequada” desse risco e a adotar as medidas ao seu alcance necessárias à sua prevenção – nomeadamente solicitando ao Estado requerente a prestação de garantias de que a pessoa requerida não será sujeita a este tipo de tratamentos, não sendo suficiente uma declaração genérica de que o sistema legal, a ratificação dos instrumentos internacionais relevantes e a legislação em vigor asseguram a proteção da pessoa – e a não extraditar em caso de não prestação de garantias ou insuficiência das garantais prestadas e de subsistência daquele risco [cfr., entre outros, os acórdãos Chahal c. Reino Unido (1996), Saadi c. Itália (2008), Ismoilov c. Russia (2008) e Ilias e Ahmed c. Hungria, n.º 47287/15, de 21.11.201911, do TEDH].

Como o TEDH declarou no caso Garabayev c. Russia (n.º 38411/02, de 7.7.2007, §§ 77-83), quando as autoridades do Estado requerido têm informação indicando que existe um risco real de tratamento desumano no Estado requerente, essas autoridades têm o dever de efetuar uma avaliação adequada (“proper assessment”) da situação e não devem entregar a pessoa, a não ser que tenham tomado medidas suficientes para contrariar esse risco. Estando demonstrado que o Estado requerido, estando na posse de informação de que existia um real risco de tratamento desumano, extraditou a pessoa sem proceder a essa avaliação e sem tomar medidas tais como obter garantias do Estado requerente, o Tribunal concluiu existir uma violação, pelo Estado requerido, do artigo 3.º da CEDH12.

O caso Othman (Abu Qatada) c. Reino Unido (n.º 8139/09, de 9.5.2012, §§ 187-189), oferece uma síntese dos critérios de avaliação da qualidade e de aplicação prática das garantias refletidos na jurisprudência do TEDH13, tendo em conta, nomeadamente, a entidade que emite a garantia, a sua posição institucional, a força vinculativa da garantia, o seu conteúdo, o quadro legal de proteção contra a tortura e os maus tratos e a prática do Estado requerente neste domínio, as circunstâncias do caso e da pessoa, as possibilidades de verificação e controlo do cumprimento e o direito de acesso a um tribunal.

16. A interdição da tortura e das penas e tratamentos cruéis, desumanos e degradantes, enunciada em termos lapidares e semelhantes pelos instrumentos internacionais de proteção dos direitos humanos, contém uma proibição absoluta, insuscetível de restrições e derrogações, que, segundo o TEDH, “consagra um dos valores fundamentais das sociedades democráticas” (caso Soering, § 88). No contexto da detenção, o TEDH reconhece o “direito de todo o prisioneiro a ser detido em condições compatíveis com a dignidade humana” (Kudla c. Polónia, 26.10.2000, § 94).

Esta proibição absoluta confere às normas de proteção contra a tortura e tratamentos cruéis, desumanos ou degradantes a natureza de normas imperativas de direito internacional geral – normas de jus cogens, cuja derrogação não é permitida –, com a força que lhe confere o artigo 53.º da Convenção de Viena sobre Direito dos Tratados (1969)14. Trata-se de normas a que são reconhecidos efeitos supralegais, que produzem um efeito dissuasor, no sentido de assinalarem aos Estados e às pessoas que a proibição nelas contida consagra valores absolutos que não admitem desvio [Tribunal Internacional para a ex-Jugoslávia (ICTY), caso Furundzija, §§ 154-157]15.

O artigo 3.º da CEDH é, pois, reconhecidamente, uma norma de jus cogens ou de ordem pública internacional, cuja violação justifica a recusa de extradição a que um Estado está obrigado por força de um tratado16.

17. A jurisprudência do Tribunal de Justiça da União Europeia, referente à interpretação e aplicação do artigo 4.º da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia, que corresponde ao artigo 3.º da CEDH17 (artigo 52.º, n.º 3, da Carta18), tendo em conta a jurisprudência do TEDH, sintetiza as obrigações de verificação do cumprimento das obrigações decorrentes destes preceitos, no âmbito do MDE (correspondente à extradição) nos seguintes termos (transcrição parcial da fundamentação do processo C‑220/18 PPU, ML, de 25 de julho de 2018):

“59. (…) quando a autoridade judiciária do Estado‑Membro de execução dispõe de elementos que comprovam um risco real de tratamento desumano ou degradante das pessoas detidas no Estado‑Membro de emissão, à luz do padrão de proteção dos direitos fundamentais garantido pelo direito da União e, em especial, do artigo 4.º da Carta [3.º da CEDH], deve apreciar a existência desse risco no momento de decidir sobre a entrega às autoridades do Estado‑Membro de emissão da pessoa a que o mandado de detenção europeu diz respeito. Com efeito, a execução desse mandado não pode conduzir a um tratamento desumano ou degradante dessa pessoa (Acórdão de 5 de abril de 2016, Aranyosi e Căldăraru, C‑404/15 e C‑659/15 PPU, EU:C:2016:198, n.º 88).

60. Para este efeito, a autoridade judiciária de execução deve, antes de mais, basear‑se em elementos objetivos, fiáveis, precisos e devidamente atualizados quanto às condições de detenção nos estabelecimentos prisionais do Estado‑Membro de emissão que demonstrem a realidade das deficiências, quer sejam sistémicas ou generalizadas, quer afetem determinados grupos de pessoas ou ainda determinados centros de detenção. Estes elementos podem resultar, designadamente, de decisões judiciais internacionais, como acórdãos do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem, de decisões judiciais do Estado‑Membro de emissão e de decisões, de relatórios e de outros documentos elaborados pelos órgãos do Conselho da Europa ou pertencentes ao sistema das Nações Unidas (Acórdão de 5 de abril de 2016, Aranyosi e Căldăraru, C‑404/15 e C‑659/15 PPU, EU:C:2016:198, n.o 89).

61. Todavia, a constatação da existência de um risco real de tratamento desumano ou degradante em razão das condições gerais de detenção no Estado‑Membro de emissão não pode conduzir, enquanto tal, à recusa da execução de um mandado de detenção europeu. Com efeito, a mera existência de elementos que atestem deficiências, quer sejam sistémicas ou generalizadas, quer afetem determinados grupos de pessoas ou ainda determinados centros de detenção, no que respeita às condições de detenção no Estado‑Membro de emissão, não implica necessariamente que, num caso concreto, a pessoa em causa seja sujeita a um tratamento desumano ou degradante em caso de entrega às autoridades desse Estado‑Membro (Acórdão de 5 de abril de 2016, Aranyosi e Căldăraru, C‑404/15 e C‑659/15 PPU, EU:C:2016:198, n.ºs 91 e 93).

62. Assim, para garantir o respeito do artigo 4.º da Carta no caso particular de uma pessoa que é objeto de um mandado de detenção europeu, a autoridade judiciária de execução, que é confrontada com elementos objetivos, fiáveis, precisos e devidamente atualizados que atestem a existência dessas deficiências, deve verificar, em seguida, de maneira concreta e precisa, se, nas circunstâncias do caso, existem motivos sérios e comprovados para considerar que, no seguimento da sua entrega a esse Estado‑Membro, essa pessoa correrá um risco real de ser sujeita, nesse Estado‑Membro, a um tratamento desumano ou degradante, na aceção deste artigo, em razão das condições de detenção que se prevê aplicar‑lhe no Estado‑Membro de emissão (Acórdão de 5 de abril de 2016, Aranyosi e Căldăraru, C‑404/15 e C‑659/15 PPU, EU:C:2016:198, n.os 92 e 94). (…)

65. Se, à luz das informações fornecidas (…) bem como de quaisquer outras informações de que a autoridade judiciária de execução disponha, esta autoridade concluir que existe, relativamente à pessoa sobre a qual recai o mandado de detenção europeu, um risco real de tratamento desumano ou degradante na aceção do artigo 4.º da Carta, a execução desse mandado deve ser adiada mas não pode ser abandonada (Acórdão de 5 de abril de 2016, Aranyosi e Căldăraru, C‑404/15 e C‑659/15 PPU, EU:C:2016:198, n.o 98).

78. (…) a análise que essas autoridades são obrigadas a efetuar, atento o seu caráter concreto e preciso, não pode ser sobre as condições gerais de detenção existentes no conjunto dos estabelecimentos prisionais desse Estado‑Membro em que a pessoa em causa poderá ficar detida. (…)

111. A garantia fornecida pelas autoridades competentes do Estado‑Membro de emissão de que a pessoa em causa não sofrerá tratamentos desumanos ou degradantes devido às condições concretas e precisas de detenção seja qual for o estabelecimento prisional onde ficará encarcerada no Estado‑Membro de emissão é um elemento que a autoridade judiciária de execução não pode ignorar. Com efeito, (…) a violação desse compromisso, que vincula o seu autor, poderá ser invocada contra ele perante os órgãos jurisdicionais do Estado‑Membro de emissão.”

18. Como tem sido reconhecido na jurisprudência e nas instâncias internacionais, a avaliação do risco deve levar em conta os relatórios e avaliações de organismos internacionais, nos quais se incluem, em particular, os do Comité e do Subcomité para a Prevenção da Tortura, instituídos pela Convenção contra a Tortura e Outras Penas ou Tratamentos Cruéis, Desumanos ou Degradantes (ONU, 1984) e respetivo Protocolo Facultativo, de organizações não governamentais de reconhecida credibilidade e de organismos nacionais com intervenção neste domínio.

Neste contexto, as recentes observações e recomendações do Comité contra a Tortura (Nações Unidas), produzidas em abril de 2023 na sequência da avaliação (2020-202319) do segundo relatório do Brasil sobre a aplicação da Convenção contra a Tortura e Outras Penas ou Tratamentos Cruéis, Desumanos ou Degradantes20 foram de crucial importância para a decisão de declaração de nulidade do anterior acórdão de 26 de abril de 2023.

Com efeito, apesar de notarem aspetos positivos na situação das prisões e os esforços que estão a ser feitos nesse sentido, nomeadamente através da promoção das “Regras de Nelson Mandela”, reportados pelo Estado Brasileiro, as observações dão nota de que o sistema penitenciário brasileiro enfrenta sérios desafios, em particular no que se refere a sobrelotação e violência no interior da maioria dos estabelecimentos prisionais, deficiências sérias nas condições sanitárias e de higiene e de acesso a cuidados de saúde, tendo o Comité produzido um conjunto considerável de recomendações para se ultrapassarem essas dificuldades.

Lê-se nestas “Observações conclusivas”:

Condições de detenção

21. Conforme reconheceu a delegação, o sistema penitenciário brasileiro enfrenta enormes desafios. O Comité toma nota dos esforços feitos pelo Estado Parte para reduzir a sobrelotação nas prisões, pois isso melhora as condições de detenção. No entanto, o Comité continua profundamente preocupado com os relatos de sobrelotação na grande maioria das prisões do Estado-Parte e com a taxa geral muito alta de encarceramento, inclusive em prisão preventiva, por delitos relacionados com drogas, em particular de jovens afro-brasileiros homens e mulheres. Está seriamente preocupado com a falta de medidas efetivas para abordar as causas profundas das taxas desproporcionais de encarceramento de afro-brasileiros, incluindo sobrepoliciamento, discriminação racial, discriminação racial sistémica dentro das agências de aplicação da lei e outras instituições envolvidas na administração da justiça e políticas que criminalizam a posse de drogas. Além disso, o Comité está preocupado com relatos de acordos de autogoverno, possibilitados pela falta de agentes de segurança em muitas das prisões do país, tumultos frequentes que resultam em mortes, violência entre os presos e medidas de segurança inadequadas em algumas prisões. Além disso, está preocupado com atos de corrupção cometidos por agentes penitenciários e outros funcionários penitenciários. Além disso, o Comité está preocupado com relatos de: (i) terríveis condições de detenção, incluindo a situação de mulheres, menores, pessoas com deficiência e lésbicas, gays, bissexuais e transgéneros (LGBT), na maioria dos estabelecimentos prisionais, que carecem de higiene e serviços sanitários, ventilação e luz natural, acesso a água potável e quantidade suficiente de alimentos adequados; (ii) falha em separar efetivamente pessoas condenadas ou aguardando julgamento; (iii) a insuficiência dos programas de reabilitação e reinserção social; (iv) acesso insuficiente a cuidados médicos, em particular para pessoas privadas de liberdade com doenças crônicas ou sintomas da doença de coronavírus (COVID-19), consumidores de drogas e pessoas com deficiência intelectual e/ou psicossocial e falta de pessoal médico, medicamentos e equipamentos médicos. Por último, o Comité está preocupado com relatos de agressão e violência sexual em centros de detenção, com uma incidência particularmente alta no caso de mulheres detidas (arts. 2, 11 e 16).”21

19. Como se notou, este relatório, pela caraterização que faz das condições das prisões no Estado requerente, constituiria, por si, motivo suficiente para que, na observância de normas e obrigações comuns de direito internacional, anteriormente mencionados, de proteção contra a tortura e tratamentos desumanos ou degradantes, se solicitassem garantias – que, na sua dimensão jurídica, devendo ser tidas em devida conta, relevam do princípio da boa fé, que preside à aplicação e observância de tratados entre os Estados (artigo 26.º da Convenção de Viena sobre o Direito dos Tratados22), podendo constituir fundamento de responsabilização dos Estados – de que a pessoa procurada, uma vez entregue, não será sujeita nem correrá o risco real de ser sujeita a esse tipo de tratamento no interior da prisão, para cumprimento da pena.

Como também se notou e constava da matéria de facto provada, “As Autoridades da República Federativa do Brasil enviaram garantias, sustentadas pela respetiva legislação interna, de que (…) não submeterão o extraditando a tortura ou a outros tratamentos ou penas desumanos ou degradantes.”

Sublinhou-se, então, que estas garantias, de natureza genérica, baseadas no direito interno, não podem deixar de ser entendidas como um compromisso do Estado requerente de cumprimento das obrigações que lhe são impostas pelos instrumentos de proteção contra a tortura e tratamentos desumanos ou degradantes.

20. Porém, não se mostrava que o tribunal recorrido tivesse emitido qualquer juízo sobre tais garantias, isto é que tivesse procedido à sua “avaliação adequada” e que tivesse concluído pela sua suficiência, para que pudesse ser ordenada a extradição, pois que o risco sério de a pessoa extraditada ser sujeita a este tipo de tratamento não constitui, por si só, motivo de recusa de extradição.

Com efeito, como anteriormente se referiu, o risco de tratamento da pessoa na prisão em violação do artigo 3.º da CEDH (e do artigo 7.º do PIDCP) obriga o Estado requerido a fazer uma avaliação adequada desse risco, adotando as medidas necessárias à sua prevenção, nomeadamente solicitando ao Estado requerente a prestação de garantias (concretas) de que a pessoa requerida não será sujeita a este tipo de tratamentos e a não extraditar em caso de não prestação de garantias ou insuficiência das garantais prestadas e de subsistência daquele risco. Como se sublinhou, não se mostra suficiente uma declaração genérica de que o sistema legal do Estado requerente, a ratificação dos instrumentos internacionais relevantes e a legislação em vigor nesse Estado asseguram a proteção da pessoa.

Concluiu-se, assim, que se impunha que o tribunal recorrido procedesse a essa avaliação, tendo em conta as “observações conclusivas” do Comité contra a Tortura, e que, não o tendo feito, deixou de pronunciar-se sobre uma questão que devia apreciar, essencial à decisão final sobre a extradição.

Pelo que se julgou verificada uma nulidade por omissão de pronúncia, prevista na al. c) do n.º 1 do artigo 379.º do Código de Processo Penal, que não podia ser suprida por este tribunal em sede de recurso.

Em consequência do que se acordou em declarar a nulidade do acórdão recorrido, nos termos da al. c) do n.º 1 do artigo 379.º do Código de Processo Penal, e se decidiu que tal acórdão deveria ser substituído por outro que, “suprindo a nulidade verificada, mediante pedido de informações complementares ao Estado requerente, se for caso disso, avalie a suficiência das garantias prestadas em vista da efetiva proteção, na prisão, da pessoa procurada contra a tortura, tratamentos desumanos ou degradantes, nos termos das disposições dos instrumentos internacionais de proteção dos direitos humanos aplicáveis, em virtude das condições prisionais, nomeadamente das descritas nas “observações conclusivas” do Comité contra a Tortura, das Nações Unidas, em resultado da avaliação do relatório de aplicação da Convenção contra a Tortura e Outras Penas ou Tratamentos Cruéis, Desumanos ou Degradantes (Nações Unidas, 1984), de abril de 2023, bem como das demais questões que, nessa conformidade, devem ser apreciadas, pronunciando-se a final sobre o deferimento ou não do pedido de extradição, em função das conclusões alcançadas.”

21. Em cumprimento e na sequência do decidido por este Supremo Tribunal de Justiça, o Tribunal da Relação de Coimbra solicitou às autoridades brasileiras, diretamente ao tribunal da condenação (ofício de 6.6.2023, ref. Citius 10878158), por via diplomática (de 7.6.2023, ref. Citius 223791) e através da autoridade central (Procuradoria-Geral da República), em 12.6.2013, à Secretaria Nacional de Justiça, do Ministério da Justiça e Segurança Pública do Brasil (ref. Citius 223936, de 13.6.2023) o seguinte (transcrição do despacho do Senhor Juiz Desembargador relator de 5.6.2023, ref. Citius 10873860):

Solicite ao Estado requerente que, em concretização das garantias de natureza genérica de que fez acompanhar o pedido de extradição, informe se em relação ao concreto cidadão, cuja entrega requer, se está em condições de garantir a sua efetiva proteção, em meio prisional, contra a tortura, tratamentos desumanos ou degradantes, nos termos das disposições dos instrumentos internacionais de proteção dos direitos humanos aplicáveis, nomeadamente assegurar-lhe um tratamento digno, quer ao nível da sua segurança, quer das condições prisionais a que ficará sujeito (sanitárias, higiene, acesso a água portável, ventilação suficiente, luz natural, quantidade e adequação de alimentos, número adequado de reclusos por cela), acesso a cuidados médicos de que venha a necessitar, facultando-lhe o acesso a programas e proporcionando-lhe os contactos, v.g. familiares, tendo em vista a respetiva ressocialização e reinserção social, tudo em ordem a possibilitar a formulação, por parte do Estado requerido, de um juízo sobre se, no caso concreto, estão reunidas as condições que permitam responder positivamente ao pedido de extradição.

Dada a urgência, fixa-se o prazo de 10 dias, para o Estado requerente prestar as ditas garantias, com a necessária concretização

22. Na sequência do solicitado pelo Tribunal da Relação “as mesmas autoridades brasileiras [tribunal da condenação e Secretaria Nacional de Justiça] adicionaram declaração na qual manifestaram que “estão em condições de garantir a efectiva protecção do extraditando em meio prisional, contra a tortura, tratamentos desumanos ou degradantes, nos termos das disposições dos instrumentos internacionais de protecção dos direitos humanos aplicáveis, assegurando-lhe um tratamento digno, quer ao nível da sua segurança, quer das condições prisionais a que ficará sujeito (sanitárias, higiene, acesso a água portável, ventilação suficiente, luz natural, quantidade e adequação de alimentos, número adequado de reclusos por cela), acesso a cuidados médicos de que venha a necessitar, facultando-lhe o acesso a programas e proporcionando-lhe os contactos, v.g. familiares, tendo em vista a respectiva ressocialização e reinserção social”. “E acrescentaram ainda que as garantias do extraditando serão asseguradas, face ao art 1° Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, (que estabelece o princípio da dignidade da pessoa humana como principio basilar do Estado Democrático de Direito), do artigo 5° também da Constituição (que garante que ninguém será submetido a tortura nem a tratamento desumano ou degradante), e à Declaração Universal Declaração Universal do Direitos Humanos, da qual o Brasil é signatário, declarando ainda que a pena será cumprida em estabelecimento distinto, de acordo com a natureza do delito, a idade e o sexo do condenado, sendo assegurado ao preso o respeito a integridade física e moral, nos termos do artigo 41º, da Lei de execuções, o qual garante alimentação suficiente e vestuário, atribuição de trabalho e sua remuneração, previdência social, constituição de pecúlio, proporcionalidade na distribuição do tempo para o trabalho, o descanso e a recreação, exercício das atividades profissionais, intelectuais, artísticas e desportivas anteriores, desde que compatíveis com a execução da pena, assistência material, à saúde, jurídica, educacional, social e religiosa, protecção contra qualquer forma de sensacionalismo, entrevista pessoal e reservada com o advogado, visita do cônjuge, da companheira, de parentes e amigos em dias determinados, chamamento nominal, igualdade de tratamento salvo quanto às exigências da individualização da pena, audiência especial com o diretor do estabelecimento, representação e petição a qualquer autoridade, em defesa de direito, contacto com o mundo exterior por meio de correspondência escrita, da leitura e de outros meios de informação que não comprometam a moral e os bons costumes, atestado de pena a cumprir, emitido anualmente, sob pena da responsabilidade da autoridade judiciária competente.” (al. g) e h) dos factos provados – anexos juntos ao ofício 263748.23, documento. N.º 4 e n.º 5, ref. Citius 224041 de 15-6-2023).

23. Apreciando as garantias prestadas, tendo em conta os instrumentos internacionais aplicáveis, o direito nacional brasileiro e as “observações conclusivas” do Comité contra a Tortura, das Nações Unidas, de abril de 2023 (supra, 19), diz o acórdão recorrido:

k) Partimos agora para a apreciação concreta das garantias prestadas, tendo em vista a efectiva protecção, na prisão, da pessoa procurada contra a tortura, tratamentos desumanos ou degradantes, nos termos das disposições dos instrumentos internacionais de protecção dos direitos humanos aplicáveis, em virtude das condições prisionais, nomeadamente das descritas nas “observações conclusivas” do Comité contra a Tortura, das Nações Unidas, em resultado da avaliação do relatório de aplicação da Convenção contra a Tortura e Outras Penas ou Tratamentos Cruéis, Desumanos ou Degradantes (Nações Unidas, 1984), de Abril de 2023) - cf. Ac. do nosso S.T.J. de 31-5-2023 que declarou a nulidade do anterior acórdão por nós proferido neste tribunal da Relação de Coimbra.

O Estado que requer a extradição é a República Federativa do Brasil, cuja Constituição garante os princípios do Estado de Direito Democrático e o respeito pelos direitos humanos, sendo um país plenamente reconhecido na ordem internacional, membro da O.N.U., subscritor das convenções internacionais respeitantes aos Direitos Humanos, nomeadamente a Convenção de 1987 contra a Tortura e outras Penas ou Tratamentos Cruéis, Desumanos ou Degradantes.

O art 1.º da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, estabelece o princípio da dignidade da pessoa humana como princípio basilar do Estado Democrático de Direito, e o artigo 5° do mesmo diploma fundamental garante que ninguém será submetido a tortura nem a tratamento desumano ou degradante.

A Lei nº 7.210, de 11 de julho de 1984 (Lei de Execuções Penais), estabelece que ao condenado serão assegurados todos os direitos não atingidos pela sentença ou pela lei (art 3º), que os condenados serão classificados segundo os seus antecedentes e personalidade (art 5º), que a assistência ao preso é dever do Estado (art 10.º), concretizando-se a assistência material, à saúde, jurídica, educacional, social e religiosa (art 11.º), que a assistência material consistirá no fornecimento de alimentação, vestuário e instalações higiénicas (art 12.º), estipulando-se o conteúdo da assistência à saúde a prestar (art 14.º), que será prestada assistência judiciária aos presos sem recursos financeiros (art 15.º), que será facultada assistência educacional (instrução escolar e formação profissional), assistência social (art 22.º), assim como assistência após a restituição à liberdade (art 25.º), que o trabalho do condenado será regulado e garantindo-se a sua remuneração e dignidade (arts. 28 e ss), impondo-se a todas as autoridades o respeito à integridade física e moral dos presos (art 40.º).

O art. 41.º ainda da mesma Lei nº 7.210, sintetiza o conjunto de direitos do recluso concretizado nas restantes normas, designadamente: o direito à alimentação suficiente e vestuário, à atribuição de trabalho e sua remuneração, previdência social, à constituição de pecúlio, à proporcionalidade na distribuição do tempo para o trabalho, ao descanso e a recreação, ao exercício das atividades profissionais, intelectuais, artísticas e desportivas, à assistência material, à saúde, jurídica, educacional, social e religiosa, à protecção contra qualquer forma de sensacionalismo, à entrevista pessoal e reservada com o advogado, à visita do cônjuge, da companheira, de parentes e amigos, ao chamamento nominal, à igualdade de tratamento salvo quanto às exigências da individualização da pena, à audiência especial com o diretor do estabelecimento, à representação e petição a qualquer autoridade, em defesa de direito, ao contacto com o mundo exterior por meio de correspondência escrita, da leitura, ao atestado de pena a cumprir.

l) Em suma, a um nível mais formal, da conformação político-constitucional da República Federativa do Brasil (Estado de Direito democrático, que proclama como essencial e estruturante o respeito pela dignidade da pessoa humana), da sua vinculação internacional (com realce para a Convenção Universal dos Direitos do Homem e da Convenção de 1987 contra a Tortura e outras Penas ou Tratamentos Cruéis), e da sua legislação interna (com destaque para a acima escrutinada Lei das Execuções Penais), resulta a conclusão de que o ordenamento jurídico a considerar estabelece garantias de protecção, na prisão, do extraditando contra a tortura, tratamentos desumanos ou degradantes.

E a um nível mais concreto, tendo a República Federativa do Brasil expressamente declarado que garante a efectiva protecção de AA em meio prisional contra a tortura, tratamentos desumanos ou degradantes, assegurando-lhe um tratamento digno, quer ao nível da sua segurança, quer das condições prisionais a que ficará sujeito (designadamente sanitárias, higiene, acesso a água portável, ventilação suficiente, luz natural, quantidade e adequação de alimentos, número adequado de reclusos por cela, acesso a cuidados médicos de que venha a necessitar, facultando-lhe o acesso a programas e proporcionando-lhe os contactos familiares, tendo em vista a respectiva ressocialização e reinserção social), tal permite avaliar tais garantias como satisfatórias, no sentido de afiançar que o cumprimento da pena decorrerá nas condições descritas; acresce que a eventual violação deste compromisso concreto ora assumido constituirá fundamento para reacção por parte do extraditando, designadamente junto das autoridades prisionais responsáveis pelo acompanhamento da execução, ou junto dos órgãos jurisdicionais competentes.

m) Atenta a avaliação ora efectuada das garantias prestadas, e o princípio de confiança mútua, o qual constituí princípio central da cooperação judiciária internacional, resulta a convicção de que não existe o risco real de que o cumprimento da pena de prisão, solicitada neste processo de extradição, não decorrerá em condições não respeitadoras da dignidade humana, nomeadamente por sobrelotação, graves deficiências de organização e funcionamento colocando em risco a saúde, a segurança, a integridade física ou psicológica ou a vida do extraditando.

n) Concluímos assim que o pedido de extradição preenche os requisitos formais e materiais exigidos pela Convenção de Extradição da CPLP, não se verificando nenhuma causa de recusa obrigatória,nem mesmo facultativa.”

24. Carece, assim, de fundamento a alegação de nulidade do acórdão “no que concerne ao Relatório elaborado pelas Nações Unidas e que era expressamente referido pelo STJ como sendo de referência para aquilatar da viabilidade da extradição”.

25. Para além disso, dado o seu grau de especificação por referência à pessoa condenada, não pode agora afirmar-se, como faz o recorrente, que as garantias prestadas pelas autoridades brasileiras “são vazias de sentido” por “contrariarem toda a literatura sobre o assunto, para além de contrariarem ainda os Relatórios elaborados pelas Nações Unidas, onde está inequivocamente assente que o sistema prisional brasileiro não está em condições para assegurar um tratamento que não seja desumano, independentemente de ser afirmado (sem prova) que se dá garantias do contrário”.

Como anteriormente se referiu e detalhadamente se explicitou (supra, 13-18), a prestação de garantias justifica-se exatamente nos casos em que, como o dos autos (supra, 18-20), se revela um risco real de violação dos direitos humanos em virtude das más condições prisionais de natureza sistémica no Estado requerente. As garantias são aceitáveis se, por existir esse risco, numa “avaliação adequada”, se puder concluir que, não obstante esse risco, a pessoa cuja extradição é pedida ficará por elas protegida em virtude do particular compromisso assumido pelo Estado requerente em assegurar a segurança e as condições de dignidade e de vida nas prisões de acordo com os standards impostos pelo direito internacional de proteção dos direitos, em conformidade com o princípio da boa fé que se impõe na sua aplicação, ao qual, para além do mais, é conferida expressão jurídica na Convenção de Viena sobre o Direito dos Tratados (supra, 20).

Neste quadro, tendo em conta as implicações deste princípio e o princípio da cooperação leal que se impõe na cooperação penal entre Estados, bem como os critérios de avaliação da qualidade e de aplicação prática, nomeadamente no que respeita à entidade que emite a garantia, à sua posição institucional, à sua força vinculativa e ao seu conteúdo, ao quadro legal de proteção contra a tortura e os maus tratos, à prática do Estado requerente neste domínio e às possibilidades de verificação e controlo do cumprimento e o direito de acesso a um tribunal [cfr. acórdão Othman (Abu Qatada) c. Reino Unido, supra, 15], não se encontra motivo que coloque em crise a avaliação, pelo tribunal recorrido, da suficiência das garantias prestadas, em suprimento da nulidade declarada no anterior acórdão deste Supremo Tribunal de Justiça.

Como se conclui nessa avaliação, o Estado requerente encontra-se dotado de um sistema jurídico fundado no respeito pelos direitos humanos, que garante adequadamente a proteção contra a tortura e os tratamentos desumanos ou degradantes no interior das prisões, a que se encontra vinculado, mostrando-se formalmente documentado pelo “tribunal da sentença” (artigo 65.º da Lei de Execução Penal do Estado requerente – Lei n.º 7210, de 11.7.1984) que, no caso concreto, estão reunidas as condições de proteção da pessoa e dos direitos do extraditando durante a execução da pena, o que, traduzindo-se em obrigações particulares e concretas assumidas no processo de extradição, resulta em reforçada proteção dos direitos do requerente.

Acresce que, como se notou, do relatório do Comité contra a Tortura, de abril de 2023, extrai-se que são de notar os esforços que estão a ser feitos no sentido da melhoria do sistema prisional do Estado requerente, o que não pode deixar de constituir um elemento relevante de apreciação neste contexto.

Daqui se podendo razoavelmente afirmar, na presença de um quadro de proteção equivalente no Estado requerido e do Estado requerente, que carece de fundamento a afirmação do recorrente de que o tribunal recorrido não procedeu a “uma avaliação adequada da situação”.

26. Pelo exposto, não ocorrendo qualquer das nulidades assinaladas e em concordância com a avaliação a que procede no acórdão recorrido, no sentido de que as garantias prestadas são “satisfatórias”, se conclui pela improcedência do recurso nesta parte.

b) Quanto ao alegado desrespeito pelas garantias de um processo equitativo (revelia) – ponto 9, (c)

27. Recordando as conclusões da motivação, o recorrente alega que “não foram respeitadas todas as garantias de defesa do extraditando, pois é inequívoco que da instrução do pedido de extradição se retira que AA teria de ser pessoalmente, ou pelo seu mandatário, intimado pelo STJ Brasileiro no sentido de colmatar a lacuna verificada numa alegada cadeia (in)completa de substabelecimento, dado que tal intimação tinha por objecto colmatar o facto de inexistir legitimidade do Dr. Marlon Felipe de Souza para o representar, impossibilitando o conhecimento do recurso por aquele Tribunal Superio”, que “não ficou evidenciado nos autos que a certidão para saneamento de óbices tenha sido regulamente notificada ao requerido, ou ao mandatário subscritor do recurso, o que determinou liminarmente que o recurso fosse rejeitado – para além de o recurso ter sido remetido para o STJ Brasileiro por email, meio considerado como inidóneo para o efeito”, que “não teve conhecimento de todas as circunstâncias atinentes à sua condenação, dado que não foi notificado das diversas decisões e resultados das mesmas, nem tampouco dos vícios formais verificados “, “impossibilitando que tivesse acesso a uma defesa condigna, dado que, para todos os efeitos, o mesmo deixou de estar representado por advogado na pendência do processo”. O que, do seu ponto de vista, se “subsume” a uma situação de “revelia”, que constitui motivo de recusa facultativa de extradição [artigo 4.º, al. e), da Convenção de Extradição da CPLP].

28. Consta dos factos provados que “k) O extraditando após ter sido condenado nas penas referidas em a) em 1-4-2019, recorreu para o Tribunal da Apelação, o qual confirmou a decisão de 1ª instância, e desta decisão interpôs embargde declaração, e desta decisão interpôs ainda recurso para o S.T.J. do Brasil, o qual não admitiu o recurso.”

Referindo-se na fundamentação: “Da referida decisão da 1ª instância interpôs o arguido recurso, tendo sido proferido acórdão pelo Tribunal da Apelação, no qual mantendo a condenação pelos crimes acima referidos apenas alterou o cumprimento da pena relativamente a um dos crimes de lesão corporal (de 4 meses e 10 dias), a qual se determinou que fosse cumprida “com o abrandamento de ofício do regime prisional da pena de detenção” (ou seja, em regime semi aberto, nos termos do art 387º, 2 do Cód. Penal do Brasil). Desta decisão interpôs o arguido novo recurso (ou melhor, opôs “embargos de declaração” à decisão proferida pelo Tribunal de Apelação), tendo sido a decisão do tribunal de 2ª instância confirmada no âmbito do mesmo processo de “embargos de declaração” em 26-6-2020, apenas se rectificando um erro material quanto ao somatório da pena única a considerar (a qual será de 8 anos e 7 dias), sendo 4 meses e 10 dias dessa pena única cumpridos em regime aberto, e o restante (7 anos 7 meses e 27 dias) em regime inicial fechado.”

29. A questão da “revelia” foi suscitada no tribunal recorrido e decidida nos seguintes termos:

h) Apreciando a faculdade de este tribunal da Relação recusar a extradição “por a pessoa reclamada tiver sido condenada à revelia pela infracção que deu lugar ao pedido de extradição, excepto se as leis do Estado requerente lhe assegurarem a possibilidade de interposição de recurso, a realização de novo julgamento ou outra garantia de natureza equivalente” - (al. e) do mesmo art 4º):

Esta norma merece especial atenção, uma vez que o arguido – no seu articulado de oposição à extradição – a ela faz referência. Assim, recorde-se que na sua oposição (arts 9º e ss.) o arguido refere-se àquela norma como contendo “a garantia de um processo justo e equitativo (due process), presente nos arts.º 20.º, n.º e 32.º, n.º 1 da CRP, onde devem ser observadas todas as garantias de defesa, incluído o recurso”, acrescentando que “na instrução do pedido de extradição vem referenciado que o requerido foi intimado pelo STJ Brasileiro no sentido de colmatar a lacuna verificada numa alegada cadeia (in)completa de substabelecimento, ou seja, inexistia legitimidade do Dr. BB, impossibilitando o conhecimento do recurso”, não ficando evidenciado “que a certidão para saneamento de óbices tenha sido regulamente notificada ao requerido, ou para o mandatário subscritor do recurso, o que impossibilitou a sua defesa”, pelo que considera que o requerido, “ao ter sido julgado na sua ausência, respeitante a factos que remontam há quase dez anos atrás (factos alegadamente praticados a 16 de dezembro de 2013 “ou perto” desse dia), teria direito a ser defendido condignamente e a ter conhecimento de todas as decisões que lhe dissessem respeito”.

i) Apreciando, importa começar por considerar a interpretação desta al. e) do art 4º da Convenção por parte do nosso o S.T.J.; assim, em aresto muito recente (acórdão proferido em 8-3-2023 no processo n.º 3410/22.9YRLSB.S1) escreveu-se que “importa distinguir uma revelia proprio sensu, total e irrestrita, em que o condenado não é “ouvido nem achado” e acaba por ser mero sujeito passivo e “objeto” de decisão em procedimento totalmente desenvolvido à sua revelia, do que realmente sucedeu, que só pode ser considerado “revelia” improprio sensu, ou numa forma mitigada, designadamente para efeitos do artigo 4.º, alínea e) da Convenção. Resulta dos autos que o recorrente não esteve presente em juízo apenas porque assim o decidiu, tendo, contudo, sido representado e defendido, e tendo tido conhecimento do que se foi passando o arguido não foi julgado à revelia” pelo que “a recusa facultativa de extradição(…) respeita apenas à situação de o extraditando ter sido absolutamente alheio à realização do julgamento, não tendo conhecimento prévio do mesmo e não tendo constituído mandatário para sua representação (…) a expressão “revelia” é, no caso, usada apenas num sentido amplo e até impróprio de o julgamento ter decorrido na ausência do arguido, não significando que este desconhecia da sua realização. Também o direito processual penal português prevê, no artigo 333.º do Código de Processo Penal, que o julgamento decorra na ausência do arguido, desde que este se encontre regularmente notificado para a sua realização”.

j) Concordamos plenamente com a doutrina deste acórdão do nosso S.T.J., sendo certo que no caso nem sequer estaremos perante uma situação de revelia em sentido restrito, ou “proprio sensu”. Isto porque, o que resulta da leitura da certidão da sentença proferida pela 1ª instância em anexo (e ainda que na fundamentação da mesma apenas se faça referência às declarações prestadas pelo arguido em sede de instrução), o arguido apesar não ter estado fisicamente presente no julgamento, terá sido ouvido por videoconferência (“audio-visual”, nas palavras da decisão condenatória), estando ainda representado por advogado no decurso do mesmo julgamento. O arguido apenas não esteve presente na leitura da sentença (estando mais uma vez representado pelo advogado), mas isso deveu-se a uma decisão do próprio. Foi ainda considerada a posição confessória do arguido relativamente a um dos crimes de dano corporal, o que permitiu a aplicação de uma pena semi-detenção.

E concordando-se com a posição do extraditando, manifestada na sua oposição, de que a faculdade de recusa da extradição deverá abranger, no seu sentido mais profundo, a garantia de um processo justo e equitativo (due process), onde devem ser observadas as garantias de defesa, incluído o recurso, já não coincidimos que o processo não tenha sido conduzido pelas autoridades judiciárias brasileiras com respeito a esses princípios basilares que permitem que o processo penal seja justo equitativo.

Isto porque, como vimos supra em c), da decisão condenatória proferida pela 1ª instância, interpôs o arguido recurso para o Tribunal da Apelação (o qual concedeu provimento parcial ao recurso alterando o modo de cumprimento da pena relativamente a um dos crimes de lesão corporal), e desta decisão do tribunal de 2ª instância interpôs o arguido novo recurso (os referidos “embargos de declaração” à decisão proferida pelo Tribunal de Apelação, que será semelhante à nossa reclamação por nulidade do acórdão, mas decidido por outro colectivo de juízes), tendo a 1ª Câmara Criminal do Tribunal de Justiça do Estado ... confirmado a decisão do tribunal de 2ª instância no âmbito do mesmo processo de “embargos de declaração” em 26-6-2020, apenas se rectificando um erro material.

E desta decisão interpôs ainda o arguido recurso (“agravo em recurso especial”) para o Superior Tribunal de Justiça do Brasil (S.T.J.), não tendo este tribunal admitido o recurso, quer porque o mesmo não cumpriu os requisitos formais quanto ao documento que corporizava esse recurso, como ainda porque não foi junta procuração ou substabelecimento a favor do advogado signatário do recurso; e foi apenas após esta última decisão do STJ que o processo transitou em julgado em 23-2-2022, o que igualmente se mostra certificado, ao contrário do afirmado pelo arguido no art 27.º da oposição.

Em suma, para além de não estarmos manifestamente perante um caso de revelia mesmo em sentido restrito (o arguido apenas não esteve presente fisicamente em julgamento - mas participando por videoconferência - e no momento da leitura da decisão condenatória por opção própria), a documentação junta ao processo de extradição revela que foram concedidas ao arguido todas garantias de defesa com realce para o direito ao recurso, o qual foi efectivamente e sucessivamente exercido, sendo aliás as suas pretensões parcialmente deferidas, recusando-se assim a afirmação do arguido constante do art 14.º da oposição.”

30. Em substância, limita-se o recorrente a reeditar os argumentos da oposição que, quanto a este ponto, deduziu no tribunal recorrido.

31. Sem prejuízo de se notar que o recurso não de destina a julgar de novo uma questão decidida no tribunal recorrido, mas apenas a apreciar alegados vícios ou erros dessa decisão que devem ser identificados e objeto de análise em conformidade com as normas processuais aplicáveis (nomeadamente o artigo 412.º do CPP) – que não vêm invocados –, sempre se dirá que o acórdão recorrido, refletindo a jurisprudência deste Supremo Tribunal de Justiça, interpretou adequadamente a norma da al. e) do artigo 4.º da Convenção da CPLP, a qual dispõe que “A extradição poderá ser recusada se: (…) e) e) A pessoa reclamada tiver sido condenada à revelia pela infração que deu lugar ao pedido de extradição, exceto se as leis do Estado requerente lhe assegurarem a possibilidade de interposição de recurso, a realização de novo julgamento ou outra garantia de natureza equivalente”.

A “revelia” a que se refere o preceito é a que se traduz na ausência, no desconhecimento e na não participação no processo da condenação, visando a norma assegurar a realização de novo julgamento ou recurso ou prestação de outra garantia que permita ao extraditando exercer plenamente o contraditório, com respeito pelas regras do processo justo e equitativo, que inclui o direito de estar presente na audiência de julgamento e exercer efetivamente os direitos de defesa.

Na síntese da jurisprudência do Tribunal Europeu dos Direitos Humanos (TEDH), que inspirou a Decisão-Quadro 2009/299/JAI do Conselho, que altera, além de outras, a Decisão-Quadro 2002/584/JAI relativa ao MDE, reforçando os direitos processuais das pessoas e promovendo a aplicação do princípio do reconhecimento mútuo no que se refere às decisões proferidas na ausência do arguido, refletindo os standards de direito europeu e internacional na matéria, a “revelia” (ou ausência) ocorre sempre que a pessoa julgada não esteve presente no julgamento que conduziu à decisão, a menos que, nessa situação, (1) tenha sido atempadamente (a) notificada pessoalmente e desse modo informada da data e do local previstos para o julgamento que conduziu à decisão, ou recebeu efetivamente por outros meios uma informação oficial da data e do local previstos para o julgamento, de uma forma que deixou inequivocamente estabelecido que tinha conhecimento do julgamento previsto, e (b) informada de que essa decisão podia ser proferida mesmo não estando presente no julgamento; ou (2) tendo conhecimento do julgamento previsto, conferiu mandato a um defensor designado por si ou pelo Estado para a sua defesa em tribunal e foi efetivamente representada por esse defensor no julgamento; ou (3) depois de ter sido notificada da decisão e expressamente informada do direito a novo julgamento ou a recurso e a estar presente nesse julgamento ou recurso, que permite a reapreciação do mérito da causa, incluindo novas provas, e pode conduzir a uma decisão distinta da inicial (a) declarou expressamente que não contestava a decisão, ou (b) não requereu novo julgamento ou recurso dentro do prazo aplicável; ou (4) não foi notificada pessoalmente da decisão, mas (a) será notificada pessoalmente da decisão sem demora na sequência da entrega e será expressamente informada do direito que lhe assiste a novo julgamento ou a recurso e a estar presente nesse julgamento ou recurso, que permite a reapreciação do mérito da causa, incluindo novas provas, e pode conduzir a uma decisão distinta da inicial, e (b) será informada do prazo para solicitar um novo julgamento ou recurso, constante do mandado de detenção europeu pertinente (artigo 4.º-A da Decisão-Quadro 2002/584/JAI, aditado).

32. Ora, como se extrai da matéria de facto provada e da respetiva fundamentação, acabadas de transcrever, não ocorreu uma situação de ausência (revelia), na aceção normativa que lhe deve ser atribuída. Como menciona o acórdão recorrido, “o arguido apenas não esteve presente fisicamente em julgamento - mas participando por videoconferência - e no momento da leitura da decisão condenatória por opção própria)” e “a documentação junta ao processo de extradição revela que foram concedidas ao arguido todas garantias de defesa com realce para o direito ao recurso, o qual foi efectivamente e sucessivamente exercido, sendo aliás as suas pretensões parcialmente deferidas”.

33. Assim se deve concluir que não ocorre o motivo de recusa facultativa de extradição prevista na alínea e) do artigo 4.º da Convenção da CPLP (condenação à revelia no Estado requerente), pelo que igualmente improcede o recurso nesta parte.

c) Quanto à pretensão de cumprimento da pena em Portugal, em consequência da recusa de extradição – ponto 9, questão (d)

34. A pretensão de cumprimento da pena em Portugal pressupõe, na própria formulação do recorrente, a prévia recusa de extradição com os fundamentos anteriormente apontados – “deverá ser recusada a sua extradição e, caso as autoridades brasileiras assim o entendam, deverão requerer ao Estado Português que AA cumpra a pena em que tiver sido condenado a título definitivo em Portugal e não no Brasil”, diz o recorrente.

35. Esta pretensão foi deduzida na oposição do recorrente à extradição, tendo sido apreciada e decidida no acórdão recorrido nos seguintes termos:

“o) Nos últimos artigos da oposição (36º a 51º), pretende o arguido que sendo recusado o pedido de extradição, o extraditando cumpra a pena em Portugal e não no Brasil, nos termos conjugados de recusa al. a) do n.º 1 do art.º 6.º al. b) e g) do n.º 1 do art.º 23.º e al. c) do n.º 2 do art.º 44.º; n.º 2 e 3 do art.º 31.º, 95.º, 96.º, n.º 1 da Lei n.º 144/99, de 31 de Agosto.

Este pedido de cumprimento da pena em Portugal teria que ter como pressuposto – como reconhece o arguido – que a extradição fosse recusada, o que não ocorre. E não seria sequer este processo especial de extradição que permitiria a apreciação dessa possibilidade, sendo certo que esse pedido teria que ser decidido num processo diferente, partindo da iniciativa do Estado da condenação, estando ainda a execução da condenação sujeita a prévia revisão e confirmação da sentença estrangeira, sendo assim manifestamente improcedente a pretensão do arguido - cfr. arts 94 e ss. da Lei n.º 144/99.”

36. Em consequência, não havendo fundamento para recusar a extradição, a decisão recorrida não merece qualquer censura.

A apreciação da pretensão do recorrente, que, a justificar-se, teria de ocorrer em procedimento próprio, encontra-se, assim, prejudicada.

III. Decisão

37. Pelo exposto, acorda-se na Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça em julgar improcedente o recurso interposto pelo extraditando AA.

Sem custas, por não serem devidas (artigo 73.º, n.º 1, da Lei n.º 144/99, de 31 de agosto).

Supremo Tribunal de Justiça, 13 de setembro de 2023.

José Luís Lopes da Mota (relator)

Teresa de Almeida

Maria Teresa Féria de Almeida

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1. Ratificado por Portugal pela Lei n.º 29/78, de 12/06, e pelo Brasil, pelo Decreto n.º 592, de 6.7.1992 (http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/1990-1994/d0592.htm).

2. Convenção Americana dos Direitos Humanos, San José, Costa Rica, 1969, a que o Brasil aderiu em 25.9.1992 (Decreto n.º 678, de 6.11.1992, https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/d0678.htm).

3. Ratificada pela Lei n.º 65/78, de 13/10.↩︎

4. Decreto n.º 40, de 15.2.1991, https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/1990-1994/d0040.htm, e Decreto n.º 6.085, de 19.4.2007, http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2007-2010/2007/decreto/d6085.htm.

5. RAR n.º 11/88, de 21/05, e DPR n.º 57/88, de 20/07, e RAR n.º 143/2012, de 13/12, e DPR n.º 167/2012, de 13/12.

6. Decreto n.º 98.386, de 9 de dezembro de 1989 (https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/1980-1989/d98386.htm).

7. Ratificada por Portugal (RAR n.º 3/90, de 30/01, e DPR n.º 8/90, de 20/02).

8. Regras Mínimas das Nações Unidas para o Tratamento de Reclusos, Resolução 70/175 da Assembleia-Geral, anexo, adotada a 17 de dezembro de 2015, em anexo (https://www.unodc.org/documents/justice-and-prison-reform/SMRbrochures/Pt_16x24_ebook_final.pdf).

9. “Guide on the case-law of the European Convention on Human Rights - Prisoners’ rights, European Court of Human Rights”, prepared by the Registry, updated on 31 August 2022, https://www.echr.coe.int/Documents/Guide_Prisoners_rights_ENG.pdf. Cfr. também “Guide on Article 3 of the European Convention on Human Rights - Prohibition of torture”, prepared by the Registry, updated on 31 August 2022, https://www.echr.coe.int/Documents/Guide_Art_3_ENG.pdf.

10. No original: “(…) the Court emphasises that, from the standpoint of the Convention, a risk to the person whose surrender is sought of being subjected to inhuman and degrading treatment on account of the conditions of detention in Spain may constitute a legitimate ground for refusing execution of the European arrest warrant and thus for refusing cooperation with Spain” (§ 85).

11. Harris, O’Boyle e Warbrick, Law of the European Convention on Human Rights, Oxford University Press, 2nd Edition 2009, pp. 79-91.

12. Id. ibid. p. 86.

13. Sobre este ponto podem ainda ver-se os acórdãos dos casos Shamayev c. Reino Unido, de 15.11.1996, e Mamatkulov e Askarov c. Turquia, de 6.2.2009).

14. RAR 67/2003 e DPR 46/2003, de 7 de agosto. Artigo 53.º: “Para os efeitos da presente Convenção, uma norma imperativa de direito internacional geral é uma norma aceite e reconhecida pela comunidade internacional dos Estados no seu todo como norma cuja derrogação não é permitida e que só pode ser modificada por uma nova norma de direito internacional geral com a mesma natureza”.

15. Cfr. Informe de la Comisión de Derecho Internacional, Nações Unidas, Capítulo V - Normas imperativas de derecho internacional general (ius cogens), https://legal.un.org/ilc/reports/2019/spanish/chp5.pdf e Antonio Cassese, International Law, 2nd Edition, Oxford University Press, Nova Iorque, 2005, pp. 207-208, 211.

16. Como o Institut de Droit International fez refletir numa resolução de 1983 (60 Annuaire Part II, 306), a possível violação de uma norma imperativa, como uma norma contra a tortura, autoriza o Estado a não cumprir a obrigação de extraditar uma pessoa, em https://www.idi-iil.org/app/uploads/2018/06/1984_vol_60-II_Session_de_Cambridge.pdf.

17. O direito consagrado no artigo 4.º é o direito garantido pelo artigo 3.º, de igual teor, da CEDH (Anotações relativas à Carta dos Direitos Fundamentais, a que se refere o artigo 6.º do TUE, Jornal Oficial da União Europeia, C 303, de 14.12.2007).

18. Artigo 52.º, n.º 3, da Carta: “Na medida em que a presente Carta contenha direitos correspondentes aos direitos garantidos pela Convenção Europeia dos Direitos Humanos e das Liberdades Fundamentais, o sentido e o âmbito desses direitos são iguais aos conferidos por essa Convenção. (…)”.

19. A avaliação da aplicação da convenção decorreu entre 2020 e 2023, encontrando-se toda a informação disponível na internet, no site do Comité, em https://tbinternet.ohchr.org/_layouts/15/treatybodyexternal/SessionDetails1.aspx?SessionID=2627&Lang=en.Como se pode observar, os aspetos referentes às condições nas prisões constituíram um dos pontos fundamentais das questões colocadas pelo Comité e das observações de diversas organizações da sociedade civil, como se pode ver pelo “Alternative report to the second periodic review of Brazil before the United Nations Committee against Torture and other Cruel, Inhuman or Degrading Treatment or Punishment”, apresentado por cinco organizações - The National Agenda for Decarceration, Conectas Human Rights, Justiça Global, Pastoral Carcerária e World Organisation Against Torture (OMCT) (https://tbinternet.ohchr.org/_layouts/15/treatybodyexternal/Download.aspx?symbolno=INT%2FCAT%2FCSS%2FBRA%2F52171&Lang=en) e pelo “Joint Report of Brazilian Society”, apresentado pelo Movimento Nacional de Direitos Humanos, SMDH Em defesa da vida, Pastoral Carcerária, Comissão ARNS, Associação de Familiares de Presos de Rondônia e Assessoria Popular Maria Felipa (https://tbinternet.ohchr.org/_layouts/15/treatybodyexternal/Download.aspx?symbolno=INT%2FCAT%2FCSS%2FBRA%2F52420&Lang=en).

20. Nações Unidas, 19 e 20 de Abril de 2023, https://tbinternet.ohchr.org/_layouts/15/treatybodyexternal/Download.aspx?symbolno=CAT%2FC%2FBRA%2FCO%2F2&Lang=en.

21. No original, em inglês:

  “Concluding observations (…)

  Conditions of detention

  21. As the delegation acknowledged, the Brazilian penitentiary system faces enormous challenges. The Committee takes note of the efforts made by the State party to reduce overcrowding in prisons, as this improves the conditions of detention. However, the Committee remains deeply concerned at reports of overcrowding in the vast majority of the prisons in the State party and about the overall very high rate of incarceration, including in pretrial detention, for drug-related offences, in particular of Afro-Brazilian young men and women. It is seriously concerned by a lack of effective measures to address the root causes of the disproportionate incarceration rates of Afro-Brazilians, including overpolicing, racial profiling, systemic racial discrimination within law enforcement agencies and other institutions involved in the administration of justice and policies that criminalize drug possession. Moreover, the Committee is concerned about reports of self-rule arrangements, made possible by the lack of custodial staff in many of the country’s prisons, frequent riots resulting in fatalities, violence among inmates and inadequate security measures in some prisons. It is further concerned about acts of corruption by prison officers and other prison staff. Furthermore, the Committee is concerned by reports of: (i) appalling conditions of detention, including the situation of women, minors, persons with disabilities and lesbian, gay, bisexual and transgender (LGBT) persons, in most correctional facilities, which lack hygiene and sanitation services, ventilation and natural light, access to drinking water and sufficient amounts of suitable food; (ii) a failure to effectively separate persons on or awaiting trial from convicted persons; (iii) the insufficiency of rehabilitation and social reintegration programmes; (iv) insufficient access to medical care, in particular for persons deprived of their liberty who have chronic diseases or coronavirus disease (COVID-19) symptoms, drug users and persons with intellectual and/or psychosocial disabilities, and a lack of medical personnel, medicines and medical equipment. Lastly, the Committee is concerned about reports of assault and sexual violence in detention facilities, with a particularly high incidence in the case of detained women (arts. 2, 11 and 16).↩︎

22. Supra, 14 – artigo 26.º (Pacta sunt servanda): “Todo o tratado em vigor vincula as partes e deve ser por ela cumprido de boa fé”.