Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
90/2002.G1.S1
Nº Convencional: 7ª SECÇÃO
Relator: BARRETO NUNES
Descritores: CONTRATO DE SEGURO
DECLARAÇÕES INEXACTAS
ANULABILIDADE
Nº do Documento: SJ
Data do Acordão: 06/08/2010
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA
Sumário :
1. O art. 429º do Código Comercial, que vem de 1888, fulmina de nulidade o seguro celebrado com base em declarações inexactas ou reticentes, desde que influenciem a existência ou condições do contrato.
2. É hoje jurisprudencialmente pacífico que, na vigência do Código Civil de 1966, o vício de que padecem tais contratos é de anulabilidade e não de nulidade.
3. Declaração inexacta é a declaração errada que tanto pode ser dolosa como negligente, traduzindo-se a declaração reticente na omissão de factos ou circunstâncias que, importando para a avaliação do risco, são do conhecimento do tomador do seguro e interessam ao segurador.
4. Omitindo o tomador do seguro qualquer menção à doença de que padecia estamos perante uma declaração reticente, a qual não necessita de ser dolosa, bastando a negligência, para que o contrato seja anulável.
5. Já não será necessariamente assim na vigência do Decreto-Lei n.º 72/2008, de 16 de Abril, que entrou em vigor no dia 1 de Janeiro de 2009, mas é inaplicável in casu.
6. Sabendo o tomador do seguro que tinha uma “malformação cardíaca congénita”, embora não tendo consciência “da gravidade e o carácter incapacitante que dessa malformação poderia advir, nomeadamente, com afectação do normal exercício da sua profissão”, o certo é que a devia ter declarado quando celebrou o contrato de seguro de vida com a seguradora, por nessa data já ter problemas de saúde que o afectaram na sua capacidade para o trabalho, o que gera a sua anulabilidade.
7. Anulado o contrato de seguro, não goza o tomador do seguro do necessário direito de obter da seguradora o capital segurado, não podendo obter qualquer prestação indemnizatória a quantificar segundo juízos de equidade.
Decisão Texto Integral:

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:


I – Relatório

AA, intentou a presente acção ordinária demandando a Ré, Companhia de Seguros BB, S.A., pedindo a condenação desta a pagar-lhe a quantia de € 33.116,82, acrescida de juros de mora a partir da citação e até efectivo pagamento, e ainda o montante que se vier a liquidar em execução de sentença referente a prestações entretanto vencidas e outros danos que venha a sofrer por virtude de a R. não disponibilizar o capital de seguro.

Para tanto, alega, em síntese, que, na sequência de um empréstimo que pediu à U.B.P. – actual B.P.I. –, do montante de 5.500.000$00, celebrou com a R. um contrato de seguro de vida, titulado pela apólice n.º 00000000000000, nos termos do qual esta última assumiu a responsabilidade pelos riscos ocorridos pela morte ou invalidez total e definitiva de que o Autor viesse a padecer, tendo sido fixado um capital seguro de 5.500.000$00.

Sucede que em Agosto de 2005 foi diagnosticado e dado conhecimento ao Autor de que sofria de uma malformação cardíaca grave e inoperante, com insuficiência cardíaca que ele desconhecia e que determinou, por conselho médico, a elaboração de um processo de reforma por invalidez, vindo-lhe a ser atribuída em 16/04/98, pela junta médica da sub-região de saúde de Braga uma incapacidade permanente de 90%, considerando-o total e definitivamente incapaz para o exercício de qualquer profissão.

A Ré contestou, tendo admitido a celebração do referido contrato, mas invocando a sua nulidade, alegando como fundamento que o Autor, aquando da celebração do contrato em causa, declarou não padecer de qualquer doença ou deformidade física e, portanto, gozar de boa saúde, tendo ainda declarado que as declarações exaradas no boletim de adesão eram exactas e que nada havia omitido que pudesse induzir em erro na apreciação dos riscos propostos.

Todavia o Autor, nessa data, já padecia da mencionada doença cardíaca, e não o referiu, faltando à verdade, tendo, assim, a Ré actuado em erro, uma vez que se tivesse tido conhecimento da situação clínica do Autor, não teria celebrado o contrato nos termos e condições em que o fez, o que foi provocado pelas falsas declarações do segurado.

Com estes fundamentos, conclui a Ré pela improcedência da acção e ainda pela condenação do Autor como litigante de má-fé em multa e indemnização a seu favor nunca inferior a € 7.500,00.

O Autor ofereceu réplica na qual, pronunciando-se no sentido da improcedência da invocada nulidade, conclui como na petição inicial.

Realizado o julgamento foi proferida sentença julgando a acção nos seguintes termos:

“Pelo exposto, julga-se a acção totalmente procedente e, em consequência, condena-se a R. Companhia de Seguros BB, S.A., a pagar ao A., AA:
- O montante de € 33.116,82, acrescido de juros de mora à taxa legal, contados a partir da citação e até efectivo pagamento
- O montante que se vier a liquidar em execução de sentença referente a prestações entretanto vencidas e respectivos juros, e outros danos que venha a sofrer em consequência do incumprimento perante o B.P.I., por virtude de a R. não disponibilizar o capital de seguro.”

Inconformada a Ré seguradora interpôs recurso de apelação, a que a Relação concedeu provimento, considerando, no que ora releva, o seguinte:

“Pelo menos, em 4 de Fevereiro de 1992 foi diagnosticado que o A. sofria de uma malformação cardíaca congénita, tendo sido, nessa data, dado conhecimento ao A. de que padecia dessa malformação.


Por consequência dessa malformação cardíaca de que o A. padecia, foi elaborado, em 13/04/95, um processo de reforma por invalidez.
Em 16.4.1998, a Junta Medica de Invalidez da Sub-Região de Saúde de Braga atribuiu ao Autor uma incapacidade parcial permanente de 90% e considerou-o total e definitivamente incapaz para o exercício de qualquer profissão.
Na data referida que assinou o boletim de adesão para o seguro, o autor já tinha conhecimento da doença aludida e já tinha problemas de saúde que, de um modo temporário, afectaram a sua capacidade para o trabalho. Sabia padecer de uma malformação cardíaca congénita, mas não tinha consciência da gravidade e do carácter incapacitante que dessa mal formação poderia advir, nomeadamente, com afectação do normal exercício da sua profissão.
O autor assinou o documento de fls. 47 e seguintes no balcão do banco U.B.P. em Fão – Esposende.
A omissão de declaração da sua patologia, até pelos antecedentes clínicos que a mesma importara – considerando a data da declaração, podiam, pelo menos, influir sobre as condições do contrato, se não mesmo sobre a sua existência.
Aquela situação do autor acarretava um elevado risco (muito além do que normal e pressuposto da base do acordo), de verificação dentro do período de vigência do contrato da ocorrência determinante da responsabilidade da seguradora, no caso a invalidez. Desse risco acrescido não tomou conhecimento a seguradora (por isso não foi considerado na fixação do prémio devido).
Note-se que foi esse risco acrescido e não declarado que se concretizou na incapacidade do autor.
A questão da consciência da gravidade da situação é irrelevante, pois trata-se de segurar um risco e não uma certeza. O seguro implica sempre alguma incerteza quanto ao acontecimento futuro, devendo, ao declarar-se o risco que se pretende cobrir, indicar os factos ou circunstâncias capazes de influir neste.
O estado geral de saúde, a indicação de patologias ou situações clínicas relevantes, são circunstâncias a indicar em contratos de seguro como o dos autos.
No DD a declaração do risco consistirá fundamentalmente na informação relativa ao estado de saúde da pessoa a segurar. Com tal objectivo as seguradoras, visando auxiliar o tomador do seguro a descrever os factos relevantes para a apreciação do risco, forneçam questionários a preencher por estes, sendo, como parece manifesto, da responsabilidade destes o que for declarado.
A sanção do artigo 429.º do Código Comercial corresponde a um particular caso de erro vício, previsto no artigo 251.º do CC. vd. Ac. do STJ de 30/10/2007, www.dgsi.pt, processo 07A2961 – onde se refere:
“Incidindo sobre a própria formação do contrato, as declarações falsas ou as omissões relevantes impedem a formação da vontade real da contraparte (seguradora), pois que essa formação assenta em factos ou circunstâncias ignoradas, por não reveladas ou deficientemente reveladas. Daí que, como resulta do preceito legal e é entendimento corrente, não é necessário que as declarações ou omissões influam efectivamente sobre a celebração ou condições contratuais fixadas, bastando que pudessem ter influído ou fossem susceptíveis de influir nas condições de aceitação do contrato.”
Flui da matéria provada, e a essa nos ateremos, carecendo de sentido o referenciado nas contra-alegações quanto ao modo como as declarações se processaram, porque não demonstrado nos autos; que o segurado omitiu a sua situação de saúde. Incorreu quer numa declaração inexacta (declarando não ter problemas de saúde), quer numa reticência, ocultando o problema de que padecia e bem conhecia.
Na parte relativa a “doenças” declarou gozar de boa saúde e no que tange ao aparelho cardiocirculatório, declarou não sofrer de doenças.
Sobre a obrigatoriedade de declarar uma deficiência do pâncreas – Ac. STJ de 2/12/2008, www.dgsi.pt, processo nº 08A3737.
É de revogar a decisão, ficando prejudicado o conhecimento das restantes questões.”

Inconformado, recorre agora o Autor, de revista, para este Supremo Tribunal, delimitando o objecto do recurso às seguintes conclusões:

“1. O demandante nasceu em 19/06/1963 com uma malformação cardíaca congénita – um único ventrículo.


2. Esta malformação cardíaca só lhe foi detectada em 1992 pela sua médica de família.
3. Essa médica deu-lhe conhecimento dessa malformação mas não lhe explicou as consequências que daí lhe poderiam advir, nem prescreveu qualquer restrição.
4. O demandante exercia a profissão habitual de chapeiro de automóveis, profissão que exercia em 1992 quando lhe foi detectada a malformação cardíaca congénita, mas que nunca o impediu de trabalhar.
5. Em Maio de 1995 assinou, no Banco, o boletim de adesão ao contrato de seguro que se discute nos autos.
6. E continuou a trabalhar como chapeiro de automóveis, tendo, em 1997 sido proposto a uma Junta Médica com vista á sua passagem à situação de reforma.
7. Essa Junta Médica em 1997 chumbou-o e considerou-o completamente apto para o trabalho, sem qualquer tipo de incapacidade.
8. Certamente que, dois anos antes, quando assinou o boletim de adesão o sue estado de saúde, decorrente da malformação ainda era melhor do que aquando da sua pretensão – que era mais da sua médica de família do que dele – de passar á reforma.
9. Como resulta inequivocamente dos autos o demandante não tinha, aquando da assinatura (e nada mais) do boletim de adesão, consciência da gravidade e do carácter incapacitante que da malformação cardíaca congénita lhe poderia advir, designadamente com afectação da sua profissão.
10. Com efeito, foi a própria médica de família do demandante, Dr.ª CC que declarou que ele não tinha a menor consciência da gravidade do problema de saúde de que estava acometido.
11. E foram, também, os peritos médicos, nos esclarecimentos que prestaram em audiência de julgamento, que manifestaram e sustentaram a sua convicção de que o demandante não tinha uma clara e esclarecida consciência da gravidade da doença de que estava acometido.
12. Se assim não sucedesse, disseram, que de modo algum se poderia compreender que, a ter essa consciência, tivesse continuado a trabalhar como chapeiro de automóveis colocando a sua saúde em risco e até mesmo a própria vida.

13. Por tudo isso, mesmo que tivesse sido o demandante a preencher o boletim de adesão – e não foi –, ou tivesse sido ele a responder a qualquer questionário – e não respondeu –, relativamente ao que consta do referido boletim, jamais teria faltado à verdade.
14. Está assim, por total falta de conhecimento e de consciência do seu grave estado de saúde, totalmente fora de causa, que não prestou falsas declarações ou declarações inexactas.
15. O douto acórdão recorrido violou o conceito de equidade, no sentido definido repetidamente por este STJ e que atrás, no texto, referimos por mais do que uma vez, ou seja: - a justiça do caso concreto flexível, humana, independente de critérios normativos fixados na lei, devendo o julgador ter em conta as regras da boa prudência, do bom senso prático, da justa medida das coisas e de critérios de ponderação das realidades da vida e também o então disposto nos artigos 429º do Código Comercial.”

Em extensa peça alegatória, respondeu a Recorrida, focando essencialmente, a pré-existência da doença do recorrente em relação à celebração do contrato de seguro e a anulabilidade do mesmo contrato, pugnando, enfim, pela confirmação do acórdão recorrido.

Foram colhidos os “vistos” legais.

Como se acabou de evidenciar, o recorrente limita o seu inconformismo à sua análise de um rol de factos demonstrados e indemonstrados, quedando-se, a final, pela aplicação ao caso concreto dos princípios da justiça equitativa, socorrendo-se e alicerçando-se numa melhor interpretação do art. 429º do Código Comercial.


II – Os factos que vêm fixados das instâncias


“1 - Em 30.06.1995, o autor contraiu um empréstimo para aquisição de habitação própria, no montante de 5.500.000.80 esc., na União de Bancos Portugueses, S.A. (actualmente, Banco de Investimento Imobiliário, S.A.), nos termos do documento de fls. 9 a 19, que se dá como reproduzido.
2 - O referido Banco celebrou com a Companhia de Seguros BB (actualmente, BB) um contrato de seguro (DD – grupo), titulado pela apólice nº 000000000, nos termos dos documentos de fls. 51 a 57, que se dão como reproduzidos.
3 - Nesse contrato, com início em 5.6.1995, o Banco figura como tomador do seguro e o autor como pessoa segura, sendo este quem suportava o pagamento dos prémios do seguro.
4 - Nos termos desse contrato, e, a seguradora garante o pagamento ao Banco das quantias correspondentes ao capital em dívida na data da contestação da doença, até ao limite do capital seguro.
5 - Em 8.5.1995, o autor assinou, para efeito do seguro, o boletim de adesão de fls. 47 e seguintes, que se dá como reproduzido.
6 - O autor sofre frequentemente de crises de dispepsia e tem necessidade de tratamento, inclusive sangrias.
7 - Pelo menos, em 4 de Fevereiro de 1992 foi diagnosticado que o A. sofria de uma malformação cardíaca congénita, tendo sido, nessa data, dado conhecimento ao A. de que padecia dessa malformação.
8 - Por consequência dessa malformação cardíaca de que o A. padecia, foi elaborado, em 13/04/95, um processo de reforma por invalidez.
9 - Em 08/04/97 o A. foi submetido a uma primeira Junta Médica para Verificação de Invalidez que o considerou apto e sem qualquer incapacidade para o trabalho.
10 - Em 16.4.1998, a Junta Medica de Invalidez da Sub-Região de Saúde de Braga atribuiu ao Autor uma incapacidade parcial permanente de 90% e considerou-o total e definitivamente incapaz para o exercício de qualquer profissão.
11 - O facto referido em 6) torna o autor dependente dos cuidados de terceira pessoa para os actos da vida quotidiana, designadamente na locomoção, no lavar e no vestir.


12 - O autor interpelou a ré no sentido de proceder ao pagamento ao banco do capital seguro e forneceu-lhe, para o efeito, toda a documentação solicitada.
13 - O autor deixou de possuir rendimentos suficientes para suportar as mensalidades do empréstimo referido em 1).
14 - A quantia em dívida ao Banco, em 1.6.2001, incluindo juros de mora, era de 6.639.326,80 esc.
15 - Na data referida em 5), quando assinou o boletim de adesão para o seguro, o autor já tinha conhecimento da doença aludida em 7).
16 - Na data referida em 5) o A. já tinha problemas de saúde que, de um modo temporário, afectaram a sua capacidade para o trabalho.
17 - Na data referida em 5) o A. sabia padecer de uma malformação cardíaca congénita, mas não tinha consciência da gravidade e do carácter incapacitante que dessa mal formação poderia advir, nomeadamente, com afectação do normal exercício da sua profissão.18 - O autor assinou o documento de fls. 47 e seguintes no balcão do banco U.B.P. em Fão – Esposende.”

III – O direito

1. O contrato de seguro em geral caracteriza-se por ser um acordo vinculativo assente sobre duas declarações de vontade (proposta e aceitação), contrapostas mas harmonizáveis entre si, através do qual a seguradora assume a obrigação, mediante a retribuição a pagar pelo segurado, de satisfazer uma indemnização pelo prejuízo por este sofrido ou um montante previamente determinado.

É um contrato formal, já que deve ser reduzido a escrito num instrumento que constitui a apólice de seguro – art. 426º do Código Comercial).

Regula-se pelas estipulações particulares e gerais constantes da respectiva apólice e, nas partes omissas ou insuficientes, pelo disposto no Código Comercial e, na falta de previsão deste, pelo disposto no Código Civil – arts. 3º e 427º do Código Comercial)(1)..


É também um contrato de adesão na medida em que as cláusulas contratuais gerais são elaboradas sem prévia negociação individual e que proponentes ou destinatários se limitam a subscrever.

Resulta dos autos que o contrato de seguro em apreço se mostra viciado por uma declaração inexacta e reticente, nos termos previstos no corpo do art. 429º do Código Comercial – entretanto revogado pelo artigo 6.º, n.º 2, alínea a) do Decreto Lei n.º 72/2008, de 16 de Abril, que aprovou o regime jurídico do contrato de seguro, inaplicável in casu já que só entrou em vigor no dia 1 de Janeiro de 2009 – que a fulmina, segundo o seu texto, com a nulidade do seguro.

Porém, presentemente, à luz do actual Código Civil, que não do então vigente Código de 1867, já que o Código Comercial é de 1888 – onde se lê nulidade deve interpretar-se como anulabilidade, conceito que substitui a anterior designação de nulidade relativa (por contraposição à nulidade absoluta, actualmente nulidade).

A nulidade, a operar ipso jure (ou ipso vi legis), resulta da violação de uma norma imperativa a tutelar um interesse de ordem pública – art. 294.º do Código Civil – ferindo o negócio ab initio.

A anulabilidade só opera por iniciativa dos interessados, já que o vício, por se reportar à lesão de interesses privados, não é de conhecimento oficioso, é sanável pelo decurso do tempo, e por confirmação, admitindo-se, assim, a convalidação do negócio, podendo ser arguida dentro do ano subsequente à cessação do vício que lhe serve de fundamento, mas enquanto o negócio não estiver cumprido, pode ser arguida, sem dependência de prazo, tanto por via de acção como por via de excepção – (cf. v.g., os Professores Manuel de Andrade – Teoria Geral da Relação Jurídica, pp. 432-435 – e Galvão Telles – Dos contratos em geral, pp. 150-152; e inter alia, os Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 17 de Outubro de 2006, proc. n.º 06A2852 e de 27 de Maio de 2008, proc. n.º 08 A1373).

Este aresto do STJ reafirma a jurisprudência pacífica de que o artigo 429.º do Código Comercial estabeleceu um regime de anulabilidade, que não de nulidade, pois é aquele “que melhor defende o interesse público de ressarcimento dos lesados, naturalmente alheios às relações contratuais entre a seguradora e o seu segurado” (cfr., o Acórdão do STJ de 27 de Maio de 2008, já citado).

O novo regime do Decreto-Lei n.º 72/2008, de 16 de Abril já consagra, expressamente, a anulabilidade do contrato de seguro, embora limitando-a ao incumprimento doloso (art. 25º, n.º1) dos deveres de declaração exacta.

O Dr. L. P. Moitinho de Almeida, O Contrato de Seguro, p. 65, refere que sobre o segurado cai “o dever de declaração do risco, pois, se não completar a declaração realizada por quem fez o seguro, tendo conhecimento de factos ou circunstâncias que teriam podido influir sobre a existência ou condições do contrato, perde o direito à prestação do segurador. Deve, porém, entender-se que este dever só recai sobre o segurado se este tiver conhecimento do seguro e da omissão ou inexactidão da declaração de risco do tomador, pois de outro modo é impossível o cumprimento.
O tomador do seguro, qual bonus pater familiae, tem a obrigação de declarar o que deve conhecer, em termos de normalidade de vida.

Mas, embora não relatando certos factos, a declaração não é de considerar inexacta se os mesmos são, ou deviam ser do conhecimento do segurador. (cf. Dr. J. Mota, Seguro Marítimo, p. 76, reportando-se a circunstâncias “presumidamente conhecidas do segurador”).

A declaração inexacta é a afirmação errónea, que tanto pode ser dolosa (de má fé) como involuntária (negligente); a declaração reticente traduz-se na omissão de factos ou circunstâncias que importam para a avaliação do risco, e que devem ser do conhecimento do segurado.

Mas para que a declaração, inexacta ou reticente implique a anulação não é necessário o dolo do declarante.

O dolo só releva para os efeitos, e nos termos, do § único do citado artigo 429.º.

Neste sentido vejam-se o Doutor Cunha Gonçalves, Comentário ao Código Comercial, II, p. 540; Dr. Pinheiro Torres, Ensaio sobre o contrato de seguro, p. 106; Dr. Moitinho de Almeida, ob. cit., p. 79; e v.g., os Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 20 de Junho de 1967 – BMJ 168-323, e de 30 de Outubro de 2007, proc. n.º 07 A2961.

Mas quer a declaração inexacta – por contrário à verdade dos factos – quer a reticente – por omissiva de factos que deviam ser declarados – só relevam se tiveram influência na existência ou nas condições (como, v.g., prémios) do contrato (2).


2. Depois deste breve excurso sobre a exegese do art. 429º do Código Comercial, revertendo agora para o caso dos autos, desnecessitando de trazer de novo à colação a plenitude do factualismo apurado, resta-nos ponderar e concluir, que a única questão aflorada pelo recorrente, a da aplicação in casu da justiça equitativa, não tem aqui qualquer justificação.

Previamente, porém, parece-nos oportuno recuperar o que o Supremo Tribunal de Justiça discorreu no acórdão uniformizador de jurisprudência do n.º 10/2001, de 21 de Novembro de 2001 (3)., que tem aqui plena aplicação: “sendo fundamental, no contrato de seguro, a confiança nas declarações emitidas pelos contraentes, para prevenir as eventuais tentativas de fraude, a lei sanciona com a invalidade os contratos em que tenha havido declarações inexactas, incompletas ou prestadas com reticências, com omissões por parte do tomador do seguro e que influam sobre a existência ou condições do contrato, sendo inócua a intenção do segurado. A avaliação do que sejam declarações inexactas, ou omissões relevantes, determinantes do regime de invalidade do negócio terá de ser feita caso a caso.”

Ora, in casu, o contrato de seguro de vida celebrado entre recorrente e recorrido padece de declaração inexacta e reticente, já que foi omitida por parte do segurado qualquer menção à doença de que sofria, a qual era do seu conhecimento e que esteve na origem da sua invalidez permanente, assim se estabelecendo o nexo de causalidade, para nós imprescindível à invalidade do contrato de seguro, já que seria de todo desproporcionado sancionar com o vício da anulabilidade o seguro em que o evento que despoletou o pagamento do risco assumido seja completamente alheio aos elementos inexactos ou omitidos (4).


É certo que o segurado “Na data referida em 5) [leia-se: na data em que celebrou o contrato de seguro de adesão] o A. sabia padecer de uma malformação cardíaca congénita, mas não tinha consciência da gravidade e do carácter incapacitante que dessa mal formação poderia advir, nomeadamente, com afectação do normal exercício da sua profissão”.

De qualquer modo, deparamos com uma omissão na declaração que induziu em erro o segurador que, muito provavelmente, não o celebraria, pelo menos nos termos segurados, caso tivesse conhecimento prévio da referida doença.

Tal omissão configura o erro-motivo ou erro-vício, que atinge os motivos determinantes da vontade de negociar, que o art. 251º do Código Civil prevê e cujo tratamento jurídico é o do regime da anulabilidade, nos termos previstos no art. 247º do mesmo Código.

Declarando-se, como se declara, anulado o contrato de seguro de adesão em apreço, não goza o recorrente do necessário direito de obter da seguradora o capital segurado, o que afasta a possibilidade de obtenção de qualquer prestação indemnizatória a quantificar segundo juízos de equidade.

Nos termos expostos, nega-se a revista e confirma-se o acórdão recorrido.

Custas pelo recorrente.

STJ, aos 8 de Junho de 2010

Barreto Nunes (Relator)
Orlando Afonso
Cunha Barbosa
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(1)- Até aqui, nesta parte, seguimos de perto o acórdão do STJ de 8 de Janeiro de 2009, processo n.º 08B3903, 7.ª secção, relatado pelo Conselheiro António Sobrinho, nas bases de dados do ITIJ.
(2)- Nesta parte, seguimos de perto o acórdão do STJ de 2 de Dezembro de 2008, processo n.º 08A3737, relatado pelo Conselheiro Sebastião Povoas, nas bases de dados do ITIJ.
(3)- Publicado no Diário da República, I-A, de 27 de Dezembro de 2001.
(4)- Neste sentido, o acórdão do STJ de 8 de Janeiro de 2009, já citado na nota 1, que, por sua vez, cita José Vasques,Contrato de Seguro, p. 228.