Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
22/20.5YRGMR.S1
Nº Convencional: 5.ª SECÇÃO
Relator: HELENA MONIZ
Descritores: MANDADO DE DETENÇÃO EUROPEU
PRINCÍPIO DA ESPECIALIDADE
NE BIS IN IDEM
REENVIO PREJUDICIAL
ALEGAÇÕES ORAIS
DIREITO DE DEFESA
NACIONAL
RECUSA FACULTATIVA DE EXECUÇÃO
Data do Acordão: 03/26/2020
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: EXTRADIÇÃO / M.D.E.
Decisão: NEGADO PROVIMENTO AO RECURSO.
Indicações Eventuais: TRANSITADO EM JULGADO
Sumário :
I – Considerando que o direito de defesa começou por ser assegurado com a apresentação dos fundamentos da oposição, e que outras alegações, em resposta ao Ministério Público, não foram apresentadas apesar da notificação, considera-se que o exercício do direito de defesa foi assegurado, assim como o contraditório pese embora não tenha sido exercido, por opção do Requerido. 

II — Não decorre da informação fornecida pelas autoridades emissoras que o Requerido tenha sido julgado pelos mesmos factos mais do que uma vez, ou que vá cumprir novamente uma pena já anteriormente cumprida, ou que não possa ser cumprida, pelo que não decorre a violação do princípio do ne bis in idem, e por isso não podemos concluir pela violação do disposto no art. 11.º, al. b), da LMDE.

III - Havendo novo MDE, porque o requerido volta a não ser encontrado pelas autoridades do país emissor no seu território, e sendo executado o novo MDE por um outro país que não o que executou o primeiro MDE, aquela regra da especialidade, que vincula o pais emissor relativamente a cada MDE, e durante um prazo de 45 dias após o cumprimento da pena, não pode servir de fundamento para uma “amnistia” relativamente a outros crimes que não estiveram na base da emissão do primeiro MDE. O Requerido ausentou-se, encontra-se agora em Portugal, e cabe a Portugal executar o MDE, apenas podendo recusar a sua execução nos termos dos arts. 11 e 12.º, da LMDE.

IV - Se, numa fase inicial, cabia ao Tribunal, que proferia a decisão de execução do MDE, decidir se recusava (ou não) a execução, com a alteração de 2015 o legislador impôs que esta faculdade fosse objeto de requerimento por parte do Ministério Público, entidade a quem cabe representar o Estado Português que se comprometeria a executar a pena, de acordo com a lei portuguesa; cabendo, porém, a última palavra ao Tribunal da Relação que terá que declarar a exequibilidade da sentença em Portugal. Porém, nos presentes autos, em momento algum o Ministério Público fez tal requerimento, nos termos do disposto no art. 12.º, n.º 3, da LDME.

V –  A possibilidade de reenvio prejudicial não constitui uma impugnação oferecida às partes num litígio pendente perante um tribunal nacional, não bastando que o interessado suscite a interpretação do direito comunitário, cabendo ao órgão jurisdicional verificar se é necessária uma decisão sobre a questão de direito comunitário, não estando obrigados a remeter a questão de interpretação do direito comunitário se considerarem que a correta interpretação do direito comunitário se impõe com tal evidência que não apresenta qualquer dúvida razoável.

VI - Não basta apelar ao disposto no art. 7.º, n.º 1, da LMDE, para que se considere que há violação do princípio da especialidade, pois há que articular com o disposto no art. 7.º, n.º 2, al. a), da LMDE, para se poder concluir que o princípio da especialidade não se aplica em certas situações, como as previstas naquela alínea. A interpretação de que o princípio da especialidade se manteria por força de um primeiro MDE relativamente a um segundo quando já passaram mais de 45 dias sobre a execução da pena que cumpriu com a execução do primeiro MDE constituiria uma forma de, através das regras do MDE, anular a execução de sentenças transitadas em julgado.

Decisão Texto Integral:

Processo n.º 22/20.5YRGMR.S1

Mandado de Detenção Europeu

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:

I Relatório

1. Por acórdão do Tribunal da Relação de ..., de 26.02.2020, no processo de execução de mandato de detenção europeu contra AA, nascido a 00.00.0000, e natural de …-..., foi decidido deferir “o pedido de execução do MDE apresentado pelo Juzgado Penal 2 de ... e, consequentemente, determina-se a entrega do requerido, após trânsito, à autoridade judiciária de emissão para cumprimento da pena aí imposta” (cf. fls 154/verso).

2. O detido (desde 25.01.2020 e sujeito a prisão preventiva desde 27.01.2010 – cf. informação a fls. 236), cidadão espanhol, interpôs recurso, nos termos do art. 24.º, n.º 1, al. b), da Lei n.º 65/2003, de 23 de agosto (alterada pela Lei n.º 35/2015, de 4 de maio, adiante designada LMDE) para o Supremo Tribunal de Justiça, apresentando as seguintes conclusões:

«1.ª Prevê o artigo 21.º n.º 5 da Lei n.º 65/2003, de 23/08, sob a epigrafe de “Oposição da pessoa procurada” que, finda a produção da prova será concedida a palavra ao Ministério Público e ao defensor da pessoa procurada para alegações orais.

2.ª A 20/02/2020 a digníssima Juiz Desembargadora, abre conclusão, dizendo, sem mais que “uma vez que não se torna necessário produzir qualquer outra prova e que estão já plenamente expostas e debatidas, pelo requerido e pelo Ministério Público, as posições em confronto, revela-se desnecessário reabrir a diligência para produção de alegações orais”.

3.ª Assim, com o teor da tal conclusão, foi vedado ao Requerido/Detido exercer o seu contraditório face às questões levantadas pela Ministério Público, além de, salvo melhor opinião, ter sido violado o previsto no artigo 21.º n.º 5 da Lei do Mandado de Detenção Europeu.

4.ª Face ao exposto, preterida a imperativa realização de diligência para produção de alegações orais, conforme resulta do artigo 21.º n.º 5 da Lei 65/2003, não foram conferidos ao Requerido todos os direitos e instrumentos necessários e adequados para defender a sua posição, contrariar a posição assumida pelo Ministério Público.

5.ª Assim, além de lesionar o direito basilar de defesa, impedindo introduzir pedido de decisão prejudicial, a apresentar nos termos do artigo 267.º Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia, (em diante TFUE), com tramitação urgente, em conformidade com o artigo 107.º do Regulamento de Processo do Tribunal de Justiça.

6.ª Logo, salvo melhor opinião, cometeu o Tribunal a quo, uma nulidade insanável, prevista no artigo 119.º al. c) do Código de Processo Penal, ex vi, artigo 34.º da Lei n.º 65/2003, de 23/08, o que desde já se invoca para todos os efeitos legais.

7.ª Em sede de audição da pessoa procurada, e para comprovar a sua posição que a execução do presente MDE violava o Princípio da Especialidade previsto no artigo 7.º da Lei n.º 65/2003, o Requerente, na pessoa do seu defensor, requereu que o Tribunal da Relação de ... solicitasse ao Tribunal de Colónia – Alemanha, a informação completa sobre a execução ou recusa do anterior MDE emitido, cuja informação era de manifesta relevância.

8.ª Em acto contínuo, por despacho (irrecorrível) a Digníssima Juiz Desembargadora consignou que “[...] este Tribunal não entrará em contacto com as autoridades alemãs referidas no requerimento que antecede [...]”.

9. ª Todavia, por considerar elementar na busca da verdade material, o Requerido, aquando da apresentação da documentação que se obrigou a juntar, no ponto 3.º solicita, novamente que “Conforme resulta do supra exposto, e, como essencial na busca da verdade material, deve ser solicitada, nos termos do artigo n.º 7.º, n.º 2, al. g) da Lei n.º 65/2003, a prova do consentimento da autoridade judiciária de execução alemã que em 2003 proferiu a decisão de entrega, o que desde já se requer”, isto e, “deverá ser requerida oficiosamente à Procuradoria Geral de Colônia a decisão de entrega, expediente nº: 401 Js 284/04 V”.

10.ª Acontece, porém, na mesma conclusão de 20/02/2020, diz “na sequencia da decisão já proferida na diligência de audição do requerido e porque se continua a entender, em face dos documentos entretanto juntos, que não há que obter qualquer informação de autoridades alemãs, indefere-se a requerida solicitação ao tribunal de Colónia dos documentos pretendidos pelo requerido”.

11.ª Ora, o Supremo Tribunal de Justiça, em acórdão de 24 de abril de 2018 – Secção Penal – Processo n.º 39/18.0YREVR.S1 diz expressamente que “[...] A omissão da produção de prova indispensável à decisão sobre a procedência dos motivos de oposição e sobre a execução do MDE constitui uma nulidade abrangida pela previsão da parte final da al. d) do n.º 2 do artigo 120.º do CPP, sujeita a arguição.”

12.ª Destarte, não sendo, de todo, a prova requerida irrelevante nem supérflua, muito menos inadequada, impossível ou duvidosa, nem o seu requerimento tem qualquer finalidade dilatório, aliás o Requerente encontra-se preso, não nos parece admissível o indeferimento da mesma.

13.ª Afigura-se como essencial na busca da verdade material, mais concretamente para demonstração de que a execução do presente MDE, viola o princípio da especialidade, pois as autoridades alemãs irão comprovar a posição do Requerido, pelo que é tão importante para a descoberta da verdade material que fosse requerida oficiosamente à Procuradoria Geral de Colônia a decisão de entrega, expediente nº: 401 Js 284/04 V.

14.ª De concluir, salvo melhor opinião que, a omissão da prova requerida, por ser essencial para a descoberta da verdade, configurar uma nulidade nos termos do previsto na al. d) do n.º 2 do art. 120.º do Código de Processo Penal, o que desde já se argui para os demais efeitos legais.

15.ª Além de constituir uma da violação do artigo 32.º n.º 1 e n.º 5 da Constituição da República Portuguesa.

16.ª Prevê o artigo 11.º da Lei n.º 65/2003, os motivos de não execução obrigatória do mandado de detenção europeu, dizendo que a execução é recusada, nos termos da alínea b) quando a pessoa procurada tiver sido definitivamente julgada pelos mesmos factos por um Estado-Membro desde que, em caso de condenação, a pena tenha sido integralmente cumprida, esteja a ser executada ou já não possa ser cumprida segundo a lei do Estado-Membro onde foi proferida a decisão;

17.ª Ora esta norma, mais não é do que a consagração do princípio non bis in idem, previsto na nossa Constituição no preceito do artigo 29.º n.º 5 e nos diz que ninguém pode ser julgado mais do que uma vez pela prática do mesmo crime.

18.ª Por conseguinte, o presente MDE, é proveniente do Auto de Acumulacíon de Condenas n.º 7/2000, Executória 107/2000, Processo n.º 322/199;

19.ª A mesma sentença executória foi sujeita a recurso perante um tribunal superior (Tribunal Provincial de ...) – Acórdão 302/2016 de 07 de junho de 2016 – com efeito de caso julgado.

20.ª Ora, um Tribunal Superior Espanhol, por acórdão já transitado em julgado, vem dizer, em súmula, que o Tribunal Penal n.º 2 de ... não podia, ordenar a execução da pena imposta na sentença executória 107/2000, mesmo sem prejuízo de reconhecer o princípio da especialidade e admitir que o Sr. AA foi "apenas" entregue para cumprir a pena do Tribunal Provincial de ....

21.ª Ora, tendo já sido objecto de recurso o não cumprimento a pena resultante do Auto de Acumulacíon de Condenas n.º 7/2000, Executória 107/2000, Processo n.º 322/199, que decretou a reposição do Requerido em liberdade, versando o presente MDE sobre a mesma executória, a decisão da sua execução é violadora do princípio non bis in idem, previsto no artigo 29.º n.º 5 da Constituição da República Portuguesa.

22.ª Mais, nos termos do artigo 11.º al. b) da Lei n.º 65/2003 é motivo de não execução obrigatória do mandado de detenção europeu.

23.ª Erro de Direito, palmar e o notório, na aplicação da Regra da Especialidade, por elo, quebram a Lei segundo o preceituado no artigo 27.°, n.ºs 2 a 4, da Decisão-quadro 2002/584/JAI do Conselho, de 13 de Junho de 2002, relativa ao mandado de detenção europeu e aos processos de entrega entre os Estados-Membros, art.º 7.º, n.º 1 e 2 da Lei n.º 65/2003, de 23 de Agosto, Mandado de Detenção Europeu.

24.ª Visto o acórdão emitido pelo Tribunal a quo e a interpretação que realiza na sua aplicação do princípio de especialidade, provado o acolhimento do agora Requerido á Regra da Especialidade, esta Defesa insta ao Exº Supremo Tribunal de Justiça, nos termos do artigo 267.o TFUE, pedido de decisão prejudicial, com suspensão da instância e reenvio prejudicial.

25. ª Nos termos do previsto no artigo 12.º n.º 1 al. g) da Lei 65/2003 de 23/08, é motivo de recusa facultativa do mandado de detenção europeu, quando a pessoa procurada se encontrar em território nacional, tiver nacionalidade portuguesa ou residir em Portugal, desde que o mandado de detenção tenha sido emitido para cumprimento de uma pena ou medida de segurança e o Estado Português se comprometa a executar aquela pena ou medida de segurança, de acordo com a lei portuguesa;

26.ª Apesar de o Ministério Público nem sequer se ter pronunciado, o Requerido é cidadão português (filho de mãe portuguesa – conforme assento de nascimento n.º 25 do ano 2020 junto sob o documento n.º 6), encontra-se a residir em Portugal há cerca de dois anos com a sua esposa e a sua filha menor, e tem cá uma vida pacata e reservada, longe das organizações e manifestações políticas que frequentava há mais de 30 anos.

27.ª Procurou o Requerido cá em Portugal, terra da sua mãe, a paz e serenidade para criar a sua filha de apenas … anos de idade, longe de toda a perseguição política que ainda sofre e da qual não se consegue dissociar em território espanhol.

28.ª Aliás, teme o Requerido o cumprimento da pena em Espanha, pela sua corrente ideológica, considerando ser-lhe mais vantajoso e dar-lhe mais garantias o cumprimento da pena em Portugal.

29.ª Advém da própria lei que a recusa de execução nos termos da alínea g) do n.º 1 do artigo 12.º (Lei 65/2003) depende de decisão do tribunal da Relação, no processo de execução do mandado de detenção europeu, a requerimento do Ministério Público, que declare a sentença exequível em Portugal, confirmando a pena aplicada, e que , a decisão é incluída na decisão de recusa de execução, sendo-lhe aplicável, com as devidas adaptações, o regime relativo ao reconhecimento de sentenças penais que imponham penas de prisão ou medidas privativas da liberdade no âmbito da União Europeia, devendo a autoridade judiciária de execução, para este efeito, solicitar a transmissão da sentença.

30.ª Acontece, porém, que, o Ministério Público nem sequer fundamentou a sua decisão, muito menos considerou, preenchidos ou não os pressupostos para a recusa da execução do MDE, nos termos da al. g) do n.º 1 do artigo 12.º da Lei 65/2003. Apenas se cingiu a remeter para o relatório social.

31. ª Face ao exposto, estando preenchidos os pressupostos artigo 12.º n.º 1 al. g) da Lei 65/2003 de 23/08, é motivo de recusa facultativa a execução do presente mandado de detenção europeu.

Nestes termos e nos que os Venerandos Conselheiros doutamente suprirão, deve ao presente recurso ser dado provimento, revogando-se o acórdão do Tribunal da Relação de ..., e:

a) Declarar a nulidade insanável da al. c) do art. 119.º do CPP, por preterida a realização de diligência para produção de alegações orais, conforme resulta do artigo 21.º n.º 5 da Lei 65/2003;

b) Declarar a nulidade prevista na al. c) do art. 119.º do CPP, por omissão da prova requerida, por essencial para a descoberta da verdade, e por constituir uma da violação do artigo 32.º n.º 1 e n.º 5 da Constituição da República Portuguesa;

c) Declarar a violação do princípio non bis in idem previsto no artigo n.º 29 n.º 5 CRP e nos termos do artigo 11.º al. b) da Lei n.º 65/2003, considerando, assim motivo de não execução obrigatória do mandado de detenção europeu;

d) Declarar a Ilegalidade da decisão por violação Regra Especialidade prevista no artigo 7.º n.º 1 da Lei n.º 65/2003, de 23/08 e do artigo 27.º n.º 1 da Decisão-Quadro 2002/584/JAI;

e) Declarar procedente o pedido de decisão prejudicial, a apresentar nos termos do artigo 267.º TFUE, com tramitação urgente, em conformidade com o artigo 107.º do Regulamento de Processo do Tribunal de Justiça, e submeter as seguintes questões prejudiciais segundo o ponto 4 deste recurso;

Sem prescindir,

f) Do preenchimento dos pressupostos para a recusa facultativa prevista no artigo 12.º n.º 1 al. g) da Lei 65/2003 de 23/08.» (cf. fls. 210 e ss).

3. O recurso foi admitido por despacho de 06.03.2020 (cf. referência Citius 6925741).

4. Nos termos do art. 24.º da LMDE, foi a interposição do recurso notificada ao Ministério Público, que respondeu nos seguintes termos:

« 1. A não realização das alegações orais previstas no n.° 5 do art.° 21 da Lei 65/2003, de 23/08 não constitui a verificação da nulidade insanável prevista na alínea c) do art.° 119 do CPPenal, como adianta o requerido no seu recurso, pois que tendo-se oposto, no momento da sua audição, à sua entrega ao Estado emitente do MDE, a seu pedido foi-lhe concedido prazo para apresentação da sua defesa e para fazer oferecimento de outros meios de prova, o que realmente concretizou, sem que, na sequência disso, houvesse necessidade de produção de quaisquer provas para além das que foram por si apresentadas, oposição que foi notificada e respondida pelo M°P° requerente da execução do MDE, tendo-se respeitado e cumprido integralmente o princípio do contraditório antes de proferida a decisão recorrida, procedimento que a jurisprudência do STJ tem dado, afinal, pleno acolhimento – vd. acórdão do STJ de 09/03/2017, proc. 796/16.8YRLSB.S1, e que não viola qualquer direito de defesa do recorrente;

2.   Ao contrário do que este afirma, não se verifica a nulidade prevista na al. d) do n.°2 do art.° 120 do CPPenal, porquanto a condição da sua entrega pela autoridade judiciária alemã à autoridade espanhola, em cumprimento de um MDE por esta emitido e para cumprimento de uma pena aplicada pelo Tribunal Provincial de ..., Espanha, já se encontra certificada nos documentos constantes dos autos, documentos que anunciam que o requerido não renunciou ao beneficio da regra da especialidade, sendo, por isso, de todo irrelevante e desnecessário o pretendido pelo requerido;

3.   Não se verifica uma causa recusa obrigatória de execução do MDE, a prevista na al. b) do artigo 11 da Lei 65/2003, por violação do princípio non bis in idem, como declara o recorrente, pois que os factos que fundamentam a emissão do presente MDE apenas foram julgados pelo Estado espanhol, só a justiça espanhola o condenou, estando em causa sentenças penais proferidas exclusivamente por tribunais espanhóis e transitadas em julgado a reclamar o cumprimento das respectivas penas de prisão aplicadas ao requerido, nenhum outro qualquer Estado o condenou “pelos mesmos factos”, nomeadamente o Estado alemão.

4.   A decisão recorrida não violou o princípio da especialidade especificamente previsto no artigo 7 da Lei 65/2003 porquanto estando bem esclarecido que o requerido foi entregue ao Estado espanhol pela justiça alemã que deu execução a um MDE emitido pelo Tribunal Provincial de ..., Secção 1, para cumprimento de uma pena de 3 anos, 7 meses e 21 dias, certidão executória 70/1997, processo 36/1996 e estando ainda bem esclarecido que aquando da sua entrega, o recorrente não renunciou ao benefício da regra da especialidade, isto é, confinou a execução do MDE exclusivamente à citada pena e já não a outras, o cumprimento da pena que agora está em causa no presente MDE, não podia ser executada imediatamente ao cumprimento da pena referida como reconheceu a Audiência Provincial de ..., de 07/06/2016, por tal constituir a violação do disposto no disposto no n.°2, al. a) do art.° 27 da Decisão Quadro 2002/584/JAI (al. a), n.°2 do art.° 7 da Lei 65/2003 portuguesa), podendo e devendo, contudo, ser executada fora de tal preciso contexto, ou seja, no normal horizonte de cumprimento de um MDE.

5.   A decisão recorrida encontra-se fora de qualquer censura quando não recusou a execução do MDE por verificação da causa de recusa facultativa prevista na al. g) do n.°1 do art.° 12 da Lei 65/2003, porquanto não tendo o recorrente pedido o cumprimento da pena visada pelo MDE em Portugal, não se mostrava viável que tal se pudesse concretizar porquanto aquele, apesar de possuir nacionalidade portuguesa, também possui nacionalidade espanhola, encontrando-se em Portugal sem qualquer vínculo social, laboral ou afectivo à comunidade portuguesa, cuidando, isso sim, de escapar à justiça espanhola, tudo conforme se retira do Relatório Social constante dos autos, circunstâncias que justificam plenamente que o M°P° não tivesse requerido, oportunamente, o cumprimento da pena em causa em Portugal.

6.   Inexiste necessidade, ou fundamento, para a realização de reenvio prejudicial sobre o princípio da especialidade mediante convocação do art.° 267 do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia (TFUE) porquanto, no caso, a decisão recorrida aplicou lei nacional, a lei 65/2003, de 23/08, surgida em cumprimento da Decisão Quadro n.° 2002/584/JAI, do Conselho, todavia fora de um qualquer registo inovatório, até porque a situação apresentada a juízo não se afasta do que normalmente ocorre no comum dos casos.

7.   O recurso do arguido deverá ser julgado improcedente, confirmando-se integralmente a decisão sub judice.» (cf. fls. 227 e ss).

5. Subido o recurso ao Supremo Tribunal de Justiça foi, nos termos do art. 25.º, da LMDE, distribuído e concluso ao relator para acórdão.

Colhidos os vistos legais, cumpre agora decidir.

II Fundamentação
A.

1. Segundo o acórdão do Tribunal da Relação de ..., a matéria de facto relevante para a decisão é a seguinte:

«-Pelo Juzgado Penal 2 de ..., Espanha, foi emitido, em 24/07/2019, um MDE contra AA no âmbito do processo “Auto de acumulacion de Condenas 7/2000” nos termos do qual, por decisão transitada em julgado foi o requerido condenado na pena de 30 anos de prisão, dos quais deverá cumprir 5.950 dias de prisão.

-Os factos pelos quais foi julgado e condenado são qualificados pelo Código Penal Espanhol como roubo com ameaça e posse ilícita de armas (certidão de sentença 6/19); roubo com ameaça e posse ilícita de armas (certidão de sentença 6/00); roubo com homicídio e uso de armas (certidão do processo 11/90); violação de pena (certidão de sentença 233/94); tentativa de violação de pena (certidão de sentença 554/94); simulação de crime (certidão da sentença 308/98); ameaça (certidão de sentença 131/96); desacato (certidão de sentença 270/95); extorsão na forma tentada e continuada (certidão de sentença 107/00).

-O arguido esteve no julgamento que conduziu à decisão que está na base do presente MDE.

-Os crimes de roubo, homicídio e extorsão não exigem o controlo da dupla incriminação (artigo 2º, nº 2, alíneas o), p) e v) da Lei 65/2003 de 23/08).

-Foi obtido relatório social nos termos do qual o requerido reside em Portugal desde setembro de 2019 com companheira e filha, não detém em Portugal qualquer ocupação laboral, tal como a companheira, subsistindo com economias do trabalho desenvolvido por esta no passado, com o apoio da família de ambos, de amigos e de associações não identificadas.» (cf. p. 10 do acórdão recorrido).

2. Quanto aos factos não provados “Não se provou que o presente MDE tenha por base os mesmos factos, ou seja um aditamento aos que justificaram a emissão do MDE pelo Tribunal Provincial de ....

B.

1. Tendo em conta o recurso interposto e as conclusões apresentadas, que delimitam o objeto do recurso, o recorrente, condenado no Reino de Espanha em pena de 30 anos de prisão (pela prática de diversos crimes e restando-lhe ainda o cumprimento de 5950 dias) alega, em súmula:

- que o acórdão recorrido é nulo, por violação do disposto no art. 119.º, al. c), do Código de Processo Penal (CPP) ex vi art. 34.º, da LMDE, por não ter realizado alegações orais, conforme o disposto no art. 21.º, n.º 5, da LMDE (conclusões 1 a 6);

- a nulidade, por omissão de prova essencial para a descoberta da verdade, nos termos do art. 120.º, n.º 2, al. d), do CPP, e violação do disposto no art. 32.º, n.ºs 1 e 5, da Constituição da República Portuguesa (CRP), decorrente de o Tribunal a quo não ter solicitado o documento comprovativo da autoridade judiciária alemã que executou (e dos termos em que o fez) o MDE, em 2003, por o considerar imprescindível para a conclusão de que o atual MDE viola o princípio da especialidade e considerando que ao abrigo do disposto no art 7.º, n.º 2, al. g), da LMDE esta informação deve ser solicitada (conclusões 7 a 15);

- a necessidade de recusa obrigatória da execução do MDE, por violação do princípio do non bis in idem, nos termos do art. 11.º, al. b), da LMDE, e do art. 29.º, n.º 5, da CRP, porque entende que o Tribunal Superior Espanhol, por decisão transitada em julgado, considerou não ser possível ordenar a execução da pena imposta na sentença executória n.º 107/2000, sendo que o presente MDE foi emitido para cumprimento de pena de prisão decorrente do auto de acumulação de penas n.º 7/2000 procedente da certidão  107/2000 e proc. n.º 322/99 (do Tribunal Penal n.º 2 de ...) (conclusões 16 a 22);

- que a decisão prolatada no acórdão recorrido viola o princípio da especialidade, nos termos do art. 7.º, n.ºs 1 e 2, da Lei n.º 65/2003, de 23.08, e do art. 27.º, n.ºs e a 4, da decisão-quadro 2002/584/JAI, de 13.06 (conclusão 23);

- que existe uma causa de recusa facultativa, nos termos do art. 12.º, n.º 1, al. g), da LMDE, pois o Requerido é cidadão português, e encontra-se a residir em Portugal há cerca de 2 anos, temendo o cumprimento da pena em Espanha, e considerando ser mais vantajoso o cumprimento em Portugal (conclusões 25 a 31).

Alega ainda que deve proceder-se ao reenvio prejudicial para o Tribunal de Justiça da União Europeia (TJUE), nos termos do art. 267.º do Tratado do Funcionamento da União Europeia (TFUE), solicitando decisão prejudicial, com suspensão da instância, quanto à interpretação do princípio da especialidade (conclusão 24).

2. Compulsados os autos, verifica-se que o detido foi sujeito a audição a 27.01.2020 (cf. fls. 82 e ss) e não consentiu na sua entrega, nem renunciou ao princípio da especialidade (cf. fls. 83); durante esta audição, foi acompanhado pelo mandatário e defensora oficiosa nomeada (cf. fls. 82-83). Requereu ainda, ao abrigo do disposto no art. 21.º, n.º 4, da LMDE, um prazo de 20 dias para junção de documentos, o que lhe foi concedido (cf. fls. 85). Mais se deliberou que, pese embora o Requerido tenha solicitado ao Tribunal para que fosse pedida informação ao Tribunal alemão, que decidiu o anterior MDE, nomeadamente, quanto a uma recusa deste último em relação ao cumprimento de 30 anos de prisão, o Tribunal da Relação de ... decidiu que solicitaria apenas informações adicionais às autoridades espanholas (cf. fls. 85).

Assim, as autoridades espanholas, em resposta ao pedido formulado (cf. fls. 91), vieram informar que o cumprimento de uma pena de 30 anos se refere a uma acumulação de penas aplicadas em diversos processos, e informaram que este MDE (pedido pelo Tribunal Penal de ... 2) não tem qualquer relação com o anterior que tinha sido apenas solicitado para cumprimento de pena aplicada pelo Tribunal de .... Mas, também referem que “O senhor AA foi entregado as autoridades espanholas a 16 janeiro 2013 só aos efeitos de cumprir a pena resolvida pela audiência provincial d’.... Este tribunal não pode executar a sua pena (30 anos) em virtude do princípio de especialidade, porque a audiência provincial de ... emitiu o mandado só para cumprir a sua pena. E por isto este tribunal tem emitido um novo mandado contenido no auto de data 24 julio 2019, conjuntamente com o anexo onde especifica-se todas as penas que sumam 30 anos, os tipos de delito, a tipificação legal das infrações e outras circumstancias” (cf. fls. 94 — transcreve-se exatamente o documento junto).

Além disto, o Requerido juntou diversos documentos e com estes os fundamentos da oposição (cf. fls. 112 e ss).

Verifica-se, pois, que, aquando da audição do arguido, não foram proferidas alegações, porquanto o Requerido, ao abrigo do disposto no art. 21.º, n.º 4, da LMDE, solicitou um prazo, que lhe foi concedido, para apresentar elementos de prova, o que ocorreu, tendo juntado igualmente peça processual onde expôs os fundamentos da sua oposição. Não foi reaberta a audição, mas foi proferida a decisão.

Ora, de acordo com o determinado no art. 21.º, n.º 5, da LMDE, após a produção de prova, é concedida a possibilidade de alegações orais, de modo a que o contraditório seja assegurado. É concedida a palavra para alegações orais ao Ministério Público e ao defensor da pessoa procurada, e devia ter sido reaberta a audição para que assim se procedesse.

Porém, no caso dos presentes autos, após a fundamentação apresentada, com a junção dos documentos, foi deduzida resposta pelo Ministério Público — cf. fls. 133 e ss. Esta resposta foi notificada ao Requerido, na pessoa dos seus mandatários a 19.02.2020 — cf. fls. 136 e 137. Em seguida o processo foi remetido aos vistos e à conferência (cf. fls. 138: despacho igualmente notificado a ambos os mandatários — cf. fls. 140 e 141).

Não tendo sido reaberta a audição do Requerido, após a resposta, pelo Ministério Público, aos fundamentos da oposição apresentados, poderia o Requerido ter exercido o seu direito ao contraditório. Todavia, apesar de ter sido notificado daquela resposta, não o fez. Considerando que as alegações orais previstas no art. 21.º, n.º 5, da LMDE, pretendem assegurar o direito de defesa do Requerido e o necessário contraditório, e considerando que o direito de defesa começou por ser assegurado com a apresentação dos fundamentos da oposição, e que outras alegações, em resposta ao Ministério Público, não foram apresentadas apesar da notificação, considera-se que o exercício do direito de defesa foi assegurado, assim como o contraditório pese embora não tenha sido exercido, por opção do Requerido. 

Entende-se, pois, que não ocorreu qualquer nulidade, pois cabia ao Tribunal dar a conhecer ao Requerido a resposta apresentada pelo Ministério Público, o que ocorreu, pelo que não se assaca àquele Tribunal qualquer omissão que tenha obstado ao exercício do direito de defesa e ao exercício do contraditório, pelo que improcede, nesta parte, o recurso apresentado pelo Requerido.

3.  Logo aquando da audição do Requerido, foi solicitado que o Tribunal diligenciasse no sentido de obter a decisão das autoridades alemãs aquando da execução do MDE a estas dirigido. Todavia, o Tribunal não solicitou esta informação e limitou-se a pedir informações adicionais às autoridades espanholas.

Compulsados os autos, verifica-se que as autoridades espanholas informaram que o MDE agora em discussão não tinha qualquer relação como o anterior, uma vez que o anterior tinha sido solicitado pelo Tribunal de ..., decorrente da decisão executória 70/1997 (proc. n.º 36/1996), e o atual tinha sido solicitado pelo Tribunal Penal de ... 2.

Mas, não podemos deixar de constatar que:

-  as autoridades espanholas referem expressamente que “O senhor AA foi entregado as autoridades espanholas a 16 janeiro 2013 só aos efeitos de cumprir a pena resolvida pela audiência provincial d’.... Este tribunal não pode executar a sua pena (30 anos) em virtude do principio de especialidade, porque a audiência provincial de ... emitiu o mandado só para cumprir a sua pena” (fls. 94),

- e que no acórdão, de 28.04.2016, do Tribunal Provincial Secção n.º 1 ... (sentença executória 70/1997, autos do processo 36/1996) se decidiu: “Tendo em conta o exposto e em conformidade com o princípio da especialidade, ao qual a extradição de AA foi condicionada, este deverá cumprir apenas a pena de prisão imposta no presente caso e não as outras penas impostas por delitos cometidos e sentenciados antes da data da sua extradição (16 de janeiro de 2013), sem prejuízo do que possa ser aplicável depois os outros tribunais legalizarem a situação do condenado” (cf. fls. 198).

Tendo em conta estes elementos, verificamos que a entrega, pela Alemanha, do cidadão espanhol (e agora português) ao Reino de Espanha, e no âmbito da execução do MDE anterior, apenas permitia o cumprimento da pena aplicada pelo Tribunal de .... É isso que é referido na informação dada agora pelas autoridades espanholas e é isso mesmo que é reafirmado no acórdão do Tribunal Provincial de ....

Porém, o Requerido entende que outra prova adicional devia ter sido obtida; ora, sabemos que o mandado de detenção europeu se baseia num princípio de reconhecimento mútuo e confiança recíprocas entre os estados, e nesta base as informações dadas pelas autoridades espanholas afiguram-se suficientes para que possamos entender que o MDE inicial (e executado pela Alemanha) tinha em vista o cumprimento de uma outra pena, aplicada no âmbito de um outro processo, e sabemos também (de acordo com a informação dada pelas autoridades espanholas) que no âmbito daquele mandado as autoridades espanholas apenas podiam aplicar a pena na base da qual aquele MDE foi emitido.

Consideramos, pois, que dos autos consta a informação necessária que nos permite concluir qual o âmbito do anterior MDE, que não abrangia o cumprimento da pena de 30 anos que está subjacente ao atual MDE, pelo que improcede, igualmente, nesta parte, o recurso interposto. Quanto a saber se houve ou não violação do princípio da especialidade, com a emissão e eventual execução do atual MDE, analisaremos infra.

4. Assume agora relevo o acórdão, de 28.04.2016, do Tribunal Provincial Secção n.º 1 ... (sentença executória 70/1997, autos do processo 36/1996) que decidiu: “Tendo em conta o exposto e em conformidade com o princípio da especialidade, ao qual a extradição de AA foi condicionada, este deverá cumprir apenas a pena de prisão imposta no presente caso e não as outras penas impostas por delitos cometidos e sentenciados antes da data da sua extradição (16 de janeiro de 2013), sem prejuízo do que possa ser aplicável depois os outros tribunais legalizarem a situação do condenado” (cf. fls. 198).

Entende o Requerido que a execução do presente MDE poderá constituir uma violação do princípio do ne bis in idem, uma vez que se executará a pena de 30 anos, na parte ainda não executada, apesar de já anteriormente ter sido decidido por um Tribunal do Reino de Espanha que não caberia cumprir tal pena tendo em conta o condicionamento decorrente do âmbito do primeiro MDE.

Em primeiro lugar, não cabe ao Estado Português analisar, ou melhor, fiscalizar o cumprimento (ou não) do princípio do ne bis in idem. Além de que este princípio impõe que ninguém seja julgado pelos mesmos factos mais do que uma vez. Ora, no presente caso, o que poderá ocorrer, a ser executado o presente MDE, é o cumprimento de uma pena, pela prática de diversos atos, e nos quais não estão integrados os julgados naquele outro processo. Não haverá dupla incriminação pelos mesmos factos.

Senão vejamos:

- no âmbito do primeiro MDE (emitido pelo Tribunal Provincial de ...), executado pelas autoridades alemãs, estava em causa o cumprimento de uma pena de 3 anos, 7 meses e 21 dias, segundo a certidão executória 70/1997, processo n.º 36/1996;

-no âmbito deste mandado está em causa o cumprimento (do que falta cumprir) de uma pena de 30 anos, que integra o cúmulo de diversas penas aplicadas em diversos processos; segundo o MDE a decisão que o fundamenta trata-se de

2. Sentença com força executiva: AUTO DE ACUMULAÇÃO DE PENAS N.° 7/00, procedente da certidão 107/00 e processo 322/99 do Tribunal Penal n.°2 de ..., que acumula as seguintes sentenças.

Referência:

1) Certidão 6/91, sentença com data de 21-03-91, transitada em julgado a 28-10-92, proferida pela Secção 3ª da Audiencia Provincial de ....

2) Certidão 6/00, sentença com data de 15-04-91, transitada em julgado a 27-10-92, proferida pela Secção 2ª da Audiencia Provincial de ….

3) Sentença com data de 19-06-93, transitada em julgado a 26-07-93, proferida no Processo 11/90 pela Secção 1ª da Audiencia Provincial de ….

4) Certidão 233/94, sentença com data de 21-10-93, transitada em julgado a 31-05-94, proferida pelo Tribunal Penal n.° 1 de ….

5) Certidão 554/94, sentença com data de 28-04-94, transitada em julgado a 18-11-94, proferida pelo Tribunal Penal n.° 1 de ….

6) Certidão 270/95, sentença com data de 31-12-94, transitada em julgado a 16-05-95, proferida pelo Tribunal Penal n.° 9 de ….

7) Certidão 131/96, sentença com data de 15-11-95, transitada em julgado a 26-03-96, proferida pelo Tribunal Penal n.° 2 de ....

8) Certidão 308/98, sentença com data de 27-05-98, transitada em julgado a 27-05-98, proferida pelo Tribunal Penal n.° 2 de ….” (cf. fls. 37-8)

E na base destas decisões estão os seguintes factos, segundo o MDE (cf. fls. 41-2):

O presente mandado de detenção refere-se a um total de 9 infracção(ões).

Descrição das circunstâncias em que a(s) infracção(ões) foi/foram cometida(s), incluindo o momento (a data e a hora), o local e o grau de participação da pessoa procurada na infracção/nas infracções

1) Certidão de sentença 6/91: Pelas 10:30 horas do dia 24/01/1990 o acusado, juntamente com outro individuo e de comum acordo, entrou na Caja de Ahorros de …, com a cabeça coberta e empunhando uma caçadeira de canos serrados, efetuou um assalto e fugiu imediatamente, tendo sido intercetado pela polícia, contra a qual efetuou um disparo, sem, no entanto, atingir nenhum dos elementos policiais, tenda depois conseguido fugir num veículo. Veio a ser detido no dia 02/03/90.

2) Certidão de sentença 6/00: Pelas 13:30 horas do dia 06/02/1990, o acusado, juntamente co outros individuos, efetuou um assalto à Caja de Ahorros de …, ocultando a cara e empunhando uma caçadeira de canos serrados, tendo seguidamente fugido.

3) Processo 11/90: A uma hora não precisa da madrugada do dia 19/02/1990, o acusado e outros indivíduos, de comum acordo, entraram numa garagem coletiva da cidade de … e, depois de furtarem um veículo, dirigiram-se a um clube de alterne, sito na estrada de …, e, depois de cobrirem o rosto e empunhando uma caçadeira semiautomática, dispararam contra o proprietário d estabelecimento, causando-lhe a morte. Apropriaram-se do dinheiro da caixa e abandonaram o local.

4) Certidão de sentença 233/94: Pelas 00:00 do dia 04/02/1990, o condenado, encontrando-se a cumprir pena de prisão no centro penitenciário de ...(...), utilizando um ferro, efetuou u buraco no lavatório da cela tendo acedido ao recinto prisional, de onde, com a ajuda de uma corda atingiu o chão com a intenção de se evadir, objetivo que não alcançou.

5) Certidão de sentença 554/94: Pelas 9:40 horas do dia 01/04/1991, o acusado, juntamente co outro individuo, quando estavam a ser conduzidos por dois agentes da polícia nacional num furgão d polícia que os transportava do centro penitenciário para o Palácio da Justiça, aproveitando-se do facto de uma das algemas estar solta, empreendeu a fuga, tendo sido perseguido pelos agentes da polícia municipal, que conseguiram alcançá-lo. Este ofereceu forte resistência e lutou com o elemento da polícia municipal, tendo-lhe causado um traumatismo no quarto dedo da mão direita. Uma vez nas instalações policiais, proferiu contra os agentes que o vigiavam expressões como: "Quando sairmos vamos matar vos".

6) Certidão de sentença 308/98: No dia 05/03/1990, o acusado, com a intenção de exonerar de culpa a sua companheira sentimental, declarou-se culpado da prática de uns factos ocorridos no dia 11/01/1990, relativos a um crime de roubo com ameaça e uso de armas, factos em que não teve qualquer participação.

7) Certidão de sentença 131/96: O acusado, de comum acordo com outro individuo, enviaram uma carta à agência INMOFIVE S.L., a qual foi recebida na referida agência em 06/10/92, e através da qual, fazendo-se passar por uma organização terrorista, solicitavam o pagamento do imposto revolucionário, ameaçando pôr as suas vidas em perigo.

8) Certidão de sentença 270/95: O condenado, juntamente com outro indivíduo, em 02/06/1992, e a partir do centro penitenciário de Almeria, onde cumpria uma pena, enviou por correio registado uma carta dirigida ao Magistrado do Tribunal de Primeira Instância n° 1 de ..., na qual, em nome das "Juventudes Nacionais", ameaçava executá-lo caso não pagasse uma determinada quantia de dinheiro.

9) Certidão de sentença 107/00 do Tribunal Penal n° 2 de ..., à qual foram acumuladas todas as anteriores: No dia 24/07/1997, o então diretor e gerente da empresa BAUHAUS recebeu uma carta na sede que a mesma tem em ..., na qual, em nome de uma organização anarquista e revolucionária, lhe era exigido um imposto revolucionário. Esta carta foi escrita pelo acusado em cooperação com mais três pessoas. No dia 07/10/1997, o acusado, também juntamente com outros indivíduos, enviou duas cartas às farmácias "Riera y Martín", situadas na localidade de ..., nas quais, em nome da suposta organização "L.R.P.C.", exigia aos então proprietários que lhes entregassem uma quantia de dinheiro num apartado postal da titularidade do centro penitenciário de ..., onde o referido acusado se encontrava detido.”

Ou seja, não decorre da informação fornecida pelas autoridades espanholas que o Requerido tenha sido julgado pelos mesmos factos mais do que uma vez, ou que vá cumprir novamente uma pena já anteriormente cumprida, ou que não possa ser cumprida, pelo que não decorre a violação do princípio do ne bis in idem e, consequentemente,  não podemos concluir pela violação do disposto no art. 11.º, al. b), da LMDE. Assim sendo, improcede, igualmente, o recurso interposto nesta parte.

Em segundo lugar, cumpre salientar que na anterior decisão do Tribunal se considerou que o Requerido não poderia cumprir outra pena, por estar limitado pelo âmbito do (anterior) MDE; porém, expressamente se referiu que “sem prejuízo do que possa ser aplicável depois os outros tribunais legalizarem a situação do condenado”, demonstrando expressamente que após “legalização” da situação do condenado, como aconteceu com a decisão cumulatória que está na base deste MDE, pudesse, eventualmente, ser emitido novo MDE com um outro âmbito, mas sujeito às regras impostas, nomeadamente, pelas diversas decisões-quadro que estão na base da legislação, dos diversos países membros da EU, relativa ao mandado de detenção europeu. Assim demonstrando que nessa altura se estaria perante um eventual cumprimento de outra pena, ou a exceção de outra decisão que não aquela, sem que houvesse violação do princípio do ne bis in idem.

5. No entanto, cumpre averiguar se houve ou não, com a emissão deste novo MDE, violação do princípio da especialidade, nos termos do art. 7.º, n.ºs 1 e 2, da Lei n.º 65/2003, de 23.08, e do art. 27.º, n.ºs 3 e 4, da decisão-quadro 2002/584/JAI, de 13.06.

Nos termos do art. 7.º, n.º 1, da LMDE “a pessoa entregue em cumprimento de um mandado de detenção europeu não pode ser sujeita a procedimento penal, condenada ou privada de liberdade por uma infracção praticada em momento anterior à sua entrega e diferente daquela que motivou a emissão do mandado de detenção europeu”.

Porém, o princípio da especialidade “ não se aplica quando: a) A pessoa entregue, tendo a possibilidade de abandonar o território do Estado membro de emissão não o fizer num prazo de 45 dias a contar da extinção definitiva da sua responsabilidade penal, ou regressar a esse território após o ter abandonado” (art. 7.º, n.º 2, al. a), da LMDE).

E só assim se compreende a decisão da  Audiencia Provincial de ...  de 07.06.2016 (cf. fls 121/verso e ss) que decidiu pela revogação do auto de 23.05.2016 do Juzgado Penal 2 de ... que determinou o cumprimento da pena de 30 anos acordada no auto datado de 13.07.2001 (cf. fls. 124 e ss). Na verdade, sabendo que o Requerido esteve em cumprimento da pena, pelo qual foi entregue ao Reino de Espanha aquando do primeiro MDE, desde 16.01.2013 a 16.05.2016 (cf. fls. 125/verso), em junho de 2016 ainda não tinham decorrido os 45 dias necessários para que pudesse cumprir outra pena distinta daquela que esteve subjacente ao MDE executado pelas autoridades alemãs. Naquela altura havia que libertar o Requerido tal como aconteceu.

Estando agora em Portugal, ou seja, não tendo regressado a Espanha depois de ter de lá saído, e tendo sido já ultrapassados os 45 dias após o termo da pena que cumpriu, a execução de novo MDE em nada compromete o princípio da especialidade. O primeiro MDE foi executado de acordo com a regra da especialidade, e o princípio da especialidade, que se mantém durante 45 dias ou caso o requerido tivesse regressado a Espanha, não é violado com este novo MDE. Na verdade, se assim não fosse a emissão de um MDE impediria a execução de decisões transitadas em julgado no país emissor transformando-se numa verdadeira “amnistia” relativamente a todos os crimes que tivessem sido praticados e julgados antes daquele MDE. Não é o que se pretende com a consagração deste mecanismo europeu baseado num reconhecimento mútuo e na confiança entre as autoridades dos países da EU.

É isto que se pretende afirmar quando no acórdão recorrido se considerou:

No anterior [MDE] o requerido foi entregue às autoridades espanholas para cumprimento da pena imposta pelo Tribunal de ... e apenas dessa pena, uma vez que o requerido não renunciou ao princípio da especialidade, nem foi de forma atempada solicitada ampliação do objeto do mandado (tendo em vista o cumprimento da pena de 30 anos de prisão), ocorrendo ainda a violação da al. a) do nº 2 do artigo 27º da Decisão Quadro 2002/584/JAI. Tais circunstâncias foram impeditivas do cumprimento da pena agora em causa, no âmbito do anterior mandado e por essa razão foi emitido um novo MDE – o presente – cujo cumprimento o tribunal de ... pede ao Estado Português.

Não há, portanto,a invocada violação do princípio da especialidade” (cf. p. 13-4 do ac. recorrido).

Havendo novo MDE, porque o requerido volta a não ser encontrado pelas autoridades do país emissor no seu território, e sendo executado o novo MDE por um outro país que não o que executou o primeiro MDE, aquela regra da especialidade, que vincula o pais emissor relativamente a cada MDE, e durante um prazo de 45 dias após o cumprimento da pena, não pode servir de fundamento para uma “amnistia” relativamente a outros crimes que não estiveram na base da emissão do primeiro MDE. O Requerido ausentou-se e encontra-se agora em Portugal, cabendo a Portugal executar o MDE, apenas podendo recusar a sua execução nos termos dos arts. 11 e 12.º, da LMDE.

Improcede também aqui o recurso interposto.

6. O Requerido entende ainda que o Estado português poderia recusar a execução do MDE uma vez que é (agora) cidadão português, e desde que cumprido o disposto no art. 12.º, al. g), da LMDE.

De acordo com a lei portuguesa, poderá haver recusa de execução do MDE nas condições previstas no art. 11.º, da LMDE. Ora, não se verifica nenhuma daquelas causas, e desde logo, nem sequer ocorre a prescrição da pena, uma vez que, nos termos do art. 133.º do Código Penal Espanhol[1], a prescrição de uma pena superior a 20 anos ocorre somente passados 30 anos desde o trânsito em julgado da decisão (cf. art. 134.º, n.º 1, do Código Penal Espanhol).     

Porém, por força do disposto no art. 12.º, n.º 1, al. g), da LMDE, pode haver recusa de execução do MDE quando “a pessoa procurada se encontrar em território nacional, tiver nacionalidade portuguesa ou residir em Portugal, desde que o mandado de detenção tenha sido emitido para cumprimento de uma pena ou medida de segurança e o Estado Português se comprometa a executar aquela pena ou medida de segurança, de acordo com a lei portuguesa”. Porém, “A recusa de execução nos termos da alínea g) do n.º 1 depende de decisão do tribunal da relação, no processo de execução do mandado de detenção europeu, a requerimento do Ministério Público, que declare a sentença exequível em Portugal, confirmando a pena aplicada.” — art. 12.º, n.º 3, introduzido pela Lei n.º 35/2015, de 04.05.

Ora, tal como se refere no acórdão recorrido, “a recusa de execução constante da alínea g) do n.º 1 depende de requerimento do Ministério Público, implicando a declaração de que a sentença é exequível em Portugal e a confirmação da pena aplicada. (...) Nos presentes autos, o Ministério Público não requereu que a decisão fosse exequível em Portugal para aqui ser cumprida a pena.” (cf. p. 15 do ac. recorrido).

Ou seja, é dada uma faculdade ao Estado português de poder recusar a execução do MDE, considerando-se que o Estado, representado pelo Ministério Público, decide e no seguimento requere o cumprimento da pena em território nacional. Na base deste regime está o entendimento, já antes perfilhado por este Supremo Tribunal de Justiça:

IV - As referências fundamentais do regime, que moldam os conteúdos material e operativo, resumem-se a dois pressupostos base: o afastamento do princípio da dupla incriminação, substituído por um elenco alargado em catálogo de infracções, e a abolição da regra, típica da extradição, da não entrega ou extradição de nacionais.

V - Nesta perspectiva complexa, o estabelecimento de causas facultativas de não execução do mandado relevam dos compromissos assumidos no âmbito da União e dos consensos possíveis na conjugação do binómio espaço único e soberania estadual. (...)

VII - É neste enquadramento que têm de ser interpretadas as disposições sobre causas de não execução, e especificamente as causas de recusa facultativa de execução.

VIII - As causas de recusa facultativa de execução constantes do art. 12.º, n.º 1, da Lei 65/2003, de 23-08, têm, quase todas, um fundamento ainda ligado, mais ou menos intensamente, à soberania penal: não incriminação fora do catálogo, competência material do Estado Português para procedimento pelos factos que estejam em causa, ou nacionalidade portuguesa ou residência em Portugal da pessoa procurada.

IX - Especificamente, a al. g) do n.º 1 da referida disposição (retomando o art. 4.º, § 6 da Decisão-Quadro) habilita as autoridades nacionais a recusarem a execução do mandado quando «a pessoa procurada se encontrar em território nacional, tiver nacionalidade portuguesa ou residir em Portugal, desde que o mandado de detenção tenha sido emitido para cumprimento de uma pena ou medida de segurança e o Estado Português se comprometa a executar aquela pena ou medida de segurança, de acordo com a lei portuguesa».

X - A reserva de soberania que está implícita na norma e na faculdade compromissória que prevê e que a justifica, apenas se compreende pela ligação subjectiva e relacional entre a pessoa procurada e o Estado da execução.

XI - A norma contém, verdadeiramente, um contraponto facultativo ou um mecanismo para protecção de nacionais, que no contexto pretende reequilibrar o desaparecimento total ou a desvinculação no regime do mandado de detenção europeu do princípio tradicional da não  entrega (e da não extradição) de nacionais - princípio, porém, já excepcionalmente atenuado com a revisão constitucional de 1997 e a alteração do art. 33.º, n.º 3, da Constituição, e posteriormente com a alteração de 2001, em que ficou ressalvada a aplicação de normas de cooperação judiciária penal estabelecidas no âmbito da União Europeia.

XII - A faculdade de recusa de execução prevista na referida al. g) do n.º 1 do art. 12.º da Lei 65/2003, constitui, assim, uma espécie de “válvula” de segurança, que, aliás, constava já materialmente - aí não como faculdade, mas como exigência de garantia e como condição - do regime de extradição do art. 32.º, n.º 3, da Lei 144/99, de 31-08 (...).  (...)

XIV - Vista nesta perspectiva, no fundo de reserva de soberania, a al. g) do n.º 1 do referido art. 12.º concede ao Estado da execução a faculdade de recusar a execução no caso de mandado para cumprimento de uma pena, desde que, face à ligação da pessoa procurada, maxime sendo seu nacional, este Estado se comprometa a executar a pena.

XV - A decisão é, assim, deixada inteiramente ao critério do Estado da execução, que satisfará as suas vinculações europeias executando a pena aplicada a um seu nacional ou a pessoa que tenha residência nesse Estado, em lugar de dar execução ao mandado entregando a pessoa procurada ao Estado da emissão.

XVI - Na construção da norma, a faculdade é de livre exercício do Estado da execução, não dependendo de qualquer compromisso específico prévio ou de pedido do Estado da emissão; o único compromisso é unilateral e, dir-se-á, potestativo, e consiste na execução da pena aplicada em lugar da entrega da pessoa procurada.  (...)

XVIII - Mas porque a decisão de recusa da execução constitui faculdade do Estado da execução, o estabelecimento de critérios não releva da natureza dos compromissos, mas do espaço de livre decisão interna em função da reserva de soberania implicada na referida causa de recusa facultativa de execução.[2]

Se, numa fase inicial, cabia ao Tribunal, que proferia a decisão de execução do MDE, decidir se recusava (ou não) a execução, com a alteração de 2015 o legislador impôs que esta faculdade fosse objeto de requerimento por parte do Ministério Público, entidade a quem cabe representar o Estado Português, que se comprometeria a executar a pena, de acordo com a lei portuguesa; cabendo, porém, a última palavra ao Tribunal da Relação que terá que declarar a exequibilidade da sentença em Portugal. 

Porém, nos presentes autos, em momento algum o Ministério Público fez tal requerimento, nos termos do disposto no art. 12.º, n.º 3, da LDME.

Além disto, apesar de o Requerido ter apresentado um assento de nascimento assim demonstrando ser, atualmente, cidadão português [registado sob o n.º 25, no ano de 2020, no Vice-Consulado de Portugal em … (cf. fls. 117 e ss)], isto não é o bastante para que se pudesse de modo automático recusar facultativamente a execução do MDE. Não só estaríamos perante uma faculdade, como além disso teríamos de ter elementos suficientes que nos permitissem concluir que o cumprimento da pena em território português facultaria uma melhor reintegração do condenado na sociedade. Porém, a ligação do Requerido ao território português, para além do reconhecimento da sua nacionalidade, decorrente de ser filho de mãe portuguesa (cf. registo de nascimento a fls. 117 e ss), não apresenta outra razão. Não é referido que tenha familiares em Portugal, para além de apenas estar a residir em Portugal desde setembro de 2019 (cf. relatório social a fls. 101). O Requerido é casado com uma cidadã italiana (cf. relatório social a fls. 101) e tem uma filha em comum, de 2 anos de idade.

Tal como foi afirmando no acórdão recorrido, “não obstante o requerido ter sido encontrado em Portugal, aqui residir e o MDE ter sido emitido para cumprimento de pena, não decorre das suas circunstâncias de vida um enraizamento tal que pudesse permitir a afirmação de que a ligação com o nosso país assegurava, de maneira indiscutível, a legalmente pretendida reintegração do condenado.

E dizemos que o arguido não se encontra enraizado em Portugal porque não desempenha aqui qualquer atividade profissional, o mesmo ocorrendo com a sua e de ter companheira e não tem quaisquer outras ligações consistentes com o nosso país que justifiquem o pedido de recusa de cumprimento do MDE por parte do Ministério Público que, aliás, manifestou entendimento contrário.” (cf. p. 15-6 do ac. recorrido).

Ora, ainda que este elemento possa ser um dado relevante para que Portugal possa decidir (ou não) pela recusa facultativa de execução do MDE, nos termos do arr. 12.º, al. g), da LMDE, o certo é que sempre se teria que cumprir o disposto no art. 12.º, n.º 4, da LMDE, pelo que fica prejudicado o conhecimento desta questão.

Improcede, também aqui, o recurso interposto.

7. Entende ainda o Requerido que se devia suspender a instância e devia proceder-se ao reenvio pre-judicial para o TJUE, de acordo com o determinado no art. 267.º, do TFUE, para se esclarecer o sentido a dar ao princípio da especialidade no âmbito da execução do MDE.

Sabendo que o reenvio pré-judicial se encontra consagrado no art. 267.º[3]  do TFUE, entende-se que aquele reenvio deve ocorrer quando existam dúvidas quanto à interpretação de um dispositivo integrado num diploma da União Europeia — caso em que “[s]empre que uma questão desta natureza seja suscitada em processo pendente perante um órgão jurisdicional nacional cujas decisões não sejam suscetíveis de recurso judicial previsto no direito interno, esse órgão é obrigado a submeter a questão ao Tribunal.” Porém, constitui “jurisprudência constante do Tribunal de Justiça que as jurisdições nacionais gozam de um amplo poder de julgar se uma decisão do Tribunal de Justiça sobre uma questão de interpretação lhes é necessária para os habilitar a julgar o litígio.”[4]  Havendo, no entanto, a obrigação de reenviar ao TJUE os casos em que as decisões dos tribunais não sejam passíveis de mais recursos na ordem interna, o que significa que, na nossa ordem jurídica, “a obrigatoriedade do reenvio é imposta aos Supremos Tribunais cíveis e criminais, sociais, fiscais ou administrativos. Por exemplo, em Portugal, ao Supremo Tribunal de Justiça e ao Supremo Tribunal Administrativo”[5], nos casos em que o esclarecimento sobre uma certa interpretação seja necessário para julgar o litígio.

Constitui “questão prejudicial aquela cuja dilucidação um órgão jurisdicional nacional de um qualquer Estado-Membro considera necessária para a resolução de um litígio pendente perante si, e tem por objecto a interpretação, ou aferição de validade, do Direito da União (com excepção da apreciação de validade dos Tratados). Perante ela, o órgão jurisdicional nacional pede ao Tribunal de Justiça da União Europeia (TJUE) - (intérprete máximo do Direito da Srl/União) - que se pronuncie, de forma a ficar esclarecido, sobre o correcto entendimento, ou, se for caso disso, sobre a validade das disposições europeias que condicionam a solução do litígio concreto que é chamado a julgar.

A obrigação de suscitar a questão prejudicial de interpretação - como resulta do Acórdão Cilfit de 06.10.82 (Processo 283/81) - pode ser dispensada quando: i) a questão não for necessária, nem pertinente para o julgamento do litígio principal; ii) o Tribunal de Justiça já se tiver pronunciado de forma firme sobre a questão a reenviar, ou quando já exista jurisprudência sua consolidada sobre a mesma; iii) o Juiz Nacional não tenha dúvidas razoáveis quanto à solução a dar à questão de Direito da União, por o sentido da norma em causa ser claro e evidente («teoria do acto claro», cujos exigentes e cumulativos critérios de verificação foram igualmente definidos no mesmo acórdão).”[6]

Na verdade, o TJUE, na decisão citada, refere expressamente que a possibilidade de reenvio prejudicial não constitui uma impugnação oferecida às partes num litígio pendente perante um tribunal nacional, não bastando que o interessado suscite a interpretação do direito comunitário, cabendo ao órgão jurisdicional verificar se é necessária uma decisão sobre a questão de direito comunitário, não estando obrigados a remeter a questão de interpretação do direito comunitário se considerarem que a correta interpretação do direito comunitário se impõe com tal evidência que não apresenta qualquer dúvida razoável.

E é exatamente o que ocorre no presente caso. No presente caso trata-se de interpretar o princípio da especialidade tal como apresentado na lei portuguesa. E não basta apelar ao disposto no art. 7.º, n.º 1, da LMDE, para que se considere que há violação do princípio da especialidade, pois há que articular com o disposto no art. 7.º, n.º 2, al. a), da LMDE, para se poder concluir que o princípio da especialidade não se aplica em certas situações, como as previstas naquela alínea. A interpretação de que o princípio da especialidade se manteria por força de um primeiro MDE relativamente a um segundo, quando já passaram mais de 45 dias sobre a execução da pena que cumpriu com a execução do primeiro MDE, constituiria uma forma de, através das regras do MDE, inviabilizar a execução de sentenças transitadas em julgado. Ora, foi exatamente o que se pretendeu evitar com as exceções ao princípio da especialidade consagradas naquele n.º 2, do art. 7.º, da LMDE. O MDE teve em vista facilitar o processo de entrega de cidadãos para cumprimento de sentenças, baseando-se no princípio do reconhecimento mútuo e da confiança entre Estados. E nesta medida não há quaisquer dúvidas quanto ao sentido da norma que não pretende construir uma “amnistia” relativamente a todas as condenações anteriores a um certo MDE. Aliás, se o cidadão se tivesse mantido em território espanhol, aquelas sentenças poderiam ser executadas sem que houvesse qualquer violação do princípio da especialidade.

Acresce que as decisões que serviram de fundamento a este pedido de reenvio referidas pelo Requerido nas suas alegações de recurso — o acórdão do TJUE de 01.12.2008, no proc C-388/08[7], o acórdão de 19.09.2018, no proc. n.º C-327/18, e o ac. de 30.05.2013[8], no proc. n.º C-168/13[9] —, são decisões onde se analisa o âmbito do princípio da especialidade relativo a um certo MDE. Isto é,

- analisa-se, se atento o MDE emitido, pode ou não ser realizada alguma alteração, por exemplo, relativamente aos factos que estavam na base do processo penal, considerando-se que “são admitidas modificações nas circunstâncias de tempo e de lugar, desde que resultem dos elementos coligidos no decurso do processo que corre no Estado-Membro de emissão relativamente aos comportamentos descritos no mandado de detenção, não alterem a natureza da infracção e não dêem origem a motivos de não execução” (ac. do proc. C-388/08);

- entende-se que “em circunstâncias como as do processo principal, uma modificação da descrição da infracção, que tem por objecto a categoria dos estupefacientes em causa, não é, por si só, susceptível de tipificar uma «infracção diferente» daquela por que a pessoa foi entregue” (idem);

- considera-se que “esta regra [da especialidade] está ligada à soberania do Estado-Membro de execução e confere à pessoa procurada o direito de apenas ser sujeita a procedimento penal, condenada ou privada de liberdade pela infração que motivou a sua entrega” à luz de um certo MDE (ac. do proc. n.º C-327/18);

- e afirma-se expressamente que “Em qualquer caso, uma pessoa que tenha sido entregue ao Estado‐Membro de emissão por força de um mandado de detenção europeu pode, sem o consentimento do Estado‐Membro de execução, ser entregue a outro Estado‐Membro que não o Estado‐Membro de execução por força de um mandado de detenção europeu emitido por uma infração praticada antes da sua entrega, nos seguintes casos: Quando a pessoa procurada não beneficiar da regra da especialidade, nos termos das alíneas a), e), f) e g) do n.° 3 do artigo 27.°” (ac. do proc. n.º C-163/13), sendo este o caso dos presentes autos em que a pessoa procurada não beneficia do princípio da especialidade de acordo com o disposto no art. 7.º, n.º 2, al. a), da LMD, que corresponde ao art. 27.º, n.º 3, al. a), da Decisão-Quadro 2002/584/JAI, de 13.06.2002;

Ora, no presente caso não está em causa nenhuma situação de condenação por uma infração diferente da subjacente ao MDE agora em análise. O MDE anterior executado pelas autoridades alemãs é distinto deste outro, e vincula apenas os Estados na relação bilateral que cada MDE impõe. Uma coisa foi a relação bilateral que se estabeleceu entre as autoridades alemãs e as autoridades espanholas aquando do primeiro MDE. Outra diferente é a relação bilateral que agora se estabelece entre as autoridades portuguesas e espanholas na decorrência deste outro MDE.

Estas decisões citadas pelo requerido nas alegações de recurso sedimentam ainda mais o entendimento de que a interpretação realizada é clara à luz da jurisprudência do TJUE, ficando o Estado português dispensado de proceder àquele reenvio.

Assim sendo, considera-se que não existe qualquer obrigação para o reenvio pre-judicial, pelo que improcede igualmente o recurso.

III Decisão

Termos em que acordam os Juízes do Supremo Tribunal de Justiça em negar provimento ao recurso apresentado por AA, mantendo a decisão recorrida.

Custas pelo recorrente, com 5 UC de taxa de justiça.

Supremo Tribunal de Justiça, 26 de março de 2020

                                                                                   Os Juízes Conselheiros,

Helena Moniz – Relatora

Nuno Gomes da Silva

_______________________________________________________


[1] Consultável aqui:
https://www.boe.es/buscar/act.php?id=BOE-A-1995-25444&p=20190302&tn=1#a131
[2] Sumário do acórdão de 27.04.2006, proc. n.º 06P1429, Relator: Cons. Henriques Gaspar, in
http://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/49b509c404addc288025720c00486af2?OpenDocument
[3] “O Tribunal de Justiça da União Europeia é competente para decidir, a título prejudicial:
a) Sobre a interpretação dos Tratados;
b) Sobre a validade e a interpretação dos atos adotados pelas instituições, órgãos ou organismos da União.
Sempre que uma questão desta natureza seja suscitada perante qualquer órgão jurisdicional de um dos Estados-Membros, esse órgão pode, se considerar que uma decisão sobre essa questão é necessária ao julgamento da causa, pedir ao Tribunal que sobre ela se pronuncie.
Sempre que uma questão desta natureza seja suscitada em processo pendente perante um órgão jurisdicional nacional cujas decisões não sejam suscetíveis de recurso judicial previsto no direito interno, esse órgão é obrigado a submeter a questão ao Tribunal.
Se uma questão desta natureza for suscitada em processo pendente perante um órgão jurisdicional nacional relativamente a uma pessoa que se encontre detida, o Tribunal pronunciar-se-á com a maior brevidade possível.”
[4] MOTA DE CAMPOS, J./ MOTA DE CAMPOS J.L./ PEREIRA, A.P., Manual de Direito Europeu, Coimbra: Coimbra Editora, 20147, p. 427.
[5] Idem, p. 428.
[6] Proc. n.º 8439/06.1TBBRG.G1.S1, de 21.03.2019, Relator: Cons. Helder Almeida.
[7] Consultável aqui:
http://curia.europa.eu/juris/document/document.jsf?text=&docid=66639&pageIndex=0&doclang=pt&mode=lst&dir=&occ=first&part=1&cid=2939940
[8] Consultável aqui:
http://curia.europa.eu/juris/document/document.jsf?text=&docid=205871&pageIndex=0&doclang=PT&mode=lst&dir=&occ=first&part=1&cid=2939940
[9] Consultável aqui:
http://curia.europa.eu/juris/document/document.jsf?text=&docid=137836&pageIndex=0&doclang=pt&mode=lst&dir=&occ=first&part=1&cid=2937114