Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
388/15.9GBABF.S1
Nº Convencional: 3ª SECÇÃO
Relator: LOPES DA MOTA
Descritores: ÚNICA INSTÂNCIA
FALTA DE FUNDAMENTAÇÃO
OMISSÃO DE PRONÚNCIA
DESOBEDIÊNCIA
Data do Acordão: 01/24/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: NEGADO PROVIMENTO
Área Temática:
DIREITO PROCESSUAL PENAL – ACTOS PROCESSUAIS / FORMA DOS ACTOS E DOCUMENTAÇÃO – JULGAMENTO / SENTENÇA.
DIREITO PENAL – LEI CRIMINAL / APLICAÇÃO NO TEMPO – CRIMES EM ESPECIAL / CRIMES CONTRA O ESTADO / CRIMES CONTRA A AUTORIDADE PÚBLICA / RESISTÊNCIA E DESOBEDIÊNCIA À AUTORIDADE PÚBLICA.
Doutrina:
-Anabela Miranda Rodrigues, A Determinação da Medida da Pena Privativa da Liberdade, Os critérios da culpa e da prevenção, Coimbra Editora, 2014;
-Carlos Gouveia, Pragmática, in Introdução à Linguística Geral e Portuguesa, Caminho, Colecção Universitária, 2005, p. 394-395;
-Crimes contra a Autoridade Pública, Jornadas de Direito Criminal, Vol. II, 1995, p. 423, 433-435;
-Cristina Líbano Monteiro, Comentário Conimbricense do Código Penal, §4 dos comentários ao artigo 348.º, Coimbra Editora, 2001 cit. p. 429, §15;
-Figueiredo Dias, As Consequências Jurídicas do Crime, Coimbra Editora, 2011, p. 239;
-Francisco Borges, O Crime de Desobediência à Luz da Constituição, Almedina, 2011, p. 51-53;
-Freitas do Amaral, Curso de Direito Administrativo, Vol. II, Almedina, 2003, p. 254;
-Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa anotada, anotações I e II ao artigo 205.º, Vol. II, 4.ª Edição;
-Isabel Casanova, A força ilocutória dos actos directivos, p. 430-433;
-Jorge Miranda e Rui Medeiros, Constituição Portuguesa anotada, Tomo III, 2007, anotações ao artigo 205.º;
-Maria João Antunes, Consequências Jurídicas do Crime, Coimbra Editora, 2013, p. 47.
Legislação Nacional:
CÓDIGO DE PROCESSO PENAL (CPP): - ARTIGOS 97.º, N.º 5, 368.º, 369.º, 374.º E 375.º.
CÓDIGO PENAL (CP): - ARTIGOS 2.º, N.º 3, 152.º, N.º 3 E 348.º, N.º 1, ALÍNEAS A) E B).
CÓDIGO DA ESTRADA (CEST): - ARTIGO 152.º, N.ºS 1, ALÍNEA A) E 3.
CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA PORTUGUESA (CRP): - ARTIGO 205.º, N.º 1.
ESTATUTO DOS MAGISTRADOS JUDICIAIS, APROVADO PELA LEI N.º 21/85, DE 30 DE JULHO.
Referências Internacionais:
CONVENÇÃO EUROPEIA DOS DIREITOS DO HOMEM E DAS LIBERDADES FUNDAMENTAIS: - ARTIGOS 6.º E 152.º, N.º 1, ALÍNEA A).
Jurisprudência Nacional:
ACÓRDÃOS DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:
- DE 16-03-2005, PROCESSO N.º 5P662;
- DE 15-10-2008, PROCESSO N.º 08P2864, IN WWW.DGSI.PT;
- DE 15-12-2011, PROCESSO N.º 17/09.0TELSB.L1.S1;
-DE 26-03-2014, PROCESSO N.º 15/10.0JAGRD.E2.S1, IN WWW.DGSI.PT;
- DE 09-11-2016, PROCESSO N.º 235/14.6JELSB.L1.S1, IN WWW.DGSI.PT.

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ACÓRDÃO DO TRIBUNAL CONSTITUCIONAL:

- DE 23-02-2007, IN DR 2.ª SÉRIE DE 23.02.2007.
Jurisprudência Internacional:
TRIBUNAL EUROPEU DOS DIREITOS HUMANOS (TEDH):

- DE 09-07-2007, CASO TATISHVILI C. RÚSSIA, N.º 1509/02.
Sumário :

I - A necessidade de fundamentação da sentença condenatória, nos termos dos artigos 374.º e 375.º do CPP, que concretizam requisitos específicos relativamente ao regime geral estabelecido no artigo 97.º, n.º 5, do CPP, decorre directamente do art. 205.º, n.º 1, da CRP. A fundamentação das decisões dos tribunais, constituindo um princípio de boa administração da justiça num Estado de Direito, representa um dos aspectos do direito a um processo equitativo protegido pela Convenção Europeia dos Direitos Humanos.
II - O dever de fundamentação satisfaz-se com a exposição concisa, mas, tanto quanto possível, completa dos motivos de facto que fundamentam a convicção do tribunal, com indicação e exame crítico das provas que serviram para formar tal convicção, não sendo exigível uma indicação das provas que, com especificada referência a cada um dos factos, justificam que cada um deles seja considerado provado ou não provado.
III - A falta de fundamentação implica a inexistência dos fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão e só a falta absoluta de fundamentação determina a sua nulidade.
IV - A nulidade da sentença cominada por omissão de pronúncia diz respeito a questões que deva conhecer – que são as indicadas nos artigos 368.º e 369.º do CPP – e não a argumentos, motivos, razões que os sujeitos processuais invoquem em sustentação ou defesa das suas posições ou pontos de vista sobre aquelas questões, no exercício do contraditório estruturante do processo e legalmente garantido relativamente ao acto decisório constituído pela sentença.
V - O crime de desobediência, que se inclui na categoria dos “crimes de dever”, constitui um caso de lei penal aberta ou de lei penal em branco, que impõe particulares precauções na determinação do tipo incriminador perante as exigências decorrentes do princípio da legalidade em matéria penal.
VI - A concreta qualificação de um comportamento como crime de desobediência deve equacionar-se em três momentos: em primeiro lugar, pela verificação da subsunção a uma norma que preveja um ilícito próprio; em segundo lugar, pela verificação da subsunção a uma norma que concretamente comine a punição de um comportamento como desobediência, nos termos da alínea a) do n.º 1 do artigo 348.º; finalmente, pela subsunção à alínea b) do n.º 1 do mesmo preceito, que requer a cominação de desobediência pelo agente de autoridade.
VII - As situações previstas no CE, susceptíveis de constituir “desobediência” enquadram-se nas duas primeiras hipóteses – em geral, constituem ilícito de mera ordenação social (art. 2.º, n.º 3); no caso de recusa de sujeição aos procedimentos de detecção de estado de influenciado pelo álcool, constituem crime de desobediência, nos termos da alínea a) do n.º 1 do art. 348.º do CP, por o art. 152.º, n.º 3, cominar, no caso, a punição da desobediência (simples). Havendo disposição legal, não tem a autoridade que fazer a cominação da desobediência, estando, pois afastada a hipótese da alínea b) do n.º 1 do artigo 348.º do CP.
VIII - O crime de desobediência, que protege a função de autoridade pública, reconduz-se à violação de um dever de obediência a uma ordem ou mandado legítimos emanados de autoridades competentes e regularmente comunicados. De estrutura normativa, o tipo de crime tem como elementos objectivos: um comando da autoridade, sob a forma de ordem ou mandado, impondo uma determinada conduta, um dever de acção ou de omissão, nos termos concretamente definidos; a sua legalidade material e formal; a competência da autoridade que o emite; e a violação do dever emergente desse comando.
IX - A definição do tipo remete para conceitos exteriores ao direito penal, nomeadamente de direito administrativo; estando em causa uma intervenção policial de fiscalização de trânsito, que se inscreve neste âmbito, é esta a perspectiva que interessa.
X - O conceito de “ordem” envolve um comando de carácter pessoal e concreto, especialmente dirigido ao agente do crime, de natureza obrigatória para a pessoa a quem se dirige, que a vincula a uma acção ou omissão, a um facere ou non facere, consoante o sentido desse comando.
XI - O dever de submissão às provas estabelecidas para exame e detecção do estado de influenciado pelo álcool é um dever de conteúdo definido que resulta directamente do n.º 1, alínea a), do artigo 152.º do CE, o qual estabelece que os condutores devem submeter-se a essas provas, o que confere uma configuração própria à estrutura do tipo de crime de desobediência no que diz respeito ao elemento consistente na “ordem” a que se refere o artigo 348.º do CP.
XII - A natureza e conteúdo deste dever, que se impõe directamente a todos os condutores pelo facto de o serem, independentemente de uma concreta intervenção do agente de autoridade, introduzem um elemento de conformação e especialização na definição típica do crime no que diz respeito ao elemento “ordem” do tipo incriminador do art. 348.º do CP.
XIII - O dever de obediência, traduz-se, neste caso, no dever, do prévio conhecimento do condutor, de este se sujeitar aos procedimentos de fiscalização adequados e necessários para o efeito, bastando que o agente de autoridade, caso a caso, dê a conhecer o âmbito e finalidade da fiscalização, assim se materializando o “comando” exigido por lei como elemento do tipo incriminador.
XIV - A recusa a que se refere o n.º 3 do artigo 152.º do CP abrange todo e qualquer comportamento pelo qual, por acção ou omissão, um condutor se negue a cumprir o dever de se submeter a tais provas e que seja apto e idóneo a eximir-se aos necessários e apropriados procedimentos de fiscalização a que se encontra obrigado com vista à realização dessas mesmas provas no âmbito da operação de fiscalização.
Decisão Texto Integral:

Acordam na Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça:

I.  Relatório

1. AA, juiz de direito, identificado nos autos, foi condenado pelo tribunal colectivo da Relação de Évora, na pena de cem dias de multa, à taxa diária de 15 (quinze) euros, pela prática de um crime de desobediência p. e p. pelas disposições combinadas dos artigos 348.º, n.º 1, al. a), do Código Penal, e 152.º, n.ºs 1, al. a), e 3, do Código da Estrada.

Do acórdão condenatório vêm interpostos recursos pelo arguido e pelo Ministério Público, o primeiro arguindo nulidades e vícios da decisão e pugnando pela absolvição ou, subsidiariamente, pela redução dos dias de multa, e o segundo pelo agravamento da pena de multa no que diz respeito ao respectivo quantitativo diário.

2. Da motivação do recurso que apresenta, extrai o arguido, agora recorrente, as seguintes conclusões (transcrição):

«1 - O acórdão recorrido padece de nulidade por insuficiência de fundamentação, nos termos do disposto no art.º 379º/1-a), com referência ao art.º 374º/2, do CPP, porquanto:

2 -   A fundamentação feita da aquisição probatória é absolutamente omissa quanto ao conteúdo de cada uma das provas produzidas, que foram efectivamente consideradas para efeitos de fixação do provado quando aos factos provados contidos nos pontos 5 a 11 do provado.

3 -   Ora, desconhecendo-se quais foram as efectivas provas produzidas que foram determinantes para a fixação de cada facto dos supra referidos factos provados, não se pode aquilatar da adequação da apreciação crítica de prova feita, nem das eventuais discordâncias de apreciação, nem de qual a prova que, em sinal contrário da utilizada, possa ser determinante de uma alteração do provado.

4 -   O acórdão recorrido padece de seis nulidades por omissão de pronúncia, nos termos do art.º 379º/1-c), do CPP, porquanto:

5 -   O recorrente contestou, invocando cinco questões que eram fundamento da sua absolvição e sobre nenhuma delas o Tribunal recorrido se pronunciou.

6 -   Tais questões são, a saber, as enumeradas no ponto 2 do corpo da motivação.

7 -   De igual modo, verifica-se nulidade por omissão de pronúncia, uma vez que o acórdão recorrido, dando como assente em sede de apreciação de mérito que o arguido só se ausentou do local decorridos cerca de dez/quinze minutos de ter sido informado da submissão ao teste de pesquisa de álcool no sangue, não fez constar tal facto do provado, sendo ele relevante para a apreciação de mérito da causa.

8 -   O suprimento de tal omissão passa pelo aditamento ao provado do facto supra referido, de que «o arguido aguardou pelo menos durante dez/quinze minutos pelo regresso dos agentes da GNR» o que pode ser feito pela alteração da redacção do ponto 9 do provado, passando a conter-se aí que «o arguido aguardou pelo menos durante dez/quinze minutos pelo regresso dos agentes da GNR, após o que colocou o seu veículo em marcha, ausentando-se do local».

9 -   Ao abrigo do disposto no art.º 412º/3 e 4 do CPP, o recorrente pede uma reapreciação da prova, quanto ao período de tempo durante o qual foi informado de que era necessário aguardar (ponto 8 do provado) e impugna parte do conteúdo do ponto 10.º do provado, que deverá passar para o não provado, nos termos infra referidos.

10 - Subsidiariamente, pretende igualmente uma reapreciação relativa ao período de tempo durante o qual aguardou (ponto 9 do provado).

11 - Impunha-se ao Tribunal a quo a fixação dos períodos de tempo resultantes da prova produzida, porquanto são um menos e uma especificação relativamente ao considerado não provado em J) e são determinantes para a subsunção jurídica a efectuar.

12 - A prova que impõe tais decisões contém-se nas declarações da testemunha BB, que disse, em julgamento, que tinha dito ao recorrente «que ia ser submetido ao teste do álcool» (ao minuto 4:00 da gravação do seu depoimento) e que «tinha que aguardar 10 minutos» (ao minuto 4:16 do seu depoimento) sendo que «o senhor aguardou cerca de 10 minutos, talvez a patrulha se tivesse demorado um bocadinho mais do que os 10 minutos que inicialmente informei o senhor», «o senhor ainda aguardou algum tempo no local» (minuto 6:35 a 7:10).

13 - Em face do cumprimento da ordem não se pode entender que houve abandono do local e muito menos que esse abandono tivesse visado a não submissão ao teste de alcoolemia, motivo pelo qual há que levar ao não provado a parte correspondente do conteúdo do ponto 10 do provado, designadamente que o arguido tenha abandonado o local, que se tenha querido eximir ao teste de alcoolémia, que estivesse convicto que o mesmo ira dar uma TAS superior a 1,2 g/l, e que o arguido tivesse consciência de que o referido abandono integraria a prática de qualquer crime, em cuja conduta persistiu.

14 - Pelo que a matéria de facto provada nos pontos 8 e 10 deve conter-se nos seguintes termos:

«8- O militar BB informou o arguido de que teria que aguardar no local durante 10 minutos pela chegada dos seus colegas, a fim de se proceder ao teste de alcoolémia, após o que deslocou para junto do denunciante CC para se inteirar do sucedido entre aquele e o arguido»;

«10- O arguido agiu livre, voluntaria e conscientemente».

15 - E deve ser adicionada ao não provado que:

«Não se provou que:

- ao abandonar o local, o arguido tenha pretendido eximir-se ao teste de alcoolémia;

- o arguido estivesse convicto de que o mesmo iria dar uma TAS superior a 1,2 g/l;

- o arguido tivesse perfeita consciência de que o referido abandono do local integraria a prática de um crime e que, mesmo assim, tivesse persistido na conduta referida».

16 - Subsidiariamente, para o caso da não procedência da reparação à nulidade de omissão de pronúncia referente ao ponto 9 do provado, deve ser ainda considerado provado que «9 – Não menos de 10 minutos depois da informação referida em 8 o arguido colocou o seu veículo em marcha ausentando-se do local».

17 - A conduta descrita no provado não se subsume ao tipo de crime pelo qual o recorrente foi condenado pelas seguintes ordens de razões:

Primeira:

18 - A ocorrência a que os autos se reportam passa-se em dois tempos perfeitamente distintos: numa primeira sequência temporal, o recorrente foi mandado parar e foi informado pelo agente BB, da GNR, de que iria ser submetido ao teste de alcoolemia, pelo que teria que aguardar pela chegada da patrulha que traria o aparelho para efectuar o teste e, numa segunda sequência temporal, que se previa, uma vez chegada o aparelho, o arguido iria ser submetido ao referido teste.

19 - A esses dois momentos teriam que corresponder, necessariamente, duas ordens distintas: uma de esperar até à chegada do aparelho, e outra de sopro no referido aparelho, ou seja, de submissão à prova, nos termos do art.º 152º/3, do C. da Estrada.

20 - Tal submissão implicaria, necessariamente, uma ordem de efectivação do teste, com a comunicação das instruções de realização.

21 - Ora, conforme do provado consta, jamais foi dada qualquer ordem de sopro (ou seja, de submissão ao teste) ao recorrente, sendo que só perante a desobediência a tal sujeição o crime imputado se poderia consumar. 

Segunda:

22 - Uma informação não é uma ordem e muito menos uma ordem com relevância penal.

23 - O conceito de ordem envolve um comando de carácter de natureza obrigatória para a pessoa a quem se dirige, que a vincula a uma acção ou omissão enquanto uma informação não tem a carga imperativa do “faz isto” ou do “não faças aquilo”;

24 - Sendo a emissão de uma ordem a condição sine qua non da prática do crime de desobediência, resulta do exposto que, em face dos factos provados, tal crime não poderia ter sido cometido pelo recorrente porque a ele nunca lhe deram uma ordem: fosse ela de espera fosse ela de sujeição à detecção de álcool no sangue.

Terceira:

25 - Ainda que, por absurdo, se admitisse que se entendesse a informação prestada como uma ordem de acção, sucede que, em face do provado, qualquer que ele seja, isto é, procedendo ou não o pedido de alteração da redacção quanto aos pontos 8, 9 e 10 do provado, se mostra que o recorrente não cometeu qualquer desobediência a essa pressuposta ordem.

26 - Procedendo a versão emergente da reparação da nulidade por omissão de pronúncia ou do pedido de reapreciação de prova, quanto aos pontos 8 e 9 do provado, verifica-se que o recorrente esperou, no local, pelo menos pelo período de tempo que lhe foi fixado, ou seja, cumpriu escrupulosamente a pressuposta “ordem” emitida pelo agente da GNR.

Quarta:

27 - Não procedendo o pedido de reapreciação, temos que a pressuposta “ordem” se revela ilegítima, porquanto não foi estipulado um limite temporal à conduta, de tal forma que se legitime a ordem pelo seu completo entendimento pelo destinatário e pela sua exequibilidade.

Quinta:

28 - Não há disposição legal que comine a desobediência a uma ordem de espera como crime, nem essa pressuposta ordem foi acompanhada de qualquer cominação, elemento essencial à infracção.

Sexta:

29 - Tão pouco, aliás, o arguido foi acusado pela prática do crime p. e p. pela alínea b) do nº1 do art.º 348º/CP.

30 - Em face do exposto impõe-se a absolvição do recorrente, sob pena de violação do disposto nos art.ºs 348.º, n.º 1, al. a) do Código Penal e 152.º, n.º 1, al. a) e 3, do Código da Estrada.

31 - Caso assim se não entenda, ocorre que as circunstâncias elencadas no acórdão recorrido como agravantes gerais, decorrentes de «o modo de execução do facto, em público e com o descrito alarme, o que depõe contra o arguido» e a «considerável intensidade do dolo, dado o lapso de tempo em que o arguido ainda se manteve no local» não se verificam o que determina uma diminuição da culpa considerada, que tem que se reflectir na diminuição da pena aplicada que nunca deverá exceder os cinquenta dias de multa, sob pena de violação do disposto nos artigos 40.º/2 e 71.º/1, do CP.

32 - Ao ponderar as circunstâncias inerentes à execução da acção como circunstâncias negativas da acção, agravantes da culpabilidade do agente, o acórdão recorrido está a violar o princípio penal do ne bis in idem, o que é inconstitucional (art.º 29º/5, da Constituição da República Portuguesa).

33 - E, a consideração como agravante do «lapso de tempo em que o arguido ainda se manteve no local» redunda numa contradição insuperável, inerente aos fundamentos do acórdão, na medida em que se entendeu que a desobediência tinha consistido na não espera, não se pode entender que agrava a culpa a espera, que afinal implica o cumprimento da pressuposta “ordem”.

34 - Tal contradição integra um vício, nos termos do art.º 410.º/2-b), do CPP, que deve ser reparado com a retirada, do acórdão, da frase supra transcrita.

Pedido:

Nestes termos e nos demais de direito que V. Exas. doutamente suprirão, deve o presente recurso ser julgado procedente e, em consequência:

- Ser declarada a nulidade do acórdão por insuficiência de fundamentação, com as consequências legais a que respeita o art.º 379º/2 e 3, do CPP;

- Serem declaradas as nulidades do acórdão por omissão de pronúncia e reparadas as mesmas nos termos supra referidos, pelo conhecimento das questões e alteração da redacção do ponto 9 do provado passando a conter-se tal ponto na seguinte redacção «o arguido aguardou, pelo menos, durante dez/quinze minutos pelo regresso dos agentes da GNR, após o que colocou o seu veículo em marcha, ausentando-se do local»;

- Ser provido o pedido de reapreciação da matéria de facto e alterado o teor dos pontos 8 e 10 do provado e, subsidiariamente, o do ponto 9 do provado, nos termos supra referidos;

- Ser absolvido o recorrente, do crime pelo qual foi acusado e condenado;

- Subsidiariamente, caso, assim se não entenda, ser a sua pena reduzida para medida não superior a cinquenta dias de multa».

3. Por sua vez, a motivação do recurso do Ministério Público apresenta as seguintes conclusões:

«1.ª - O Tribunal a quo condenou o arguido AA na pena de 100 dias de multa à taxa diária de € 15,00.

2.ª - Foi dado como provado exercer o arguido a profissão de Juiz de direito.

3.ª - Sendo o montante mínimo legal do quantitativo diário da pena de multa o de € 5,00, será de aplicar uma taxa diária não inferior a € 25,00, atendendo ao estatuto socioprofissional do arguido.

4.ª - Por sua vez, o Tribunal a quo deveria ter determinado a remessa de boletins ao registo criminal o que não fez, certamente por lapso.

5.ª - Violou, deste modo, o estatuído pelos 374.°, n.º 3, alínea d), do Código de Processo Penal.

6.ª - Revogando-se a douta decisão e substituindo-se por outra que condene o arguido na pena de 100 dias de multa à taxa diária de € 25,00 e determinando a remessa de boletins ao registo criminal se fará JUSTIÇA».

4. Respondeu o Ministério Público no recurso interposto pelo arguido, concluindo:

«1.ª – O arguido recorre da condenação de uma pena de 100 dias de multa à taxa diária de € 15,00.

2.ª – Considera existir nulidade do acórdão por falta de fundamentação e omissão de pronúncia, inaptidão da matéria de facto provada para o preenchimento do crime por que foi condenado, que a matéria de facto relativa aos pontos 8 a 10 deverá ser reapreciada, além de que a pena concretamente aplicada se mostra excessiva.

3.ª – Pese embora a fundamentação expendida pelo Tribunal a quo possa ser considerada como não muito exaustiva, afigura-se-nos ser a mesma suficientemente elucidativa do modo como o Tribunal se convenceu dos factos que considerou provados.

4.ª – Igualmente não assiste razão ao arguido quando este pretende ver na decisão recorrida uma omissão de pronúncia.

5.ª – De facto, não faz qualquer sentido considerar-se que a informação prestada pelo militar da GNR de que o arguido teria que aguardar pela chegada do aparelho de teste de alcoolémia não se traduzisse numa ordem.

 6.ª – Também não se compreende, como pretende o arguido, não ter cometido o crime de desobediência uma vez que não lhe foi dada qualquer ordem de sopro no aparelho de despistagem, sendo que o mesmo só poderia ocorrer após a receção do aparelho conforme, aliás, lhe tinha sido dado conhecimento.

7.ª – Por sua vez, para se cometer o crime de desobediência por violação do comando contido no artigo 152º do Código da Estrada não é necessária que a ordem emanada de autoridade competente seja acompanhada da respetiva cominação legal.

8.ª – A pena de 100 dias de multa aplicada ao arguido mostra-se adequada face ao circunstancialismo provado e referido no douto acórdão recorrido, designadamente pelo facto de aquele já ter sido condenado por idêntico crime numa pena de 70 dias de multa.

9.ª - Pelo exposto, negando-se provimento ao recurso se fará JUSTIÇA».

5. Recebidos, foram os autos com vista ao Ministério Público, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 416.º, n.º 1, do CPP, tendo o Exmo. Procurador-Geral Adjunto emitido parecer nos seguintes termos (transcrição parcial, na parte directamente relevante):

«1. Recurso do arguido

Começando pela impugnação da matéria de facto, nos termos do artigo 412.º, n.º 3 e 4, do CPP, deve-se salientar que o recorrente parece confundir impugnação da matéria de facto nos termos do artigo 412.º, n.º s 3 e 4, do CPP, com a apreciação de vícios da própria decisão.

Na verdade, sob a epígrafe Pedido de reapreciação da prova… relativos aos pontos 8 e 10 do provado e, subsidiariamente, de factos relativos ao ponto 9 do provado, considera que foi produzida prova «de que o recorrente foi informado para aguardar 10 minutos pela patrulha com o aparelho de pesquisa de álcool e que ele aguardou não menos do que esses 10 minutos pela chegada da patrulha e só então se foi embora do local, sendo que a patrulha se demorou mais do que o tempo contido na informação ao arguido.

Tal prova foi produzida pelo próprio agente da GNR que abordou o recorrente, a testemunha BB»

Acrescenta que «Tal prova não foi abalada por mais prova alguma…»

Conclui que «Tais factos representam uma especificação, por via da quantificação, dos minutos a que se reportam os pontos 8 e 9 do provado e a alínea J) do não provado, e são relevantes para a decisão de mérito, pelo que o Tribunal tinha, duplamente, obrigação de se pronunciar sobre eles, fazendo-os constar do provado…

Assim sendo, não se pode entender que houve abandono do local e muito menos que esse abandono visasse a não submissão ao teste de alcoolemia.

Tal determina que os factos contidos no ponto 10 do provado se considerem não provados, a saber: que o arguido tenha abandonado o local, que se tenha querido eximir ao teste de alcoolémia».

Em primeiro lugar deve-se referir que a quantificação do tempo que foi anunciado ao arguido para a chegada do aparelho não assume a relevância que lhe pretende conferir.

Inversamente ao apresentado na contestação (cerca de meia hora), o tribunal, embora sem o fazer exarar na matéria de facto dada como provada, atendeu a um período de «cerca de dez/quinze minutos», como se lê a fls. 288, na análise do Aspeto jurídico da causa.

Trata-se, pois, de período em tudo similar ao que o arguido pretende ver ser especificado no ponto 9 da matéria de facto provada. E, como resulta da decisão condenatória, não se repercutiu no sentido da mesma.

E assim sendo, esta especificação nada de novo, nem de útil, traz para o mérito da causa, dado ter sido considerada pelo tribunal, tornando, consequentemente, e de igual modo, inútil a pretendida renovação da prova (que visa a correcção de erros de julgamento).

Acresce que aquilo que está em causa nos 10 minutos de espera nada tem a ver com a recusa constante do n.º 2 do artigo 152 do Código da Estrada.

A ordem não é de, simplesmente, esperar por 10 ou 15 minutos (que até seria abusiva se não fosse anunciado o seu propósito).

Antes traduz-se no anúncio de que deveria aguardar no local, uma vez que iria ser submetido ao teste de alcoolémia, e da necessidade de aguardar por um pequeno lapso de tempo, indispensável para a chegada ao local do aparelho de que os elementos da GNR não dispunham.

O tempo dessa chegada é que se traduziu na informação, mas já não na ordem de aguardar no local, para que o teste fosse concretizado.

Refira-se que, nem então, nem posteriormente, o arguido argumentou, ou manifestou qualquer oposição ao tempo anunciado de espera, ou à, na sua perspectiva, delonga da espera.

Pelo contrário, sem mais, ausentou-se intencionalmente do local, inviabilizando o teste de alcoolémia.

Daí que, nos termos da decisão recorrida, o facto constante do n.º 9, ainda que aditado da pretendida e acolhida (pelo tribunal), em sede do Aspeto jurídico da causa, especificação do tempo de espera, não colida com os factos constantes dos pontos 8 e 10, não se detectando qualquer vício a que alude o n.º 2 do artigo 410.º, do CPP.

No que respeita às demais nulidades por omissão de pronúncia torna-se evidente que as seis questões constantes da contestação, enunciadas a fls. 306, foram apreciadas.

Decidir-se, fundadamente, como ocorreu, que o arguido «ao abandonar o local pretendeu eximir-se ao teste de alcoolémia», é, no inverso, emitir pronúncia sobre as questões suscitadas na contestação que pretendia fazer valer a tese de que o arguido apenas foi informado, sem mais, de que deveria aguardar ali cerca de 10 minutos, e esgotado tal tempo, abalou…

Assente a matéria de facto, torna-se evidente que a matéria suscitada na contestação caiu «por terra», como se expressou no acórdão recorrido.

No que respeita nulidade por falta de fundamentação, nada se nos oferece acrescentar à resposta do Ex. mo Procurador-Geral Adjunto a fls. 336 a 337.

2. Recurso do Ministério Público

Entendemos que o recurso merece provimento nos dois segmentos.

2.1 No que respeita à omissão de remessa do boletim, é óbvio o lapso do tribunal.

Com efeito, segundo o disposto no artigo 374.º, n.º 3, alínea d), a sentença tem como requisito a ordem de remessa de boletim ao registo criminal.

Os casos previstos para a decisão de não transcrição constam do artigo 13.º, da Lei n.º 37/2015, de 05 de Maio (Lei da Identificação Criminal), na versão actualizada, da Retificação n.º 28/2015, de 15/06, que dispõe:

«1 - Sem prejuízo do disposto na Lei n.º 113/2009, de 17 de setembro, com respeito aos crimes previstos no artigo 152.º, no artigo 152.º-A e no capítulo V do título I do livro II do Código Penal, os tribunais que condenem pessoa singular em pena de prisão até 1 ano ou em pena não privativa da liberdade podem determinar na sentença ou em despacho posterior, se o arguido não tiver sofrido condenação anterior por crime da mesma natureza e sempre que das circunstâncias que acompanharam o crime não se puder induzir perigo de prática de novos crimes, a não transcrição da respetiva sentença nos certificados a que se referem os n.ºs 5 e 6 do artigo 10.º …».

Ora, para além de ser necessária a verificação dos correspondentes pressupostos de aplicação, indispensável seria, também, decisão que fundamentasse a ordem de não remessa do boletim.

No caso, não existe.

Pelo exposto, e uma vez que tal invalidade não foi reparada, deverá ser ordenada a aludida remessa.

2.2 Também no que respeita à taxa diária, cremos dever o recurso proceder.

Na verdade, o n.º 13 da matéria de facto provada não dá notícia de qualquer encargo especial do arguido, juiz de profissão, que lhe reduza substancialmente os seus rendimentos do trabalho.

E assim sendo, e posto que a pena de multa é uma sanção que deve representar um padecimento adequado a cumprir a finalidade das penas, a taxa de € 25,00, ainda no limite claramente inferior da moldura, é o proporcional e ajustado àquele propósito».

6. Notificado para responder, nos termos do artigo 417.º, n.º 2, do CPP, o arguido nada disse.

7. Colhidos os vistos e não tendo sido requerida audiência, o recurso é julgado em conferência – artigos 411.º, n.º 5, e 419.º, n.º 3, alínea c), do CPP.

Cumpre decidir.

II. Fundamentação

8. O âmbito do recurso delimita-se pelas conclusões da motivação do recorrente (artigo 412.º do CPP), sem prejuízo dos poderes de conhecimento oficioso do tribunal ad quem quanto a vícios da decisão recorrida e a nulidades não sanadas, a que se refere o artigo 410.º, n.º 2 e 3, do CPP (acórdão de fixação de jurisprudência n.º 7/95, DR-I, de 28.12.1995).

São as seguintes as questões colocadas pelos recorrentes à apreciação e decisão deste tribunal:

a) No recurso do arguido:

i.Nulidade do acórdão por insuficiência de fundamentação, nos termos do disposto no artigo 379.º, n.º 1, alínea a), com referência ao n.º 2 do artigo 374.º do CPP;
ii.Nulidades do acórdão por omissão de pronúncia, nos termos do disposto no artigo 379.º, n.º 1, alínea c), do CPP, e seu suprimento mediante alteração do ponto 9 da matéria de facto provada;
iii.Reapreciação e modificação da matéria de facto provada descrita nos pontos 8 e 10 e, subsidiariamente, no ponto 9;
iv.Não preenchimento do tipo de ilícito do crime pelo qual foi acusado e condenado;
v.Subsidiariamente, violação do princípio ne bis in idem, vício de contradição insanável da fundamentação do acórdão e redução da pena para medida não superior a cinquenta dias de multa.

b) No recurso do Ministério Público:

i.Agravamento para, pelo menos, 25 euros, da taxa diária da multa aplicada;
ii.Omissão da determinação de remessa de boletim ao registo criminal.

Sendo o tribunal da Relação o competente para o julgamento do arguido, por este ser juiz de direito, nos termos das alíneas b) e c) do artigo 73.º da Lei n.º 62/2013, de 26 de Agosto, e da alínea a) do n.º 3 do artigo 12.º do CPP, pode este tribunal conhecer do recurso em matéria de facto, incluindo dos vícios a que se refere o artigo 410.º, n.º 2, do CPP invocados como fundamento do recurso, por excepção ao disposto no artigo 434.º do CPP, que limita o recurso para o Supremo Tribunal de Justiça ao reexame da matéria de direito, conferindo-se, assim, efectividade à garantia do direito de defesa consagrada no n.º 1 do artigo 32.º da Constituição no que diz respeito ao duplo grau de jurisdição em matéria de facto.

Factos provados

9. O tribunal a quo julgou provados os seguintes factos:

«1 - No dia 8 de Março de 2015, cerca das 23h 50m, o arguido encontrava-se no interior do estabelecimento denominado ...., em Albufeira, e como estava a provocar alguns distúrbios com outros clientes, o empregado CC chamou-lhe a atenção para que se abstivesse de continuar com a sua conduta.

2 - De seguida abandonou o referido bar e deslocou-se para o seu veículo automóvel que se encontrava estacionado na referida artéria.

3 - Colocado em marcha o veículo e tendo percorrido alguns metros, foi mandado parar pelos militares da GNR BB e DD que exerciam funções no Subdestacamento Territorial de Albufeira e se encontravam no exercício das suas funções, devidamente uniformizados, os quais tinham sido alertados pelo ofendido CC acerca do comportamento do arguido referido anteriormente.

4 - Inicialmente o arguido não acatou a ordem dada pelos militares da GNR, efetuada com recurso a sinais manuais e lanterna de cone luminoso, percorrendo alguns metros, mas acabou por fazer marcha atrás imobilizando o veículo após ter subido o passeio, do lado esquerdo da rua, atento o seu sentido de marcha.

5 - O militar BB informou-o, através da janela da porta do condutor da viatura, de que estava a ser abordado a fim de ser submetido no âmbito de fiscalização rodoviária e porque tinha sido denunciado pela prática de uma agressão física.

6 - Foi-lhe pedida a documentação tendo o arguido entregue a carta de condução, o documento único automóvel e o certificado de seguro e sido informado de que iria ser sujeito aos testes de despistagem de álcool, e após o militar BB lhe ter perguntado de tinha ingerido bebidas alcoólicas na última hora o arguido respondeu-lhe "bebi e bebi bem”.

7 - Em virtude de os militares não serem detentores do aparelho de despistagem de álcool, por aqueles foi solicitado aos colegas que patrulhavam num veículo automóvel que se deslocassem ao local munidos do referido aparelho.

8 - O militar BB informou o arguido de que teria que aguardar no local pela chegada dos seus colegas, a fim de se proceder ao teste de alcoolémia, após o que deslocou para junto do denunciante CC para se inteirar do sucedido entre aquele e o arguido.

9 - Alguns minutos depois o arguido colocou o seu veículo em marcha ausentando-se do local.

10 – O arguido agiu livre, voluntaria e conscientemente e ao abandonar o local pretendeu eximir-se ao teste de alcoolémia, pois estava convicto de que o mesmo iria dar uma TAS superior a 1,2 g/l, tendo perfeita consciência de que o referido abandono do local integraria a prática de um crime e, mesmo assim, persistiu na conduta referida.

11 - Não foi transmitida ao arguido qualquer cominação para a eventual desobediência à espera que lhe havia sido pedida.

11- O arguido tem 58 anos de idade.

12 - Tem a profissão de Juiz de Direito.

13 - Embora divorciado, vive com a mulher, em casa desta, e dois filhos de 17 e 22 anos de idade, ambos estudantes, contribuindo para as despesas familiares num montante não concretamente apurado.

14 – Por acórdão desta Relação, no processo nº 52/08.TREVR, cujo recurso foi rejeitado pelo Supremo Tribunal de Justiça, foi condenado na pena de setenta dias de multa, à taxa diária de sete euros, totalizando a multa setecentos euros, pela prática de um crime de condução em estado de embriaguez, p. e p. pelo artigo 292º, nº 1, do Código Penal; nos termos do artigo 69º, nº 1, al. a) do mesmo diploma legal, foi ainda condenado na pena acessória de proibição de conduzir veículos motorizados pelo período de cinco meses».

E julgou não provado que:

«A - Nas circunstâncias referidas em 1 o arguido percorreu cerca de 50 metros.

B - O Ar. saiu do bar referido na acusação e manteve-se algum tempo no exterior, por se ter sentido mal disposto, com tonturas e taquicardias.

C - Depois, dirigiu-se ao seu automóvel, que se encontrava estacionado mais abaixo, a cerca de trinta metros do bar, na referida rua, para ir ao Centro de Saúde receber tratamento.

D - Esteve algum tempo sentado ao volante do seu automóvel, parado, e entretanto apercebeu-se da chegada de dois elementos da GNR, subindo a rua, no sentido Oura/Montechoro, do lado esquerdo relativamente ao lugar onde se encontrava e atento o sentido de trânsito.

E - Passado algum tempo, pôs a viatura em marcha, saiu do estacionamento e andou alguns metros, após o que se apercebeu, pelo retrovisor, de um elemento da GNR com algo luminoso na mão, junto dos carros que estavam estacionados do lado esquerdo da rua, e, como não vinha mais nenhum carro atrás de si, deduziu que era para si.

F - O agente que examinou os documentos, bem como a viatura, e dirigiu-se para junto do outro elemento da GNR, que se encontrava mais abaixo do local do estacionamento do veículo, a cerca de três metros, e daí falou para o Ar., que continuava sentado no lugar do condutor do veículo.

G - O Ar. não percebeu o que disse o elemento da GNR que o interpelou, porque havia muito barulho na rua, por causa dos sons das músicas que os inúmeros bares emitem para a rua, num volume ensurdecedor (está em causa a conhecida rua dos bares, na Oura, em Albufeira).

H - Depois disso, os elementos da GNR aprestaram-se para continuar a subir a rua, tendo, o elemento que havia interpelado o Ar., dirigindo-se junto da sua viatura, pelo lado do condutor, e dito ao Ar. que iam ali a um bar, por causa de uns desacatos, e que já voltavam, para ser submetido ao teste do álcool, ficando na posse dos documentos que o Ar. lhe havia entregue.

I - O agente da GNR não deu qualquer explicação para o motivo de não fazerem o teste do álcool, naquele momento.

J - Não obstante, o Ar. aguardou cerca de meia hora pelo regresso dos agentes da GNR.

L - Como os guardas da GNR não voltaram e o arguido continuava muito mal disposto, foi ao Centro de Saúde de Albufeira, para ser assistido.

M - Nunca tendo perspectivado que pudesse estar a desobedecer a qualquer comando emanado pelos elementos da GNR.

N - E muito menos a uma ordem de exame de pesquisa de álcool no sangue.

O – O arguido contribui com a quantia de €1750/2000 mensais para as despesas familiares.

P – Tem cerca de mil euros mensais de encargos fixos com o pagamento de créditos contraídos».

10. A decisão em matéria de facto mostra-se fundamentada nos seguintes termos:

«Análise da prova:

O Tribunal formou a sua convicção com base nas declarações do arguido, no que respeita à sua situação familiar, bem como nos documentos juntos aos autos, no que respeita à sua situação profissional.

Quanto ao mais, a versão que o mesmo apresentou, no sentido de que saíra do bar por se encontrar indisposto e pretender dirigir-se ao Centro de Saúde a fim de receber tratamento médico, ao revela-se inverosímil, por contrariada pela demais prova testemunhal, sendo que as demais testemunhas referem que o arguido, para além de revelar sinais de haver consumido álcool, aparentava um estado de saúde normal, nunca alegando qualquer indisposição.

Aliás, o próprio arguido faz referência às bebidas alcoólicas que consumiu no bar.

Foi considerado, igualmente, o depoimento da testemunha CC, empregado do aludido bar onde o arguido se encontrava, o qual relatou toda a situação de abordagem daquele arguido pelos elementos da GNR e do abandono do mesmo do local, sendo de salientar a referência a uma aparente alcoolização por parte do arguido, sem qualquer alusão a uma aparente indisposição física.

Este depoimento foi prestado de forma coerente e isenta, não demonstrando esta testemunha qualquer animosidade em relação à pessoa do arguido.

Foram considerados, também, os depoimentos das testemunhas DD e BB, estas os elementos da GNR que abordaram o arguido, os quais relataram toda a ocorrência, de forma clara, coerente, e revelando uma total isenção.

Ambos referem que não obstante os factos terem ocorrido numa rua de bares da Oura, esta habitualmente muito movimentada, naquela altura do ano ainda existia uma certa acalmia no local, sendo pouco o barulho, e daí perfeitamente audível a conversa que mantiveram com o arguido.

A testemunha BB foi clara ao referir que o arguido ouviu perfeitamente tudo o que lhe disse, já que se encontrava com a sua janela do veículo aberta, a fumar, calmo, embora aparentando estar alcoolizado. Mais referiu que quando comunicou ao arguido para não se ausentar do local a fim de ser submetido ao teste de alcoolemia estaria a cerca de meio metro do mesmo, tendo este ouvido o que lhe foi comunicado, tanto mais que naquele preciso local e àquela hora não existia qualquer barulho de fundo de relevo.

Ambas as testemunhas referem terem ouvido o arguido dizer a expressão “bebi e bebi bem”.

Foram também tomados em consideração os demais documentos constantes dos autos, se bem que não se concluiu do documento junto pelo arguido para o efeito, quais os créditos que se encontra a suportar mensalmente.

Foi ainda atendida a certidão do acórdão desta Relação, bem como do acórdão do STJ, a que se alude em 14.

Exame crítico da prova:

Estamos perante duas versões distintas dos acontecimentos.

A trazida aos autos pelo arguido, o qual alega ter estado num bar e ter bebido umas cervejas e outras bebidas, tendo saído daquele estabelecimento por se estar a sentir muito indisposto, pelo que entrou no seu carro e aguardou estar em condições para conduzir até ao Centro de Saúde, a fim de se tratar, pois que receava que a medicação que faz quando misturada com o álcool lhe pudesse acarretar problemas de saúde deveras graves.

Disse ainda que foi então que foi abordado pelos elementos da GNR mas que não ouvia o que os mesmos diziam devido ao muito barulho existente no local.

Considerou que já estava há muito tempo à espera e, por isso, abandonou o local a fim de se ir tratar.

Temos, por outro lado, a versão das testemunhas, as quais foram unânimes em afirmar o estado de aparente alcoolização em que o arguido se encontrava, sendo percetível para o mesmo tudo quanto lhe era dito, dada a proximidade, cerca de meio metro, aparentando o mesmo um estado de saúde normal e nunca tendo verbalizado qualquer queixa física.

Mais se concluiu, destes depoimentos, que não terão decorrido mais de dez/quinze minutos entre o momento em que o arguido foi abordado pelos elementos da GNR e aquele em que se ausentou definitivamente do local».

Quanto às arguidas nulidades do acórdão recorrido

11. Dispõe o n.º 2 do artigo 374.º (requisitos da sentença) do CPP que a sentença começa por um relatório, que contém as indicações tendentes à identificação do arguido, a indicação do crime ou dos crimes imputados ao arguido, segundo a acusação, ou pronúncia, se a tiver havido (n.º 1), e que ao relatório se segue a fundamentação, que consta da enumeração dos factos provados e não provados, bem como de uma exposição tanto quanto possível completa, ainda que concisa, dos motivos, de facto e de direito, que fundamentam a decisão, com indicação e exame crítico das provas que serviram para formar a convicção do tribunal (n.º 2). Nos termos da alínea a) do n.º 1 do artigo 379.º é nula a sentença que não contiver as menções referidas no n.º 2 do artigo 374.º, sendo esta também nula, nos termos da alínea c) do mesmo preceito, quando o tribunal deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar (omissão de pronúncia). Estas nulidades devem ser arguidas ou conhecidas em recurso (n.º 2 do mesmo preceito).

11.1. Alega o recorrente que a nulidade prevista na alínea a) do n.º 1 do artigo 379.º do CPP resulta de “insuficiência” da fundamentação por ser “absolutamente omissa quanto ao conteúdo de cada uma das provas produzidas, que foram efectivamente consideradas para efeitos de fixação do provado quanto aos factos provados contidos nos n.ºs 5 a 11 do provado”, “desconhecendo-se quais foram as efectivas provas produzidas que foram determinantes para a fixação de cada facto”.

11.1.1. A necessidade de fundamentação da sentença condenatória, nos termos das disposições legais mencionadas, que concretizam requisitos específicos relativamente ao regime geral estabelecido no artigo 97.º, n.º 5, do CPP, decorre directamente do artigo 205.º, n.º 1, da Constituição, segundo o qual as decisões dos tribunais que não sejam de mero expediente são fundamentadas nos termos previstos na lei. O dever constitucional de fundamentação das decisões judiciais resulta, como é conhecido, de razões que se extraem do princípio do Estado de direito, do princípio democrático e da teleologia jurídico-constitucional dos princípios processuais, que implicam, para além do mais, a necessidade de justificação do exercício do poder estadual, de modo a possibilitar o seu controlo por parte dos destinatários e dos tribunais superiores, assim se conferindo garantia efectiva ao direito de defesa, incluindo o direito ao recurso, consagrado no artigo 32.º, n.º 1, da Constituição (cfr. Canotilho / Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa anotada, anotações I e II ao artigo 205.º, Vol. II, 4.ª ed.). “A fundamentação cumpre, simultaneamente, uma função de carácter objectivo – pacificação social, legitimidade e autocontrolo das decisões – e uma função de carácter subjectivo – garantia do direito ao recurso, controlo da correcção material e formal das decisões pelo seu destinatário” (Jorge Miranda / Rui Medeiros, Constituição Portuguesa anotada, Tomo III, 2007, anotações ao artigo 205.º).

Perspectivando o tema na óptica dos direitos processuais, o Tribunal Europeu dos Direitos Humanos vem interpretando o artigo 6.º da “Convenção para a protecção dos Direitos do Homem e das liberdades fundamentais” no sentido de que a fundamentação das decisões dos tribunais, constituindo um princípio de boa administração da justiça num Estado de Direito, representa um dos aspectos do direito a um processo equitativo protegido por esta disposição, o qual impõe, assim, o dever de os tribunais motivarem adequadamente as suas decisões, de acordo com a sua natureza (cfr. acórdão de 09.07.2007, no caso Tatishvili c. Rússia, n.º 1509/02, e outros nele mencionados).

11.1.2. Como expressamente resulta do n.º 2 do artigo 374.º, não impõe a lei que a sentença contenha referência ao “conteúdo de cada uma das provas produzidas”. O dever de fundamentação satisfaz-se com a exposição concisa, mas, tanto quanto possível, completa dos motivos de facto que fundamentam a convicção do tribunal, com indicação e exame crítico das provas que serviram para formar tal convicção, não sendo exigível uma indicação dos meios de prova e das provas deles resultantes, que, com especificada referência a cada um dos factos provados, justificam que cada um deles seja considerado provado ou não provado (neste sentido, entre outros, o acórdão de 15.10.2008, no proc. 08P2864, relator Cons. Pires da Graça, em www.dgsi.pt, e demais jurisprudência nele citada).

Do dever de fundamentação das decisões judiciais decorre, como tem sido salientado (cfr., por exemplo, o acórdão do Tribunal Constitucional de 23.2.2007, DR 2.ª Série de 23.02.2007, que se segue e transcreve, bem como o acórdão deste STJ de 16.3.2005, no processo 5P662, relator Cons. Henriques Gaspar), que, nas decisões sobre matéria de facto, é obrigatória a indicação das provas que serviram para formar a convicção do tribunal, com a explicitação das razões dessa decisão, em termos de habilitar o seu destinatário a, ciente dessas razões, se conformar com a decisão ou a impugná-la de forma eficiente. É o exame crítico das provas que credibiliza a decisão, viabiliza o recurso e permite revelar o raciocínio lógico do tribunal relativamente à própria decisão, os motivos que levaram a dar como provados certos factos e não outros, tendo em conta que o princípio geral em matéria de avaliação das provas é o da livre apreciação pelo julgador (artigo 127.º do CPP). O tribunal do julgamento tem que explicitar as razões que o levaram a convencer-se de que o arguido praticou os factos que deu como provados; porém, a fundamentação não tem de ser uma “espécie de assentada”, em que o tribunal reproduza os depoimentos de todas as pessoas ouvidas, ainda que de forma sintética, pois não se impõe a descrição ou transcrição de todos os depoimentos apresentados no julgamento, ou a menção do conteúdo de cada um deles, bastando que o tribunal indique aqueles que foram decisivos e justificam a convicção do tribunal. “O que está em causa em sede de fundamentação das sentenças não é um princípio de paridade de consideração e explicitação da prova produzida pelos sujeitos processuais, mas antes de explicitação do juízo decisório e das provas em que este se baseou”.

Importa, porém, salientar (como no acórdão de 26.3.2014, no proc. 15/10.0JAGRD.E2.S1, 3.ª Secção, relator Cons. Santos Cabral, em www.dgsi.pt, citando Alberto dos Reis), que a falta de fundamentação implica a inexistência dos fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão e só a falta absoluta de fundamentação determina a sua nulidade, pelo que “não padece desse vício a decisão que contém uma fundamentação deficiente, medíocre ou mesmo errada” – “o que a lei considera causa de nulidade é a falta absoluta de motivação; a insuficiência ou a mediocridade da motivação é espécie diferente, afecta o valor doutrinal da sentença, sujeita-a ao risco de ser revogada ou alterada em recurso, mas não produz a nulidade. Por falta absoluta de motivação deve entender-se a ausência total de fundamentos de direito e de facto”.

11.1.3. Ora, como se pode ver do acima exposto (ponto 14), o acórdão recorrido explicita de forma adequada, em concretização do critério legal de fundamentação fixado no artigo 374.º, n.º 2, do CPP, as provas com base nas quais formou a sua convicção, nomeadamente as declarações do arguido, o depoimento das testemunhas EE, empregado do bar onde o arguido se encontrara, e DD e BB, elementos da GNR, que abordaram o arguido, fazendo a sua análise e apreciação crítica, daí resultando claras as razões pelas quais o tribunal julgou provados os factos que assim considerou e não provados outros factos, não se suscitando qualquer dúvida ou vício na demonstração dessas razões e das conclusões que extraiu da avaliação das provas que considerou para justificar a sua convicção.

Pode o arguido, como o faz, discordar dessa fundamentação, mas nela encontra, como a lei exige, as bases que lhe permitem exercer plenamente o seu direito ao recurso da decisão, assim contrariando o que dela consta e submetendo a sua própria apreciação a decisão de um tribunal superior. A alegada “insuficiência” não impede, como não impediu, o recorrente de, em recurso, exprimir e justificar a sua discordância quanto aos seus fundamentos, mediante recurso de impugnação da matéria de facto e ainda com fundamento em vício da previsão do artigo 410.º, n.º 2, do CPP (infra).

Assim sendo, carece de fundamento a arguição da nulidade do acórdão recorrido por “insuficiência” da fundamentação, que pretende fazer equivaler à sua “falta”, por ser “absolutamente omissa quanto ao conteúdo de cada uma das provas produzidas, que foram efectivamente consideradas para efeitos de fixação do provado quanto aos factos provados contidos nos n.ºs 5 a 11 do provado”.

Pelo que, conhecendo da primeira das questões acima identificadas (supra, 8.a.i), improcede o recurso quanto à arguição desta nulidade.

11.2. Argui ainda o recorrente seis nulidades do acórdão recorrido por omissão de pronúncia quanto a “questões” que diz ter suscitado (conclusões 4 a 8, supra 8.a.ii).

Cinco dessas “questões”, que, a seu ver, são “fundamento de absolvição”, esclarece o recorrente (conclusão 6), “são as enumeradas no ponto 2 do corpo da motivação” (que, assim, serão seis), ou seja, as seguintes (transcrição):

«- A acusação é inapta a produzir uma condenação porque jamais refere que ao recorrente tenha sido transmitida qualquer ordem, à qual tenha desobedecido, na medida em que se refere apenas a que lhe foi transmitida uma informação “de que teria que aguardar” e uma informação não é uma ordem;

- O crime imputado pressupunha que o recorrente se tivesse recusado à submissão a teste de pesquisa de álcool no sangue, facto esse que não consta da acusação e nunca lhe foi ordenado, pedido ou sugerido;

- Ainda que se entendesse que a “informação” dada ao recorrente como uma ordem, ela reportava-se a uma ordem de espera e não a uma ordem de sujeição ao qualquer teste de alcoolemia;

- Não estando, a ordem de espera, abrangida por qualquer disposição legal que comine o não acatamento como crime de desobediência e não tendo sido informado o recorrente de qualquer cominação, pelos agentes da GNR, conforme teor da própria acusação, a actuação do arguido não integra qualquer crime – e muito menos o crime imputado;

- O recorrente, que assumiu perante os elementos da GNR que tinha bebido “bem”, acatou a “informação” e esperou no local o aparecimento da outra patrulha, o que não sucedeu por motivos alheios à sua vontade;

- O recorrente jamais admitiu, sequer, que com a sua conduta estivesse a desobedecer a qualquer ordem».

A sexta nulidade (que será, então, a sétima, dado o erro de contagem nas anteriormente enumeradas) é a indicada nas conclusões 7 e 8, assim enunciada:

«7 - De igual modo, verifica-se nulidade por omissão de pronúncia, uma vez que o acórdão recorrido, dando como assente em sede de apreciação de mérito que o arguido só se ausentou do local decorridos cerca de dez/quinze minutos de ter sido informado da submissão ao teste de pesquisa de álcool no sangue, não fez constar tal facto do provado, sendo ele relevante para a apreciação de mérito da causa.

8 - O suprimento de tal omissão passa pelo aditamento ao provado do facto supra referido, de que «o arguido aguardou pelo menos durante dez/quinze minutos pelo regresso dos agentes da GNR» o que pode ser feito pela alteração da redacção do ponto 9 do provado, passando a conter-se aí que «o arguido aguardou pelo menos durante dez/quinze minutos pelo regresso dos agentes da GNR, após o que colocou o seu veículo em marcha, ausentando-se do local».

11.2.1. A nulidade da sentença cominada nos termos da alínea c) do n.º 1 do artigo 379.º do CPP, em resultado da omissão de pronúncia, diz respeito a questões que deva conhecer e não a argumentos, motivos, razões que os sujeitos processuais invoquem em sustentação ou defesa das suas posições ou pontos de vista sobre as questões que o tribunal deva decidir, nomeadamente no exercício do contraditório estruturante do processo e legalmente garantido relativamente a acto decisório revestindo a forma de sentença, ou seja, a acto decisório que conhece, a final, do objecto do processo (artigo 97.º, n.º 1, al. a), do CPP).

Como se sublinha no acórdão de 9.11.2016, no proc. 235/14.6JELSB.L1.S1 (relator Cons. Oliveira Mendes), em www.dgsi.pt, reflectindo jurisprudência constante deste tribunal, “certo é que a falta de pronúncia que determina a existência de vício da decisão incide sobre as questões e não sobre os motivos ou argumentos invocados pelos sujeitos processuais, ou seja, a omissão resulta da falta de pronúncia sobre as questões que cabe ao tribunal conhecer e não da falta de pronúncia sobre os motivos ou as razões que os sujeitos processuais alegam em sustentação das questões que submetem à apreciação do tribunal, entendendo-se por questão o dissídio ou problema concreto a decidir e não os simples argumentos, razões, opiniões ou doutrinas expendidos pela parte em defesa da sua pretensão”.

11.2.2. Dispõe a este propósito o artigo 339.º, n.º 4, do CPP que, sem prejuízo do regime aplicável à alteração dos factos, a discussão da causa tem por objecto os factos alegados pela acusação e pela defesa e os que resultarem da prova produzida em audiência, bem como todas as soluções jurídicas pertinentes, independentemente da qualificação jurídica dos factos resultante da acusação ou da pronúncia, tendo em vista as finalidades a que se referem os artigos 368.º e 369.º. Estes preceitos identificam as questões a apreciar e decidir na sentença, em resultado da discussão da causa:

i. Em primeiro lugar, as questões prévias ou incidentais sobre as quais ainda não tiver recaído decisão (artigo 368.º, n.º 1);

ii. Em segundo lugar, se a questão de mérito não ficar prejudicada, a questão da culpabilidade, mediante deliberação e votação sobre os factos alegados pela acusação e pela defesa e sobre os que os que resultarem da discussão da causa, relevantes para as questões de saber: (a) se se verificaram os elementos constitutivos do tipo de crime, (b) se o arguido praticou o crime ou nele participou, (c) se o arguido actuou com culpa, (d) se se verificou alguma causa que exclua a ilicitude ou a culpa, (e) se se verificaram quaisquer outros pressupostos de que a lei faça depender a punibilidade do agente ou a aplicação a este de uma medida de segurança e (f) se se verificaram os pressupostos de que depende o arbitramento da indemnização civil (artigo 368.º, n.º 2);

iii. Em terceiro lugar, todas as questões de direito suscitadas por esses factos, que o presidente deve enumerar discriminadamente e submeter a deliberação e votação (artigo 368.º, n.º 3);

iv. Em quarto lugar, a questão da determinação da pena, se da deliberação e votação sobre a culpabilidade resultar que ao arguido deve ser aplicada uma pena, devendo, nesse caso, o tribunal deliberar e votar sobre a espécie e a medida da sanção a aplicar (artigo 369.º do CPP).

11.2.3. Revisitando a arguição (supra, 11.2), o que se verifica é que todas as pretensas nulidades dizem respeito a argumentos relativos a factos e a conclusões a extrair desses factos, para efeitos do preenchimento dos elementos do tipo de crime de desobediência, nomeadamente para se poder concluir se foi transmitida uma “ordem” e se não houve obediência a essa “ordem”, ou seja a questões a esclarecer, mediante deliberação e aprovação, com vista à decisão sobre a questão da culpabilidade (supra, artigo 368.º, n.º 2, al. a), do CPP).

Como expressamente resulta do texto da decisão, trata-se de questões que o tribunal decidiu e apreciou nos termos que constam do acórdão condenatório, relativamente aos quais, em caso de discordância, é oferecida a via de recurso em matéria de facto e de direito, nomeadamente quanto aos seus fundamentos, nos termos do disposto no artigo 412.º do CPP.

Por conseguinte, não se verificando a alegada nulidade resultante de omissão de pronúncia (supra, 8.a.ii), improcede também o recurso nesta parte.

Quanto à impugnação da decisão em matéria de facto

12. Impugnando a decisão proferida sobre a matéria de facto, nos termos do disposto nos n.ºs 3 e 4 do artigo 412.º do CPP, pede o recorrente a reapreciação e modificação da matéria de facto provada descrita nos pontos 8 e 10 e, subsidiariamente, no ponto 9, pugnando pela alteração dos factos descritos nos pontos 8 e 9 e para que parte da matéria descrita no ponto 10 seja considerada como não provada (pontos 9 a 16 da motivação).

Indica como prova que impõe esta alteração a que se contém nas declarações da testemunha BB, militar da GNR, que o abordou pessoalmente na função de fiscalização e disse, em julgamento, que tinha dito ao recorrente «que ia ser submetido ao teste do álcool» (ao minuto 4:00 da gravação do seu depoimento) e que «tinha que aguardar 10 minutos» (ao minuto 4:16 do seu depoimento) sendo que «o senhor aguardou cerca de 10 minutos, talvez a patrulha se tivesse demorado um bocadinho mais do que os 10 minutos que inicialmente informei o senhor», «o senhor ainda aguardou algum tempo no local» (minuto 6:35 a 7:10).

Em consequência, considera que, no ponto 8, deve ser acrescentada a expressão “durante 10 minutos”, que, no ponto 9, deve também ser acrescentada a expressão “não menos de 10 minutos depois da informação referida em 8” e que, no ponto 10, deve ser eliminada a parte em que se diz que “e ao abandonar o local pretendeu eximir-se ao teste de alcoolémia, pois estava convicto de que o mesmo iria dar uma TAS superior a 1,2 g/l, tendo perfeita consciência de que o referido abandono do local integraria a prática de um crime e, mesmo assim, persistiu na conduta referida”.

12.1. Dispõe o n.º 6 do artigo 412.º do CPP que “no caso previsto no n.º 4” – isto é, quando as provas tenham sido gravadas e o recorrente especifique os concretos pontos da matéria de facto que considera incorrectamente julgados e as concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida, com indicação das passagens em que se funda a impugnação – “o tribunal procede à audição ou visualização das passagens indicadas e de outras que considere relevantes para a descoberta da verdade e a boa decisão da causa”.

Ouvida a prova gravada, na sua totalidade, verifica-se que a prova quanto aos factos ocorridos no local, descritos nos pontos 8 e 9, resulta do depoimento da testemunha BB, que foi o militar da GNR que abordou directamente o arguido e com ele estabeleceu comunicação, e do depoimento do militar da GNR DD, que o acompanhou.

Da gravação do depoimento da testemunha BB extrai-se que foi esta testemunha que deu “ordem de paragem” (2:30m), que “informou” o arguido que “ia ser fiscalizado”, lhe “disse que ia ser fiscalizado”, lhe “disse que ia ser submetido ao teste de alcoolémia” e o “informou que tinha que aguardar 10 minutos mais ou menos, que era o tempo que a patrulha demoraria a chegar ao local” (3:56m – a 5:00m), que o arguido “ainda aguardou cerca de 10 minutos” e que “talvez a patrulha tenha demorado ainda um bocadinho mais que os 10 minutos que inicialmente informou” (6:34 – 7:18m). A testemunha DD confirma que o arguido foi “informado que iria ser controlado” (1.57m), que a patrulha ia demorar cerca de 10 a 15 minutos a chegar” (3:00m), que ambos pediram (“pedimos”) “para ele lá ficar e aguardar, que a patrulha ia demorar um bocadinho” e que o arguido “ficou dentro do carro a aguardar” (3:30 – 3:54m).

Da prova analisada não resulta que possa fundadamente concluir-se que o arguido estava convencido de que a taxa de álcool no sangue seria superior a 1,2g/l, apenas sendo possível concluir, pela livre apreciação de acordo com as regras da experiência (artigo 127.º do CPP), que estava convencido de que a taxa de álcool seria superior à legalmente permitida.

Das declarações e depoimentos gravados não resulta qualquer outra prova que releve no sentido das restantes pretensões do requerente quanto à alteração da matéria de facto.

Importa, porém, alterar o ponto n.º 5 da matéria de facto provada em conformidade com a prova gravada, nomeadamente com os depoimentos acima referenciados, no sentido de se explicitar o objecto e âmbito da fiscalização rodoviária aí mencionada, sendo que a redacção actual contém uma incompletude de sentido do próprio texto ao não fazer tal explicitação.

12.2. Assim, com base nos indicados elementos de prova, nos termos do disposto no artigo 431.º, al. b), do CPP, por se considerar constituírem circunstâncias relevantes para apreciação e decisão quanto à ilicitude e respectivo grau, alteram-se os pontos 5, 8, 9 e 10 da descrição da matéria de facto, cujo texto passa a ser o seguinte:

«5 – O militar BB informou-o, através da janela da porta do condutor da viatura, de que estava a ser abordado a fim de ser submetido a exame para detecção de álcool no âmbito de fiscalização rodoviária e porque tinha sido denunciado pela prática de uma agressão física».

«8 – O militar BB informou o arguido de que teria que aguardar no local durante cerca de 10 minutos pela chegada dos seus colegas, a fim de se proceder ao teste de alcoolémia, após o que deslocou para junto do denunciante CC para se inteirar do sucedido entre aquele e o arguido»;

«9 – O arguido aguardou durante cerca de 10 minutos depois da informação referida em 8 e, após isso, colocou o seu veículo em marcha ausentando-se do local.

10 – O arguido agiu livre, voluntaria e conscientemente e ao abandonar o local pretendeu eximir-se ao teste de alcoolemia, pois estava convicto de que o mesmo iria dar uma TAS superior à legalmente permitida, tendo perfeita consciência de que o referido abandono do local integraria a prática de um crime e, mesmo assim, persistiu na conduta referida».

Termos em que, nesta parte (quanto ao identificado supra em 8.a.iii), se impõe a procedência parcial do recurso.

Do preenchimento dos elementos do tipo de crime de desobediência

13. Assim fixada a matéria de facto provada, nos termos que constam da decisão recorrida e das modificações agora introduzidas nos pontos 5, 8, 9 e 10, há que averiguar e determinar se se mostra preenchida a previsão do tipo do ilícito do crime de desobediência por que o arguido foi acusado e condenado, da previsão das disposições conjugadas dos artigos 152.º, n.ºs 1, al. a), e 3, do Código da Estrada e 348.º, n.º 1, al. a), do Código Penal.

13.1. O artigo 152.º do Código da Estrada (CE), inserido no Capítulo I do Título VII relativo aos procedimentos de fiscalização, estabelece que os condutores devem submeter-se às provas estabelecidas para exame e detecção do estado de influenciado pelo álcool (n.º 1, al. a)). A recusa é punida nos termos do n.º 3 do mesmo preceito, do seguinte teor, na parte que agora releva:

“as pessoas referidas nas alíneas a) (…) que recusem submeter-se às provas estabelecidas para a detecção do estado de influenciado pelo álcool (…) são punidas por crime de desobediência”.

O artigo 158.º do CE remete para regulamento a fixação do tipo de material a utilizar na fiscalização para determinação do estado de influenciado pelo álcool, o qual consta da Lei n.º 18/2007, de 17 de Maio, que “aprova o regulamento de fiscalização da condução sob influência do álcool ou de substâncias psicotrópicas”.

De acordo com este diploma, a presença de álcool no sangue é indicada por meio de teste no ar expirado, efectuado em analisador qualitativo, sendo a quantificação da taxa de álcool efectuada por teste no ar expirado efectuado em analisador quantitativo, ou por análise no sangue, quando não for possível realizar o teste em analisador quantitativo (artigo 1.º). Sob a epígrafe “método de fiscalização” estabelece que, quando o teste em analisador qualitativo indicie a presença de álcool no sangue, o examinado é submetido a novo teste, a realizar em analisador quantitativo, sempre que possível com o intervalo não superior a 30 minutos, podendo o examinado ser conduzido a local em que este segundo teste possa ser realizado, acompanhado pelo agente da entidade fiscalizadora (artigo 2.º).

Nos termos da Lei n.º 63/2007, de 6 de Novembro, que aprova a orgânica da Guarda Nacional Republicana, constitui atribuição desta força de segurança velar pelo cumprimento das leis e regulamentos relativos à viação terrestre e aos transportes rodoviários e promover e garantir a segurança rodoviária, designadamente, através da fiscalização, do ordenamento e da disciplina do trânsito (artigo 3.º, n.º 1, al. f)). Para o efeito, o militar da Guarda está investido do poder de autoridade, nos termos e com os limites da Constituição e da lei (artigo 15.º do Estatuto do Militar da Guarda, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 30/2017, de 22 de Março.

O artigo 4.º (ordens das autoridades) do Código da Estrada estabelece um dever geral de obediência às ordens das autoridades com competência para fiscalizar o trânsito, como é o caso da Guarda Nacional Republicana, punindo a sua violação como contra-ordenação, nos seguintes termos:

“1 - O utente deve obedecer às ordens legítimas das autoridades com competência para regular e fiscalizar o trânsito, ou dos seus agentes, desde que devidamente identificados como tal.

2 - Quem infringir o disposto no número anterior é sancionado com coima de (euro) 120 a (euro) 600, se sanção mais grave não for aplicável por força de outra disposição legal, sem prejuízo do disposto no número seguinte.

3 - Quem desobedecer ao sinal regulamentar de paragem das autoridades referidas no n.º 1 é sancionado com coima de (euro) 500 a (euro) 2500, se sanção mais grave não for aplicável por força de outra disposição legal”.

Se a ordem da autoridade disser respeito à submissão às provas estabelecidas para a detecção do estado de influenciado pelo álcool, a recusa é punida como crime de desobediência, por virtude do disposto no artigo 152.º, n.º 3, do Código da Estrada, que expressamente subtrai o caso à previsão da norma geral de punição constante do n.º 2 do artigo 4.º.

13.2. O crime de desobediência, para que remete o artigo 152.º, n.º 3, do Código da Estrada, encontra-se previsto no artigo 348.º do Código Penal, que dispõe:

“1 - Quem faltar à obediência devida a ordem ou a mandado legítimos, regularmente comunicados e emanados de autoridade ou funcionário competente, é punido com pena de prisão até 1 ano ou com pena de multa até 120 dias se:

a) Uma disposição legal cominar, no caso, a punição da desobediência simples; ou

b) Na ausência de disposição legal, a autoridade ou o funcionário fizerem a correspondente cominação.

2 - A pena é de prisão até 2 anos ou de multa até 240 dias nos casos em que uma disposição legal cominar a punição da desobediência qualificada”.

O crime de desobediência, que se inclui na categoria dos denominados “crimes de dever” (C. Roxin), constitui um caso que a doutrina costuma indicar de lei penal aberta ou de lei penal em branco, que impõe particulares precauções na determinação da incriminação perante as exigências decorrentes do princípio da legalidade em matéria penal. Dado o carácter subsidiário do tipo de crime, pois que nem todas as “desobediências” constituem crime subsumível à previsão do artigo 348.º do Código Penal, a concreta qualificação de um comportamento como crime de desobediência tem de equacionar-se em três momentos: em primeiro lugar, pela verificação da subsunção a uma norma que preveja um ilícito próprio; em segundo lugar, pela verificação da subsunção a uma norma que concretamente comine a punição de um comportamento como desobediência, nos termos da alínea a) do n.º 1 do artigo 348.º; finalmente, pela subsunção à alínea b) do n.º 1 do mesmo preceito, que requer a cominação de desobediência pelo agente de autoridade (assim, Crimes contra a Autoridade Pública, Jornadas de Direito Criminal, Vol. II, 1995, pp. 423, 433-435).

As situações previstas no Código da Estrada, acima mencionadas, susceptíveis de constituir “desobediência” enquadram-se nas duas primeiras hipóteses – em geral, constituem ilícito de mera ordenação social (artigo 2.º, n.º 3); no caso de recusa de sujeição aos procedimentos de detecção de estado de influenciado pelo álcool, constituem crime de desobediência, nos termos da alínea a) do n.º 1 do artigo 348.º do Código Penal, por o artigo 152.º, n.º 3, cominar, no caso, a punição da desobediência (simples). Havendo disposição legal, não tem a autoridade que fazer a cominação da desobediência, estando, assim, neste caso, afastada a hipótese da alínea b) do n.º 1 do artigo 348.º do Código Penal.

Importa, pois, verificar se os factos provados preenchem o tipo de ilícito do crime previsto no artigo 348.º, n.º 1, al. a), do Código Penal, determinado que se mostra a cominação da desobediência pela disposição do artigo 152.º, n.º 3, do Código da Estrada.

13.3. Este tipo de crime, que protege a função de autoridade pública – a “autonomia intencional do Estado”, em particular a “não colocação de entraves à actividade administrativa por parte dos destinatários dos seus actos” (assim, sobre o bem jurídico protegido, Cristina Líbano Monteiro, Comentário Conimbricense do Código Penal, §4 dos comentários ao artigo 348.º, Coimbra Editora, 2001) – reconduz-se, na essência, à violação de um dever de obediência a uma ordem ou mandado legítimos emanados de autoridades competentes e regularmente comunicados. De estrutura normativa, o tipo de crime tem como elementos objectivos: um comando da autoridade, sob a forma de ordem ou mandado, impondo uma determinada conduta, um dever de acção ou de omissão, nos termos concretamente definidos; a sua legalidade material e formal; a competência da autoridade que o emite; a violação do dever emergente desse comando (loc. cit. p. 429). A definição do tipo remete para conceitos exteriores ao direito penal, nomeadamente, no que agora releva, para conceitos de direito administrativo. Estando em causa uma intervenção policial de fiscalização de trânsito, que se inscreve neste âmbito, é esta a perspectiva que interessa no caso presente.

Não se questiona a qualidade e competência dos agentes, militares da GNR, que agem investidos de poderes de autoridade, nem a legalidade da intervenção e da “ordem” nela contida, que se inscrevem nas atribuições e competências da GNR (supra, ponto 17.1). Não se questiona também a regularidade da comunicação, que no caso, revestiu forma verbal, enquanto condição do conhecimento do seu conteúdo. Há, todavia, que esclarecer se se pode concluir pela existência de um “comando” e qual o dever concretamente imposto; em particular importa determinar se, perante a estipulação dos n.ºs 1 e 3 do artigo 152.º do Código da Estrada, existiu um “comando” dirigido ao arguido para se submeter às provas estabelecidas para a detecção do estado de influenciado pelo álcool, nos termos e de acordo com os procedimentos estabelecidos no regulamento de fiscalização da condução sob influência do álcool (Lei n.º 18/2007, de 17 de Maio, supra, 13.1), e se o arguido se recusou cumprir o dever, que se lhe impunha, emergente desse “comando”.

13.4. O conceito de “ordem”, como tem sido sublinhado (loc. cit. p. 430), envolve um comando de carácter pessoal e concreto, especialmente dirigido ao agente do crime, de natureza obrigatória para a pessoa a quem se dirige, que a vincula a uma acção ou omissão, a um facere ou non facere, consoante o sentido desse comando. Citando Freitas do Amaral (Curso de Direito Administrativo, Vol. II, Almedina, 2003, p. 254), actos de “comando” são aqueles que impõem a adopção de uma conduta, positiva ou negativa. Para efeitos do artigo 348.º do Código Penal, uma ordem é um acto de “comando”, através do qual é imposta a uma determinada pessoa, a quem é dirigido, a adopção de uma determinada conduta, de uma acção ou de uma abstenção determinadas (Francisco Borges, O Crime de Desobediência à Luz da Constituição, Almedina, 2011, pp. 51-53, e Cristina L. Monteiro, loc. cit. comentários, §15).

Recorrendo a conceitos próprios da Linguística, para mais exacto recorte conceptual dos factos, a ordem exprime-se num “acto ilocutório directivo de acção explícita”, que se traduz na vontade de o locutor (neste caso, o agente da autoridade) levar o alocutário (neste caso, o agente do crime), “a realizar uma acção futura determinada pelo reconhecimento”, por parte deste, “do conteúdo proposicional do enunciado proferido pelo locutor e da necessidade por este manifestada para que execute tal acção” (Carlos Gouveia, Pragmática, in Introdução à Linguística Geral e Portuguesa, Caminho, Colecção Universitária, 2005, pp. 394-395) – acto directivo que, todavia, se distingue do “pedido”, que, sendo acto de idêntica tipologia, manifestando um desejo, “não é sancionável uma vez que o alocutário não se encontra vinculado a um dever de obediência” (Isabel Casanova, A força ilocutória dos actos directivos, ibidem, pp. 430-433).

No caso presente, há que sublinhar a necessidade de levar em devida consideração que o dever de submissão às provas estabelecidas para exame e detecção do estado de influenciado pelo álcool é um dever de conteúdo definido que resulta directamente do n.º 1, alínea a), do artigo 152.º do Código da Estrada, que estabelece que os condutores devem submeter-se a essas provas, e não apenas do preceito primário da norma incriminadora. O que, assim, confere uma configuração própria à estrutura do tipo de crime em análise no que diz respeito ao elemento consistente na “ordem” incluído na previsão geral do artigo 348.º do Código Penal. A natureza e conteúdo deste dever, que se impõe directamente a todos os condutores pelo facto de o serem, independentemente de uma concreta intervenção do agente de autoridade, introduzem um elemento de conformação e especialização na definição típica do crime no que diz respeito ao elemento “ordem” do tipo incriminador subsidiário do artigo 348.º do Código Penal.

Neste sentido, o dever de obediência, que se traduz no dever de submissão às provas para detecção de álcool, emergindo directamente da lei, concretiza-se no dever, do prévio conhecimento do condutor, de este se sujeitar aos procedimentos de fiscalização adequados e necessários para esse efeito, bastando que o agente de autoridade, caso a caso, dê a conhecer o âmbito e finalidade da fiscalização, assim se materializando o “comando” exigido por lei como elemento do tipo incriminador. O acto de comunicação da informação entre o agente da autoridade e o condutor sujeito a fiscalização, previamente vinculado a um dever de obediência, cujo conteúdo é do seu conhecimento, assume, neste contexto, a natureza de um verdadeiro “acto ilocutório de acção explícita”, no sentido acima referido, que as ciências da linguagem lhe conferem.

13.5. Regressando à descrição dos factos provados (supra, 9 e 12.2) destaca-se, no que agora directamente interessa, que:

– Colocado em marcha o veículo e tendo percorrido alguns metros, foi o arguido mandado parar pelos militares da GNR BB e Roberto Silva, que se encontravam no exercício das suas funções, devidamente uniformizados (ponto 3);
– O militar BB informou o arguido de que estava a ser abordado a fim de ser submetido a exame para detecção de álcool no âmbito de fiscalização rodoviária (ponto 5);
– Foi-lhe pedida a documentação tendo o arguido entregue a carta de condução, o documento único automóvel e o certificado de seguro e sido informado de que iria ser sujeito aos testes de despistagem de álcool, e após o militar BB lhe ter perguntado de tinha ingerido bebidas alcoólicas na última hora o arguido respondeu-lhe "bebi e bebi bem” (ponto 6);
– Em virtude de os militares não serem detentores do aparelho de despistagem de álcool, por aqueles foi solicitado aos colegas que patrulhavam num veículo automóvel que se deslocassem ao local munidos do referido aparelho (ponto 7);
– O militar BB informou o arguido de que teria que aguardar no local durante cerca de 10 minutos pela chegada dos seus colegas, a fim de se proceder ao teste de alcoolémia (ponto 8);
– O arguido aguardou durante cerca de 10 minutos depois dessa informação e, após isso, colocou o seu veículo em marcha ausentando-se do local (ponto 9);
– O arguido agiu livre, voluntaria e conscientemente e ao abandonar o local pretendeu eximir-se ao teste de alcoolemia (ponto 10).

Desta descrição resulta que os factos ocorreram num período de tempo imediatamente anterior à realização das provas estabelecidas no regulamento para determinação do estado de influenciado pelo álcool, as quais se iniciam através da realização de teste no ar expirado, e se integram, na sua imediata sequência, nos procedimentos de fiscalização adequados à realização dessas provas, nomeadamente através da identificação prévia do condutor e da verificação das condições legais para circulação do veículo na via pública. O arguido, que revelava estar influenciado pelo álcool – o que justificou que os agentes da autoridade diligenciassem pelo aparelho necessário à realização do exame, que não tinham consigo –, mostrando compreender a mensagem verbal no contexto da comunicação estabelecida, aguardou pelo tempo que lhe foi indicado, durante cerca de 10 minutos, período de tempo em que se incluíram os procedimentos de identificação e verificação dos documentos, abandonando o local após isso. O arguido sabia que iria ser submetido a exame, a que estava obrigado, imediatamente após esses procedimentos e logo que os agentes da autoridade estivessem na posse do aparelho por que tinham providenciado e, ao abandonar o local, pretendeu eximir-se a esse exame, sabendo que, ao fazê-lo, agia em violação do dever de se submeter ao exame para detecção de álcool no ar expirado.

Da descrição dos factos provados não resulta, porém, que os agentes da autoridade tenham solicitado ou ordenado ao arguido que expirasse ar para o interior do aparelho adequado à realização do exame, o que, note-se, não poderia ter acontecido pela circunstância de ainda não disporem desse aparelho. Pelo que, poder-se-ia alegar, como faz o recorrente, que, assim sendo, não houve uma recusa de submissão à prova para detecção do estado de influenciado pelo álcool, pois que tal recusa só ocorreria se, contrariando uma ordem para soprar no aparelho, o não fizesse, já que só neste caso haveria uma ordem de “submissão à prova”, uma ordem de efectivação do teste, com a comunicação das instruções de realização.

Não é este, porém, o sentido nem a finalidade visada pela norma incriminadora, a qual, nos seus elementos descritivos, não se refere a recusa a uma ordem de efectivação do teste no ar expirado, mas antes, como acima se referiu, à recusa de submissão às provas de detecção de álcool em concretização de um dever imposto directamente pela lei.

13.6. Na decorrência do que acima se explicitou – em adequada interpretação da lei que leve em devida conta o elemento sistemático de interpretação, na consideração do disposto nos artigos 4.º, n.º 1 (dever geral de obediência às ordens legítimas das autoridades), 152.º, n.ºs 1, al. a), e 3 (dever de submissão às provas para detecção de álcool e punição da violação do dever), do Código da Estrada –, esta recusa não pode deixar de abranger todo e qualquer comportamento pelo qual, por acção ou omissão, um condutor se negue a cumprir o dever de se submeter a tais provas e que seja apto e idóneo a eximir-se aos necessários e apropriados procedimentos de fiscalização a que se encontra obrigado com vista à realização dessas mesmas provas no âmbito da operação de fiscalização.

Assim sendo, impõe-se concluir que os factos provados preenchem o tipo de ilícito de desobediência p. e p. nos termos das disposições combinadas dos artigos 152.º, n.º 3, do Código da Estrada e 348.º, n.º 1, al. a), do Código Penal, por constituírem recusa de submissão às provas de detecção de álcool no ar expirado.

Pelo que, nesta parte, improcede o recurso.

Quanto à alegada violação do princípio ne bis in idem

14. Alega o recorrente que o tribunal a quo violou o princípio ne bis in idem (questão indicada supra, em 8.a.iv), “ao ponderar as circunstâncias inerentes à execução da acção como circunstâncias negativas da acção, agravantes da culpabilidade do agente” (conclusão 32 da motivação).

De consagração constitucional (artigo 29.º, n.º 5, da Constituição), significa este princípio que ninguém pode ser julgado mais do que uma vez pela prática do mesmo crime.

Como expressamente refere o recorrente, a questão suscitada não diz respeito ao julgamento por factos anteriormente julgados, mas sim à ponderação de circunstâncias “inerentes à execução do facto”.

Com efeito, consta do acórdão recorrido que, ao proceder à determinação da medida da pena, o tribunal levou em conta, nos termos do disposto no artigo 71.º do Código Penal, “a considerável intensidade do dolo, dado o lapso de tempo em que o arguido ainda se manteve no local”. O que, obviamente, se situa num plano diverso.

A restrição que, nos termos deste preceito, se pode colocar quanto à consideração das circunstâncias relevantes para a determinação da pena, por via da culpa ou da prevenção, diz respeito à relevância do princípio da proibição da dupla valoração. Isto é, apenas podem ser consideradas, nesta sede, as circunstâncias que “não fazendo parte do tipo de crime, depuserem a favor do agente ou contra ele” (artigo 71.º, n.º 2).

Ora, não fazendo tal circunstância parte do tipo de crime de desobediência por que o arguido vem condenado, como resulta do acima exposto em 13.2 a 13.4, não se coloca a questão da violação do princípio ne bis in idem.

Assim sendo, improcede igualmente o recurso quanto a esta questão.

Quanto ao invocado vício do artigo 410.º, n.º 2, al. b), do CPP

15. Alega ainda o recorrente que o acórdão recorrido padece de vício de contradição “insuperável” da fundamentação (artigo 410.º, n.º 2, al. b), do CPP), por ter considerado como agravante o «lapso de tempo em que o arguido ainda se manteve no local», pois que, “na medida em que se entendeu que a desobediência tinha consistido na não espera, não se pode entender que agrava a culpa a espera, que afinal implica o cumprimento da pressuposta ordem” (conclusões 33 e 34).

Conhecendo desta questão (supra identificada em 8.a.iv), antecipa-se a conclusão da não verificação do alegado vício.

Como tem sido salientado na jurisprudência deste tribunal (v.g. no acórdão de 15.12.2011, proc. 17/09.0TELSB.L1.S1, relator Cons. Raul Borges), os vícios do artigo 410.º, n.º 2, do CPP, são vícios de lógica jurídica ao nível da matéria de facto, vícios da decisão, que não de julgamento, que tornam impossível uma decisão logicamente correcta e conforme à lei. Verifica-se o invocado vício, que deve resultar directamente do texto da decisão, por si ou em conjugação com as regras da experiência, quando exista contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão.

A questão, tal como vem colocada, diz respeito à ponderação e avaliação do “lapso de tempo” em que o arguido se manteve à espera como circunstância “agravante”, o que tem a ver com a aplicação do direito (artigo 71.º do Código Penal), na consideração desta circunstância na determinação da medida da pena, que não com qualquer contradição de fundamentação da decisão em matéria de facto.

Pelo que o recurso improcede também nesta parte.

Quanto à determinação da pena

16. A última das questões colocadas pelo arguido diz respeito à determinação da medida da pena de multa aplicada, que pretende ver diminuída de modo a não exceder 50 dias, questão que também vem suscitada no recurso do Ministério Público, que, em sentido contrário, pugna pelo aumento do respectivo quantitativo diário, de 15 para 25 euros (supra, 8.a.v. e 8.b.1).

16.1. Decidiu o tribunal a quo aplicar uma pena de 100 (cem) dias de multa, à taxa diária de quinze euros, perfazendo a multa de mil e quinhentos euros, com os seguintes fundamentos:

“O crime em apreço é punido com pena de prisão ou pena de multa.

O arguido é pessoa integrada socialmente, tendo a sua vida organizada e família, com filhos ainda jovens.

Muito embora tivesse a especial obrigação de não agir da forma descrita, dada a sua qualidade de Juiz de Direito, ao abrigo do disposto no artigo 70º do Código Penal entende-se como adequada a pena não privativa da liberdade ou seja, a pena de multa.

Atentos os critérios constantes do artigo 71º do Código Penal, considerando:

- O modo de execução do facto, em público e com o descrito alarme, o que depõe contra o arguido;

- A considerável intensidade do dolo, dado o lapso de tempo em que o arguido ainda se manteve no local;

- A circunstância do arguido pretender eximir-se a uma eventual ação mais gravosa perante a justiça, o que também depõe contra o mesmo;

- O seu antecedente criminal, se bem que pela prática de distinto ilícito, o que também agrava a sua responsabilidade.

- A circunstância de ter família organizada e responsabilidades familiares, o que depõe em seu benefício.

Tudo ponderado, e numa moldura penal situada entre 10 a 120 dias de multa, nos termos do disposto no artigo 47.º do Código Penal, entende-se como adequada a pena de cem dias de multa, à taxa diária de quinze euros, o que perfaz a multa de mil e quinhentos euros”.

No que diz respeito às condições pessoais e à conduta do arguido anterior e posterior aos factos está provado que: o arguido tem 58 anos de idade (ponto 11), tem a profissão de Juiz de Direito (ponto 12), embora divorciado, vive com a mulher, em casa desta, e dois filhos de 17 e 22 anos de idade, ambos estudantes, contribuindo para as despesas familiares num montante não concretamente apurado (ponto 13) e por acórdão desta Relação, no processo nº 52/08.TREVR, foi condenado na pena de setenta dias de multa, à taxa diária de sete euros, totalizando a multa de setecentos euros, pela prática de um crime de condução em estado de embriaguez, p. e p. pelo artigo 292.º, n.º 1, do Código Penal e na pena acessória de proibição de conduzir veículos motorizados pelo período de cinco meses (ponto 14).

16.2. O crime por que o arguido vem condenado é punível com pena de prisão de 1 mês a 1 ano ou com pena de multa de 10 a 120 dias (artigos 41.º, n.º 1, 47.º, n.º 1, e 348.º, n.º 1, do Código Penal.

Nos termos do disposto no artigo 70.º (Critério de escolha da pena) do Código Penal, se ao crime forem aplicáveis, em alternativa, pena privativa e pena não privativa da liberdade, o tribunal dá preferência à segunda sempre que esta realizar de forma adequada e suficiente as finalidades da punição.

Não vem questionada a opção pela aplicação da pena de multa, nos termos deste preceito, opção relativamente à qual não se encontra motivo de discordância.

Há, pois, que conhecer apenas das questões suscitadas pelo arguido e pelo Ministério Público quanto à determinação da pena e do respectivo quantitativo diário.

17. Nos termos do artigo 40.º do Código Penal, a aplicação das penas visa a protecção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade e em caso algum a pena pode ultrapassar a medida da culpa.

Dispõe o artigo 47.º do Código Penal que a pena de multa, consagrada segundo o sistema de dias de multa, é determinada de acordo com os critérios estabelecidos no n.º 1 do artigo 71.º, ou seja, em função da culpa do agente e das exigências de prevenção, e que cada dia de multa corresponde a uma quantia entre 5 e 500 euros, que o tribunal fixa em função da situação económica e financeira do condenado e dos seus encargos pessoais.

O primeiro acto consiste, pois, em fixar, dentro dos limites legais – que, neste caso, são de 10 dias, no mínimo, e de 120 dias, no máximo – e o segundo em fixar o quantitativo de cada dia de multa, de acordo com este critério.

Estabelece o artigo 71.º do Código Penal:

1 - A determinação da medida da pena, dentro dos limites definidos na lei, é feita em função da culpa do agente e das exigências de prevenção.

2 - Na determinação concreta da pena o tribunal atende a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, depuserem a favor do agente ou contra ele, considerando, nomeadamente:

a) O grau de ilicitude do facto, o modo de execução deste e a gravidade das suas consequências, bem como o grau de violação dos deveres impostos ao agente;

b) A intensidade do dolo ou da negligência;

c) Os sentimentos manifestados no cometimento do crime e os fins ou motivos que o determinaram;

d) As condições pessoais do agente e a sua situação económica;

e) A conduta anterior ao facto e a posterior a este, especialmente quando esta seja destinada a reparar as consequências do crime;

f) A falta de preparação para manter uma conduta lícita, manifestada no facto, quando essa falta deva ser censurada através da aplicação da pena.

3 - Na sentença são expressamente referidos os fundamentos da medida da pena.

Encontra este regime os seus fundamentos no artigo 18.º, n.º 2, da Constituição, segundo o qual “a lei só pode restringir os direitos, liberdades e garantias nos casos expressamente previstos na Constituição, devendo as restrições limitar-se ao necessário para salvaguardar outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos”. A aplicação da pena submete-se, assim, ao genericamente designado princípio da proporcionalidade ou da proibição do excesso.

Numa formulação apertadamente conclusiva do modelo de determinação da pena (por todos, Anabela Miranda Rodrigues, A Determinação da Medida da Pena Privativa da Liberdade, Os critérios da culpa e da prevenção, Coimbra Editora, 2014), a projecção destes princípios na aplicação da pena, implica que esta encontre a sua justificação na necessidade de protecção do bem jurídico protegido pela norma incriminadora, em conformidade com uma exigência de proporcionalidade entre a gravidade da pena e a gravidade do facto praticado, prosseguindo finalidades de prevenção, geral e especial, que, no seu aspecto positivo, de reintegração, visam alcançar a realização do objectivo de que as pessoas, em geral, e os condenados, em particular, não cometam ou deixem de cometer crimes (artigo 40.º do Código Penal). A determinação da pena e a sua aplicação, ao pretenderem a realização destas finalidades, exigem que o agente do crime tenha agido com culpa, enquanto censura dirigida ao agente em virtude da atitude desvaliosa documentada num concreto tipo de ilícito (Figueiredo Dias, As Consequências Jurídicas do Crime, Coimbra Editora, 2011, p. 239), que se requer como pressuposto e cujo grau se impõe como limite da pena (artigo 40.º, n.º 2), em cuja individualização devem ser levados em devida conta todas as circunstâncias ou factores relativos à execução do facto, às condições e à personalidade do agente e à conduta deste anterior ou posterior ao facto, que, relevando por via da culpa ou da prevenção, ou de ambas, e não fazendo parte do tipo de crime (proibição da dupla valoração), deponham a favor do agente ou contra ele, tal como estabelecido no artigo 71.º do Código Penal.

18. Na determinação da medida da pena, em consideração dos factores estabelecidos neste preceito, o tribunal recorrido considerou como depondo contra o arguido, para além do especial dever de agir conforme ao direito, que o seu estatuto lhe impunha, a circunstância de o facto ter sido executado em público, com o “alarme descrito”, a “considerável intensidade do dolo, dado o lapso de tempo em que o arguido ainda se manteve no local”, a circunstância de o arguido pretender eximir-se a uma eventual acção mais gravosa perante a justiça e o seu antecedente criminal, relacionado com o consumo de bebidas alcoólicas, se bem que pela prática de distinto ilícito. A seu favor considerou a circunstância de ter família organizada e responsabilidades familiares.

Entende o recorrente que não se verificam as circunstâncias elencadas no acórdão recorrido “como agravantes gerais”, decorrentes do «modo de execução do facto, em público e com o descrito alarme, o que depõe contra o arguido» e a «considerável intensidade do dolo, dado o lapso de tempo em que o arguido ainda se manteve no local», o que, a seu ver, determina uma diminuição da culpa, que se deve reflectir na diminuição da pena aplicada, que nunca deverá exceder os cinquenta dias de multa, sob pena de violação do disposto nos artigos 40.º, n.º 2, e 71.º, n.º 1, do Código Penal.

18.1. A primeira destas circunstâncias diz respeito à situação imediatamente anterior, descrita no ponto 1 da matéria de facto provada, em que se refere que o arguido se encontrava num bar em que provocou distúrbios com outros clientes – o que motivou uma “denúncia pela prática de uma agressão física”, a “chamada de atenção” pelo empregado CC “para que se abstivesse de continuar a sua conduta” e o “alerta do ofendido CC acerca do comportamento do arguido –, o que levou a que os militares da GNR fossem chamados ao local (pontos 1 e 3 da matéria de facto). Foi na imediata sequência disso que o arguido (que se havia deslocado para o seu veículo automóvel que colocou em marcha, percorrendo alguns metros) foi mandado parar e, depois de o ter feito, após fazer marcha atrás imobilizando o veículo sobre o passeio do lado esquerdo do seu sentido de marcha, depois de inicialmente não ter acatado a ordem de paragem, foi abordado por esses agentes da autoridade com recurso a sinais manuais e lanterna de cone luminoso. É nesta situação de sequência e íntima conexão de factos que foi praticado o crime de desobediência.

Assim, é justificável que, na expressão do acórdão recorrido, se possa fazer referência ao “alarme” provocado, no significado comum dos dicionários de “aviso de perigo” – pelo menos no que diz respeito à razão que levou o empregado do bar a chamar os agentes de autoridade, que ocorreram ao local – e é seguro afirmar-se, como no acórdão recorrido, que os factos foram praticados em público, em circunstâncias de grande exposição e visibilidade e com perturbação da ordem pública, que obrigaram à intervenção destes agentes.

Estes factos, provocados e praticados pelo arguido, a quem se impõem particulares deveres de conduta e respeito pelo direito, dada a sua qualidade de juiz de direito, não podem deixar de ser valorados de forma particularmente negativa como circunstância relativa à ilicitude e como circunstância relativa à culpa, pela censurabilidade que revelam, nos termos do n.º 2 do artigo 71.º do Código Penal.

18.2. A segunda circunstância, relacionada com o “lapso de tempo em que o arguido ainda se manteve no local”, valorada para efeitos de apreciação da “considerável intensidade do dolo”, parece, nesta perspectiva, de efeito aparentemente neutro. Está provado que o arguido, ao abandonar o local, para se eximir à realização da prova de detecção de álcool, agiu com dolo directo (ponto 10 da matéria de facto provada), o que se afigura suficiente para este se considerar revelado na sua forma mais intensa (alínea b) do n.º 2 do artigo 71.º do Código Penal). A permanência no local, em satisfação e durante o tempo que lhe foi solicitado pelos agentes da autoridade, ou seja, durante cerca de 10 minutos, enquanto se submeteu aos procedimentos iniciais de fiscalização e aguardou a chegada do aparelho de detecção de álcool, não deverá, assim, ser valorada negativamente contra o arguido.

A não consideração desta circunstância não tem, no entanto, potencialidade para, por si, justificar a atenuação da intensidade do dolo, com efeitos directos na determinação da medida da pena.

18.3. Pelo exposto, não se identifica razão que possa constituir fundamento para, nesta parte, julgar procedente o recurso do arguido.

Para além disso, não se mostra que o acórdão recorrido tenha omitido ou tenha procedido à exigida ponderação das demais circunstâncias relevantes para efeitos de determinação da pena em desconformidade com o disposto no artigo 71.º do Código Penal, nada mais resultando que fundadamente justifique a alteração do decidido.

19. No que se diz respeito à determinação da quantia diária da multa, defende o Ministério Público recorrente, no que é acompanhado pelo Exmo. Procurador-Geral Adjunto neste tribunal, que tal quantia deve ser fixada em 25 euros.

Na motivação do recurso limita-se a afirmar que “não se concorda com o quantitativo diário da taxa correspondente a cada dia de multa”, não indicando as razões da discordância, que, todavia, explicita nas conclusões ao referir que “será de aplicar uma taxa diária não inferior a € 25,00, atendendo ao estatuto socioprofissional do arguido”.

Da matéria de facto provada, em que se fundamenta a decisão de fixar esta quantia em 15 euros, em atenção ao disposto no artigo 47.º do Código Penal, que levou em conta o estatuto do arguido, não se identifica motivo que justifique a alteração. Sendo o arguido detentor do estatuto remuneratório de juiz de direito – que, por si só, não pode fundamentar a alteração do quantitativo diário da multa (cfr., neste sentido, Maria João Antunes, Consequências Jurídicas do Crime, Coimbra Editora, 2013, p. 47) –, não lhe sendo legalmente permitido o exercício de outra actividade remunerada, nos termos do Estatuto dos Magistrados Judiciais (Lei n.º 21/85, de 30 de Julho) e não lhe sendo conhecidos outros rendimentos, não se alcança fundamento sólido que justifique o deferimento da pretensão.

Pelo que improcede o recurso.

Quanto à rectificação do acórdão

20. Finalmente, alega o Ministério Público que o acórdão recorrido enferma de lapso resultante da omissão da ordem de remessa de boletins ao registo criminal, nos termos previstos na al. d) do n.º 3 do artigo 374.º do CPP.

Esta ordem é obrigatória sempre que, como sublinha o Exmo. Procurador-Geral Adjunto neste tribunal, os tribunais não ordenem a não transcrição da sentença, em conformidade com o disposto no artigo 13.º da Lei n.º 347/2015, de 5 de Maio (Lei de identificação criminal).

A não observância daquela disposição do CPP deve ser suprida por correcção da sentença, como previsto no artigo 380.º, n.º 1, al. a), do CPP, a qual, tendo subido o recurso, deve ser feita pelo tribunal competente para dele conhecer (n.º 2 do mesmo preceito).

Impõe-se, pois, fazer esta correcção.

Quanto a custas

21. Nos termos do disposto no artigo 513.º do CPP, só há lugar ao pagamento da taxa de justiça pelo arguido quando ocorra condenação em 1.ª instância e decaimento total em qualquer recurso. O respectivo quantitativo é fixado pelo juiz, a final, nos termos previstos no Regulamento das Custas Processuais.

Não havendo decaimento total no recurso, não há lugar ao pagamento de taxa de justiça.

III. Decisão

22. Pelo exposto, acordam os juízes da Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça em:

a) Na procedência parcial do recurso do arguido, modificar os pontos 5, 8, 9 e 10 da descrição da matéria de facto provada nos termos que acima constam do ponto 12.2 desta decisão;

b) No mais, julgar totalmente improcedente o recurso interposto pelo arguido AA;

c)  Julgar improcedente o recurso do Ministério Público no que diz respeito à determinação da quantia diária da pena de multa aplicada;

d)  Rectificar o acórdão recorrido, ordenando a remessa dos boletins respeitantes à decisão condenatória ao registo criminal, nos termos do disposto no artigo 374.º, n.º 3, al. d), do Código de Processo Penal.

Sem custas.

Supremo Tribunal de Justiça, 24 de Janeiro de 2018.