Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
05S3641
Nº Convencional: JSTJ000
Relator: PINTO HESPANHOL
Descritores: ACIDENTE DE TRABALHO
SEGURO DE ACIDENTES DE TRABALHO
DONO DA OBRA
TOMADOR
SEGURADORA
ENTIDADE PATRONAL
RESPONSABILIDADE
CASO JULGADO
Nº do Documento: SJ200603220036414
Data do Acordão: 03/22/2006
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA.
Decisão: CONCEDIDA A REVISTA.
Sumário : 1. Tendo o dono da obra contratado o seguro por conta própria, nos termos das condições gerais da apólice uniforme de seguro de acidentes de trabalho para trabalhadores por conta de outrem, aprovadas pela norma n.º 12/99-R, de 8 de Novembro (Regulamento n.º 27/99, Diário da República, II série, n.º 279, de 30 de Novembro de 1999), as pessoas seguras eram os trabalhadores ao seu serviço, vinculados por contrato de trabalho ou contrato legalmente equiparado, ou na sua dependência económica (artigo 1.º), ficando excluídos da cobertura daquele seguro os acidentes de trabalho de que fossem vítimas aqueles que não tivessem com o tomador de seguro um contrato de trabalho (n.º 3 do artigo 5.º das mesmas condições gerais);
2. Não se tendo provado que o sinistrado estivesse ao serviço do tomador de seguro (vinculado por contrato de trabalho ou contrato legalmente equiparado, ou na sua dependência económica), nem que o dono da obra tivesse celebrado o contrato de seguro de acidentes de trabalho por conta ou a favor da entidade empregadora do sinistrado, a ré seguradora não poderia ser considerada responsável pelo sinistro;
3. Deste modo, é a entidade empregadora do sinistrado quem deverá suportar a obrigação de indemnização relativa aos danos emergentes do acidente de trabalho em causa, e não tendo transferido a sua responsabilidade de forma válida para uma qualquer seguradora, recai, pessoalmente, sobre essa entidade empregadora o dever de reparação relativo ao acidente de trabalho;
4. A questão da responsabilidade da entidade empregadora foi também posta no recurso, impedindo a formação do caso julgado, por isso, procedendo o recurso interposto pela ré seguradora, devendo, em consequência, ser absolvida do pedido, mantém-se pendente a questão de saber quem responde pela reparação do acidente, pelo que deve ser reapreciada no recurso a responsabilidade da entidade empregadora, que anteriormente havia sido absolvida do pedido.
Decisão Texto Integral: Acordam na Secção Social do Supremo Tribunal de Justiça:


I

1. Em 25 de Julho de 2002, no Tribunal do Trabalho de Ponta Delgada, AA intentou a presente acção, com processo especial, emergente de acidente de trabalho contra BB - Empreiteiro de Construção Civil, Empresa-A, e Empresa-B, pedindo a condenação dos réus, conforme a sua responsabilidade, no pagamento das pensões e indemnizações a que se julga com direito, com fundamento no acidente de trabalho, ocorrido em 28 de Julho de 2001, quando prestava a sua actividade profissional de pedreiro, sob a autoridade, direcção e fiscalização do primeiro réu, de que resultou uma IPP de 75%, com incapacidade absoluta para o trabalho habitual.

O réu BB contestou, por excepção, invocando a sua ilegitimidade, já que o autor não trabalhava sob a sua direcção e fiscalização, mas sim de CC, cuja intervenção principal requereu, e, ainda, por impugnação, em que reafirmou não ser a entidade patronal do autor.

A ré seguradora, por sua vez, alegou não ter qualquer responsabilidade pela assistência ao autor, porquanto a apólice contratada não cobria o sinistrado, uma vez que este não é nem nunca foi empregado do tomador do seguro CC, pelo que, só a entidade patronal do sinistrado, no caso, o réu BB, pode ser responsabilizado pelas indemnizações devidas ao seu trabalhador.
O Empresa-B invocou a sua ilegitimidade por falta da verificação dos pressupostos legais para assumir o pagamento a título subsidiário do pedido formulado e por impugnação alega o desconhecimento completo dos factos.

Entretanto, foi admitido o incidente de intervenção principal provocada de CC, que contestou, alegando, por um lado, que ignorava as circunstâncias do acidente, os elementos do contrato de trabalho celebrado entre o empreiteiro e o sinistrado, bem como as consequências do sinistro, e, por outro, que «fez o contrato de seguro referido, porque foi informado pela Câmara Municipal da Lagoa que o tinha de fazer se quisesse obter a licença de construção», «contactou a companhia seguradora e esta proporcionou-lhe a documentação necessária para que a exigência da Câmara Municipal fosse satisfeita».

No despacho saneador, o Empresa-B foi julgado parte ilegítima e absolvido da instância, sendo o réu BB julgado parte legítima na acção.

Em sede de fixação da incapacidade, considerou-se que o sinistrado estava afectado de uma IPP de 75%, com incapacidade para o trabalho habitual.

Realizado o julgamento, foi proferida sentença que, em relação ao réu BB e ao chamado CC, julgou a acção improcedente, julgando-a procedente quanto à ré Empresa-A, condenando-a a pagar ao autor as seguintes quantias: (i) a pensão anual e vitalícia de € 6.808,59 em 14 prestações mensais de € 486,33 cada, sendo duas delas pagas em Maio e Novembro, vencida desde 28 de Maio de 2002; (ii) o subsídio por situação de elevada incapacidade permanente de € 3.158,10, vencido desde 28 de Maio de 2002; (iii) a prestação suplementar de assistência de terceira pessoa, no montante mensal da remuneração mínima garantida para o serviço doméstico na Região Autónoma dos Açores, a actualizar em função da sua fixação anual, vencida desde 28 de Maio de 2002, e que se liquidou, até 31 de Dezembro de 2003, em € 11.152,02; (iv) subsídio para readaptação da habitação do sinistrado, se e quando este realizar obras, até ao montante máximo de € 4.210,80; (v) juros de mora à taxa legal sobre as prestações vencidas desde 28 de Maio de 2002 e até integral pagamento.

A mesma sentença condenou, ainda, a ré seguradora e o réu BB, como litigantes de má fé, nas multas, respectivamente, de 95 UC e 10 UC.

2. Inconformada, a ré seguradora interpôs recurso de apelação, que a Relação julgou improcedente, confirmando a sentença recorrida, sendo contra esta decisão que a ré agora se insurge, mediante recurso de revista, em que pede a revogação do acórdão recorrido ao abrigo das seguintes conclusões:

1) A seguradora sabia que o dono da obra é médico e não tinha trabalhadores ao seu serviço e, por isso - exactamente por isso -, não emitiu uma apólice de seguro por ano e seguintes e por folha de férias ou com menção de nomes, deixando em aberto nesta concreta apólice a possibilidade de o dono da obra contratar um mestre de obras e outros trabalhadores que, estes sim, seriam garantidos pela referida apólice;
2) Foi o fim concreto de obter a licença de construção que motivou o tomador e a seguradora a celebrarem o contrato de seguro e, por isso mesmo, a apólice se manteve em vigor - nunca tendo sido anulada, nem mesmo aquando da anulação da participação de sinistro;
3) Nada, mesmo nada, impedia o interveniente Dr. DD, médico, sem trabalhadores de construção civil a seu cargo, de adjudicar directamente a mestres da especialidade, individualmente, a realização da obra, pagando-lhes e agindo como dono da obra;
4) São as entidades empregadoras as obrigadas à transferência da sua responsabilidade civil objectiva para as seguradoras;
5) As apólices de seguro de responsabilidade civil infortunístico-laboral, na modalidade de seguro por área e sem menção de nomes, como a do caso sub specie, são contratadas especificamente com donos de obra que realizem a mesma sob administração directa;
6) A apólice manteve-se sempre em vigor, nunca tendo sido anulada, nem mesmo aquando da anulação da participação de sinistro;
7) Se a dado passo o dono da obra decide celebrar um contrato de empreitada, passa a ser o empreiteiro quem tem que celebrar o seguro de acidente de trabalho relativamente aos seus trabalhadores pois é sobre este que incumbe a obrigação de garantir a responsabilidade civil objectiva infortunística dos seus trabalhadores, podendo inclusivamente o dono da obra vir a perder o eventual interesse na apólice de seguro e determinando a sua anulabilidade nos termos do disposto no § 1.º do artigo 428.º do Código Comercial;
8) Não se pode, por isso, no caso sub specie, entender-se o contrato de seguro celebrado com a ré seguradora como um contrato a favor de terceiro de duplo grau, pois a conjugação da obrigação de segurar (vide artigo 37.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 100/97) com a responsabilidade civil objectiva da entidade empregadora determina que seja o empreiteiro não só o responsável pela segurança dos seus trabalhadores como entidade empregadora, como o responsável único (e necessário) pela celebração do devido seguro de acidentes de trabalho, assumindo também pessoalmente as consequências da falta de tal seguro;
9) A inexistência de seguro por parte do obrigado não implica que se lance mão de uma outra qualquer apólice de seguro existente, ainda que para o mesmo local de obra - isso representaria a atribuição de responsabilidade civil objectiva por acidentes laborais a quem manifestamente a não tem;
10) A apólice de seguro foi mantida em vigor pelo prazo previsto, mas apenas para os eventuais riscos de contratação directa de trabalhadores pelo dono da obra;
11) Se o interveniente Dr. DD, médico, em vez de um contrato de empreitada tivesse celebrado um contrato com todos os mestres, pagando-lhes a realização da obra, o contrato seria de realização de obra por administração directa e, neste caso, sem qualquer margem para dúvidas, o acidente de trabalho estaria coberto pelo seguro em causa, e seria qualquer sinistrado ressarcido via a apólice de seguro celebrada com a ré segura;
12) Mas não foi assim que as coisas ocorreram e o que se verifica é, no caso vertente, a pura e simples falta de seguro que garantisse a responsabilidade civil do empreiteiro pelos acidentes de trabalho dos seus assalariados; logo, a falta de seguro que permitisse cobrir o acidente que vitimou o sinistrado e ora autor nestes autos;
13) O que se verificou no presente caso foi que a entidade responsável pela indemnização por acidentes de trabalho, o empreiteiro e entidade patronal do sinistrado, não tendo transferido a sua responsabilidade de forma válida para uma qualquer seguradora, não tem seguro que cubra a obrigação de indemnização a que está sujeita;
14) É a entidade patronal do sinistrado quem deverá, pessoalmente, garantir e cumprir a obrigação de indemnização relativa aos danos e sequelas derivadas do sinistro - no caso, o réu BB;
15) Não há assim qualquer lacuna legal neste instituto que legitime a interpretação do contrato de seguro por recurso aos termos gerais do direito que configura o contrato a favor de terceiro nos artigos 443.º e seguintes do Código Civil, até porque o regime aplicável a este caso concreto, em última análise, seria o do contrato de seguro em nome de outrem, previsto pelo Código Comercial no seu artigo 428.º;
16) O artigo 5.º, n.º 3, da Apólice Uniforme de Contrato de Seguro de Acidentes de Trabalho (com força legal autónoma de legislação especial, conferida pelo Regulamento n.º 27/99-R do ISP, de 8 de Novembro de 99, publicada em 30.11.99, no Diário da República, II série, pág. 18062), exclui expressamente da garantia do contrato de seguro todos aqueles que não tenham com o tomador do seguro um contrato de trabalho;
17) Ora, no caso sub judice, o único contrato que o tomador do seguro celebrou foi um contrato de empreitada com o co-réu Custódio, inexistindo qualquer contrato de trabalho ou sequer de prestação de serviços ou similar celebrado entre o Dr. DD e o autor sinistrado pelo que jamais a ré seguradora poderia ser considerada responsável pelo sinistro ocorrido com o autor, uma vez não ser este empregado do tomador do seguro (vide pontos 2 e 3 da matéria de facto provada);
18) No que concerne à condenação da ré seguradora como litigante de má fé, importa aqui fazer a cronologia dos factos pois é, em ultima análise, esta cronologia que determina a posição da seguradora ré e determinou a sua defesa: o primeiro momento importante é o da subscrição do contrato de seguro (este momento ocorreu em 28 de Fevereiro de 2001 tendo o contrato tido início em 5 de Março de 2001); um segundo momento de relevo é o que vem provado nos autos sob o ponto 3 dos factos provados na sentença (celebração de um contrato de empreitada por virtude do qual o réu BB se comprometeu, mediante um preço, a construir uma moradia na Local-A); o terceiro, e último, momento relevante teve lugar no dia 28 de Julho de 2001, e foi a ocorrência do sinistro;
19) A proposta de contrato de seguro foi submetida à ré no mês anterior à celebração do contrato de empreitada, a apólice de seguro de acidentes de trabalho contratada era temporária (por 365 dias), no ramo da construção, sem definição de trabalhadores mas com a menção das categorias profissionais (pedreiro, carpinteiro e servente) e por área de obra, tendo sido pedida pelo tomador do seguro à seguradora para fins de obtenção de licença de construção por exigência da Câmara e a seguradora sabia que o tomador do seguro é médico e não tinha trabalhadores de construção civil a seu cargo;
20) Apesar de não se ter provado a convicção da seguradora no momento da celebração do contrato, sempre se terá que admitir que a manutenção da apólice em vigor implica que a seguradora sabia que o risco inerente à mesma poderia a qualquer momento existir;
21) Do facto de se ter provado que a seguradora sabia que o tomador era médico e que não tinha trabalhadores a cargo - ao tempo da celebração do contrato de seguro, precise-se - não deve resultar que a seguradora se haja defendido com má fé material;
22) E isto, uma vez que, depois de emitida a apólice, a seguradora não voltou a ter notícias do tomador do seguro até à participação do sinistro, tendo mesmo chegado a assistir o sinistrado, só tendo deixado de o fazer quando verificou a existência do contrato de empreitada e que este não tinha sido contratado pelo tomador do seguro e, ainda assim, sempre manteve a apólice de seguro em vigor;
23) Considerando todo o acervo de prova com interesse para a decisão, não pode deixar de se considerar que a seguradora, à data da celebração do contrato, não podia admitir ou excluir a hipótese de o tomador vir a ser ele mesmo a administrar a obra, confundindo-se na sua pessoa a do dono da obra e administrador da mesma, o que implica que, apesar de não se provar claramente a sua convicção na celebração do contrato, também não determina que tenha litigado de má fé decorrente tão-somente do facto de saber que o tomador era médico e não tinha trabalhadores a seu cargo;
24) O tempo que medeia entre os momentos da celebração do contrato de seguro e o da confirmação de que o tomador não tinha trabalhadores a seu cargo, o que só ocorreu muito mais tarde e após a ocorrência do sinistro, não pode permitir que considerado que foi como não provada a convicção da seguradora e provado que o tomador não tinha trabalhadores a seu cargo, tal implique uma necessária má fé na defesa da seguradora;
25) Houve efectivamente um primeiro momento motivador da contratação da apólice - para a obtenção da licença de obra -, e um segundo momento - o da realização da mesma - em que a seguradora não podia adivinhar as intenções do tomador, veio até a saber da existência do contrato de empreitada já após a ocorrência do sinistro - é, por isso, legítimo afirmar, como a seguradora fez, embora o não lograsse provar, que a seguradora estava convicta ou admitia como provável ou possível ser o tomador quem contrataria os trabalhadores (só neste caso, aliás, em seu entender, podendo fazer actuar o risco garantido pela apólice);
26) Admite humildemente a ré seguradora que a formulação dada ao artigo 16.º da contestação possa não ser a mais feliz, mas isso não permite - crê-se - em face dos factos provados e o seu enquadramento cronológico, a manifestação de má fé processual da seguradora;
27) O acórdão recorrido viola, assim, o disposto nos artigos 2.º e 37.º da Lei n.º 100/97 Lei de Acidentes de Trabalho, artigo 5.º, n.º 3, da apólice uniforme de acidentes de trabalho (Regulamento n.º 27/99-R do ISP, de 8 de Novembro de 99, publicado em 30.11.99, no DR. II série pág. 18062), artigos 443.º e seguintes do Código Civil, 427.º e 428.º, n.º 1, do Código Comercial e 456.º, n.º 2, alínea a) do Código de Processo Civil.

Em contra-alegações, os recorridos defenderam a confirmação do julgado, tendo os recorridos AA e BB suscitado, nas respectivas contra-alegações, a questão prévia da extemporaneidade da apresentação da alegação do recurso, concluindo que o recurso de revista interposto devia ser julgado deserto.

A ré seguradora respondeu, pugnando pela improcedência da questão posta.

Tendo-se verificado que a recorrente apresentou a alegação do recurso de revista, em 29 de Julho de 2005, segundo dia útil seguinte ao termo do prazo previsto na lei para o efeito, e que pagou a multa prevista no n.º 6 do artigo 145.º do Código de Processo Civil, por despacho do relator (fls. 915-916), foi julgada válida a alegação de recurso apresentada e improcedente a sobredita questão prévia, despacho que, notificado às partes, não motivou qualquer reclamação.

Continuados os autos com vista, a Ex.ma Procuradora-Geral-Adjunta neste Supremo Tribunal pronunciou-se no sentido de ser negada a revista, parecer que, notificado às partes, não suscitou qualquer resposta.

3. No caso vertente, sabido que o objecto do recurso é delimitado pelas conclusões da pertinente alegação (artigos 684.º, n.º 3, e 690.º, n.º 1, do Código de Processo Civil), as questões suscitadas reconduzem-se a indagar:

- Se o acidente de trabalho em apreço está ou não coberto pelo contrato de seguro celebrado entre a ré seguradora e o tomador do seguro, dono da obra;
- Se há lugar à condenação da ré seguradora como litigante de má fé.

Corridos os vistos, cumpre decidir.

II

1. O tribunal recorrido deu como provada a seguinte matéria de facto:

1) O autor é pedreiro;
2) Desde 1996, o autor trabalha para o réu BB como pedreiro;
3) O chamado CC celebrou, em Abril de 2001, com o réu BB, um contrato de empreitada por virtude do qual este réu se comprometeu, mediante um preço, a construir uma moradia na Local-A;
4) No dia 28 de Julho de 2001, o autor encontrava-se a trabalhar como pedreiro num prédio urbano, sito no lugar da Local-A, Água de Pau, Lagoa, propriedade de CC;
5) Ao arrematar o beiral do referido prédio, o andaime de suporte partiu-se e, em consequência, o autor caiu ao solo de uma altura de cerca de 5 metros;
6) Em virtude da queda, o autor sofreu as lesões descritas nos autos de exame médico de fls. 5 a 8, 35 a 100 e 110, ficando afectado de IPP de 75 %, com incapacidade para o trabalho habitual, desde 28 de Maio de 2002;
7) O proprietário do prédio urbano onde o autor trabalhava transferiu, pela apólice n.º 10.170107, para a ré seguradora a responsabilidade por acidentes de trabalho, na modalidade de «construção civil de edifícios - seguro por área», sem menção de nomes;
8) O chamado fez o contrato de seguro porque foi informado na Câmara Municipal da Lagoa que tinha de o fazer se quisesse obter a licença de construção;
9) Contactou a companhia de seguros, e esta proporcionou-lhe a documentação necessária para que a exigência da Câmara fosse satisfeita;
10) A ré seguradora aceitou o contrato sabendo que o tomador do seguro, médico de profissão, não tinha trabalhadores de construção civil a seu cargo;
11) O chamado participou à ré seguradora o acidente;
12) Depois do acidente, e depois da ré seguradora ter tomado conhecimento do contrato de empreitada, exigiu do chamado que corrigisse a declaração feita anteriormente, ou seja, que retirasse a participação do sinistro;
13) O réu BB não tinha a sua responsabilidade por acidentes de trabalho transferida para qualquer seguradora;
14) O autor foi pago pela ré seguradora das indemnizações por ITA até 28 de Fevereiro de 2002;
15) O actual estado físico do autor impõe que este esteja permanentemente acompanhado uma vez que se encontra confinado a uma cadeira de rodas;
16) A condição física do autor não lhe permite sequer ir sozinho ao quarto de banho realizar as suas necessidades;
17) O autor tem de proceder a obras de remodelação na sua moradia a fim de poder deslocar-se mais facilmente dentro dela, adaptando-a à circulação da cadeira de rodas.
18) Tem que eliminar os degraus da moradia de forma a facilitar o acesso do autor ao 1.º andar.

Os factos materiais fixados pelo tribunal recorrido não foram objecto de impugnação pelas partes, nem se vislumbra que ocorra qualquer das situações que permitam ao Supremo alterá-los ou promover a sua ampliação (artigos 722.º, n.º 2, e 729.º, n.º 3, ambos do Código de Processo Civil), por conseguinte, será com base nesses factos que hão-de ser resolvidas as questões suscitadas no presente recurso.

2. A recorrente sustenta, em primeira linha, que sendo o tomador do seguro apenas o dono da obra, não pode o seguro de acidentes de trabalho cobrir o sinistro que ocorreu com um trabalhador que não era seu empregado, face ao preceituado no n.º 3 do artigo 5.º das condições gerais da apólice uniforme de acidentes de trabalho para trabalhadores por conta de outrem, que, de forma inequívoca, exclui deste contrato de seguro todos aqueles que não tenham com o tomador de seguro um contrato de trabalho, sendo que todos os trabalhadores em obra, à data do sinistro, eram empregados do réu BB, que era quem tinha a obrigação de ter transferido a sua responsabilidade por acidentes de trabalho para uma seguradora.

Inexistia qualquer contrato de trabalho ou sequer de prestação de serviços ou similar celebrados entre o tomador do seguro e o autor/sinistrado pelo que não poderia ser considerada responsável pelo sinistro ocorrido.

Não haveria, assim, qualquer lacuna legal neste instituto que legitimasse a interpretação do presente contrato de seguro por recurso aos termos gerais do direito que configura o contrato a favor de terceiro nos artigos 443.º e seguintes do Código Civil, até porque o regime aplicável ao caso seria, em última análise, o do contrato de seguro em nome de outrem, previsto no artigo 428.º do Código Comercial.

Ora, a inexistência de seguro por parte do obrigado não implica que se lance mão de uma outra qualquer apólice de seguro existente, ainda que para o mesmo local de obra, pois, isso representaria a atribuição de responsabilidade civil objectiva por acidentes laborais a quem manifestamente a não tem, acrescentando a recorrente que «a apólice de seguro foi mantida em vigor pelo prazo previsto, mas apenas para os eventuais riscos de contratação directa de trabalhadores pelo dono da obra».

Por sua vez, o acórdão recorrido, na linha do entendimento sufragado na primeira instância, considerou que a seguradora, conhecedora das normas da apólice uniforme de seguros que agora invoca, ao aceitar a celebração do contrato em causa, sabendo que tomador de seguro não tinha trabalhadores a seu cargo, aceitou cobrir os riscos dos trabalhadores que iriam executar a obra em referência, dentro do principio da liberdade contratual que lhe assiste, aceitando assim que o tomador de seguro, enquanto dono da obra, se substituísse, para o referido efeito, à entidade patronal dos trabalhadores que exerceriam a actividade laboral naquela obra.

A seguradora não tinha a sua vontade negocial viciada por qualquer erro, sabia o que contratava, porque o fazia e com quem o fazia, pois ficou provado que foi a seguradora que proporcionou ao tomador do seguro a documentação necessária para que a exigência da Câmara fosse satisfeita (facto n.º 9 da matéria de facto).

Deste modo, a ré seguradora seria a responsável pelas consequências do acidente, por força do contrato de seguro de acidentes de trabalho, na modalidade de «construção civil de edifícios - seguro por área», sem menção de nomes, que abrangeu o sinistro dos autos, uma vez que o autor estava na obra cuja área define o local coberto pelo seguro, sendo, por isso, beneficiário do contrato de seguro celebrado com o dono da obra.
2.1. O regime jurídico do contrato de seguro acha-se disperso por diversos diplomas, com destaque, fundamentalmente, para o Código Comercial (artigos 425.º a 462.º e 595.º a 615.º), o Decreto-Lei n.º 176/95, de 26 de Julho, que estabelece regras de transparência para a actividade seguradora e disposições complementares relativas ao regime jurídico do contrato de seguro, o Decreto-Lei n.º 94-B/98, de 17 de Abril, com as alterações introduzidas pelo Decreto-Lei n.º 8-C/2002, de 11 de Janeiro, que define o regime de acesso e de exercício da actividade seguradora e resseguradora no território da Comunidade Europeia (Regime Geral das Empresas Seguradoras), e o Decreto-Lei n.º 142/2000, de 15 de Julho, que prevê o regime jurídico do pagamento dos prémios de seguro.

Enquanto contrato de adesão, o contrato de seguro está ainda sujeito ao regime das cláusulas contratuais gerais do Decreto-Lei n.º 446/85, de 25 de Outubro, alterado pelos Decretos-Leis n.º 220/95, de 31 de Agosto, e n.º 249/99, de 7 de Julho.

2.1.1. Nos termos do artigo 426.º do Código Comercial, o contrato de seguro deve ser reduzido a escrito num instrumento, a designada apólice de seguro (trata-se, pois, de um contrato formal ad substanciam), que deve ser datada, assinada pelo segurador, e enunciar: (1.º) o nome ou firma, residência ou domicílio do segurador; (2.º) o nome ou firma, qualidade, residência ou domicílio do que faz segurar; (3.º) o objecto do seguro e a sua natureza e valor; (4.º) os riscos contra que se faz o seguro; (5.º) o tempo em que começam e acabam os riscos; (6.º) a quantia segurada; (7.º) o prémio do seguro; (8.º) e, em geral, todas as circunstâncias cujo conhecimento possa interessar o segurador, bem como todas as condições estipuladas pelas partes.

Por sua vez, o artigo 427.º do Código Comercial rege sobre os princípios atinentes à disciplina do contrato de seguro, que «regular-se-á pelas estipulações da respectiva apólice não proibidas pela lei, e, na sua falta ou insuficiência, pelas disposições deste Código».

O contrato de seguro pode revestir as duas modalidades contempladas no artigo 428.º do Código Comercial: o seguro pode ser contratado por conta própria ou por conta de outrem.

De acordo com a citada disposição, «[s]e aquele por quem ou em nome de quem o seguro é feito não tem interesse na cousa segurada, o seguro é nulo» (§ 1.º), e «[s]e não se declarar na apólice que o seguro é por conta de outrem, considera-se contratado por conta de quem o fez» (§ 2.º).

Matéria particularmente importante é a relativa às declarações inexactas, prevendo-se, no artigo 429.º do Código Comercial, que «[t]oda a declaração inexacta, assim como toda a reticência de factos ou circunstâncias conhecidas pelo segurado ou por quem fez o seguro, e que teriam podido influir sobre a existência ou condições do contrato tornam o seguro nulo» (n.º 1), sendo que o segurador terá direito ao prémio, «[s]e da parte de quem fez as declarações tiver havido má fé» (§ único).

No capítulo do Código Comercial respeitante aos seguros contra riscos, interessa destacar: os casos de nulidade do seguro (436.º), «se, quando se concluiu o contrato, o segurador tinha conhecimento de haver cessado o risco, ou se o segurado, ou a pessoa que fez o seguro, o tinha da existência do seguro»; os casos em que o seguro fica sem efeito (artigo 437.º), «se a cousa segura não chegar a correr risco, se o sinistro resultar de vício próprio conhecido do segurado e por ele não denunciado ao segurador, se o sinistro tiver sido causado pelo segurado ou por pessoa por quem ele seja civilmente responsável, se o sinistro for ocasionado por guerra ou tumulto de que o segurador não tivesse tomado o risco»; a obrigação do segurado de participar ao segurador o sinistro dentro dos oito dias imediatos àquele em que ocorreu ou àquele em que do mesmo teve conhecimento, sob pena de responder por perdas e danos (artigo 440.º); e os direitos do segurador e do segurado contra terceiro causador do sinistro (artigo 441.º).

2.1.2. O regime jurídico contido no Decreto-Lei n.º 176/95, de 26 de Julho, abre com a definição dos termos pertinentes à regulamentação do contrato de seguro.

Assim, nos termos do seu artigo 1.º, «empresa de seguros ou seguradora» é a «entidade legalmente autorizada a exercer a actividade seguradora e que subscreve, com o tomador, o contrato de seguro» [alínea a)]; «tomador de seguro» é a «entidade que celebra o contrato de seguro com a seguradora, sendo responsável pelo pagamento do prémio» [alínea b)]; «segurado» é a «pessoa no interesse da qual o contrato é celebrado ou a pessoa (pessoa segura) cuja vida, saúde ou integridade física se segura» [alínea c)]; «beneficiário» é a «pessoa singular ou colectiva a favor de quem reverte a prestação da seguradora decorrente de um contrato de seguro ou de uma operação de capitalização» [alínea e)].

O Capítulo II do diploma contempla os deveres de informação que cabem à empresa de seguros no domínio do ramo «Vida» (artigo 2.º), dos ramos «Não vida» (artigo 3.º), seguros de grupo (artigo 4.º) e seguros com exame médico (artigo 5.º), divulgação das condições tarifárias (artigo 6.º) e publicidade (artigo 7.º).

Por seu turno, no Capítulo III prevê-se regulamentação tendente a reduzir o potencial de conflito entre as seguradoras e os tomadores de seguro, minimizando as suas principais causas e clarificando direitos e obrigações.

Neste particular, importa referir as normas destinadas a garantir a transparência nas relações pré e pós-contratuais, determinando-se que «[a]s condições gerais e especiais devem ser redigidas de modo claro e perfeitamente inteligível» (artigo 8.º), que «[a]s condições especiais ou particulares dos contratos não podem modificar a natureza dos riscos cobertos nos termos das condições gerais e ou especiais a que se aplicam, tendo em conta a classificação de riscos por ramos de seguros e operações legalmente estabelecida» (artigo 9.º), quais os elementos que devem constar das condições gerais e ou especiais dos contratos de seguro do ramo «Vida» e «Não vida» (artigos 10.º a 16.º).

Quanto à celebração e execução do contrato de seguro, regula-se a formação do contrato (artigo 17.º), a resolução e a renovação do contrato (artigo 18.º), o estorno do prémio de seguro (artigo 19.º), as informações relativas ao resultado do exame médico (artigo 20.º) e especificidades atinentes à execução, renovação, renúncia e cessação dos seguros de doença, de caução, de responsabilidade automóvel e do ramo «Vida» (artigos 21.º a 25.º).

2.1.3. Resta atentar nas regras do Decreto-Lei n.º 94-B/98, de 17 de Abril, que definem os vários sub-ramos do ramo «Não vida» e os poderes do Instituto de Seguros de Portugal no domínio da supervisão dos seguros obrigatórios.

Segundo a alínea a) do n.º 1 do artigo 123.º, o seguro de acidentes de trabalho é uma modalidade incluída no ramo «acidentes» do ramo «Não vida».

Por outro lado, a exploração do seguro de acidentes de trabalho, tratando-se de uma modalidade de seguro obrigatório, está sujeita à supervisão do Instituto de Seguros de Portugal que «pode, no exercício das suas atribuições, impor o uso de cláusulas ou apólices uniformes para os ramos ou modalidades de seguros obrigatórios» (n.º 5 do artigo 129.º).

Refira-se, por último, que o Decreto-Lei n.º 94-B/98 revogou o Decreto-Lei n.º 102/94, de 20 de Abril, por isso, dispôs no seu artigo 246.º que as remissões constantes do mencionado Decreto-Lei n.º 176/95, e de outros actos de conteúdo normativo ou regulamentar, para o citado Decreto-Lei n.º 102/94, consideram-se feitas para as correspondentes disposições do Decreto-Lei n.º 94-B/98.

2.2. O direito dos trabalhadores a assistência e justa reparação, quando vítimas de acidente de trabalho, recebeu expresso reconhecimento constitucional na alínea f) do n.º 1 do artigo 59.º da Lei Fundamental, sendo que o n.º 3 do artigo 63.º da mesma Lei prevê a protecção pelo sistema de Segurança Social «no desemprego e em todas as outras situações de falta ou diminuição de meios de subsistência ou de capacidade para o trabalho».

O acidente dos autos ocorreu em 28 de Julho de 2001, por isso, no plano infraconstitucional aplica-se o regime jurídico da Lei n.º 100/97, de 13 de Setembro (Regime Jurídico dos Acidentes de Trabalho e das Doenças Profissionais), que entrou em vigor em 1 de Janeiro de 2000, conforme resulta da alínea a) do n.º 1 do seu artigo 41.º, conjugada com o disposto no n.º 1 do artigo 71.º do Decreto-Lei n.º 143/99, de 30 de Abril (Regulamento da Lei de Acidentes de Trabalho), na redacção que lhe foi dada pelo Decreto-Lei n.º 382-A /99, de 22 de Setembro.

O artigo 2.º da Lei n.º 100/97, epigrafado «Âmbito da lei», estabelece que «[têm direito à reparação os trabalhadores por conta de outrem de qualquer actividade, seja ou não explorada com fins lucrativos» (n.º 1), considerando trabalhadores por conta de outrem para efeito da atribuição dessa reparação «os que estejam vinculados por contrato de trabalho ou contrato legalmente equiparado e os praticantes, aprendizes, estagiários e demais situações que devam considerar-se de formação prática, e, ainda, os que, considerando-se na dependência económica da pessoa servida, prestem, em conjunto ou isoladamente, determinado serviço (n.º 2), determinando a aplicação do regime previsto para os trabalhadores por conta de outrem aos administradores, directores, gerentes ou equiparados (n.º 3).

Por sua vez, o artigo 37.º da Lei n.º 100/97 e a respectiva regulamentação [artigos 11.º, 15.º, 16.º, 59.º, 61.º, 67.º, n.º 1, alínea b), do Decreto-Lei n.º 143/99] prevêem a responsabilização da entidade empregadora pelos acidentes de trabalho sofridos pelos trabalhadores ao seu serviço e a obrigatoriedade de celebração de um contrato de seguro para transferir a responsabilidade pela respectiva reparação, sendo a responsabilização da entidade empregadora independente de culpa.

O contrato de seguro imposto pelo artigo 37.º citado é um contrato de direito privado celebrado pela entidade empregadora junto de seguradoras legalmente autorizadas a realizar este tipo de seguro, devendo observar o modelo constante na apólice uniforme do seguro de acidentes de trabalho, aprovada pelo Instituto de Seguros de Portugal (artigo 38.º da Lei n.º 100/97).

Nos termos das condições gerais da apólice uniforme de seguro de acidentes de trabalho para trabalhadores por conta de outrem, aprovadas pela norma n.º 12/99--R, de 8 de Novembro (Regulamento n.º 27/99, Diário da República, II série, n.º 279, de 30 de Novembro de 1999), com as alterações introduzidas pelas normas n.º 11/2000-R, de 13 de Novembro (Regulamento n.º 32/2000, Diário da República, II série, n.º 276, de 29 de Novembro de 2000), n.º 16/2000-R, de 21 de Dezembro (Regulamento n.º 3/2001, Diário da República, II série, n.º 16, de 19 de Janeiro de 2001), e norma 13/2005-R, de 18 de Novembro (Regulamento n.º 80/2005, Diário da República, II série, n.º 234, de 7 de Dezembro de 2005), «tomador de seguro» é a entidade empregadora que contrata com a seguradora, sendo responsável pelo pagamento dos prémios, «pessoa segura» é o trabalhador por conta de outrem, ao serviço do tomador de seguro, no interesse do qual o contrato é celebrado, bem como os administradores, directores, gerentes ou equiparados, quando remunerados, «trabalhador por conta de outrem» é o trabalhador vinculado por contrato de trabalho ou contrato legalmente equiparado, o praticante, aprendiz, estagiário e demais situações que devam considerar-se de formação profissional, e, ainda, todo aquele que, considerando-se na dependência económica do tomador de seguro, preste, em conjunto ou isoladamente, determinado serviço, e «sinistrado», a pessoa segura que sofreu um acidente de trabalho (artigo 1.º).

Por outro lado, o n.º 3 do artigo 5.º das mesmas condições gerais estipula que «[ficam excluídos do presente contrato os acidentes de trabalho de que seja vítima o tomador de seguro, quando se tratar de uma pessoa física, bem como todos aqueles que não tenham com o tomador de seguro um contrato de trabalho, salvo os administradores, directores, gerentes ou equiparados, quando remunerados».

Por conseguinte, no quadro do regime jurídico geral de protecção nos acidentes de trabalho, a responsabilidade da reparação pelos danos deles emergentes recai sobre a entidade empregadora, nos termos do disposto nos artigos 19.º, alínea e), da LCT, 18.º e 37.º da Lei 100/97, 11.º, 61.º, 67.º, n.º 1, alínea b), do Decreto-Lei n.º 143/99, assistindo-lhe o direito de regresso contra os terceiros responsáveis referidos nos artigos 18.º, n.º 3, e 31.º, n.os 1 e 4, da Lei 100/97.

2.3. Resulta da matéria de facto assente que o chamado CC, proprietário do prédio urbano onde o autor trabalhava, transferiu, mediante a apólice n.º 10.170107, para a ré seguradora a responsabilidade por acidentes de trabalho, na modalidade de «construção civil de edifícios - seguro por área», sem menção de nomes.

O dono da obra celebrou esse contrato de seguro porque foi informado na Câmara Municipal da Lagoa que tinha de o fazer se quisesse obter a licença de construção; contactou então a companhia de seguros e esta proporcionou-lhe a documentação necessária para que a exigência da Câmara fosse satisfeita. Por seu lado, a ré seguradora aceitou celebrar o contrato sabendo que o tomador do seguro, médico de profissão, não tinha trabalhadores de construção civil a seu cargo.

Também decorre da mencionada apólice, que o dono da obra, CC, é o tomador de seguro, o qual teve início em 5 de Março de 2001, sendo regido pelas condições gerais da apólice uniforme de seguro de acidentes de trabalho para trabalhadores por conta de outrem, aprovadas pela norma n.º 12/99-R, de 8 de Novembro, do Instituto de Seguros de Portugal, e garantindo a cobertura no caso de acidentes de trabalho ocorridos com o pessoal empregue na obra.

Mais se apurou: (i) desde 1996, o autor trabalhava para o réu BB como pedreiro; (ii) o chamado CC celebrou, em Abril de 2001, com o réu BB, um contrato de empreitada por virtude do qual este réu se comprometeu, mediante um preço, a construir uma moradia na Local-A; (iii) no dia 28 de Julho de 2001, ao arrematar o beiral do referido prédio, o autor caiu ao solo de uma altura de cerca de 5 metros, sofrendo lesões que determinaram que ficasse afectado de IPP de 75 %, com incapacidade para o trabalho habitual; (iv) o réu BB, empregador do sinistrado, não tinha a sua responsabilidade por acidentes de trabalho transferida para qualquer seguradora.

Portanto, decorre da matéria de facto assente que o dono da obra celebrou o referido contrato de seguro em seu próprio nome, «porque foi informado na Câmara Municipal da Lagoa que tinha de o fazer se quisesse obter a licença de construção», não se tendo demonstrado que tivesse celebrado esse contrato de seguro por conta ou a favor da entidade empregadora do sinistrado.

Aliás, conforme o disposto no § 2.º do artigo 428.º do Código Comercial, «[s]e não se declarar na apólice que o seguro é por conta de outrem, considera-se contratado por conta de quem o fez».

Tendo o dono da obra contratado o seguro por conta própria, nos termos das condições gerais da apólice uniforme de seguro de acidentes de trabalho para trabalhadores por conta de outrem, aprovadas pela norma n.º 12/99-R, de 8 de Novembro (Regulamento n.º 27/99, Diário da República, II série, n.º 279, de 30 de Novembro de 1999), as pessoas seguras eram os trabalhadores por conta de outrem ao serviço do tomador de seguro, ou seja, o trabalhador vinculado por contrato de trabalho ou contrato legalmente equiparado, o praticante, aprendiz, estagiário e demais situações que devam considerar-se de formação profissional, e, ainda, todo aquele que, considerando-se na dependência económica do tomador de seguro, preste, em conjunto ou isoladamente, determinado serviço (artigo 1.º), ficando excluídos da cobertura daquele seguro os acidentes de trabalho de que sejam vítimas aqueles que não tenham com o tomador de seguro um contrato de trabalho (n.º 3 do artigo 5.º das mesmas condições gerais).

Ora, não se tendo provado que o sinistrado estivesse ao serviço do tomador de seguro, vinculado por contrato de trabalho ou contrato legalmente equiparado, ou na sua dependência económica, nem que o dono da obra tivesse celebrado o contrato de seguro de acidentes de trabalho por conta ou a favor da entidade empregadora do sinistrado, a ré seguradora não poderia ser considerada responsável pelo sinistro que vitimou o autor.

É certo que a ré seguradora aceitou celebrar o antedito contrato sabendo que o tomador do seguro, médico de profissão, não tinha trabalhadores de construção civil a seu cargo, isto é, bem sabendo que não havia qualquer risco a cobrir; porém, no presente recurso não se discute o valor jurídico do contrato de seguro assim celebrado (cf. o disposto nos artigos 436.º e 437.º do Código Comercial), nem resulta desse circunstancialismo fáctico que a seguradora, «aceitou cobrir os riscos dos trabalhadores que iriam executar a obra em referência, dentro do principio da liberdade contratual que lhe assiste, aceitando assim que o tomador de seguro, enquanto dono da obra, se substituísse, para o referido efeito, à entidade patronal dos trabalhadores que exerceriam a actividade laboral naquela obra», tal como se afirma no acórdão recorrido.

Deste modo, é a entidade empregadora do sinistrado quem deverá suportar a obrigação de indemnização relativa aos danos emergentes do acidente de trabalho em causa, e não tendo transferido a sua responsabilidade de forma válida para uma qualquer seguradora, recai, pessoalmente, sobre essa entidade empregadora o dever de reparação relativo ao acidente de trabalho.

E não se diga que a absolvição da entidade empregadora nas instâncias está coberta pelo caso julgado, por dela não ter o autor interposto recurso.

É que, como se afirmou no Acórdão deste Supremo Tribunal, de 6 de Novembro de 2002 (Revista n.º 877/2002 da 4.ª Secção), reflectindo jurisprudência uniforme neste domínio, «o litígio quanto a apurar da responsabilidade pela reparação do acidente de trabalho, não se limita a contrapor o titular do direito aos demandados enquanto responsáveis pela satisfação dele: oferece uma outra dimensão, um sublitígio, envolvendo os demandados, em que cada um, não questionando decisivamente o direito do autor, defende que não responde pela satisfação dele, por essa responsabilidade caber a outro ou aos outros demandados».

Efectivamente, o problema central é o de saber a quem - empregador ou seguradora - cabe a responsabilidade pela reparação das consequências do acidente, sendo que o recurso interposto pela seguradora tem precisamente por objecto a exclusão da sua responsabilidade, com a consequente e necessária responsabilização da empregadora, o que logo significa que a questão da responsabilidade do empregador foi também posta no recurso, impedindo a formação do caso julgado (cf., neste sentido, o Acórdão deste Supremo Tribunal, de 31 de Outubro de 2000, proferido na Revista n.º 98/2000 da 4.ª Secção).

Assim, se o recurso interposto pela ré seguradora procede, mantém-se pendente a questão de saber quem responde pela reparação do acidente, pelo que deve ser reapreciada no recurso a responsabilidade da entidade empregadora, que anteriormente havia sido absolvida do pedido.

Nesta conformidade, procedendo os fundamentos do recurso interposto pela seguradora, deve esta ser absolvida do pedido e condenar-se a entidade empregadora do sinistrado na reparação dos danos emergentes do acidente de trabalho em causa, nos termos dos fundamentos de facto e de direito que ficaram explicitados supra.

Procedem, assim, as atinentes conclusões do recurso de revista.

3. Nas alegações de recurso a ré seguradora veio ainda insurgir-se quanto à condenação por litigância de má fé, alegando que «não pode deixar de se considerar que a seguradora, à data da celebração do contrato, não podia admitir ou excluir a hipótese de o tomador vir a ser ele mesmo a administrar a obra, confundindo-se na sua pessoa a do dono da obra e administrador da mesma, o que implica que, apesar de não se provar claramente a sua convicção na celebração do contrato, também não determina que tenha litigado de má fé decorrente tão-somente do facto de saber que o tomador era médico e não tinha trabalhadores a seu cargo».

E, prossegue, «houve, efectivamente, um primeiro momento motivador da contratação da apólice - para a obtenção da licença de obra -, e um segundo momento - o da realização da mesma - em que a seguradora não podia adivinhar as intenções do tomador, veio até a saber da existência do contrato de empreitada já após a ocorrência do sinistro - é, por isso, legítimo afirmar, como a seguradora fez, embora o não lograsse provar, que a seguradora estava convicta ou admitia como provável ou possível ser o tomador quem contrataria os trabalhadores (só neste caso, aliás, em seu entender, podendo fazer actuar o risco garantido pela apólice)».

Em derradeiro termo, a ré seguradora admite «que a formulação dada ao artigo 16.º da contestação possa não ser a mais feliz, mas isso não permitirá, em face dos factos provados e o seu enquadramento cronológico, a manifestação de má fé processual da seguradora».

Na primeira instância a ré seguradora foi condenada como litigante de má fé, por «deduzir oposição manifestamente infundada e alterar a verdade dos factos relevantes para a decisão da causa, nos termos do artigo 456.º, n.º 2, alíneas a) e b), do Código de Processo Civil.

A Relação considerou correcta essa decisão, aduzindo, para tanto:

«Ora, a ré seguradora deixou de assumir a responsabilidade pelas consequências do acidente e fê-lo com o argumento que, não sendo o tomador do seguro a entidade patronal do sinistrado, o contrato não era válido. Com efeito, para manter a sua defesa alegou (artigo 16.º da contestação) que aceitou o contrato na convicção que os trabalhadores em obra eram directamente contratados pelo tomador do seguro, e logo que este era a sua entidade patronal; este facto que foi levado à base instrutória, como quesito 7.º, não só mereceu a resposta "não provado" como foi dado como provado o contrário, pois, da resposta ao quesito 12.º, resulta que a ré seguradora aceitou o contrato sabendo que o tomador do seguro, médico de profissão, não tinha trabalhadores da construção civil a seu cargo.
Assim, mais do que não se provar determinado facto, o desconhecimento de uma dada realidade, provou-se o facto exactamente contrário, o conhecimento dessa realidade, configurando por isso uma actuação dolosa na dedução da defesa assumida na contestação, cuja falta de fundamento a ré seguradora não devia ignorar, pois tratam-se de factos pessoais, dela própria, que não podia ignorar, tendo alterado na defesa assumida a verdade dos factos por si alegados.»

Nos termos do n.º 2 do artigo 456.º do Código de Processo Civil, «[diz-se litigante de má fé quem, com dolo ou negligência grave: a) tiver deduzido pretensão ou oposição cuja falta de fundamento não devia ignorar; b) tiver alterado a verdade dos factos ou omitido factos relevantes para a decisão da causa; c) tiver praticado omissão grave do dever de cooperação; d) tiver feito do processo ou dos meios processuais um uso manifestamente reprovável, com o fim de conseguir um objectivo ilegal, impedir a descoberta da verdade, entorpecer a acção da justiça ou protelar, sem fundamento sério, o trânsito em julgado da decisão.»

A litigância de má fé constitui, pois, o reverso dos deveres de cooperação, probidade e de boa fé processual impostos às partes.

Ora, analisando a conduta processual da ré seguradora, verifica-se que esta não assumiu a responsabilidade pelas consequências do acidente de trabalho em causa, por entender que, não se tendo provado que o sinistrado estivesse ao serviço do tomador de seguro, vinculado por contrato de trabalho ou contrato legalmente equiparado, jamais poderia ser considerada responsável pelo sinistro.

Como se evidenciou supra, tal posição funda-se no complexo normativo ao caso aplicável, pelo que não consubstancia qualquer oposição infundada e, muito menos, uma oposição infundada imputável a título de dolo ou negligência grave.

Por outro lado, do facto de se não ter provado que «a ré seguradora aceitou o contrato na convicção que os trabalhadores em obra eram directamente contratados pelo tomador», e de se ter provado que a seguradora sabia que o tomador do seguro era médico e que não tinha trabalhadores da construção civil, ao tempo da celebração do contrato de seguro, não resulta conduta conducente a alterar a verdade dos factos relevantes para a decisão da causa, uma vez que não se discute na presente lide o valor jurídico do contrato de seguro celebrado, mas antes se esse contrato garante a cobertura do acidente de trabalho dos autos.

Sucede que o âmbito de cobertura daquele contrato de seguro não depende da exacta convicção da seguradora no momento da celebração do contrato, mas sim de quem seja o seu tomador e os respectivos segurados.
Tudo para dizer que não se vislumbra fundamento legal para condenar a ré seguradora como litigante de má fé.

Procedem, também, nesta parte, as conclusões do recurso de revista.

III

Pelos fundamentos expostos, decide-se conceder a revista, revogar o acórdão recorrido e absolver a ré seguradora do pedido, condenando-se o réu BB - Empreiteiro de Construção Civil a pagar ao autor os montantes fixados na sentença da primeira instância.

Custas, nas instâncias e na revista, a cargo do réu BB.

Lisboa, 22 de Março de 2006
Pinto Hespanhol
Fernandes Cadilha
Vasques Dinis