Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça | |||
Processo: |
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Nº Convencional: | 1.ª SECÇÃO | ||
Relator: | JORGE ARCANJO | ||
Descritores: | PARTILHA DOS BENS DO CASAL TERRENO CASA DE HABITAÇÃO BENFEITORIAS ÚTEIS BENS PRÓPRIOS REGIME DE COMUNHÃO DE ADQUIRIDOS EX-CÔNJUGE BENS COMUNS DO CASAL CRÉDITO COMPENSATÓRIO ENRIQUECIMENTO SEM CAUSA ACESSÃO INDUSTRIAL PRINCÍPIO DA TIPICIDADE DIREITO REAL | ||
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Data do Acordão: | 11/29/2022 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
Privacidade: | 1 | ||
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Meio Processual: | REVISTA | ||
Decisão: | CONCEDIDA A REVISTA | ||
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Sumário : | A edificação de obra (casa) por dois cônjuges, casados no regime de comunhão de bens adquiridos, em terreno próprio de um deles, constitui benfeitoria e dá lugar a um crédito de compensação (um crédito do património comum sobre o património próprio) com vista à reposição do equilíbrio patrimonial, pois de outra forma haveria um injustificado enriquecimento sem causa. | ||
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Decisão Texto Integral: |
Acordam no Supremo Tribunal de Justiça I – RELATÓRIO 1.1.- A Requerente -AA - instaurou, em Cartório Notarial, inventário para partilha por divórcio, com forma de processo especial, contra o Requerido - BB. Na relação de bens relacionou, além de outras, a verba nº1: “ Direito de crédito resultante da benfeitoria consistente na edificação realizada pelo casal em parcela de terreno doada à Requerente esposa, de um edifício composto por casa de habitação de rés-do-chã e andar com área coberta de 110 m2 e ainda um anexo com 20 m2, implantado no prédio sito no Lugar ..., União de freguesias ..., concelho ..., o qual se encontra descrito na Conservatória do Registo Predial sob o nº ...08 e inscrito ma Matriz predial urbana sob o nº ...66, com valor patrimonial de € 58.510,00, sendo o valor atribuído a tal crédito de € 60.000,00”. 1.2. O Requerido reclamou contra a relação de bens, alegando, em síntese: O bem imóvel edificado em terreno da Requerente é um bem comum, por força do art.1726 nº1 CC, e como tal deve ser relacionado, pois o valor da edificação é superior a € 150.000,00, ao passo que a parcela de terreno doada tem o valor de € 2.493,99. Pediu a exclusão da verba nº1 e em substituição deve ser relacionado o prédio urbano, inscrito na matriz sob artigo ...6. 1.3. – A Requerente AA respondeu reiterando tratar-se de um crédito de benfeitorias, como o Requerido reconheceu na relação de bens junta ao divórcio por mútuo consentimento. 1.4.- Por sentença de 13/10/2021, decidiu-se: “ (…) Vejamos agora os pontos 1 e 2 supra transcritos. Tem-se como assente nos autos que o terreno no qual foi construída a casa foi doado à interessada AA – cfr. Certidão de registo predial, ap. ...0 de 1992/10/08. Também se tem como assente que no aludido terreno não se encontrava edificada qualquer construção e que foram os interessados nesta partilha que construíram uma casa de habitação de ... e andar, com área coberta de 110m², e ainda, um anexo de 20m². Ora, a interessada entende que deve ser relacionado como bem comum um direito de crédito resultante de uma benfeitoria sobre o imóvel. O cabeça-de-casal defende que deve ser relacionado como bem comum todo o imóvel sendo bem próprio da interessada apenas o valor do terreno. Antes de mais diga-se que não resulta compreensível o valor de € 59.387,65 atribuído pelo cabeça-de-casal a essa verba quando é o próprio cabeça-de-casal que refere na resposta à reclamação que “as edificações têm um valor superior a € 160.000,00”. Oportunamente nos ocuparemos deste tema. A presente questão tem sido muito debatida nos tribunais superiores. Da análise que fizemos às decisões existentes resulta que a maioria da jurisprudência tem entendido que as situações iguais à que nos ocupa nestes autos devem ser tratadas como benfeitorias devendo esse valor ser relacionado como direito de crédito e bem comum no património a partilhar e mantendo-se o imóvel como bem próprio do interessado (que era já titular do terreno). Não ignoramos que existem algumas decisões recentes dos tribunais de 2º grau que têm vindo a defender que essas benfeitorias realizadas por ambos os cônjuges acarretam a incorporação do imóvel no património a partilhar, como bem comum. Exemplo disso são os arestos citados pelo cabeça-de-casal na resposta à reclamação. Como exemplos do entendimento maioritário temos as decisões proferidas pelo Tribunal da Relação de Évora, acórdão de 09.11.2017, acórdãos do Tribunal da Relação de Coimbra datados de 20.04.2016 e 20.06.2017, acórdão do Tribunal da Relação do Porto datado de 09.01.2006 e acórdão do Supremo Tribunal de Justiça datado de 30.04.2019, todos disponíveis em www.dgsi.pt. Com especial interesse para o caso concreto temos ainda o recentíssimo acórdão do Supremo Tribunal de Justiça datado de 06.05.2021, disponível em www.dgsi.pt, do qual iremos transcrever algumas partes particularmente úteis: “(…) discute-se se a construção/ampliação de uma casa pelos cônjuges, na vigência do seu casamento, celebrado no regime de comunhão de adquiridos, em prédio (urbano) doado a um dos seus membros, constitui uma benfeitoria (útil), a ser relacionada, como tal, no inventário instaurado na sequência do divórcio para partilha dos bens comuns do ex-casal. Foi este o entendimento perfilhado na 1ª instância que, afastando a verificação dos requisitos da acessão industrial imobiliária, considerou que o valor da construção (e das ampliações) de uma casa pelos cônjuges, nas circunstâncias acima descritas, devia ser relacionado, como benfeitoria, no processo de inventário. Divergindo desta orientação, o Tribunal da Relação, sem excluir o recurso ao instituto da acessão, convocou as normas do Direito de Família, mormente as constantes dos arts. 1724º e 1726º, nº 1, do CC e considerou que “da incorporação de um edifício no terreno, e do indiscutível maior valor dele em face deste, nasce uma unidade predial que deve ser tida como bem comum, sem prejuízo da compensação patrimonial (…)”. Vejamos, então. Começaremos por analisar os pressupostos do instituto da acessão industrial imobiliária, para, como se irá demonstrar, concluir pela sua inverificação, no caso em apreço. Segundo o art. 1325º, do CC “dá-se a acessão, quando com a coisa que é propriedade de alguém se une e incorpora outra coisa que lhe não pertencia”. Por sua vez, estabelece-se no art. 1326º, do CC que a acessão é natural “quando resulta exclusivamente das forças da natureza”; e “industrial, “quando, por facto do homem, se confundem objetos pertencentes a diversos donos (...).” Trata-se de um título de aquisição do direito de propriedade, traduzindo uma derrogação do princípio geral consagrado na expressão latina “superficies solo cedit”. Para que se verifique a acessão, exige-se, antes de mais, que se esteja perante um simples possuidor que, nessa qualidade, não tenha vinculação jurídica especial com alguém, sendo antes titular de um direito a que corresponde a chamada obrigação passiva universal, própria dos direitos reais, já que nenhum interesse se perfila, no lado passivo da relação jurídica de posse que justifique a inaplicabilidade do regime da acessão. O regime da acessão só será, portanto, chamado à colação quando o interventor seja juridicamente estranho ao prédio, isto é, sempre que, a ele, não esteja ligado em consequência de qualquer relação jurídica. Sucede que, no caso vertente, o que se apurou é que no prédio (urbano) doado a um dos membros do casal, no caso à ora ré, o qual reveste a natureza de bem próprio dela, face ao regime de bens do seu casamento (cf. arts. 1717º, 1721º e 1722º, al. b), do CC), os então cônjuges edificaram uma nova casa para morar que, mais tarde, vieram a ampliar (cf. pontos 5, al. a), 6 e 8, da matéria de facto provada). Sendo assim, não se pode considerar o autor (à data cônjuge marido) um estranho relativamente ao prédio onde foi construída a casa, uma vez que, tendo a obra sido realizada por ambos os cônjuges, não era, dada a sua relação familiar com a ré (cf. art. 1576º CC), um terceiro em relação ao prédio. Por outro lado, realizadas as obras em prédio (urbano) do cônjuge mulher, não houve inovação em solo ou terreno alheio, como a acessão pressupõe, mas tão somente valorização de prédio já existente, por ambos os cônjuges, em razão do seu casamento. Por conseguinte, inverificados, no caso concreto, os pressupostos da acessão, no tocante a uma ficcionada aquisição em comum da propriedade do edificado, afigura-se-nos que o regime a aplicar há-se ser encontrado à luz do instituto das benfeitorias, que, na definição legal (art. 216º, do CC), são todas as despesas feitas para conservar ou melhorar a coisa. Contra esta solução não se invoque o disposto no art. 1726º, do CC, em que se dispõe que os bens adquiridos com dinheiro ou bens próprios de um dos cônjuges e com dinheiro ou bens comuns revestem a natureza da mais valiosa das duas prestações, pois como se decidiu no ac. deste STJ de 16/2/2016, Revista nº 3036/11.2TBVCT.G1.S1, (Relator Cons. Júlio Gomes), não publicado, “o que a norma prevê é apenas a aquisição e não a situação diversa da construção no terreno de um dos cônjuges. E, em segundo lugar, ela (está a referir-se à aplicação da norma do art. 1726º, do CC) conduz à alteração do estatuto de um bem que era próprio e que passa a ser comum, o que suscita algumas interrogações quanto à sua compatibilidade com o princípio da imutabilidade do regime de bens e, sobretudo, com aquela ratio que entendemos ser subjacente ao não funcionamento entre cônjuges da usucapião ou da acessão industrial imobiliária. Um cônjuge deve poder anuir na aplicação de bens comuns, por exemplo, para a conservação ou para a ampliação de um prédio próprio que seja, por hipótese, a casa de morada de família, sem se expor ao risco de assim perder a propriedade exclusiva do bem, deixando de ser próprio (o que seria reintroduzir por esta via algo de muito próximo nos seus resultados da acessão industrial).”. Dito isto. Como resulta do art. 216º, nº 3, do CC, as benfeitorias classificam-se em necessárias (as que têm por fim evitar a perda, destruição ou deterioração da coisa); úteis (as que, não sendo indispensáveis para a sua conservação, lhe aumentam, todavia, o valor) e voluptuárias (as que, não sendo indispensáveis para a sua conservação nem lhe aumentando o valor, servem apenas para recreio do benfeitorizante). No caso em discussão, as obras de construção realizadas pelos cônjuges no prédio urbano doado à ré, à luz do critério legal plasmado no art. 216º, devem ser qualificadas como benfeitorias úteis, pois configuram despesas que, não sendo indispensáveis para a sua conservação, aumentam o valor objetivo do bem. Por sua vez, provou-se que as obras foram realizadas com recurso a empréstimos bancários, suportados por ambos (cf. ponto 9, da matéria de facto). De todo o modo, mesmo que assim não fosse, não estando demonstrado que as obras tivessem sido «feitas com dinheiro ou valores próprios de um dos cônjuges», nos termos previstos no art. 1723º, al. c), do CC, caso em que poderiam conservar a qualidade de bens próprios, o seu valor sempre seria de considerar (presuntivamente) comum, em conformidade com o disposto no art. 1733º, nº 2, do CC, aplicável por analogia ao regime de comunhão de adquiridos, tanto mais que se está perante norma imperativa. Por conseguinte, atenta a factualidade apurada, tendo cessado as relações pessoais e patrimoniais entre os cônjuges por divórcio (cf. arts. 1688º, 1788º e 1789º, do CC), deverá proceder-se à relacionação do valor das obras realizadas (€114.600,00), como benfeitorias, no inventário instaurado para partilha dos bens, por forma a que se opere a compensação devida ao património comum. Tal solução corresponde “à preocupação básica do nosso direito de obstar ao enriquecimento sem causa”, já que impede que um dos cônjuges fique beneficiado no momento da partilha e, por outro lado, assenta num princípio básico do direito patrimonial da família que encontra expressão em várias normas (cf. arts. 1697º, 1722º, nº 2, 1726º, 1727º e 1728º, todos do CC). Em sentido concordante com o que vimos defendendo, se pronunciaram os acórdãos deste Supremo Tribunal, proferidos em 17.9.2009, na Revista nº 1130/04.5TBABF, da 7ª secção, em 10.9.2009, na revista nº 713.05.0TBAVR.C1.S1, da 7ª secção, em 3.2.2009, na Revista nº 3240/08, da 6ª secção e em 13.2.2014, na Revista nº 1007/03.1TBSCR.L2.S1, da 2ª secção, não publicados, em que, em casos semelhantes ao presente, se afastou expressamente o regime da acessão, considerando, antes, que se estaria em presença de uma benfeitoria. Mais recentemente, esta mesma orientação foi reafirmada por este Supremo Tribunal, no acórdão de 30.4.2019, na revista nº 5967/17.7T8CBR.S1, disponível em www.dgsi.pt, e de que foi Relator o Cons. Ilídio Sacarrão Martins, que também subscreve o presente aresto. Todos os arestos referidos se debruçaram sobre a questão agora trazida à apreciação deste Supremo Tribunal, pelo que esta corrente jurisprudencial não poderia deixar de ser por nós especialmente ponderada, designadamente por força do disposto no art. 8º, nº 3, do CC, segundo o qual “nas decisões a proferir, o julgador terá em consideração todos os casos que mereçam tratamento análogo, a fim de obter uma interpretação e aplicação uniformes do direito.”. Infere-se, portanto, desta decisão, que o tribunal de 1º instância tinha considerado como benfeitoria as obras realizadas no imóvel, decisão que foi revogada pelo Tribunal da Relação e que veio, por sua vez, a ser revogada pelo Supremo Tribunal de Justiça (restaurando a decisão da primeira instância). A nossa posição vai de encontro ao decidido pelo Supremo Tribunal de Justiça, pelos exactos fundamentos ali expostos. Destarte, no caso concreto, a relação de bens deverá ser alterada, de modo a que a edificação da moradia construída no sobredito imóvel, realizada que foi pelos interessados na pendência do casamento, integra benfeitoria, que constitui um direito de crédito que é comum do extinto casal que deverá ser objecto de avaliação, relacionado e partilhado. * Vejamos agora a questão do valor dessa benfeitoria: Face à confissão operada pelo cabeça-de-casal na resposta à reclamação da relação de bens e considerando que o inventário deve almejar a justa composição dos quinhões e uma justiça material do caso concreto, decido atribuir a direito de crédito relativo à benfeitoria o valor de € 160.000,00. * Notifique. Após trânsito concedo o prazo de 10 dias para que o cabeça-de-casal apresente nova relação de bens devidamente rectificada em conformidade com todos os pontos elencados neste despacho.”. 1.5. - O Requerido recorreu de apelação e a Relação, por acórdão de 31/3/2022, decidiu julgar procedente a apelação e revogar a sentença. 1.6. A interessada CC recorreu de revista, com as seguintes conclusões: 1) No douto acórdão recorrido é expresso o entendimento que o valor da construção de um prédio urbano realizada por ambos os cônjuges, na vigência do seu casamento, celebrado no regime de bens de adquiridos, em imóvel pertencente a um só deles, deve ser relacionado, caso o seu valor se mostre superior, como bem comum. 2) Este acórdão está em oposição nomeadamente pelo Acórdão pelo Supremo Tribunal de Justiça, transitado em julgado em 15/07/2021 -proferido âmbito do processo n.º 2124/15.0T8LRA.C1. S1, ficou decidido: “O valor da construção de um prédio urbano realizada por ambos os cônjuges, na vigência do seu casamento, celebrado no regime de bens de adquiridos, em imóvel pertencente a um só deles, deve ser relacionado, no inventário subsequente ao divórcio, como benfeitoria, por forma a que se opere a compensação devida ao património comum (...). 3) Na lógica do Acórdão recorrido, pelo contrário, sufragou-se o entendimento contrário, ou seja, de que o imóvel construído no prédio rústico doado à Recorrente, antes do casamento, terá de ser relacionado como bem comum, caso o seu valor se mostre superior ao valor do terreno e o valor do terreno, relacionado como crédito sobre o património comum do casal. 4) É assim patente a contradição entre os Acórdãos sub judice sobre a mesma questão fundamental de direito, o que justifica o presente recurso de revista e também não restam dúvidas que os Acórdãos foram proferidos no âmbito da mesma da mesma legislação. 5) Demonstram os autos, que a Recorrente adquiriu por doação dos senhores seus Pais, aos 18.05.1992, o terreno para construção, sito no Lugar ..., União de freguesias ..., concelho .... 6) O descrito prédio foi doado exclusivamente à Recorrente, tendo a mesma sido casada com o Recorrido no regime de Comunhão de Adquiridos, é facto assente que aquele terreno é um bem próprio desta, de acordo com o disposto no art.º 1722º, nº1, al. b) do Código Civil. 7) No caso “sub judice” estamos perante um prédio urbano destinado à habitação que resultou da incorporação de um edifício em terreno que constitui bem próprio de um dos cônjuges. 8) Desta forma, e atendendo ao supra exposto relativamente à absorção do direito de propriedade de tudo o que nele for integrado, não existem dúvidas que o conjunto composto pelo terreno e o imóvel mantém a natureza de bem próprio da Recorrente. 9) Salvo o devido respeito, bem andou o Tribunal da 1.ª Instância, ao qualificar a construção do imóvel no terreno doado à Recorrente como uma benfeitoria útil, na medida em que obras de construção realizadas pelo extinto casal no terreno doado à mesma, configuraram despesas que aumentaram o valor objetivo do bem. 10) Por conseguinte em obediência a tal entendimento, considera a Recorrente que o douto Acórdão recorrido, opera uma errada interpretação e aplicação do disposto nos arts. 8º nº 3, 216º, 1722º, 1724º, 1726º e 1733º, n.º2 do Código Civil e por conseguinte não poderá manter-se na ordem jurídica. Impõe-se assim a questão “sub judice” seja apreciada, atenta a sua relevância geral em sede de realização da justiça e particular em sede de eficaz realização dos direitos subjectivos de modo a assegurar uma melhor aplicação do direito O Requerido contra-alegou, no sentido da improcedência do recurso. II - FUNDAMENTAÇÃO 2.1. – O objecto do recurso A questão submetida a revista, delimitada pelas conclusões, consiste em saber se, no processo de inventário posterior ao divórcio, a edificação de um imóvel composto por casa de habitação de ... e andar com área coberta de 110 m2 e ainda um anexo com 20 m2, realizada por AA e BB, casados no regime de comunhão de adquiridos, em parcela de terreno doada à Requerente esposa, sito no Lugar ..., União de freguesias ..., concelho ..., deve ser relacionada como crédito de benfeitorias ( tese da sentença da 1ª instância) ou como bem comum ( tese da Relação ). 2.2.- O problema da edificação de uma habitação por ambos os cônjuges, casados em regime de comunhão de bens adquiridos, em terreno próprio de um deles. As relações patrimoniais entre os cônjuges cessam com a dissolução do casamento, designadamente através do divórcio (arts.1788 e 1795-A do CC), produzindo-se, neste caso, os seus efeitos entre eles a partir do trânsito em julgado da respectiva sentença, retroagindo-se à data da propositura da acção ( arts.1688 e 1789 nº1 do CC ). Cessadas as relações patrimoniais entre os cônjuges, procede-se à partilha dos bens do casal ( art.1689 do CC ), e sendo esta judicial, através do processo especial de inventário. Na partilha, cada cônjuge receberá os seus bens próprios e a sua meação nos bens comuns, conferindo previamente o que dever a este património. Havendo passivo a liquidar, são pagas em primeiro lugar as dívidas comunicáveis até ao valor do património comum, e só depois as restantes ( art.1689 nº2 do CC ). Não havendo património comum suficiente para o pagamento das dívidas comunicáveis, poderão estas ser pagas pelo produto dos bens próprios de cada um dos cônjuges, consoante o regime de bens ( art.1695 do CC ). Na liquidação do passivo entram ainda as dívidas dos cônjuges entre si, as quais são pagas pela meação do cônjuge devedor no património comum, mas na ausência ou insuficiência de bens comuns respondem os bens próprios de cada um deles ( art.1689 nº3 do CC ). Na vigência da relação matrimonial os cônjuges tornam-se devedores entre si, através da transferência de valores entre os patrimónios – o património comum e os dois patrimónios próprios. Nestes casos, surge o chamado “ crédito de compensação” a favor do cônjuge que pagou a mais que a sua parte sobre o outro, mas cuja exigibilidade a lei difere para a partilha. A razão de ser deste diferimento prende-se essencialmente com o propósito de se evitarem desentendimentos ou perturbações conjugais e a exigibilidade imediata implicaria atribuir ao cônjuge credor um meio fácil ( a ameaça de cobrança ) de tutelar economicamente a actividade do cônjuge devedor, como justificou Braga da Cruz no seu anteprojecto ( Capacidade Patrimonial dos Cônjuges, BMJ nº69, pág.413 e segs. ), ou, noutra perspectiva, a não exigibilidade imediata radica na própria natureza jurídica da comunhão. Por outro lado, compreende-se a opção legislativa no sentido do crédito de compensação incidir, não sobre o património comum, mas sobre o outro cônjuge ( devedor ), pois de outra forma haveria o risco do cônjuge credor não lograr o pagamento se não houvesse pura e simplesmente património comum ou se este fosse insuficiente. A Requerente reclamou do Requerido um crédito de benfeitorias, com a alegação de que na pendência do matrimónio ambos os cônjuges construíram em terreno que é bem próprio dela. Coloca-se, portanto, a questão de saber como solucionar no âmbito da partilha o problema da edificação de uma habitação por ambos os cônjuges, casados em regime de comunhão de bens adquiridos, em terreno próprio de um deles. A distinção entre benfeitorias e acessão tem sido objecto de larga controvérsia doutrinária e jurisprudencial. No Código Civil de 1966, perfilaram-se dois critérios de distinção entre as benfeitorias e acessão - o subjectivo e o objectivo. Para o “critério subjectivo”, a distinção arranca da existência ou inexistência de uma relação jurídica que vincule a pessoa à coisa beneficiada, e daí que a benfeitoria consista num melhoramento feito por quem está ligado à coisa em consequência de uma relação ou vínculo jurídico, ao passo que a acessão é um fenómeno que vem do exterior, de um terceiro que não tem qualquer contacto jurídico com a coisa. Assim, são benfeitorias os melhoramentos feitos na coisa pelo proprietário, pelo possuidor, pelo locatário, comodatário, usufrutuário, e acessão os melhoramentos realizados por um terceiro, não ligado juridicamente, podendo ser um simples detentor ocasional ( P. Lima/A.Varela , Código Civil Anotado, vol. III, 2ª ed., pág.163 ) Segundo o “critério objectivo”, a distinção funda-se na finalidade e no regime de ambos os institutos, sendo a benfeitoria uma despesa para a conservação ou o melhoramento da coisa, que não é alterada na sua substância, e que dá lugar a um direito de levantamento ou um direito de crédito contra o dono da coisa benfeitorizada, pressupondo a acessão a união e incorporação de uma coisa com outra pertencente a proprietário diverso, atribuindo a lei, em determinadas condições, ao autor da acessão o direito de propriedade. Assim, a distinção é objectiva, por ser independente da posição jurídica da pessoa que faz a obra, mas antes da natureza desta, havendo acessão quando se trate de construção nova e benfeitoria se é melhorada uma já existente ( cf, Vaz Serra, RLJ ano 108, pág.266). As implicações da edificação pelos cônjuges em terreno pertencente apenas a um deles, como nos dá conta a sentença da 1ª instância na abundante referência jurisprudencial, tem sido problemática, podendo sintetizar-se, no essencial, em duas orientações: a) Uma, no sentido de que se trata de um bem comum do casal, em regime de comunhão de adquiridos, por aplicação do art. 1726 nº1 CC. Neste sentido, Rita Lobo Xavier, sobre o tema “construção de uma casa sobre terreno próprio de um dos cônjuges casados em regime de comunhão de adquiridos”, em síntese da argumentação, conclui: “Do meu ponto de vista, nada obsta a que a casa construída por ambos os cônjuges em terreno próprio de um deles, com utilização de valores comuns, seja considerada um bem “adquirido” em parte com bens próprios e em parte com bens comuns. E que por aplicação da regra prevista no nº1 do artigo 1726 se considere que ingressou no património comum. A atribuição patrimonial que favoreceu a comunhão faz nascer um direito de compensação no património próprio do cônjuge proprietário do terreno, exigível no momento da dissolução e partilha da comunhão ( artigo 1726 nº1)”( ( “ Das Relações entre o Direito Comum e o Direito Matrimonial – A propósito das atribuições patrimoniais entre cônjuges”, Comemorações dos 35 Anos do Código Civil, vol. I, pág.487 e segs). Segue esta orientação alguma jurisprudência (cf., por ex., Ac RC de 12/10/2020 ( Teresa Albuquerque), Ac RG de 30/6/2022 ( José Dias), em www dgsi.,pt). b) Outra, que a concebe como benfeitoria e, não como acessão, porque a qualidade de cônjuge não se reconduz à noção de terceiro. No regime da comunhão de bens adquiridos fazem parte da comunhão “os bens adquiridos pelos cônjuges na constância do matrimónio, que não sejam exceptuados por lei”( art.1724 b) CC ). Na verdade, seguindo o critério subjectivo, não parece que a situação se ancore no instituto da acessão, e também não se pode sustentar que a “família,” constituída pelo casamento, seja uma entidade distinta dos cônjuges, com personalidade própria, de modo a considerá-la terceiro para efeitos de acessão. Presumem-se comuns as benfeitorias efectuadas pelo cônjuge em prédio pertencente ao outro, quando realizadas na pendência do casamento e sob o regime de comunhão de adquiridos, tendo em conta a aplicação analógica do art.1733 nº2 CC e por força do disposto no art.1723 c) CC, pois na ausência de menção em documento da proveniência do dinheiro, o bem não pode ser exceptuado da comunhão. Nesta perspectiva, a edificação insere-se na titularidade do proprietário do terreno, por força do princípio dos direitos reais da especialização ou individualização, dando lugar a um crédito de compensação. Tem sido esta a orientação prevalecente na jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça, - e que aqui se acolhe - no sentido de que “ o valor da construção de um prédio urbano realizada por ambos os cônjuges, na vigência do seu casamento, celebrado no regime de bens de adquiridos, em imóvel pertencente a um só deles, deve ser relacionado, no inventário subsequente ao divórcio, como benfeitoria, por forma a que se opere a compensação devida ao património comum” (cf., por ex., Ac STJ de 27/1/1993, de 23/3/2004, 13/2/2014, de 16/12/2016, de 30/4/2019, de 6/5/2021, de 13/10/2022, disponíveis em www dgsi.pt ). O acórdão recorrido seguiu a orientação doutrinária da Prof. Rita Xavier, aplicando o critério do art.1726 nº1 CC, pois entende que “o prédio foi adquirido ou construído em parte com dinheiro ou bens próprios – da recorrida – e outra parte com dinheiro comum”, pelo que determinou a avaliação para se saber o valor do terreno e o da casa. Contudo, não parece, com o devido respeito, que, no plano dogmático, seja a melhor solução. Em primeiro lugar, porque a aquisição a que se reporta o art.1726 nº1 CC (“os bens adquiridos”) não abrange, quer pelo elemento literal, histórico e sistemático, a construção ou edificação levada a efeito por ambos os cônjuges. Depois, uma interpretação que a partir da norma considere que a obra implantada no terreno constitui uma nova “unidade jurídica indivisível” (terreno e obra) esbarra com o princípio da tipicidade dos direitos reais (art.1306 CC) e o direito matrimonial não pode criar uma nova forma de aquisição do direito de propriedade ou uma modificação subjectiva do direito de propriedade. Na verdade, por força do princípio da individualização o direito de propriedade sobre o terreno passa também a incidir sobre a obra nele edificada, ou seja, o direito de propriedade abrange a totalidade da coisa modificada, e a nova obra não opera extinção do direito de propriedade pré-existente, nem dá lugar a um novo e autónomo direito de propriedade. Sendo assim, a edificação de obra (casa) por dois cônjuges, casados no regime de comunhão de bens adquiridos, em terreno próprio de um deles constitui benfeitoria e dá lugar a um crédito de compensação (um crédito do património comum sobre o património próprio) com vista à reposição do equilíbrio patrimonial, pois de outra forma haveria um injustificado enriquecimento sem causa. Para Menezes Leitão são aplicáveis as regras do enriquecimento sem causa ( art.473 CC) no caso de atribuições patrimoniais por um dos cônjuges ao outro, na constância do casamento, que não revistam a natureza de doação, por a respectiva causa jurídica se extinguir com a dissolução do matrimónio (O Enriquecimento Sem Causa no Direito Civil, 1986, pág. 517). Neste contexto, procede a revista, revoga-se o acórdão da Relação e repristina-se a sentença da 1ª instância. 2.3. -Síntese Conclusiva A edificação de obra (casa) por dois cônjuges, casados no regime de comunhão de bens adquiridos, em terreno próprio de um deles, constitui benfeitoria e dá lugar a um crédito de compensação (um crédito do património comum sobre o património próprio) com vista à reposição do equilíbrio patrimonial, pois de outra forma haveria um injustificado enriquecimento sem causa. III – DECISÃO Pelo exposto, decidem: 1) Julgar procedente a revista e revogar o acórdão recorrido, ficando a vigorar o decidido na sentença da 1ª instância. 2) Condenar o Recorrido nas custas. Lisboa, Supremo Tribunal de Justiça, 29 de Novembro de 2022. Os Juízes Conselheiros Jorge Arcanjo (Relator) Isaías Pádua Manuel Aguiar Pereira |