Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
081485
Nº Convencional: JSTJ00014101
Relator: JOSE MAGALHÃES
Descritores: DIVORCIO LITIGIOSO
VIOLAÇÃO DOS DEVERES CONJUGAIS
OFENSAS A HONRA E DIGNIDADE DO OUTRO CONJUGE
OFENSAS CORPORAIS
OFENSAS GRAVES
Nº do Documento: SJ199203110814852
Data do Acordão: 03/11/1992
Votação: UNANIMIDADE
Referência de Publicação: BMJ N415 ANO1992 PAG652
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA.
Decisão: NEGADA A REVISTA.
Área Temática: DIR CIV - DIR FAM.
Legislação Nacional: CCIV66 ARTIGO 1672 ARTIGO 1779.
Jurisprudência Nacional: ACÓRDÃO STJ DE 1982/12/07 IN BMJ N322 PAG348.
Sumário : I - As injurias que o reu dirigiu a esposa, chamando-lhe "puta" e "vaca" e a agressão fisica que levou a cabo na sua pessoa, causando-lhe ferimentos na cabeça e na cara, por grandemente ofensivas não so sob o aspecto fisico, mas tambem da honra e dignidade de qualquer pessoa, são de considerar graves.
II - O comportamento do reu e de molde a comprometer a possibilidade da vida em comum do casal, nos termos do disposto no artigo 1779 do Codigo Civil.
Decisão Texto Integral: Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:
A, instaurou no Tribunal de Familia do Porto, onde correu termos pelo segundo juizo, a presente acção de divorcio contra seu marido B, pedindo que, na sua procedencia, se decretasse o divorcio de ambos com culpa exclusiva dele.
Invocou, para o efeito, o facto de o reu não fazer vida com ela, de lhe chamar puta, vaca, ordinaria e fressureira com intenção de a ofender, de se embriagar, de acompanhar com mulheres de mau porte, de varias vezes a ter ameaçado e agredido fisicamente e ainda - o que fez em articulado superveniente - de vir acompanhando, em locais publicos e privados, uma senhora a quem leva para a casa, onde o casal residia, com a qual pernoita.
O reu contestou, impugnando os factos que lhe são atribuidos e dizendo que sempre ele e a esposa se deram bem durante os seus 32 anos de casados.
Elaborados o despacho saneador, a especificação e o questionario - este ultimo aditado com os factos alegados no articulado superveniente -, prosseguiram os autos ate ao julgamento.
Feito este, foi proferida a sentença de fls 78 e 79, a decretar o divorcio dos dois interessados, a declarar o reu o unico culpado e a condenar este como litigante de ma fe.
O reu recorreu, mas a Relação do Porto confirmou o julgado da primeira instancia.
E do acordão da Relação que o reu traz agora o presente recurso, pretendendo a revogação do mesmo e que ele se substitua "por outro que absolva o recorrente do pedido".
Formula as seguintes conclusões:
1) Os factos dados como provados - agressão fisica , falta de dialogo acerca da filha - casada e com filhos
- e a dormirem em camas separadas - não constituem violação grave e reiterada dos deveres conjugais, de modo a por termo a um casamento de mais de 30 anos; e
2) O venerando Tribunal da Relação do Porto, ao confirmar a douta sentença apelada, violou, "a contrario sensu", o disposto nos arts 1672 e 1799 do Codigo Civil.
A parte contraria defende a manutenção do decidido.
Obtidos os vistos legais, cumpre apreciar e resolver.
1 - Começamos por aludir aos factos dados como assentes.
São eles: a) A autora e o reu contrairam casamento entre si em 26 de Julho de 1958; b) O reu chama a autora de "puta" e "vaca"; c) A autora e o reu não se falam; d) Nem o reu dialoga com a autora sobre a vida do casal e sobre a filha; e) A autora e o reu dormem em camas e quartos separados; e f) No dia 25 de Março de 1989 o reu agrediu fisicamente a autora, causando-lhe ferimentos na cabeça e na cara.
2 - A primeira instancia, ao pronunciar-se sobre o comportamento do reu, houve as expressões por ele utilizadas para com a autora, chamando-lhe "puta" e "vaca", como objectiva e subjectivamente injuriosas da demandante na sua qualidade de mulher e esposa, e a agressão cometida em 25-3-89 como mais uma grave ofensa a sua integridade fisica; as primeiras, por ofensivas da honra, brio, amor proprio e sensibilidade ou susceptibilidade da sua consorte, e a segunda por igualmente violadora do dever do respeito que lhe devia.
Não se consideraram, porem, como violadores dos deveres conjugais e, por isso, como condencentes ao divorcio o facto de a autora e o reu se não falarem, o de o reu não dialogar com a mulher sobre a vida do casal e da filha e o de ambos dormirem em camas e quartos separados, por não determinado o culpado desta situação.
Não sendo, assim, estes ultimos factos - o de os conjuges não falarem um com o outro, o de o reu não dialogar com a esposa sobre a vida do casal e da filha e o de ambos dormirem em camas e quartos separados - os que levaram a dissolução do casamento, de todo incompreensivel e que o recorrente venha aludir a uma tal falta de dialogo e ao facto de dormirem em camas separadas como se tambem estes tivessem contribuido para o decretamento do divorcio. Quanto mais não seja, ate porque, nesta parte, não teve a Relação de exercer
- e, por isso, a não exerceu - qualquer censura sobre a sentença apelada.
Como incompreensivel e que, a querer o recorrente obter de verdade a revogação do acordão recorrido não haja ele impugnado este num dos fundamentos que ditaram o julgado - o dar injurias com que vem mimoseando a mulher, como se o mesmo não passasse de um facto despiciendo e não contasse nada para o efeito.
3 - A questão que se põe e, assim, a de saber se os factos dados como assentes constituem ou não causa de divorcio. E dizemos os factos dados como assentes, ja que, a despeito de o recorrente se referir apenas a agressão fisica, a falta de dialogo acerca da filha e ao facto de dormirem em camas separadas - quanto a estes ultimos incompreensivelmente, como vimos de salientar - como sendo os que levaram a manutenção do decidido na primeira instancia e consequente decretamento do divorcio dos dois esposos, não foi so a agressão fisica que o recorrente levou a cabo na pessoa da mulher que conduziu a prolação do veredicto impugnado.
Examinemo-la, pois.
4 - No art. 1672 do Codigo Civil dispõe-se que "os conjugues estão reciprocamente vinculados pelos deveres de respeito, fidelidade, coabitação, cooperação e assistencia".
E no art. 1779 do mesmo Codigo preceitua-se:
1 - Qualquer dos conjuges pode requerer o divorcio se o outro violar culposamente os deveres conjugais, quando a violação, pela sua gravidade ou reiteração, comprometa a possibilidade da vida em comum.
2 - Na apreciação da gravidade dos factos invocados, deve o tribunal tomar em conta, nomeadamente, a culpa que possa ser imputada ao requerente e o grau de educação e sensibilidade moral dos conjuges.
O dever de respeito - diz A. Varela - abrange "o dever que recai sobre cada um dos conjuges de não atentar contra a integridade fisica ou moral do outro" (Direito de Familia, 1982, pag. 295).
E mais ainda: todos os aspectos das relações entre conjuges e entre estes e terceiros em tudo quando se reportar ao outro conjuge (Codigo Civil Anotado, 1978, de Abilio Neto e H. Martins, pag.778).
Implica que ambos os conjuges se tratem com consideração, isto e, com uma especial deferencia - com reverencia ate, se se preferir -, numa palavra, que se honrem um ao outro. Que se honrem um ao outro, ja por toda a pessoa humana, como portadora de um conjunto de qualidades morais - probidade, lealdade e caracter - ter direito a estima e consideração dos demais, ja por os conjuges, atentas as especiais relações que os unem, mais se deverem estimar e respeitar.
Ora, o reu, ao chamar "puta" e "vaca" a esposa e agredi-la corporalmente, deste modo a ofendendo não so na sua integridade fisica como moral, violou sem duvida o dever de respeito a que se achava obrigado para com ela. E violou-o culposamente por mais do que uma vez: uma quando a agrediu fisicamente, causando-lhe ferimentos na cabeça e na cara, e outra ou outras - e parece que outras, uma vez que se o reu chama (no presente do indicativo) a autora "puta" e "vaca", tudo faz pressupor que o faz com certa frequencia e habitualidade - quando a injuriou.
5 - As injurias que o reu dirigiu a esposa e a agressão que levou a cabo na sua pessoa, por grandemente ofensivas, não so (a segunda) sob o aspecto fisico, mas tambem da honra e dignidade de qualquer pessoa que se preze, são de considerar graves. Quanto mais não seja, por se não ver que a ofendida tenha tido culpa no sucedido e a mesma, apesar de domestica, se não poder deixar de entender como portadora de um suficiente grau de educação e sensibilidade moral susceptiveis de acusar o toque da afronta.
6 - Acabou de dizer-se que as ofensas que o reu infligiu a esposa são graves.
Sucede, porem, que, segundo o disposto no art. 1779 do
Codigo Civil, para a violação culposa aos deveres conjugais poder justificar a dissolução do vinculo matrimonial não basta que ela seja grave. E ainda necessario que a mesma, por virtude da sua gravidade ou reiteração, comprometa a possibilidade da vida em comum.
Como decidir, então, no caso concreto?
Sera que o comportamento que o reu teve para com a esposa não e de molde a comprometer a possibilidade da sua vida em comum?
Embora seja esta a pretenção do recorrente, afigura-se-nos que compromete e que ate ja comprometeu.
Para o demonstrar, basta ter presente que a despeito de os factos ja terem ocorrido ha cerca de tres anos ou mais, ainda a autora os não "esqueceu", visto continuar a insistir pelo divorcio com base nas ofensas que recebeu.
7 - Não se ignora que este Supremo Tribunal ja entendeu ser insuficiente para a procedencia de um pedido de divorcio a prova de uma unica agressão (Ac. de 7.XII.82 in Bol. 322/348).
De anotar e, contudo, que, no caso das acções, o divorcio se não ficou a dever a uma unica agressão, ao inves do que o recorrente, omitindo as expressões injuriosas por si proferidas tambem, parece ter entendido, mas ainda a circunstancia de ele a vir insultando com epitetos altamente ultrajantes da sua dignidade de mulher casada que nenhum motivo pode justificar e a autora não e obrigada a suportar.
8 - "O sentimento dos conjuges, ou seja a sua real ligação afectiva tende a ser o verdadeiro fundamento da relação matrimonial" (Prof. Fer. Coelho in R.L.J. 112/348). Se este sentimento ou uma tal ligação afectiva falha deixa a relação matrimonial de justificar-se.
Manter o vinculo conjugal so porque um dos conjuges
"por desinteresse ou obstinação" ou uma outra qualquer razão menos atendivel ainda, se opõe a sua dissolução, e esquecer que, sendo o casamento "obra de dois" se não pode manter so por vontade de um deles. Se um dos interessados quer divorciar-se e se não antolha a esperança de uma reconciliação, nada ha, pois, como por termo a situação que um sujeita e o outro não merece.
9 - Em função do exposto, e por se não ver que o acordão recorrido haja violado qualquer preceito legal, acorda-se em negar a revista.
Custas pelo recorrente.
Lisboa, 11 de Março de 1992.
Jose Magalhães
Tato Marinho
Pires de Lima
Decisões impugnadas:
I - Sentença de 90.02.21 do 2 Juizo, 2 Secção do
Tribunal de Fmilia do Porto.
II - Acordão de 91.02.05 do Tribunal da Relação do
Porto.