Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
6215/22.3T8VNF-G.G1.S1
Nº Convencional: 6ª SECÇÃO
Relator: LUIS ESPÍRITO SANTO
Descritores: QUALIFICAÇÃO DE INSOLVÊNCIA
ADMINISTRADOR DE INSOLVÊNCIA
PARECER
REQUERIMENTO
PRINCÍPIO INQUISITÓRIO
PRAZO
INSOLVÊNCIA
SOCIEDADE COMERCIAL
INSOLVÊNCIA CULPOSA
PRESSUPOSTOS
PRETERIÇÃO DE FORMALIDADES
Data do Acordão: 09/17/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA (COMÉRCIO)
Decisão: REVISTA PROCEDENTE
Sumário :

I – Não existe impedimento legal a que o juiz tome em consideração e valore, para efeitos de abertura e prosseguimento do incidente de qualificação da insolvência, o requerimento apresentado pelo administrador da insolvência na parte final do parecer/relatório a que alude o artigo 155º, nº 1, do CIRE, no qual o mesmo solicita expressamente essa abertura, discriminando os factos em que funda o seu requerimento.

II – A eventual inobservância formal e rigorosa do disposto no artigo 188º, nº 1, do CIRE, perante a apresentação de requerimento pelo administrador da insolvência, devidamente fundamentado, pedindo a qualificação da insolvência como culposa (que não ultrapassou o prazo peremptório de quinze dias previsto no artigo 188º, nº 1, do CIRE), não é de molde a frustrar a possibilidade de o juiz ordenar a abertura e o prosseguimento desse mesmo incidente – através de decisão irrecorrível nos termos do artigo 188º, nº 5, do CIRE -, o que resulta essencialmente da importância e interesse primordiais em que se apure, de forma célere e expedita, a responsabilidade dos representantes da empresa, inexistindo outrossim qualquer direito de defesa que seja nestas circunstâncias colocado em crise, havendo aliás sido plenamente exercido, neste caso concreto, o contraditório por parte do ora recorrido.

III – Pelo que a revista é concedida prosseguindo o incidente de qualificação de insolvência os seus termos processuais.

Decisão Texto Integral:
Revista nº 6215/22.3T8VNF-G.G1.S1

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça (6ª Secção - Cível):

I - RELATÓRIO.

No processo de insolvência de L..., Lda., aquando da elaboração do relatório previsto no artigo 155º do CIRE, datado de 6 de Janeiro de 2023, afirmou o administrador da insolvência:

“Mais se informa que, perante o exposto no ponto “III – Estado da contabilidade do devedor” verifica-se o incumprimento da obrigação de manter uma contabilidade devidamente organizada, com prejuízo relevante para a compreensão da situação patrimonial e financeira da sociedade, o que poderá enquadrar-se na alínea h) do nº 2 do artigo 186º do CIRE, para efeitos de qualificação da insolvência.

Pode ainda concluir-se que houve uma apropriação, durante anos e anos, do dinheiro que era retirado das máquinas de tabaco e que não foi depositado ou nas contas bancárias da sociedade ou em caixa, o que poderá enquadrar-se nas alíneas a) e e) do nº 2 do artigo 186º do CIRE, para efeitos de qualificação da insolvência.

Esta situação, por si só, é, na nossa opinião, fundamento para que o incidente de qualificação da insolvência seja aberto, o que desde já se requer”.

Foi, de seguida, proferido em 23 de Março de 2023 o seguinte despacho:

“Veio o administrador requerer a abertura do incidente de qualificação da insolvência.

Os autos principais prosseguem para liquidação.

Estabelece o nº 1 do artigo 188º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, que sendo apresentadas alegações por escrito por qualquer interessado ou pelo sr. AI para efeitos de qualificação da insolvência como culposa cabe ao juiz conhecer dos factos alegados e, se o considerar oportuno, declarar aberto o incidente de qualificação da insolvência nos 10 dias subsequentes.

Assim, e porquanto no caso concreto vieram a ser apresentadas por escrito pelo Sr. Administrador da Insolvência, nos termos previstos no artigo 188º, nº 1 do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, não sendo a pretensão de qualificação da insolvência como culposa manifestamente improcedente, cumpre declarar aberto o incidente respectivo.

Pelo exposto, declaro aberto o incidente de qualificação nos presentes autos de insolvência em que foi declarada a insolvência de L..., Lda., nos termos do artigo 188º, nº 1, do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas.

Após, deverá o sr. A.I. naquele apenso juntar parecer a que alude o artigo 188º, nº 6º, do CIRE, no prazo de 20 dias”.

Em 15 de Setembro de 2023 foi proferido o seguinte despacho:

“I. DISPENSA DE TENTATIVA DE CONCILIAÇÃO

No presente incidente de qualificação da insolvência a devedora e aqueles que podem vir a ser afetados pela qualificação da insolvência apresentaram as suas oposições, nos termos do disposto no artigo 188.º, n.º 6, do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, não tendo a Administradora de Insolvência, o Ministério Público ou qualquer interessado apresentado resposta às mesmas, pelo que seguir-se-á a tramitação ulterior do presente incidente, tal como dispõe o n.º 8 do referido preceito legal, de acordo com o disposto nos artigos 132.º a 139.º.

Assim, juntos que estão o requerimento, o parecer do Administrador de Insolvência, a pronúncia do Ministério Público e as oposições, imponha-se, agora, ao abrigo do disposto no artigo 136.º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas (aplicável ex vi artigo 188.º), designar data para a tentativa de conciliação.

Não obstante, e atentos os efeitos da qualificação da insolvência como culposa, está em causa uma relação jurídica de natureza indisponível, que não pode ser objeto de transação, e, por isso, sendo esta a finalidade da tentativa de conciliação, a convocação da diligência em causa revestiria ato inútil, dispensando-se assim a sua realização.

Desta feita, ao abrigo do disposto nos artigos 595.º e 596.º do Código de Processo Civil, aplicável ex vi do artigo 136.º, n.º 3 e 188.º, n.º 6, ambos do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, urge proferir despacho saneador e despacho de identificação do objeto do litígio e de enunciação dos temas da prova, o que se fará infra.

II. DO VALOR DA CAUSA

De harmonia com as disposições conjugadas dos artigos 15.º e 301.º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, fixo o valor do apenso no valor do ativo da massa insolvente.

III. DO SANEAMENTO

O tribunal é o competente.

O processo é o próprio e encontra-se isento de nulidades que o invalidem na totalidade.

As partes são dotadas de personalidade e capacidade judiciárias e são legítimas.

Não existem quaisquer outras exceções, nulidades, nem questões prévias ou incidentais de que cumpra conhecer.

IV. DO OBJETO DO LITÍGIO E DOS TEMAS DA PROVA

Nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 596.º, n.º 1, do Código de Processo Civil, profere-se o seguinte despacho de identificação do objeto do litígio e de enunciação dos temas da prova:

Objeto do litígio:

Constitui objeto do presente litígio apreciar se se verificam os pressupostos legais que permitem qualificar a insolvência da sociedade L..., Lda. como culposa, afetando AA, BB e CC.

Temas da prova:

Apurar se AA, BB e CC incumpriram em termos substanciais a obrigação de manter contabilidade organizada, mantiveram uma contabilidade fictícia ou uma dupla contabilidade ou praticaram irregularidade com prejuízo relevante para a compreensão da situação patrimonial e financeira da devedora.

Notifique as partes para, querendo, reclamarem do despacho que antecede, no prazo de 10 dias, nos termos do disposto no artigo 596.º, n.º 2, do Código do Processo Civil”.

Em 19 de setembro de 2023, a secção de processos do tribunal recorrido abriu conclusão com a seguinte informação:

Com a informação a V. Exa. que a devedora não foi notificada conforme dispõe o artº 188º, nº 9, do CIRE. Assim, solicitando que seja relevado o lapso, faço os presentes autos conclusos, a fim de V. Exa. ordenar o que tiver por conveniente.

Nessa sequência, e nessa mesma data, foi proferido o seguinte despacho:

Relevo o lapso. Dou sem efeito, prematuro, o despacho saneador.

Cumpra o disposto no artº 188º, nº 9, do CIRE quanto à devedora e, após, conclua.

Em 25 de outubro de 2023 foi prolatado o seguinte despacho:

Renovo o despacho saneador datado de 15/09/2023, com a referência ...38 que havia sido proferido prematuramente. Notifique e cumpra em conformidade.

AA, gerente da insolvente, interpôs recurso de apelação contra este despacho.

Foi proferido acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães, datado de 4 de Abril de 2024, julgando procedente o recurso de apelação interposto, revogando o despacho recorrido e declarando extinto o incidente de qualificação da insolvência.

Veio o Ministério Público interpor recurso de revista, apresentando as seguintes conclusões:

1. No Acórdão recorrido foi proferida decisão que julgou procedente o recurso interposto, revogando o despacho recorrido e declarando extinto o incidente de qualificação da insolvência.

2. Entendeu o Tribunal que, apesar de o senhor administrador da insolvência ter requerido a qualificação da insolvência como culposa, mas no próprio relatório a que se refere o artº 155º do CIRE, não tendo apresentado por apenso as alegações, omitiu a formalidade dentro do prazo perentório referido no artº 188º, nº 1, do CIRE, o que equivale a dizer que nada requereu.

3. E que, ainda que assim se não entendesse, sempre o prazo de 10 dias para o tribunal recorrido declarar aberto o incidente estaria ultrapassado.

4. Não concordamos com o entendimento e interpretação do art. 188º nº 1 do CIRE vertidos no Acórdão.

5. O Sr. Administrador da Insolvência veio no próprio relatório, parte final, a que se refere o art. 155º CIRE, apresentado em 06/01/2023, depois de expor os factos que, em seu entender, integram quer a al. h) quer as als. a) e d) do nº 2 do art. 186º CIRE para efeitos de qualificação da insolvência, requerer expressamente a abertura do incidente de qualificação da insolvência.

6. Face ao requerido, foi proferido despacho, em 20/03/2023, que declarou aberto o incidente de qualificação da insolvência, prosseguindo o incidente os seus termos.

7. Concordamos com a abertura do incidente de qualificação da insolvência, conforme decisão da 1ª instância.

8. Com efeito o Sr. Administrador da Insolvência, embora não o tenha feito em requerimento em separado, no próprio relatório a que alude do art. 155º, depois de fazer constar os elementos exigidos pelo próprio artigo, alegou os factos que fundamentam a abertura do incidente, integrando tais factos nas als. a), d) e h) do nº 2 do art. 186º e requereu expressamente a abertura do incidente de qualificação da insolvência, não ultrapassando, assim, o prazo perentório de 15 dias previsto no art. 188º nº 1 CIRE.

9. Não contrariou, antes pelo contrário, a celeridade e natureza urgente própria do processo de insolvência e seus incidentes, o facto de o Sr. Administrador da Insolvência requerer logo, no final do relatório do art. 155º, a abertura do incidente, depois de ter alegado os factos/fundamentos e sua integração nas alíneas do nº 2 art. 186º do CIRE.

10.Tendo a Mma. Juiz, face ao alegado e requerido, declarado aberto o incidente de qualificação da insolvência e ordenado a autuação, por apenso, do requerimento apresentado.

11.Se, com as alterações da Lei nº 16/12 de 20/4, o incidente de qualificação da insolvência passou a ser facultativo, o certo é que se impõe a sua abertura, caso haja elementos no sentido de que a situação de insolvência foi criada ou agravada pelo devedor ou seus administradores, pelo juiz quando declara a insolvência (art. 36º al. i) do CIRE) ou a requerimento do administrador, atento o seu estatuto e funções no processo, no prazo do art. 188º nº 1.

12. E o requerimento do administrador ou qualquer interessado com os fundamentos para efeito da qualificação da insolvência como culposa, não dá lugar, sem mais, à abertura do incidente. Só após análise do juiz, é que este, se o considerar pertinente, declara aberto o incidente.

13.Ora, foi o que sucedeu no caso dos autos, apenas o requerimento com os fundamentos, em vez de ser apresentado num requerimento autónomo, foi feito no final do relatório a que alude o art. 155º.

14.O entendimento plasmado no Acórdão recorrido é demasiado rígido, formal, levando a que a legalidade formal se imponha sobre a justiça material, o que não se coaduna com o nosso sistema processual, nem com a intenção do legislador no art. 188º nº1 CIRE.

15.Por sua vez, o prazo perentório que consta do art. 188º nº 1 CIRE é o prazo de 15 dias para requerer o incidente de qualificação da insolvência, não o prazo de 10 dias para o juiz declarar aberto o incidente.

16.Os prazos para o juiz proferir despachos/sentenças não são prazos perentórios, mas apenas ordenadores, visando disciplinar a gestão do processo, cuja inobservância não tem qualquer consequência de carácter processual, o que tem a ver com o dever de administrar a justiça (art.152º CPC), não podendo o juiz deixar de decidir.

17.O Tribunal recorrido fez uma incorrecta interpretação do art. 188º nº 1 do CIRE.

Nestes termos e nos mais de direito, deve o recurso ser julgado procedente, revogando-se a decisão recorrida, substituindo-a por outra que mantenha a decisão da 1ª instância, com o prosseguimento dos ulteriores termos do incidente de qualificação da insolvência.

Contra-alegou o gerente da sociedade insolvente pugnando pela improcedência da revista e manutenção da decisão recorrida.

II – FACTOS PROVADOS.

O que consta do RELATÓRIO supra.

III – QUESTÕES JURÍDICAS ESSENCIAIS DE QUE CUMPRE CONHECER.

Abertura e prosseguimento do incidente de qualificação culposa da insolvência. Pressupostos legais. Requerimento apresentado pelo administrador da insolvência no parecer/relatório a que alude o artigo 155º, nº 1, do CIRE.

Passemos à sua análise:

O tema do presente recurso de revista circunscreve-se, segundo o que consta das suas conclusões, a decidir sobre a possibilidade de se considerar, ou não, válido e eficaz o requerimento apresentado pelo administrador da insolvência na parte final do seu parecer/relatório a que alude o artigo 155º, nº 1, do CIRE, para a abertura do incidente de qualificação da insolvência e que o juiz de 1ª instância, depois de o analisar, veio a acolher como fundamento bastante para tal.

Contrariamente ao decidido no acórdão recorrido, não se vê impedimento legal a que o juiz tome em consideração, valorando, o requerimento apresentado pelo administrador da insolvência na parte final do parecer/relatório a que alude o artigo 155º, nº 1, do CIRE, no qual o mesmo solicita expressamente a abertura o incidente de qualificação da insolvência, discriminando os factos em que funda o seu requerimento.

Na redacção que resulta da Lei nº 16/2012, de 20 de Abril – que se mantém em vigor -, a abertura do incidente de qualificação da insolvência pelo juiz na prolação da sentença depende da circunstância de ter à sua disposição, nesse momento processual, os elementos que a justifiquem (artigo 36º, nº 1, alínea i), do CIRE), o que traduz ainda, de alguma forma, a regra da oficiosidade nessa mesma iniciativa desde factualmente indiciada (no âmbito do regime do Decreto-lei nº 53/2004, de 18 de Março, a regra era a da oficiosidade da actuação do juiz neste tocante, sem qualquer tipo de limitação ou dependência), em linha com o inicial desígnio da maior e mais eficaz responsabilização dos titulares das empresas e dos administradores (cfr. ponto 40 do Preâmbulo do Decreto-lei nº 53/2004, de 18 de Março, que aprovou o CIRE).

(Em momento processual ulterior à sentença tal regra da oficiosidade é afastada, obrigando à prévia existência de requerimento fundamentado solicitando a abertura do incidente de qualificação da insolvência – quanto a este ponto concreto, vide Maria do Rosário Epifânio, in “Manual de Direito da Insolvência”, 7ª edição, Almedina 2020, a página 174).

Não se alcança, todavia, que tal importante desiderato legal – o imperativo da maior e mais eficaz responsabilização dos titulares das empresas e dos administradores - haja sido de algum modo abandonado, menorizado ou descurado nas alterações legislativas subsequentes (mormente na que foi recentemente introduzida pela Lei nº 9/2022, de 11 de Janeiro).

Ao invés, a circunstância de o legislador haver fixado – desde a versão inicial do CIRE - a irrecorribilidade da decisão de abertura do incidente de qualificação da insolvência demonstra, pela sua definitividade, a importância e o interesse primordiais em que seja especialmente facilitado o rápido e necessário apuramento da responsabilidade dos titulares das empresas e administradores perante a atempada invocação no processo de factos que tal indiciariamente justifique.

E note-se que neste ponto (e outrossim no que tange concretamente ao objecto do presente recurso de revista) do que se trata é apenas da abertura e tramitação do incidente e não da apreciação material dos seus fundamentos, a ter lugar após a fase instrutória, com todas as garantias de defesa, e no âmbito da pertinente decisão jurisdicional, essa sim recorrível nos termos gerais.

(Sobre esta destrinça vide Luís Carvalho Martins e João Labareda in “Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado”, Quid juris, Lisboa 2013, a páginas 725 a 726).

É certo que dispõe o artigo 188º, nº 1, do CIRE, na redacção que lhe foi conferida pela Lei nº 9/2022, de 11 de Janeiro:

“O administrador da insolvência ou qualquer interessado pode alegar, fundamentadamente, por escrito, em requerimento autuado por apenso, o que tiver por conveniente para efeito de qualificação da insolvência como culposa e indicar as pessoas que devem ser afectadas por tal qualificação, no prazo peremptório de quinze dias após a assembleia de apreciação do relatório ou, no caso de dispensa da realização desta, após a junção aos autos do relatório a que se refere o artigo 155º, cabendo ao juiz conhecer dos factos alegados e, se o considerar oportuno, declarar aberto o incidente de qualificação da insolvência, nos dez dias subsequentes”.

Cumpre, todavia, enfatizar que o processo especial de insolvência é caracterizado em especial pelo seu carácter urgente (artigo 9º do CIRE), vingando, em termos gerais, no incidente de qualificação de insolvência o princípio do inquisitório (artigo 11º do CIRE).

(Versando exemplos de actuação do juiz com base no princípio do inquisitório neste domínio, vide Catarina Serra, in “Lições de Direito da Insolvência”, Almedina 2021, 2ª edição, a página 305).

Com efeito, no incidente de qualificação da insolvência está em causa a intransigente defesa do interesse público, que importa afincadamente prosseguir e não obstaculizar ou dificultar, no apuramento da responsabilidade dos representantes da sociedade, caso as suas condutas hajam alegadamente promovido, a título culposo, a situação de insolvência da empresa, e desde que seja concretamente exposta nos autos a prática dos actos passíveis de integrar a situação de insolvência culposa.

Ora, havendo avisadamente o administrador da insolvência tido o cuidado de requerer antecipadamente (e não depois do prazo peremptório de quinze dias após a apreciação pela assembleia do relatório a que alude o artigo 155º do CIRE) o incidente de qualificação de insolvência, indicando os factos que a fundamentam, a eventual inobservância formal e rigorosa do disposto no artigo 188º, nº 1, do CIRE, enquanto simples irregularidade processual, não é de molde a frustrar a possibilidade de o juiz, uma vez analisados tais factos, ordenar, se assim o entender, a abertura e o prosseguimento desse mesmo incidente – através de despacho irrecorrível, saliente-se -, o que resulta da prossecução do interesse público essencial, tido por legalmente prevalente, em que se apure, de forma célere e expedita, a responsabilidade dos representantes da empresa na verificação da situação da insolvência, a que estão associados consideráveis custos e elevados prejuízos para o Estado, para a comunidade em geral e para o tecido empresarial em especial, bem como para os particulares directamente envolvidos.

O que se encontra aliás em plena consonância com o princípio geral consignado no artigo 193º, nº 3, do Código de Processo Civil.

(Se nas hipóteses alternativas tais requerimentos podem ser apresentados “no prazo peremptório de quinze dias após a assembleia de apreciação do relatório ou, no caso de dispensa da realização desta, após a junção aos autos do relatório a que se refere o artigo 155º”, é curial concluir que se esse mesmo requerimento entrar em juízo em data anterior ao início do dito prazo deverá, por maioria de razão, ser considerado válido e eficaz, não se descortinando nisso qualquer tipo de ofensa a um interesse verdadeiramente primordial, salvaguardado e prosseguido no âmbito global e sistemático da legislação do CIRE).

Ou seja, segundo o quadro legislativo vigente compete ao tribunal um juízo inicial e prévio sobre a abertura do incidente de qualificação da insolvência que pressupõe unicamente que lhe tenham sido apresentados (neste caso pelo administrador da insolvência) os elementos suficientemente indiciadores da culpa dos responsáveis pela empresa que vem a ser declarada insolvente.

E note-se que o requerimento feito pelo administrador da insolvência integra-se claramente nos poderes da alínea e) do nº 1 do artigo 155º do CIRE, onde se alude a que: “o administrador elabora relatório contendo (…) todos os elementos que possam ser relevantes para a tramitação ulterior do processo” que deve ser entendida em sentido amplo de modo a abrigar os seus incidentes e apensos (vide Luís Carvalho Fernandes e João Labareda, in obra citada supra, a página 615).

Incompreensível seria, atento o espírito geral do conjunto de disposições legais que constituem o CIRE, que perante a expressa, clara e oportuna invocação pelo interessado dos factos justificativos da insolvência culposa, não se permitisse – antes se vedasse - a produção de prova sobre os mesmos por razões que não podem deixar de qualificar-se como puramente rigoristas e de um formalismo exacerbado que se revela, por isso mesmo, inadequado a satisfazer as finalidades principais consagradas no CIRE.

(Acrescente-se obter dictum que sendo o despacho do juiz que ordena a abertura do incidente de qualificação da insolvência irrecorrível nos termos do artigo 188º, nº 5, do CIRE, o seu questionamento passaria pela eventual arguição de nulidade do despacho que ordenou a abertura do incidente de qualificação da insolvência, por não verificação dos seus pressupostos legais - mormente a alegada ausência de requerimento apresentado dentro do prazo consignado no artigo 188º, nº 1, do CIRE -, a qual se encontra sujeita ao regime de arguição previsto nos artigos 195º e 149º do Código de Processo Civil, ou seja, é invocável no prazo de dez dias a contar do conhecimento do acto (sobre este ponto, vide o clarividente acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 20 de Setembro de 2016 (relator Jorge Arcanjo), proferido no processo nº 1286/16.4T8VIS-B.C1, publicado in www.dgsi.pt).

No caso concreto, a decisão de abertura do incidente de qualificação da insolvência data de 20 de Março de 2023, tendo sido publicado o anúncio no Portal Citius em 23 de Março de 2023 (artigo 188º, nº 5, in fine, do CIRE), não podendo invocar-se a partir daí o seu desconhecimento.

Ora, a primeira invocação quanto à ilegalidade (por irregularidade formal) da abertura e procedimento de qualificação da insolvência aconteceu no seu requerimento de 12 de Julho de 2023, concretamente no ponto II.IV., muito depois do prazo de dez dias sobre a publicitação do despacho de abertura do incidente de qualificação da insolvência, o que significa que, a existir, por mera hipótese de raciocínio, qualquer tipo de nulidade ou irregularidade processual que porventura enfermasse a decisão de abertura do incidente de qualificação da insolvência, a mesma encontrar-se-ia sanada por não invocada atempadamente).

Por outro lado, o prazo de dez dias previsto na parte final do artigo 188º, nº 1, do CIRE, respeitante a acto a praticar obrigatoriamente pelo tribunal e não pelas partes, reveste obviamente carácter meramente indicativo, não tendo a natureza de prazo peremptório (ao contrário do que sucede com o requerimento para a abertura do incidente que não pode ultrapassar o prazo de quinze dias após a apreciação pela assembleia do relatório a que alude o artigo 155º do CIRE).

(Sobre a natureza do prazo previsto no artigo 188º, nº 1, do CIRE – embora à luz da redacção anterior à Lei nº 9/2022, de 11 de Janeiro – mas envolvendo considerações pertinentes sobre a natureza e desideratos do incidente de qualificação culposa da insolvência, vide o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 13 de Julho de 2017 (relator João Camilo), proferido no processo nº 2037/19.3T8VNG-E.P1.S1, publicado in www.dgsi.pt).

Inexiste outrossim qualquer direito de defesa que seja nestas circunstâncias passível de ser colocado em crise, tendo ocorrido aliás, no caso concreto, o pleno exercício do imprescindível contraditório.

Neste mesmo sentido, os autos contêm a defesa oportunamente apresentada, de forma particularmente desenvolvida pelo ora recorrido, através da qual o mesmo poderá demonstrar perfeitamente não haver incorrido em qualquer conduta passível de o fazer incorrer nessa mesma responsabilização.

Pelo que a revista é concedida.

IV – DECISÃO

Pelo exposto, acordam os juízes do Supremo Tribunal de Justiça (6ª Secção) em conceder a revista, revogando-se o acórdão recorrido, e determinar o prosseguimento do incidente de qualificação da insolvência.

Custas pelo recorrido.

Lisboa, 17 de Setembro de 2024.

Luís Espírito Santo (Relator)

Ricardo Costa

Luís Correia de Mendonça

V – Sumário elaborado pelo relator nos termos do artigo 663º, nº 7, do Código de Processo Civil.