Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
3/20.9FCOLH.S1
Nº Convencional: 3.ª SECÇÃO
Relator: HELENA FAZENDA
Descritores: RECURSO PER SALTUM
LIBERDADE CONDICIONAL
REINCIDÊNCIA
MEDIDA CONCRETA DA PENA
Data do Acordão: 01/19/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: NEGADO PROVIMENTO
Indicações Eventuais: TRANSITADO EM JULGADO
Sumário :
I - São, pressupostos formais da reincidência, para além da prática de um crime, «por si só ou sob qualquer forma de participação»: 1.º - que o crime agora cometido seja um crime doloso; 2.º - que este crime, sem a incidência da reincidência, deva ser punido com pena de prisão efetiva superior a 6 meses; 3.º - que o arguido tenha antes sido condenado, por decisão transitada em julgado, também em pena de prisão efetiva superior a 6 meses, por outro crime doloso; 4.º - que entre a prática do crime anterior e a do novo crime não tenham decorrido mais de 5 anos, prazo este que se suspende durante o tempo em que o arguido tenha estado privado da liberdade, em cumprimento de medida de coação, de pena ou de medida de segurança.

II - Além dos enunciados pressupostos formais, a verificação da reincidência exige um pressuposto material: o de que, de acordo com as circunstâncias do caso, o agente seja de censurar por a condenação ou as condenações anteriores não lhe terem servido de suficiente advertência contra o crime (in acórdão do STJ, de 29-02-2012, Proc. n.º 999/10.9TALRS.S1, Relator Santos Cabral).

III - Relativamente aos pressupostos formais entende-se que o preenchimento do primeiro e do terceiro não suscita qualquer dúvida: tanto o crime atual (tráfico) como o anterior, por que o arguido foi condenado (igualmente tráfico de estupefacientes) são crimes dolosos. E pela prática do último foi punido com prisão efetiva bem superior a 6 meses. Quanto ao segundo pressuposto, relevante é que o novo crime, sem a consideração da reincidência, deva ser punido com pena de prisão efetiva superior a 6 meses.

IV- No caso vertente, a decisão de primeira instância seguiu tal itinerário, e definiu a pena em função da moldura legal fixada.

V - Assim, igualmente o quarto pressuposto está demonstrado pelos factos provados, pois que é a data da prática do crime anterior e a data da prática do crime atual que interessam à verificação da reincidência e não as datas das respetivas condenações ou do seu trânsito em julgado.

VI - Releva, ainda, o tempo em que o recorrente se encontrou em cumprimento de pena pois que, como refere o normativo em causa (artigo 75º nº 2, do Código Penal, in fine), no prazo, não é computado o tempo durante o qual o agente tenha cumprido medida processual, pena ou medida de segurança privativas da liberdade».

VII - A concessão de liberdade condicional não modificou a natureza da pena que cumpria no processo n.º ….. É que qualquer arguido condenado em prisão efetiva continua a cumprir a pena até ao respetivo termo, designadamente quando se encontre em situação de liberdade condicional, como foi o caso.

VIII - Quanto ao pressuposto material, que o recorrente impugna, dispõe o regime da reincidência que a respetiva punição agravada só tem lugar «se, de acordo com as circunstâncias do caso, o agente for de censurar por a condenação ou as condenações anteriores não lhe terem servido de suficiente advertência contra o crime».

IX - Como refere Figueiredo Dias «é no desrespeito ou desatenção do agente por esta advertência que o legislador vê fundamento para uma maior censura e, portanto, para uma culpa agravada relativa ao facto cometido pelo reincidente (in Direito Penal Português, “As Consequências Jurídicas do Crime”, p. 268).

X - Esta doutrina tem obtido acolhimento uniforme na jurisprudência do STJ. Argumenta-se no sentido de que, podendo a reiteração criminosa resultar de causas meramente fortuitas, ou exclusivamente exógenas, – caso em que inexiste fundamento para a especial agravação da pena por, então, não se poder afirmar uma maior culpa referida ao facto – e não operando a qualificativa por mero efeito das condenações anteriores, a comprovação da íntima conexão entre os crimes não se basta com a simples história criminosa do agente.

XI - Sem colocar em causa tal posição unânime é evidente que, estando em causa uma reincidência homogénea, ou especifica, como é o caso, é lógico o funcionamento da prova por presunção em que a premissa maior é a condenação anterior e a premissa menor a prática de novo crime do mesmo tipo do anteriormente praticado. Se o arguido foi condenado anteriormente por crimes do mesmo tipo e agora volta a delinquir pela mesma prática, é liminar a inferência de que lhe foi indiferente o sinal transmitido, não o inibindo de renovar o seu propósito de delinquir.

XII - Na verdade, se o que se pretende são provas que permitam fundamentar a convicção de que a condenação anterior não teve qualquer relevância na determinação posterior do arguido, então é perfeitamente legitimo o apelo a uma regra de experiência comum que transmite que a condenação anterior não produziu qualquer inflexão na opção pela prática de crimes do mesmo tipo. Se em relação a uma criminalidade heterogénea ainda se pode afirmar a possibilidade de uma descontinuidade ou fragmentação do sinal consubstanciado na decisão anterior, pois que o contexto em que foi produzida pode ser substancialmente distinto, provocando a falência das premissas para o funcionamento da presunção, não se vislumbra onde é que a mesma afirmação se possa produzir perante crimes do mesmo tipo (in acórdão do STJ, de 29-02-2012, Processo nº 999/10.9TALRS.S1, Relator Santos Cabral).

Decisão Texto Integral:

Acordam, em conferência, no Supremo Tribunal de Justiça:



I. Relatório


AA vem interpor recurso da decisão Tribunal Judicial da Comarca ... - Juízo Central Criminal ... – Juiz ..., que o condenou na pena de 6 (seis) anos de prisão, pela prática, em autoria material e como reincidente, de um crime de tráfico de estupefacientes, previsto e punido pelo artigo 21.º do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22.01 e 78.º do Código Penal.


2. As razões de discordância encontram-se expressos nas conclusões da respetiva motivação de recurso, que se transcrevem: 

“1. Por acórdão datado de 09-07-2021 foi o arguido ora Recorrente condenado pela prática, em autoria material e como reincidente, de um crime de tráfico de estupefacientes, previsto e punido pelas disposições conjugadas do artigo 21.º do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22.01 e 78.º do Código Penal, na pena de 6 (seis) anos de prisão.

2. O arguido ora Recorrente não se conforma com o acórdão de que ora se recorre, nomeadamente quanto à condenação como reincidente e à medida da pena.

3. No que respeita à reincidência somos do entendimento que não se verifica o pressuposto material.

4. A reincidência não pode operar automaticamente, apenas relevando a que esteja ligada a um defeito da personalidade que leve o agente a ser indiferente à solene advertência contida na sua condenação anterior, não constando da sentença matéria de facto que suporte o juízo formulado dos factos provados na sentença, o que não se verifica no presente caso concreto.

5. Andou mal o tribunal “a quo” ao considerar que estão preenchidos todos os pressupostos da punição como reincidente do arguido, pois deveria ter sido ponderado e não foi que dois meses apenas separam a condenação do arguido por reincidência.

6. In casu o arguido ora Recorrente encontrar-se-ia numa situação de graves dificuldades económicas fruto dos problemas psicológicos e depressivos porque estaria a passar relacionados com o consumo de estupefacientes (cocaína).

7. O tribunal “a quo” violou assim o disposto nos artigos 75.º e 76.º ambos do Código Penal.

8. Termos em que não deverá o arguido ora Recorrente ser condenado como reincidente e em consequência não deverá a sua culpa ser agravada.

9. Sem prescindir e caso assim não se entenda sempre se dirá que o arguido deverá ser condenado numa pena próxima dos mínimos legais.

10. Impunha-se ao Tribunal “a quo”, ponderar as necessidades de prevenção especial, graduar a pena junto ao limite mínimo e não na pena efetivamente aplicada.

11. No acórdão em crise, não foram tidos em consideração os critérios enunciados no artigo 71º do Código Penal.

 12. O arguido ora Recorrente confessou a generalidade dos factos que resultaram dados como provados, contribuindo para o seu esclarecimento e descoberta da verdade material e mostrou arrependimento.

13. À data dos factos o arguido era consumidor de produto estupefaciente, o que influenciou a prática do crime em apreço.

14. O arguido ora Recorrente está familiarmente inserido e conta com o apoio da sua companheira e dos seus dois filhos assim como dos familiares mais próximos pais e irmão.

15. Em reclusão regista um comportamento globalmente positivo, o que nos permite formular um prognóstico de alguma permeabilidade do ora Recorrente à influência da pena.

16. O tribunal “a quo” ao condenar o arguido na pena de prisão de 6 (seis) anos violou os artigos 40.º, n.º 2 e 71.º, ambos do Código Penal.

17. Termos em que deverá o presente recurso ser julgado procedente e consequentemente deverá o arguido ora recorrente ser condenado numa pena próxima dos limites legais.

Nestes termos e nos melhores de direito deverá o recurso interposto ser julgado procedente e em consequência não deverá o arguido ora Recorrente ser condenado como reincidente e deverá ser reduzida a medida da pena, com o que se fará justiça!”



3. O Ministério Público respondeu ao recurso, pronunciando-se no sentido da improcedência do recurso nos seguintes termos:

“1. Por acórdão datado de 09/07/2021, o arguido AA foi condenado pela prática, em autoria material e como reincidente, de um crime de tráfico de estupefacientes, previsto e punido pelas disposições conjugadas do artigo 21.º do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22.01 e 75.º do Código Penal, na pena de 6 (seis) anos de prisão.

2. O recorrente defende que não estão preenchidos todos os pressupostos da sua punição como reincidente, nomeadamente o pressuposto material.

3. Não tem razão. Tal como considerou o Tribunal Colectivo entendemos que estão demonstrados todos os pressupostos formais, pois dos factos provados nos autos resulta a prática a 20 de Junho de 2020 de um crime de tráfico de estupefacientes previsto e punido pelo artigo 21.º do Decreto Lei 15/93, de 22/01, com pena de 4 a 12 anos de prisão, sendo que por decisão transitada em julgado a 25 de Dezembro de 2015, o arguido foi condenado pelo mesmo tipo de crime, praticado a 4 de Fevereiro de 2014, numa pena de 5 anos e 3 meses de prisão; sendo que o arguido esteve preso preventivamente à ordem desse processo desde 6 de Fevereiro de 2014 e foi colocado em liberdade condicional a 22 de Setembro de 2016.

4. Relativamente ao pressuposto material, em face de uma actuação duplicada na prática do mesmo tipo de crime por agente empenhado numa criminalidade homogénea, que outros factos se podem invocar em vista da afirmação de uma conexão entre os crimes praticados que não a prática dos mesmos crimes?

5. A afirmação contida na decisão do Tribunal Colectivo de que “considerados os factos aludidos e atenta a igual natureza dos referidos crimes praticados pelo arguido (ambos crimes de tráfico), e a semelhança dos factos praticados (ambos situações de transporte marítimo de droga) – reincidência homótropa - afigura-se-nos que este é de censurar por a condenação anterior não lhe ter servido de suficiente advertência contra o crime, denotando a conduta do arguido uma indiferença perante o bem jurídico protegido, pelo que está desde logo verificado o requisito material exigido pela lei para a ocorrência de reincidência”, constitui fundamento bastante para o funcionamento da agravante da reincidência.

6. Afirmou o recorrente que a pena aplicada deve ser substituída por uma outra inferior e situada “próximo dos limites mínimos da moldura penal abstracta”.

7. Ora, respondendo a tal matéria, entende o Ministério Público que na determinação da pena o Tribunal Colectivo valorou todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, depunham a favor ou contra o arguido.

8. Com efeito, considerou-se o grau de ilicitude, sendo que a conduta do recorrente se situa num patamar elevado tendo em conta a quantidade da droga transportada, mas também a sua qualidade, sendo hoje sabido que a cannabis tem vindo a registar um cada vez maior grau de adição.

9. Atendeu-se à forma de execução dos factos, tendo em consideração que se trata de um tráfico transfronteiriço de droga e que a intervenção do recorrente, como transportador – pessoas que por norma em situações de dificuldades económicas assumem um papel subordinado – é absolutamente essencial na operação de tráfico; a favor do arguido, valorou-se o facto de não se ter feito qualquer prova quanto ao seu domínio na escolha dos meios utilizados para efetuar o transporte, nem no acondicionamento do estupefaciente, limitando-se a cumprir ordens de terceiros.

10. Ponderou-se também a culpa revela-se intensa, na medida em que o arguido agiu com dolo direto, o que releva como circunstância agravante; os sentimentos manifestados no cometimento do crime e os fins ou motivos que o determinaram: quanto a este aspecto, considerou-se, em abono do arguido e porque não foram contrariadas por outros meios de prova, as motivações por este apresentadas, de que lhe foi exigido o pagamento da droga apreendida no outro processo em que fora condenado e que, por manifesta falta de capacidade económica, face às dívidas da família, aceitou fazer transportes de droga.

11. Valorou-se as condições pessoais do agente e a sua situação económica: nesta parte salientou-se a inserção familiar e        profissional do recorrente, nomeadamente que à data dos factos vivenciava um quadro de elevado stress sócio profissional devido ao endividamento da empresa da família, e um quadro de maior consumo de cocaína.

12. Considerou-se ainda a conduta anterior ao facto e a posterior a este, especialmente quando esta seja destinada a reparar as consequências do crime: valorou-se a confissão do recorrente, que, como já referido, é relevante não obstante o flagrante delito, pois permitiu esclarecer os contornos da operação de transporte da cannabis, sobre a qual não foi feita qualquer outra prova.

13. Deste modo, temos que tais circunstâncias impunham que a pena de prisão a impor ao arguido ora recorrente fosse fixada da forma que o Tribunal Colectivo acabou por fazer.

14. Por outro lado, quanto à determinação da pena do recorrente enquanto reincidente, considerou-se no douto Acórdão objecto de recurso todos os factores já anteriormente referidos e que relevam para a determinação da medida concreta da pena a aplicar ao mesmo e ainda a agravação da sua culpa resultante de se tratar de arguido reincidente.

15. Deste modo, temos que as mesmas circunstâncias impunham que a pena de prisão a impor ao recorrente, dentro dos limites consagrados no artigo 76.º, n.º 1, do Código Penal, se situasse nos 6 (seis) anos de prisão, tal como entendeu – e bem – o Tribunal Colectivo.

16.O douto Acórdão objecto do presente recurso não violou qualquer preceito legal, nem merece qualquer censura na apreciação que fez das circunstâncias relevantes para a determinação da pena concreta de 6 (seis) anos de prisão que aplicou ao ora recorrente.



4. No Supremo Tribunal de Justiça, o Senhor Procurador Geral Adjunto emitiu parecer no sentido da improcedência do recurso, sufragando a confirmação do acórdão, nos termos que se transcrevem:

“1. Por douto acórdão proferido, em 1ª Instância, no processo supra-identificado, foi decidido condenar o arguido AA, pela prática, em autoria material e como reincidente, de um crime de tráfico de estupefacientes, previsto e punido pelas disposições conjugadas do artigo 21.º do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de Janeiro e 78.º do Código Penal, na pena de 6 anos de prisão.

Inconformado, o arguido interpôs recurso circunscrito à matéria de direito – art.º 432º, nº 1, al. c) do Código de Processo Penal –, questionando os pressupostos da sua condenação como reincidente – inexistentes, na sua óptica –, e a excessiva dureza da pena, atenta a circunstância de ter confessado os factos pelos quais foi condenado.

A tal recurso respondeu, detalhada e fundadamente, a Exma. Magistrada do Ministério Público junto do Tribunal de 1ª Instância, pugnando pela respectiva improcedência.


2. Crendo-se que nada obstará ao conhecimento do recurso por parte do Supremo Tribunal de Justiça, deverá o mesmo ser apreciado em sede de conferência, de acordo com o disposto no art.º 419º do Código de Processo Penal.

Dir-se-á, assim, que a precisão e exaustividade dos argumentos aduzidos na resposta da Exma. Colega – que se acompanha inteiramente – nos dispensam de maiores considerandos.

Recordar-se-á, tão só, que a decisão recorrida ponderou, expressamente, a confissão dos factos feita pelo arguido, salientando a respectiva relevância, e as suas circunstâncias pessoais – nomeadamente, a sua integração familiar e profissional –, mas não deixou de salientar o facto de ter novamente cometido crime idêntico ao que motivara a sua anterior condenação, justificando a sua condenação como reincidente, do seguinte modo:

“Ora, a factualidade provada nos autos integra a prática a 20 de junho de 2020 de um crime de tráfico de estupefacientes, previsto e punido pelo artigo 21.º do Decreto Lei 15/93, de 22.01, com pena de 4 a 12 anos de prisão, sendo que por decisão transitada em julgado a 25 de dezembro de 2015, o arguido fora condenado pelo mesmo tipo de crime, praticado a 4 de fevereiro de 2014, numa pena de 5 anos e 3 meses de prisão; sendo que o arguido esteve preso preventivamente à ordem desse processo desde 6 de fevereiro de 2014 e foi colocado em liberdade condicional a 22 de setembro de 2016.

Donde se mostram reunidos todos os pressupostos formais.”

“Ora, considerados os factos aludidos e atenta a igual natureza dos referidos crimes praticados pelo arguido (ambos crimes de tráfico), e a semelhança dos factos praticados (ambos situações de transporte marítimo de droga) – reincidência homótropa - afigura-se-nos que este é de censurar por a condenação anterior não lhe ter servido de suficiente advertência contra o crime, denotando a conduta do arguido uma indiferença perante o bem jurídico protegido, pelo que está desde logo verificado o requisito material exigido pela lei para a ocorrência de reincidência.

Destarte verifica-se que estão preenchidos todos os pressupostos da punição como reincidente do arguido.”

Recorde-se, entretanto, que o arguido, embora tenha sido colocado em liberdade condicional (relativamente ao crime anterior) em 22 de Setembro de 2016, não terminou o cumprimento da pena nesse dia. Pelo contrário, esta foi considerada extinta em data posterior – mais precisamente, a partir de 4 de Maio de 2019 – de acordo com a decisão que, a tal respeito, foi tomada pelo TEP e que consta de fls. 3 do seu CRC. – cfr. referência nº ... de 19-5-2021 do sistema Citius.

E, cerca de 1 ano e 1 mês depois, o arguido cometia novo crime – e da mesma natureza: tráfico de estupefacientes.

Com efeito, parece-nos que a concessão de liberdade condicional não modificou a natureza da pena que cumpria no processo nº. 349/13..... Não passou, por exemplo, a ser uma pena de execução suspensa. Qualquer arguido condenado em prisão efectiva continua a cumprir a pena até ao respectivo termo, quer esteja em regime aberto (virado para o interior ou o exterior), em liberdade condicional ou em detenção.

É, pois, absolutamente evidente que a condenação anterior de nada serviu.

Ora, nestas circunstâncias, tendo a moldura penal o limite mínimo de 5 anos e 4 meses e sendo o arguido condenado em 6 anos, a única crítica que se poderia assacar ao douto acórdão recorrido seria, porventura, o da excessiva benevolência, não fora a relevância dada à sua confissão…

Parece-nos, pois, que o aresto fez uma adequada interpretação dos critérios contidos nas disposições conjugadas dos art.ºs 40º, n.º 1 e 71º, n.º 1 e 2, als. a) a c), e) e f) do Código Penal.

Atendeu-se, cremos, à vantagem da reintegração tão rápida quanto possível do arguido em sociedade; sem se esquecer, porém, que a pena deve visar também, de forma equilibrada, a protecção dos bens jurídicos e a prevenção especial e geral, neste caso particularmente relevantes.

Com efeito, as fortíssimas exigências de prevenção e a gravidade (e reiteração) do comportamento do arguido tinham, obviamente, em conformidade e de acordo com os critérios acima referidos, de ser traduzidos em pena correspondente à medida da sua culpa; o que o tribunal recorrido conseguiu de forma justa e que respeita as finalidades visadas pela punição.


3. Assim, concluindo, dir-se-á que o douto acórdão recorrido qualificou e sancionou de forma adequada e criteriosa a matéria fáctica fixada, pelo que o recurso deverá improceder.”



5. Cumprido o disposto no artigo 417º nº 2 do Código do Processo Penal (CPP), não houve resposta ao parecer. Teve lugar a conferência, com dispensa de vistos estando os autos disponíveis no sistema Citius.


II. Fundamentação


1. Sendo o âmbito do recurso delimitado pelas conclusões do recorrente, (sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso dos vícios do artigo 410.º, n.º 2, do CPP artigos. 403º e 412º nº 1 do CPP e Acórdão de Fixação de Jurisprudência nº 7/95 de 19.10.95[1]), resulta que as questões a apreciar consubstanciam-se na reincidência, pela qual o recorrente foi condenado, e pela medida da pena fixada.

2. Vejamos:

2.1 Em sede de decisão recorrida encontra-se provada a seguinte factualidade:

1. No dia … de junho de 2020, pouco antes das 03H00, junto à ..., sita em ..., nas coordenadas ...; ..., o arguido AA detinha na embarcação denominada “...”, 43 fardos e 4 placas de cannabis a bordo com o peso global de 1.403.182,83 e de 386,658 gramas, respetivamente (peso líquido).

2.  Na referida embarcação seguia também o arguido BB.

3. Os referidos 43 fardos de cannabis, dos quais faziam parte as 4 placas que também estavam na embarcação, haviam sido trazidos de ... pelo arguido AA, juntamente com um outro indivíduo não identificado, numa embarcação semi-rígida, que avariou a cerca de 40 a 50 milhas naúticas do litoral algarvio.

4. No dia … de junho de 2020, a hora não concretamente apurada, mas no período da tarde, CC e DD tripularam a embarcação denominada “...” – com a matrícula n.º 10...-..., com o motor ... com o n.º ... -, levando a bordo o arguido BB, e foram ao encontro da embarcação onde o arguido AA se encontrava com vista ao seu arranjo.

5. Enquanto o arguido BB procurava arranjar a embarcação em que se encontrava o arguido AA, os 43 fardos de cannabis, e as 4 placas, foram transbordados para a embarcação denominada ... pelo arguido AA e pelos dois indivíduos mencionados em 4.

6. De seguida, os indivíduos referidos em 4 abandonaram o local numa embarcação espanhola que, entretanto, compareceu no local, tripulada por uma pessoa cuja identidade não se apurou, deixando o arguido BB na embarcação ... contra a sua vontade. 

7. O arguido AA decidiu então afundar a embarcação semi-rígida em que seguia e prosseguir a viagem na embarcação ... onde já se encontravam os fardos de cannabis, tripulando-a com rumo à barra de ... para desembarcar em território nacional.

8. O arguido AA conhecia as características estupefacientes do produto que transportava, sabia que não o podia transportar e ainda assim quis e conseguiu transportá-lo para ... ciente de que a sua conduta era proibida e punida por lei.

9. O arguido AA agiu livre, deliberada e conscientemente.

10. A embarcação referida no ponto 1. é propriedade do ..., com locação financeira a favor de EE.

11. O telemóvel com ligação satélite foi utilizado pelo arguido para contactar e ser contactado a fim de receber instruções quanto ao transporte da cannabis.

12. O montante de € 620,00 foi entregue ao arguido AA para a viagem.

13. Por acórdão de 25 de novembro de 2014, transitada em julgado a 25 de dezembro de 2015, proferida no âmbito do processo comum coletivo n.º 349/13...., do Tribunal Judicial da Comarca ..., Juízo Central Criminal, Juiz ..., foi o arguido FF, condenado pela prática em ... de fevereiro de 2014, de um crime de tráfico de estupefacientes, previsto e punido pelo artigo 21.º do Decreto Lei n.º 15/93, de 22.01, na pena de 5 anos e 3 meses de prisão.  

14. À ordem do referido processo arguido AA foi detido a ... de fevereiro de 2014, ficou preso preventivamente a ... de fevereiro de 2014 e beneficiou de liberdade condicional desde o dia ... de setembro de 2016.

15. No âmbito desse processo resultou provado que: no dia ... de fevereiro de 2014, o arguido AA, em conjugação de esforços e na execução de um plano comum com três outros arguidos, participaram numa ação de desembarque de haxixe, junto aos apoios de pesca, em ... de ...; entre as 11:00 e as 12:00h do referido dia, o arguido AA estacionou a sua viatura de matrícula TP-...-..., numa rua transversal à Rua ..., em ... de ...; de forma não apurada, entrou na embarcação semi-rígida ..., de matrícula ..., a qual tripulou a partir de local não apurado, juntamente com outro arguido, até aos apoios de pesca em ... de ...; tal embarcação continha no seu interior 827,893 kg de haxixe (peso bruto); o arguido, conjuntamente com outro, conduziu a embarcação até à rampa, onde os aguardava uma viatura com atrelado, lá deixada por outro arguido, e procederam ao atracamento da embarcação ao atrelado; após, o arguido AA e o outro arguido ocuparam a viatura ..., tendo o primeiro conduzido a viatura, levando atrelada a embarcação contendo o produto estupefaciente para fora do local, por via terrestre; nas mesmas circunstâncias de tempo e de lugar, o arguido AA trazia consigo 0,547 gramas de cocaína; o arguido agiu na execução de um plano previamente delineado com os restantes arguidos, em conjugação de esforços, conhecendo as características do produto estupefaciente, sabendo que não o podia transportar e ainda assim quis e conseguiu transportá-lo ciente de que a sua conduta era proibida e punida por lei; para além disso, o arguido AA sabia que trazia consigo cocaína, que não destinava ao seu consumo, o que fez sabendo que não a podia trazer consigo.

16. A semelhança entre a conduta praticada pelo arguido AA – descrita nos pontos 1, 3, 5, 7 a 9 - e a que determinou a sua anterior condenação em pena de prisão efetiva evidencia que o arguido não foi sensível às finalidades de ressocialização daquela pena, e que a condenação que sofreu não lhe serviu de advertência suficiente para deixar de levar a cabo esse género de condutas.

17. Por acórdão de 7 de maio de 2014, transitado em julgado a 31 de outubro de 2014, proferido no âmbito do processo comum coletivo 4/13...., do Tribunal Judicial da Comarca ..., Juízo Central Criminal, Juiz ..., foi o arguido BB condenado pela prática em … de setembro de 2013, de um crime de tráfico de estupefacientes, previsto e punido pelo artigo 21.º do Decreto Lei n.º 15/93, de 22 de janeiro, na pena 8 anos e 6 meses de prisão.

18. O arguido BB beneficiou de liberdade condicional desde o dia … de junho de 2019.

19. À data das circunstâncias que originaram a instauração dos presentes autos, AA dispunha de enquadramento habitacional próprio, reportado à casa morada de família, de ... e com dois pisos, sendo no ... armazém e no ... a habitação propriamente dita e com de adequadas condições de habitabilidade.

20. AA constitui agregado familiar com a companheira FF, desde há 22 anos, detendo o casal dois filhos atualmente com … e … anos de idade.

21. A dinâmica relacional marital e parental é caracterizada como estável e pautada por consistentes sentimentos de afeto e partilha mútua, por sua vez extensíveis aos respetivos agregados familiares de origem.

22. Em termos formativos e após ter concluído o 11º ano de escolaridade, AA inicia percurso laboral em coadjuvação da atividade empresarial do pai, no ramo da produção e comércio de fruta e produtos hortícolas, situação que manteve de forma relativamente contínua; refere ainda a aquisição de certificação profissional, nomeadamente de aplicação de produtos .... .

23. Em janeiro de 2012, constituiu sociedade com o pai e o irmão, na empresa “M...”, tendo como objeto o comércio por grosso de …., cultura de … e arrendamento de …, registando a empresa familiar, pelo menos desde então, uma crescente instabilidade económico financeira com consequente acumulação de passivos relativos quer a créditos bancários, quer a impostos e tributações à segurança social.

24. Neste contexto e à data dos alegados fatos, o arguido vivenciava um quadro de acentuado stress socioprofissional, um endividamento global de vários milhões de euros e a iminência de um quadro de falência pessoal e empresarial.

25. Pese embora os constrangimentos empresariais vivenciados até à data da reclusão, o arguido AA dispunha de um quadro económico alicerçado no seu vencimento mensal (1000€) e no da companheira (ordenado mínimo nacional), usufruindo o filho mais velho, de igual modo, de autonomia económico laboral.

26. Contudo e não obstante uma correlação tendencialmente positiva entre rendimentos e encargos fixos mensais, o arguido, assume uma crescente fragilização dos seus rendimentos disponíveis, face a acentuados gastos com o consumo de substâncias psicoativas (cocaína).

27. Em termos da sua inserção sócio comunitária, o arguido surge positivamente referenciado no meio residencial, tanto mais porque associado ao consistente referencial pró- social do pai e do irmão no meio comunitário.

28. Os familiares não obstante a manutenção do suporte familiar de retaguarda ao arguido e elementos do seu agregado familiar (companheira e filhos) assumem uma postura de forte censurabilidade face ao seu comportamento, vivenciando a situação jurídico penal do arguido com acentuada penosidade, dado pôr em causa a sua imagem familiar/empresarial e social.

29. O arguido assume crenças adequadas quanto a comportamentos socialmente desajustados; mostra capacidades de relacionamento interpessoal adequadas respeitando sentimentos e pontos de vista do outro, gerindo as emoções de forma construtiva.

30. Relativamente à situação jurídica penal o arguido consciencializa as consequências para o próprio e familiares, em detrimento do ponto de vista das vítimas; denota em termos abstratos noção do interdito e do bem jurídico em causa e em conformidade o carácter reprovável dos seus antecedentes criminais.

31. No meio prisional o arguido tem protagonizado um comportamento globalmente positivo, quer ao nível do cumprimento das normas e regras institucionais, quer no relacionamento interpessoal, quer ainda na participação motivada nas atividades formativas e ocupacionais.

32. Usufrui do apoio económico da companheira e do filho, os quais expressam disponibilidade pela manutenção do suporte de retaguarda que tem lhe vindo a prestar, não obstante assumam uma postura de censura face ao comportamento do arguido.

33. Para além do descrito em , foi o arguido AA condenado por sentença de 27 de março de 2019, transitada em julgado a 6 de maio de 2019, proferida no âmbito do processo sumário n.º 50/19...., do Tribunal Judicial ..., ..., Juiz ..., pela prática em … de março de 2019, de um crime de condução em estado de embriaguez, previsto e punido pelo artigo 292.º, n.º 1 do Código Penal, na pena de 60 dias de multa à taxa diária de € 7,00 e na pena acessória de proibição de conduzir pelo período de 3 meses; as penas foram declaradas extintas, pelo cumprimento, a ... de junho de 2019 e ... de agosto de 2019, respetivamente.

34. À data da sua detenção, BB vivia com a mãe, que necessitava de apoio dada a sua situação precária de saúde.

35.  Apresentou até 2007 um percurso profissional pautado pelo investimento e pela regularidade, como mecânico de …, quer por conta de outrem quer por conta própria.

36. Encontrava-se à data da sua detenção a trabalhar para ….....

37. Foi referido o consumo de cocaína nos últimos seis meses antes da sua anterior detenção, nunca tendo iniciado qualquer tratamento.

38. Após a sua detenção, mostrou-se motivado para ser internado em comunidade terapêutica, alternativa que já não defende.

39. Durante o período que esteve preso à ordem do processo 4/12 foi submetido regularmente a testes de despiste do consumo de estupefacientes, sempre com resultados negativos.

40. No âmbito da liberdade condicional compareceu neste serviço sempre que lhe foi solicitado, aparentando cumprir as obrigações a que se encontrava sujeito.

41. Em meio prisional tem protagonizado comportamento adequado, em termos de cumprimento e aceitação das normas institucionais.


2.2 Matéria de facto não provada:

Com relevância para a decisão da causa, não se provaram quaisquer outros factos, nomeadamente:

“1. Que em data não concretamente apurada, mas pelo menos em meados do mês de junho de 2020, os arguidos AA e BB, conjuntamente com outros indivíduos não identificados, em conjugação de esforços e concertadamente, delinearam um plano para transportar e desembarcar, por via marítima, uma carga composta por cannabis em território nacional.

2. Que o arguido AA tripulou a embarcação referida no ponto 3 dos factos provados desde o dia 15 de junho de 2020 e que a mesma era uma embarcação da classe marítimo-turística.

3. Que o arguido BB tripulou a embarcação ... nas circunstâncias referidas no ponto 4 dos factos provados.

4. Que na senda de um plano previamente delineado e em conjugação de esforços com o arguido AA e os demais indivíduos não identificados, o arguido BB realizou o transbordo dos 43 fardos de cannabis para a embarcação ....

5. Que os arguidos AA e BB destinavam os 43 fardos de cannabis à posterior venda a distribuidores e comerciantes.

6. Que o arguido BB, conhecendo as características estupefacientes do produto que se encontrava na embarcação ..., quis e conseguiu transportá-lo, sabendo que não podia fazer e ciente de que a sua conduta era proibida e punida por lei.

7. Que o arguido BB agiu livre, deliberada e conscientemente.

8. Que a condenação referida no ponto 14 dos factos provados não foi suficiente para afastar o arguido BB da prática de novos ilícitos criminais.

9. Que a tenda de campismo, o ... e os telemóveis pessoais dos arguidos tenham sido utilizados para a prática dos factos provados.

10. Que a quantia de € 20,00 apreendida a BB se encontrasse relacionada com o transporte de cannabis.

11. Que os 43 fardos de cannabis tivessem o peso de 1493 kg. “


3. Nos termos do nº 1 do artigo 75º do Código Penal, «é punido como reincidente quem, por si só ou sob qualquer forma de comparticipação, cometer um crime doloso que deva ser punido com prisão efectiva superior a seis meses, depois de ter sido condenado por sentença transitada em julgado em pena de prisão efectiva superior a seis meses por outro crime doloso, se, de acordo com as circunstâncias do caso, o agente for de censurar por a condenação ou as condenações anteriores não lhe terem servido de suficiente advertência contra o crime».

E o nº 2 acrescenta: «o crime anterior por que o agente tenha sido condenado não releva para a reincidência se entre a sua prática e a do crime seguinte tiverem decorrido mais de cinco anos; neste prazo não é computado o tempo durante o qual o agente tenha cumprido medida processual, pena ou medida de segurança privativas da liberdade»

São, assim, pressupostos formais da reincidência, para além da prática de um crime, «por si só ou sob qualquer forma de participação»,

1º - que o crime agora cometido seja um crime doloso;

2º - que este crime, sem a incidência da reincidência, deva ser punido com pena de prisão efetiva superior a 6 meses;

3º - que o arguido tenha antes sido condenado, por decisão transitada em julgado, também em pena de prisão efetiva superior a 6 meses, por outro crime doloso;

4º - que entre a prática do crime anterior e a do novo crime não tenham decorrido mais de 5 anos, prazo este que se suspende durante o tempo em que o arguido tenha estado privado da liberdade, em cumprimento de medida de coação, de pena ou de medida de segurança.

Além dos enunciados pressupostos formais, a verificação da reincidência exige um pressuposto material: o de que, de acordo com as circunstâncias do caso, o agente seja de censurar por a condenação ou as condenações anteriores não lhe terem servido de suficiente advertência contra o crime.[2]

3.1. Importa, no caso vertente, verificar da existência de tais pressupostos.

Relativamente aos pressupostos formais entende-se que o preenchimento do primeiro e do terceiro não suscita qualquer dúvida: tanto o crime atual (tráfico) como o anterior, por que o arguido foi condenado (igualmente tráfico de estupefacientes) são crimes dolosos. E pela prática do último foi punido com prisão efetiva bem superior a 6 meses.

Quanto ao segundo pressuposto, relevante é que o novo crime deva ser punido, sem a consideração da reincidência, com pena de prisão efetiva superior a 6 meses.

Ora como refere Figueiredo Dias[3] ao enunciar as operações que o juiz tem de efetuar para determinar a medida da pena no caso de reincidência, o tribunal tem, em primeiro lugar, de determinar a pena que concretamente deveria caber ao agente se ele não fosse reincidente, seguindo o procedimento normal de determinação da pena, por duas razões: para assim determinar se está verificado um dos pressupostos formais – o de o crime reiterado ser punido com prisão efetiva e, por outro lado, para tornar possível a última operação, imposta pela 2ª parte do nº 1 do artigo 76º – a agravação resultante da reincidência não poder exceder a medida da pena mais grave aplicada nas condenações anteriores.

No caso vertente a decisão de primeira instância seguiu tal itinerário, e definiu a pena em função da moldura legal fixada.

Efetivamente, resulta da decisão recorrida que “Ao crime de tráfico de estupefacientes corresponde uma moldura penal abstrata de quatro a doze anos de prisão, nos termos do disposto no n. º1 do artigo 21.º do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de Janeiro. De acordo com o disposto no artigo 40.º do Código Penal, a aplicação das penas e medidas de segurança visa a proteção dos bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade, não podendo em caso algum a medida da pena ultrapassar a medida da culpa. Como bem referem Leal-Henriques e Simas Santos, “Código Penal anotado”, 3ª ed., 564, o nosso direito penal acolheu as seguintes proposições conclusivas, formuladas por Figueiredo Dias: “- a finalidade primária da pena é o «restabelecimento da paz jurídica comunitária abalada pelo crime» (prevenção geral positiva de integração – artigos 18º, nº 2 da CRP e 40º, nº 1 do CP; - esta finalidade primária não posterga o efeito, meramente lateral, causado pela pena em termos de prevenção geral negativa ou de intimidação geral; - dentro dos «limites consentidos pela prevenção geral positiva ou de integração» a medida concreta da pena será encontrada em função da necessidade de socialização do agente (prevenção especial positiva ou de integração) e de advertência individual ou inocuização (prevenção especial negativa); a culpa não é fundamento da pena, mas tão-somente o seu limite inultrapassável (vd. artº 40º, nº 2 do CP)”. Já a fixação da medida concreta da pena far-se-á nos termos equacionados nos artigos 40.º, n.º 2 e 71.º, ambos do Código Penal, ou seja, à culpa cabe a função de determinar o limite máximo da pena; à prevenção geral de integração a função de fornecer uma moldura de prevenção, cujo limite máximo é dado pela medida ótima da tutela dos bens jurídicos (dentro do que é consentido pela culpa) e cujo limite mínimo se encontra nas exigências de defesa do ordenamento jurídico; à prevenção especial, cabe a função de encontrar o quantum exato da pena, dentro da moldura de prevenção, que melhor sirva as exigências de socialização do delinquente.

No caso concreto, são elevadas as exigências de prevenção geral - atendendo a que o tráfico de estupefacientes é um crime que causa grande alarme social e que importa realçar o papel dos tribunais na luta contra a toxicodependência e contra o tráfico de drogas. Quanto às exigências de prevenção especial, há que ter em consideração que o arguido já sofreu uma condenação por crime de tráfico de estupefacientes, numa pena de prisão efetiva, pelo que importa que se consciencialize da gravidade da sua conduta. Feitas estas considerações sobre as exigências de prevenção geral e especial, deverão ser consideradas, ainda, todas as circunstâncias gerais que não fazendo parte do tipo de crime, deponham a favor do agente, designadamente, o grau de ilicitude do facto, a intensidade do dolo e a conduta anterior ao facto e posterior a este, especialmente quando esta seja destinada a reparar as consequências do crime, bem como as suas condições pessoais e a sua situação económica. Assim, na determinação da medida da pena cumpre ponderar as seguintes circunstâncias: - o grau de ilicitude, sendo que a conduta do arguido se situa num patamar elevado tendo em conta a quantidade da droga transportada, mas também a sua qualidade, sendo hoje sabido que a cannabis tem vindo a registar um cada vez maior grau de adição; - a forma de execução dos factos, tendo em consideração que se trata de um tráfico transfronteiriço de droga e que a intervenção do arguido, como transportador – pessoas que por norma em situações de dificuldades económicas assumem um papel subordinado – é absolutamente essencial na operação de tráfico; a favor do arguido, valora-se o facto de não se ter feito qualquer prova quanto ao seu domínio na escolha dos meios utilizados para efetuar o transporte, nem no acondicionamento do estupefaciente, limitando-se a cumprir ordens de terceiros; - a culpa revela-se intensa, na medida em que o arguido agiu com dolo direto, o que releva como circunstância agravante; - os sentimentos manifestados no cometimento do crime e os fins ou motivos que o determinaram: quanto a este aspeto, considera-se, em abono do arguido e porque não foram contrariadas por outros meios de prova, as motivações por este apresentadas, de que lhe foi exigido o pagamento da droga apreendida no outro processo em que fora condenado e que, por manifesta falta de capacidade económica, face às dívidas da família, aceitou fazer transportes de droga; - as condições pessoais do agente e a sua situação económica: nesta parte valora-se a inserção familiar e profissional do arguido, salientando-se que à data dos factos vivenciava um quadro de elevado stress sócio profissional devido ao endividamento da empresa da família, e um quadro de maior consumo de cocaína; - a conduta anterior ao facto e a posterior a este, especialmente quando esta seja destinada a reparar as consequências do crime: valora-se a confissão do arguido, que, como já referido, é relevante não obstante o flagrante delito, pois permitiu esclarecer os contornos da operação de transporte da cannabis, sobre a qual não foi feita qualquer outra prova. Pelo exposto, considera-se proporcional e adequada às finalidades da punição a condenação do arguido numa pena de 4 anos e 8 meses de prisão pelo crime de tráfico de estupefacientes” (transcrição).

Assim, igualmente o quarto pressuposto está demonstrado pelos factos provados, pois que é a data da prática do crime anterior e a data da prática do crime atual que interessam à verificação da reincidência e não as datas das respetivas condenações ou do seu trânsito em julgado.

Releva, ainda, o tempo em que o recorrente se encontrou em cumprimento de pena pois que, como refere o normativo em causa, no prazo, não é computado o tempo durante o qual o agente tenha cumprido medida processual, pena ou medida de segurança privativas da liberdade»

In casu, como resulta da factualidade provada, a 20 de junho de 2020 o arguido cometeu um crime de tráfico de estupefacientes, previsto e punido pelo artigo 21.º do Decreto-Lei 15/93, de 22.01, tendo sido condenado na pena de 6 anos de prisão, sendo que por decisão transitada em julgado a 25 de dezembro de 2015, o arguido fora condenado pelo mesmo tipo de crime, praticado a 4 de fevereiro de 2014, numa pena de 5 anos e 3 meses de prisão. O arguido esteve preso preventivamente à ordem desse processo[4] desde 6 de fevereiro de 2014, tendo sido colocado em liberdade condicional a 22 de setembro de 2016.


Tal como bem salienta o Senhor Procurador Geral Adjunto, “o arguido, embora tenha sido colocado em liberdade condicional (relativamente ao crime anterior) em 22 de Setembro de 2016, não terminou o cumprimento da pena nesse dia. Pelo contrário, esta foi considerada extinta em data posterior – mais precisamente, a partir de 4 de maio de 2019 – de acordo com a decisão que, a tal respeito, foi tomada pelo TEP e que consta de fls. 3 do seu CRC. – cfr. referência nº ... de 19-5-2021 do sistema Citius.”


Isto é, cerca de 1 ano e 1 mês depois, o arguido cometia novo crime, da mesma natureza, designadamente, novo crime de tráfico de substâncias estupefacientes.


Com efeito, a concessão de liberdade condicional não modificou a natureza da pena que cumpria no processo nº. 349/13..... É que qualquer arguido condenado em prisão efetiva continua a cumprir a pena até ao respetivo termo, designadamente quando se encontra em situação de liberdade condicional, como foi o caso.

Relativamente ao pressuposto material, que o recorrente impugna, dispõe o regime da reincidência que a punição agravada pela reincidência só tem lugar «se, de acordo com as circunstâncias do caso, o agente for de censurar por a condenação ou as condenações anteriores não lhe terem servido de suficiente advertência contra o crime».

Como refere Figueiredo Dias[5] «é no desrespeito ou desatenção do agente por esta advertência que o legislador vê fundamento para uma maior censura e, portanto, para uma culpa agravada relativa ao facto cometido pelo reincidente. E continuao critério essencial da censura ao agente por não ter atendido a admonição contra o crime resultante da condenação ou condenações anteriores, se não implica um regresso à ideia de que verdadeira reincidência é só a homótropa [homogénea ou específica], exige de todo o modo, atentas as circunstâncias do caso, uma íntima conexão entre os crimes reiterados que deva considerar-se relevante do ponto de vista daquela censura e da consequente culpa. Uma tal conexão poderá, em princípio, afirmar-se relativamente a factos de natureza análoga segundo os bens jurídicos violados, os motivos, a espécie e a forma de execução; se bem que ainda aqui possam intervir circunstâncias (…) que sirvam para excluir a conexão, por terem impedido de actuar a advertência resultante da condenação ou condenações anteriores. Mas já relativamente a factos de diferente natureza [reincidência polítropa, genérica ou heterogénea] será muito mais difícil (se bem que de nenhum modo impossível) afirmar a conexão exigível. Desta maneira, …, é… a distinção criminológica entre o verdadeiro reincidente e o simples multiocasional que continua aqui a jogar o seu papel».

Esta doutrina tem obtido acolhimento uniforme na jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça. Argumenta-se no sentido de que, podendo a reiteração criminosa resultar de causas meramente fortuitas, ou exclusivamente exógenas, – caso em que inexiste fundamento para a especial agravação da pena por, então, não se poder afirmar uma maior culpa referida ao facto – e não operando a qualificativa por mero efeito das condenações anteriores, a comprovação da intima conexão entre os crimes não se basta com a simples história criminosa do agente[6], antes exige uma «específica comprovação factual, de enunciação dos factos concretos dos quais se possa retirar a ilação que a recidiva se explica por o arguido não ter sentido e interiorizado a admonição contra o crime veiculada pela anterior condenação transitada em julgado e que conduz à falência desta no que respeita ao desiderato dissuasor»(cf. entre outros, os Acórdãos de 28.02.07, Pº 9/07-3ª, 16.01.08, Pº 4638/07-3ª, de 26.03.08, Pºs 306/08-3ª e 4833/07-3ª, de que foi retirado o trecho transcrito, de 04.06.08, Pº 1668/08-3ª e de 04.12.08; Pº 3774/08-3ª).[7]

Sem colocar em causa tal posição unânime é evidente que, estando em causa uma reincidência homogénea, ou especifica, como é o caso, é lógico o funcionamento da prova por presunção em que a premissa maior é a condenação anterior e a premissa menor a prática de novo crime do mesmo tipo do anteriormente praticado. Se o arguido foi condenado anteriormente por crimes do mesmo tipo e agora volta a delinquir pela mesma prática, é liminar a inferência de que lhe foi indiferente o sinal transmitido, não o inibindo de renovar o seu propósito de delinquir

Na verdade, se o que se pretende são provas que permitam fundamentar a convicção de que a condenação anterior não teve qualquer relevância na determinação posterior do arguido, então é perfeitamente legitimo o apelo a uma regra de experiência comum que nos diz que a condenação anterior não produziu qualquer inflexão na opção pela prática de crimes do mesmo tipo. Se em relação a uma criminalidade heterogénea ainda se pode afirmar a possibilidade de uma descontinuidade, ou fragmentação do sinal consubstanciado na decisão anterior, pois que o contexto em que foi produzida pode ser substancialmente distinto, provocando a falência das premissas para o funcionamento da presunção, não se vislumbra onde é que a mesma afirmação se possa produzir perante crimes do mesmo tipo. .[8]

Aliás, em face de uma atuação duplicada na prática do mesmo tipo de crime por agente empenhado numa criminalidade homogénea, que outros factos se podem invocar em vista da afirmação de uma conexão entre os crimes praticados que não a prática dos mesmos crimes?

A afirmação contida na decisão de primeira instância de que “Ora, considerados os factos aludidos e atenta a igual natureza dos referidos crimes praticados pelo arguido (ambos crimes de tráfico), e a semelhança dos factos praticados (ambos situações de transporte marítimo de droga) – reincidência homótropa - afigura-se-nos que este é de censurar por a condenação anterior não lhe ter servido de suficiente advertência contra o crime, denotando a conduta do arguido uma indiferença perante o bem jurídico protegido, pelo que está desde logo verificado o requisito material exigido pela lei para a ocorrência de reincidência. Destarte verifica-se que estão preenchidos todos os pressupostos da punição como reincidente do arguido”, constitui fundamento bastante para o funcionamento da agravante da reincidência.

Assumida a existência da reincidência como qualificativa da pena a aplicar ao arguido importa, agora, considerar a medida concreta da pena aplicada. No que a tal respeita, refere a decisão recorrida:

“Estabelece o artigo 76.º, nº 1, do Código Penal que em caso de reincidência o limite mínimo da pena aplicável ao crime é elevado de um terço e o limite máximo permanece inalterado, o que significa que no caso concreto a moldura penal abstrata da reincidência é de 5 anos e 4 meses a 12 anos de prisão para o crime de tráfico de tráfico de estupefacientes.

Considerando todos os fatores já anteriormente referidos e que relevam para a determinação da medida concreta da pena a aplicar ao arguido e ainda a agravação da sua culpa resultante de se tratar de arguido reincidente, temos como adequado aplicar-lhe a pena concreta de 6 (seis) anos de prisão.”

Contrapõe o arguido com a importância da confissão que efetuou. Admitindo a relevância da confissão operada importa, porém, considerar a densidade da ilicitude, expressa numa atividade com o objetivo de proceder ao tráfico de droga em quantidade elevada - 43 fardos e 4 placas de cannabis, com o peso global de 1.403.182,83 e de 386,658 gramas, respetivamente (peso líquido).

Efetivamente, não se ignora o propósito afirmado pelo legislador de instrumentalizar a pena como forma de fazer o arguido readquirir as suas competências de cidadania, procurando a sua reinserção. Todavia, o papel da pena no contributo na reeducação para o cumprimento da lei não é uma categoria autónoma que paire desligada das circunstâncias relativas aos factos e ao agente (artigo 71º do CP), pois que são estas que identificam os fatores que determinam a medida da pena.

Significa o exposto que o apelo aos propósitos de prevenção geral e especial, são condicionados pelas concretas circunstâncias da culpa e, no caso vertente, estas revelam-se com um lastro denso.

O arguido praticou tal atividade de forma consciente do seu significado, em termos de violação da lei, queria tal resultado como forma de obter um rendimento que sabia ilícito, reincidindo na sua conduta ilícita.

Como bem refere o Senhor Procurador Geral Adjunto no STJ a única critica “que se poderia assacar ao douto acórdão recorrido seria, porventura, o da excessiva benevolência”. relativamente à pena fixada “não fora a relevância dada à sua confissão”.

Não vislumbramos, portanto, motivo para alterar a decisão recorrida que, assim, ponderou todas as circunstâncias, designadamente as invocadas pelo recorrente.


III. Decisão

Termos em que acordam na 3.ª Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça em julgar improcedente o recurso, confirmando-se o acórdão recorrido.

Custas pelo recorrente, que se fixam em 6 UC (artigos 513º nº 1 e 514º nº 1 do CPP e 8º nº 9 e Tabela III RCP).


Lisboa, 19.01.2022


Maria Helena Fazenda (relatora)

José Luís Lopes da Mota (Juiz Conselheiro Adjunto)

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[1] https://dre.pt/dre/detalhe/acordao/7-1995-645282
[2]Acórdão STJ de 29 de fevereiro de 2012, Processo nº 999/10.9TALRS.S1 (relator Santos Cabral)
[3]Direito Penal Português, As Consequências Jurídicas do Crime, pág. 270
[4] Processo nº 349/13.2JAFAR
[5] ob. cit., 268
[6] Razão pela qual, no contexto da reincidência em avaliação, não é referido o caso condenação do recorrente por sentença de 27 de março de 2019, transitada em julgado a 6 de maio de 2019, proferida no âmbito do processo sumário n.º 50/19…, do Tribunal Judicial de …, Juízo Local Criminal, Juiz …, pela prática em 20 de março de 2019, de um crime de condução em estado de embriaguez, previsto e punido pelo artigo 292.º, n.º 1 do Código Penal, na pena de 60 dias de multa à taxa diária de € 7,00 e na pena acessória de proibição de conduzir pelo período de 3 meses; as penas foram declaradas extintas, pelo cumprimento, a 10 de junho de 2019 e 15 de agosto de 2019, respetivamente.
[7] Cf. igualmente acórdão do STJ no Processo nº 999/10.9TALRS.S1, relator Santos Cabral.
[8] Mesmo acórdão do STJ, no Processo nº 999/10.9TALRS.S1, relator Santos Cabral.