Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
807/18.2T8VFR.P1.S1
Nº Convencional: 1.ª SECÇÃO
Relator: JORGE ARCANJO
Descritores: RESPONSABILIDADE EXTRACONTRATUAL
ACIDENTE DE VIAÇÃO
FUNDO DE GARANTIA AUTOMÓVEL
DANO BIOLÓGICO
DANO PATRIMONIAL
DANOS FUTUROS
DANOS NÃO PATRIMONIAIS
CÁLCULO DA INDEMNIZAÇÃO
Data do Acordão: 05/07/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA
Sumário :
I.- Revela-se equitativa a quantia de € 42.000,00, a título de dano biológico na vertente de dano patrimonial futuro, provando-se, em síntese, que:

O acidente de viação, ocorreu em 11 de Novembro de 2015,

O autor sofreu as seguintes lesões como consequência do acidente: i. traumatismo abdominal fechado uma perfuração de víscera oca com peritonite; ii. ferida na mão direita; trauma cervical indirecto por mecanismo de chicote cervical; iii. dor às manobras de estabilidade pélvica; iv. traumatismo a nível do cotovelo esquerdo com dor e dificuldade à mobilização activa e passiva com limitação à extensão total do cotovelo; v. dor a nível da tacícula radial à palpação e aos movimentos de pronação e supinação.;

A data da consolidação médico-legal das lesões sofridas pelo Autor foi fixada como tendo ocorrido em 14.9.2017;

Por causa do acidente, o Autor ficou com Défice Funcional Permanente da Integridade Físico-Psíquica de 17 pontos a partir da data de consolidação.

II – Revela-se equitativa a quantia de € 55.000,00, a título de danos não patrimoniais na situação referida em I, provando-se ainda que:

O Autor teve internamento hospitalar, foi submetido a uma intervenção cirúrgica, permanecendo três dias nos cuidados intensivos, entubado e ventilado, e em coma induzido;

As implicações familiares, o quantum doloris sofrido pelo Autor é de grau 6, numa escala crescente de 0 a 7 de acordo com a Tabela de Avaliação de Incapacidades Permanentes em Direito Civil.;

Por causa do acidente, o Autor é portador de deficit funcional permanente da integridade físico-psíquica de 17 pontos de acordo com a Tabela de Avaliação de Incapacidades Permanentes em Direito Civil;

A repercussão permanente dessa incapacidade na sua actividade profissional traduz-se na necessidade de realizar esforços acrescidos;

O dano estético permanente sofrido pelo Autor foi fixado no grau 3, numa escala crescente de 0 a 7 de acordo com a Tabela de Avaliação de Incapacidades Permanentes em Direito Civil;

A repercussão na actividade sexual foi fixada no grau 3, numa escala crescente de 0 a 7 de acordo com a Tabela de Avaliação de Incapacidades Permanentes em Direito Civil;

A repercussão permanente nas actividades desportivas e de lazer foi fixada no grau 3, numa escala crescente de 0 a 7 de acordo com a Tabela de Avaliação de Incapacidades Permanentes em Direito Civil;

O Autor apresenta uma irritabilidade constante, propensa a situações de desconforto e de ansiedade que se repercutiram em muitos momentos do dia-a-dia, e tem acompanhamento em psiquiatria.

Decisão Texto Integral:

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça

I – RELATÓRIO


1.1.- O Autor – AA - instaurou acção declarativa, com forma de processo comum, contra os Réus:

A..., Sociedade Unipessoal, Lda., com sede na Rua ...

BB

Fundo de Garantia Automóvel (integrado na Autoridade de Supervisão de Seguros e Fundos de Pensões, com sede na Avenida ...).

Alegou, em resumo:

No dia 11 de Novembro de 2015, pelas 16.50 horas, ocorreu um acidente de viação na Avenida ..., em ..., em que foram intervenientes o veículo ligeiro de mercadorias, de marca “Peugeot Partner”, com a matrícula n.º ..-HM-.. (doravante designado por HM), pertencente à 1.ª Ré e conduzido pelo 2.ºRéu, e o veículo ligeiro de passageiros, de marca “Audi”, com a matrícula n.º ..-AL-.. (doravante designado por AL), conduzido por si.

O acidente de viação ocorreu por a culpa exclusiva do condutor do HM, que invadiu a faixa de rodagem por onde seguia, por seguir com velocidade excessiva e com falta de condições físicas para o exercício da condução.

O veículo HM circulava na via pública sem ter vigente qualquer contrato de seguro de responsabilidade civil automóvel que garantisse a sua circulação.

Em consequência sofreu danos patrimoniais e não patrimoniais.

Pediu a condenação solidária dos Réus a pagar-lhe a quantia de € 198 698,14, acrescida dos juros moratórios devidos, calculados à taxa legal e contados desde a citação até efectivo e integral pagamento.

1.2. - O Réu Fundo de Garantia Automóvel (FGA) contestou, excepcionando a sua ilegitimidade, alegando que, quando o lesado sofre um acidente que é coberto pelo seguro de acidentes de trabalho ou de serviço, é a seguradora do acidente de trabalho ou o organismo público equivalente a responder pela reparação dos danos do acidente, com excepção de eventual indemnização por danos não patrimoniais sofridos.

Contudo, aceita a ocorrência do acidente e a culpa do condutor do HM, mas impugna os danos alegados.

Conclui pedindo que a excepção seja julgada procedente, com as legais consequências. Sem conceder, pede que a presente acção seja julgada em conformidade com a prova que vier a produzir-se, considerando os limites legais à responsabilidade do FGA previstos no art.º 51.º do D.L. n.º 291/2007, de 21 de Agosto.

Também o Réu BB contestou com a excepção da ilegitimidade passiva, e impugnou a dinâmica do acidente e os danos.

1.3. – No saneador julgaram-se improcedentes as excepções de ilegitimidade passiva invocadas pelos Réus.

1.4.- Realizada audiência de julgamento, foi proferida sentença, que decidiu:

“Assim, e em conclusão, julga-se a acção parcialmente provada e parcialmente procedente e, em consequência: condenam-se solidariamente os Réus a pagar ao Autor indemnização no valor de 67 769,34 €, sendo: 8 745, 71 €, por danos patrimoniais a que acrescem os juros de mora, a taxa legal desde a citação e até efectivo pagamento; 7 358,68 € por força da perda de rendimento durante os períodos de incapacidade temporária a que acrescem os juros de mora, a taxa legal desde a citação e até efectivo pagamento; 10 000,00 € para ressarcimento do dano biológico a que acrescem juros a contar da presente data e até efectivo e integral pagamento; 25 000 € para ressarcimento do dano não patrimonial e que acrescem juros a contar da presente data e até efectivo e integral pagamento; 13 664,95 € para ressarcimento do dano patrimonial futuro decorrente da perda da capacidade de trabalho a que acrescem os juros de mora, a taxa legal desde a citação e até efectivo pagamento.”

1.5. - Inconformado com a sentença, o Autor interpôs recurso de apelação e a Relação do Porto, por acórdão de 22/6/2021, decidiu:

“Pelo exposto, acordam os Juízes que constituem este Tribunal da Relação em julgar parcialmente procedente o recurso do Recorrente/Autor, alterando-se parcialmente a decisão recorrida, nos seguintes termos:

Assim, e em conclusão, julga-se a acção parcialmente provada e parcialmente procedente e, em consequência: condenam-se solidariamente os Réus a pagar ao Autor indemnização no valor de 116 104,39 €, sendo: 8 745, 71 €, por danos patrimoniais a que acrescem os juros de mora, a taxa legal desde a citação e até efectivo pagamento; 7 358,68 € por força da perda de rendimento durante os períodos de incapacidade temporária a que acrescem os juros de mora, a taxa legal desde a citação e até efectivo pagamento; 30 000,00 € para ressarcimento do dano biológico a que acrescem juros a contar da presente data e até efectivo e integral pagamento; 25 000 € para ressarcimento do dano não patrimonial e que acrescem juros a contar da presente data e até efectivo e integral pagamento; 42 000 € para ressarcimento do dano patrimonial futuro decorrente da perda da capacidade de trabalho a que acrescem os juros de mora, a taxa legal desde a citação e até efectivo pagamento.

1.6. – O Fundo de Garantia Automóvel recorreu de revista com as seguintes conclusões:

1. Ocorreu um manifesto lapso na soma aritmética do montante objecto de condenação, sendo que o total deveria ser de €113.104,39 e não os € 116.104.39 referidos no douto Acórdão;

2. Lapso manifesto, cuja rectificação deve ser levada a cabo, nos termos do disposto nos artºs 614, n.º 1 e 2, ex vide do art.º 666, n.º 1 do CPC;

3. A indemnização pelo dano patrimonial futuro decorrente perda de capacidade de ganho deve fixar-se 13.664,95 € ao Autor, ao invés de €42.000,00 arbitrados no douto Acórdão recorrido;

4. Ao valor indemnizatório arbitrado pelo dano de perda de capacidade de ganho, deve ser subtraído o montante já recebido pelo Autor no âmbito do processo de acidente de trabalho;

5. Só com a subtracção dos valores recebidos no âmbito do acidente de trabalho ao valor ora objecto de condenação, se evita o recebimento de uma dupla indemnização pelo mesmo dano;

6. O artigo 51.º, n.º 1 do Dec. Lei 291/2007, de 21.08, estabelece, de modo claro e expresso, que na circunstância de um acidente configurado simultaneamente como de trabalho e viação, o FGA só repara o que não for, em abstracto, reparável pela outra via de ressarcimento, ou seja, o dano material e, dentro do dano corporal, os danos não reparáveis nos termos da Lei Acidentes de Trabalho (LAT), e que são os danos não patrimoniais e alguns dos danos patrimoniais;

7. A indemnização pelo dano decorrente do dano biológico deve fixar-se em somente 10.000,00€ ao Autor, ao invés de €30.000,00 arbitrados no douto Acórdão recorrido;

8. O dano biológico deve orientar-se de acordo com as regras da experiência comum e, na ausência de elementos precisos e exactos de medida, de acordo com critérios de equidade;

9. Ao Autor já foi atribuída uma indemnização a título de danos morais de € 25.000,00;

10.Ao não julgar da forma assinalada, o tribunal a quo violou os artigos 496.º, 562.º e 564.º, nº 2 todos do CC, tendo incorrido em erro de julgamento.

1.7. – O Autor contra-alegou no sentido da improcedência do recurso.


II - FUNDAMENTAÇÃO

2.1. – O objecto do recurso

As questões submetidas a revista são as seguintes:

A quantificação do dano biológico, na vertente de dano patrimonial futuro;

A quantificação dos danos não patrimoniais.

2.2.- Os factos provados

1) Cerca das 16:50 horas, do dia 11.11.2015, na Avenida ..., ..., ocorreu um embate entre o veículo ligeiro de mercadorias, de marca Peugeot Partner, de matrícula ..-HM-.., propriedade da Ré A..., Sociedade Unipessoal, Lda., conduzido pelo Réu BB e o veículo ligeiro de passageiros, de marca Audi, de matrícula ..-AL-.., conduzido pelo Autor.

2) Essa avenida descreve-se em recta, sendo o seu piso de alcatrão.

3) A faixa de rodagem tinha cerca de 6,5 metros de largura e situava-se dentro de uma localidade (...)

4) O condutor do HM conduzia esse veículo ao serviço da Ré sociedade, sua proprietária, cumprindo ordens da mesma, que era também a sua entidade patronal, para entrega de uma encomenda

5) Após o embate o condutor BB acusou positivo na confirmação qualitativa/quantificação de canabinóides em sangue (GC-MS-MS), TI-IC-COOH 4.6 ng/mL, THC 1.8 ng/MI" no exame toxicológico efectuado no Serviço de Química e Toxicologia Forense do INML

6) O veículo de matrícula HM transitava, então, pela Avenida ..., no sentido L... - S..., a uma velocidade não concretamente apurada.

7) Quando se preparava para descrever uma curva ligeira que se apresentava à sua direita, dada a velocidade que o animava começou a derivar para a esquerda, transpôs a linha descontínua e passou a circular pela hemifaixa de rodagem reservada ao sentido contrário.

8) Por essa via circulava o veículo de matrícula AL, a uma velocidade não concretamente apurada.

9) Quando o seu condutor se apercebeu da trajectória seguida pelo Peugeot, não conseguiu evitar o embate frontal entre ambos os veículos.

10) O veículo de matrícula HM obstruiu a marcha do veículo de matrícula AL. 11) Com a violência do embate, a frente do veículo de matrícula AL desapareceu, os airbags dispararam e esse veículo foi projectado para trás, vindo-se a imobilizar na faixa contrária ocupando parcialmente o passeio desse lado.

12) Em consequência do embate, a viatura HM ficou imobilizada na faixa de rodagem contrária e o AL ficou imobilizado na faixa de rodagem do HM (de sentido oposto)

13) À data do acidente não estava em vigor qualquer contrato de seguro de responsabilidade civil automóvel que garantisse a circulação do veículo de matrícula HM.

14) Após peritagem realizada pelo Réu Fundo de Garantia Automóvel concluiu-se que o HM se encontrava em situação de " ... perda total ...", atendendo " … ao custo estimado da reparação e ao disposto na alínea e) do n.º 1 do artigo 41.º do Decreto-Lei 29172007, de 2J de Agosto, ... ".

15) O Réu Fundo de Garantia Automóvel assumiu a sua obrigação de proceder à regularização extrajudicial do sinistro, remeteu ao Autor uma carta datada de 10.2.2016 a colocar à sua disposição a quantia de 8.042,00 € (oito mil e quarenta e dois euros), considerando a diferença entre o valor venal atribuído ao veículo de matrícula AL - 9.447,00 € - e o valor atribuído ao salvado – de 1.405 ,00 € (mil, quatrocentos e cinco euros).

16) O Autor aceitou o pagamento dessa indemnização.

17) Que lhe foi disponibilizado em 30.3.2016.

18) O veículo de matrícula AL era o único veículo automóvel que o Autor possuía.

19) Era com esse veículo que o Autor se deslocava diariamente para o seu emprego, para todas as actividades lúdicas que à data frequentava e com que assegurava o normal giro do seu agregado familiar, o qual era composto por si, pela sua esposa e pelos seus filhos menores.

20) O Autor necessitava de dispor diariamente de um veículo automóvel.

21) Requereu um veículo de substituição ao Réu Fundo de Garantia Automóvel que não lhe foi disponibilizado.

22) O Autor teve de alugar um veículo automóvel durante 35 dias.

23) Com o que suportou a despesa de 1.356,26 € (mil, trezentos e cinquenta e seis euros e vinte e seis cêntimos) cujo pagamento reclamou ao Fundo de Garantia Automóvel

24) Com o parqueamento do veículo de matrícula AL na oficina de CC até 14-01-2016, o Autor suportou a despesa de 787,20 € (setecentos e oitenta e sete euros e vinte cêntimos).

25) Com o acidente ficaram destruídos ou danificados os seguintes objectos que eram transportados no veículo de matrícula AL: i. Um computador portátil ultrabook, de marca Samsung, no valor de 770 €; ii. Um tablet de marca Windows Surface; iii. Uns óculos de sol de marca Ray Ban, de valor não concretamente apurado, mas não inferior a 100 €; iv. Um violino de fabrico manual datado de Dezembro de 1989, com estojo Luthier, cujo valor económico ascende a, pelo menos, 4 000,00 € (quatro mil euros); v. Uma cadeira auto de bebé, de marca Bébécar, de valor concretamente não apurado, mas não inferior a 100 €;

26) Para proceder à reparação do LCD Touch Surface RT, o Autor gastou a quantia de 325,00 € (trezentos e vinte e cinco euros), enquanto com o serviço de recuperação de dados de I-IDD de 500 Gb do seu computador portátil de marca Samsung Ultrabook, o Autor gastou a quantia de 750,00 € (setecentos e cinquenta euros).

27) A esses valores ainda acresceu o IVA à taxa legal, num valor total de 1 322 25 € (mil, trezentos e vinte e dois euros e vinte e cinco cêntimos).

28) Após o embate o Autor ficou encarcerado dentro do veículo de matrícula AL, queixando-se imediatamente de fortes dores ao nível torácico, abdominal e nas mãos.

29) Após a chegada dos meios técnicos de Socorro, os bombeiros procederam à imobilização do Autor em plano duro e com colar cervical e foi transportado para o Hospital ..., E.P.E., na cidade de ..., local onde lhe foram ministrados os primeiros cuidados médicos, hospitalares e medicamentosos.

30) Aquando da sua entrada nessa unidade hospitalar o Autor apresentava dor por trauma cervical indirecto por mecanismo de chicote cervical e parestesias nas mãos, dor abdominal baixa importante provocada pela retenção do cinto de segurança, dor às manobras de estabilidade pélvica, traumatismo a nível do cotovelo esquerdo, com dor e dificuldade à mobilização activa e passiva com limitação à extensão total do cotovelo, dor a nível da tacícula radial, à palpação e aos movimentos de pronação e supinação.

31) O Autor estava hemodinamicamente estável, apresentando uma ferida profunda na mão direita, a qual teve que ser suturada.

32) Fez um RX ao tórax.

33) Realizou uma ecografia abdominal.

34) Foi avaliado por ortopedia, tendo realizado um novo RX lombar, cervical, dorsal e à bacia.

35) Foi avaliado por cirurgia atento o quadro de dor abdominal intensa.

36) Realizou um TAC abdominal e pélvico onde veio a ser detectado um hemoperitoneu pélvico.

37) Manteve-se internado na urgência da sobredita instituição hospitalar para vigilância.

38) Como o quadro de dor se agravou exponencialmente, o Autor foi internado na unidade de cuidados intermédios onde passou o resto da noite.

39) Com o passar das horas, essas dores foram-se agudizando de tal forma que às 4 horas o Autor realizou um TAC à zona abdominal.

40) Já no final da manhã do dia seguinte, os médicos identificaram a presença de um fluído que estava a ser expelido pelo intestino, pelo que o Autor foi reavaliado por cirurgia e os médicos decidem realizar uma laparotomia exploratória.

41) O Autor entrou para a sala de operações às 15 horas do dia 12.11.2015.

42) No decurso dessa intervenção cirúrgica, os médicos confirmaram a existência de um hemoperitoneu de moderado volume (500cc) com peritonite adesiva, sugestiva de perfuração de víscera oca.

43) Foi ainda identificada “…avulsão do mesentério a nível da última ansa ileal, com perfuração no bordo mesentério e uma segunda laceração quase completa de delgado distal, a cerca de 15 cm da válvula ileocecal.”

44) O Autor foi sujeito a enterectomia segmentar de 20 cm englobando ambas as perfurações e uma anastomose ileoileal.

45) O Autor permaneceu internado na Unidade de Cuidados Intensivos Polivalente (UCIP) até ao dia 15.11.2015.

46) Nessa unidade esteve completamente entubado, ventilado e sedado.

47) Atenta a gravidade do seu estado clínico foi necessário provocar-lhe coma induzido.

48) Começou a reagir paulatinamente.

49) Inicialmente não conseguiu falar, nem escrever.

50) Durante cerca de três dias o Autor perdeu a memória, a qual tem vindo a recuperar de forma paulatina com os relatos da sua mulher e dos demais familiares e amigos.

51) Apenas na tarde do dia 15 de Novembro lhe foi retirada a ventilação e todos os demais tubos.

52) Já consciente foi remetido para a enfermaria de cirurgia.

53) Durante todo este período o Autor teve muitas dores, apesar de medicado

54) Sentia um mal-estar generalizado, não conseguia dormir e não se mexia.

55) Estava muito fragilizado e totalmente dependente.

56) Apenas no dia 16 e 17 de Novembro começou a reagir e aperceber-se do sofrimento que toda a situação estava a causar à sua esposa e aos seus filhos.

57) Conseguiu urinar pela primeira vez no dia 16 e no dia 17 começou a dar pequenos passos e comeu algumas colheres de sopa pela primeira vez, após o acidente.

58) Durante esse período, o Autor teve alguns sintomas de alucinações, motivo pelo qual foi avaliado por psiquiatra.

59) No dia 19 de Novembro o Autor teve alta para o domicílio, no entanto, as dores e o mal-estar mantinham-se.

60) Os médicos asseguraram ao Autor que as alucinações – o Autor via coisas escritas e/ou desenhadas nas paredes – seriam normais considerando a medicação por si ingerida.

61) O Autor sofreu as seguintes lesões como consequência do acidente: i. traumatismo abdominal fechado uma perfuração de víscera oca com peritonite; ii. ferida na mão direita; trauma cervical indirecto por mecanismo de chicote cervical; iii. dor às manobras de estabilidade pélvica; iv. traumatismo a nível do cotovelo esquerdo com dor e dificuldade à mobilização activa e passiva com limitação à extensão total do cotovelo; e, v. dor a nível da tacícula radial à palpação e aos movimentos de pronação e supinação.

62) O reencontro com os filhos foi muito emotivo para o Autor já que o seu filho o abraçou e estava muito satisfeito com a sua chegada, mas a sua filha (de 3 anos de idade, àquela data) não se aproximava do Autor, afastamento esse que se manteve nos dias subsequentes.

63) O que muito afectou o Autor em termos emocionais.

64) A esposa do Autor teve de interromper a sua actividade profissional para o apoiar.

65) Durante os primeiros tempos em casa, o Autor sentiu conforto, apoio e carinho, mas sentiu-se também triste e amargurado pelo sofrimento que causou à sua família.

66) O Autor passou várias noites com dores e sem conseguir dormir.

67) Quando conseguia dormir acordava recorrentemente assustado e com flashes do acidente, rememorando o choque frontal e a violência do embate.

68) Este período coincidiu com uma fase difícil por que passou a filha mais nova do Autor, já que a mesma não se conseguia adaptar ao ensino pré-primário, recusava-se a ir à escola e não dormia sossegada.

69) O Autor nada podia fazer para reverter esta situação já que estava confinado à sua cama.

70) Toda esta situação se prolongou até ao Natal.

71) Como o acidente de viação ocorreu no trajecto entre o seu local de trabalho e a sua residência, o mesmo foi considerado como acidente de trabalho pelo que logo a partir dos primeiros dias após alta hospitalar, o Autor foi acompanhado pelos serviços médicos da companhia de seguros de acidente de trabalho (no caso, a Lusitânia Companhia de Seguros, S.A.).

72) Para tanto, teve que fazer viagens de táxi para a Clínica ..., no ....

73) Em todas essas viagens o Autor foi sempre acompanhado pela sua mulher ou pelo seu pai, pois as suas debilidades físicas não lhe permitiam ir sozinho.

74) Na Clínica ... foi seguida pelo Sr. Dr. DD, médico ortopedista.

75) As primeiras consultas foram de simples vigilância: pequenos tratamentos de enfermagem para verificação de cortes, cicatrizes e pontos.

76) A remoção dos pontos que tinha na zona do abdómen foi muito dolorosa (a sua cicatriz tem 15 x 1cm).

77) Fisicamente a evolução foi muito positiva, embora a preocupação de uma possível hérnia fosse uma constante.

78) À medida que o fluxo intestinal se foi regulando, o Autor sentiu um maior conforto.

79) Ao fim da terceira semana em casa o Autor já era capaz de percorrer os pátios exteriores e dar um passeio pelo jardim.

80) Por esta altura, o Autor começou a tomar consciência de que perdera o seu carro e que o computador portátil e o tablet se tinham partido sofrendo danos irrecuperáveis tal como aconteceu com o violino que o Autor utilizava regularmente nos ensaios do grupo coral que dirige.

81) O Autor só se apercebeu destes estragos cerca de 15 dias após o acidente quando estava a conversar com a sua tia EE que foi a pessoa encarregada de proceder à recolha dos seus pertences que se encontravam dentro do seu veículo, logo após o acidente.

82) Como a circulação do veículo de matrícula ..-HM-.. não se encontrava coberta por qualquer contrato de seguro de responsabilidade civil automóvel, o Autor teve muitas dificuldades em tratar das questões burocráticas, teve necessidade de se deslocar ao local onde ocorreu o acidente, momento esse que se revelou particularmente difícil pois veio-lhe à memória toda a violência do choque e do sofrimento por que passou.

83) Teve de falar com testemunhas, recolher informações e fotografias, elaborar relatórios e contactar com peritos.

84) Todos esses contactos provocaram no Autor um sentimento de revolta, angústia e, acima de tudo, de insegurança, sentimentos esses que ainda hoje se mantêm.

85) O Autor teve imensa dificuldade em voltar a conduzir, exactamente pelo agravamento do sentimento de insegurança que se manifestou em múltiplas situações

86) Uma das vezes em que o Autor circulava na via onde ocorreu o acidente, momentos antes de se aproximar do local onde fora embatido, teve necessidade de encostar o carro à berma da estrada e ficou a observar os carros que se cruzavam consigo na estrada tentando descortinar aqueles que tinham características idênticas àquela que embateu frontalmente no seu carro.

87) Este tipo de sensações e reacções foi-se repetindo.

88) Antes do acidente o Autor nunca teve problemas em dormir e descansar durante a noite, sendo certo que o seu ciclo normal de descanso nunca foi inferior a 8 horas.

89) As dificuldades em dormir perduraram vários meses e perturbaram o equilíbrio emocional do Autor.

90) O Autor recorreu a ajuda médica, tendo reportado todos estes episódios ao seu médico assistente.

91) O Autor contou, durante todo este período, com a ajuda da sua mulher, a qual tem uma vida pessoal e profissional muito intensa, sendo ela quem arcou com todas as responsabilidades familiares e todos os cuidados essenciais e necessários de que o Autor careceu.

92) A esposa do Autor apenas faltou ao trabalho durante a primeira semana após o acidente, já que é professora de ... num colégio privado, encargo esse que lhe impôs um conjunto de exigências laborais muito grandes.

93) A vida conjugal do Autor sofreu forte revés.

94) Nos primeiros seis meses, o Autor não conseguiu estabelecer qualquer relacionamento sexual com a sua esposa.

95) Qualquer movimento brusco poder dar origem à formação de uma hérnia e o incómodo sensorial provocado pela cicatriz originou o prolongamento de um comportamento defensivo de abstinência sexual, o qual, acompanhado pelo receio da frustração, veio a originar a formação de um estigma psicológico.

96) Após este período de meio ano e durante as primeiras tentativas frustradas de concretizar o acto sexual, o Autor veio a sentir algum desconforto e mal-estar psicológico que o Autor ainda hoje sente.

97) O Autor está casado com a sua mulher há13 anos pese embora o casal já se conhecesse há mais de 23 anos.

98) Existe uma cumplicidade muito grande entre ambos e cada um conhece perfeitamente as reacções e as motivações do outro, pelo que todos os receios e frustrações que assolam diariamente o Autor são facilmente apreendidos pela sua esposa, com as normais consequências ao nível do relacionamento do casal.

99) Foi apenas com ela e com os médicos que o Autor partilhou as suas angústias e frustrações relativas ao seu desempenho sexual.

100) O Autor tem consciência de que não consegue voltar a reproduzir as boas sensações e momentos que outrora o casal registava com regularidade o que o conduz a pensamentos e sensações relativos ao acidente.

101) A relação com a sua filha foi voltando lentamente ao que era.

102) No dia 16 de Fevereiro de 2016, o Autor retomou a sua actividade profissional de professor embora com uma incapacidade temporária de 50%.

103) O Autor foi muito bem-recebido pelos colegas e directores, mas, acima de tudo, pelos seus alunos, tendo retomado o trabalho a meio termo o que facilitou a adaptação e o ajuste às rotinas inerentes à sua actividade laboral.

104) O Autor passou a ter receio de circular nos corredores da escola, principalmente durante os intervalos das aulas, por medo de chocar com algum aluno.

105) Manifestou descontrolo e irritabilidade em momentos típicos e perfeitamente normais do contexto da sala de aula, situação que nunca lhe tinham acontecido antes.

106) O Autor começou a sentir dores nas mãos, que ainda se manifestam em vários momentos, designadamente em alguns gestos simples, como segurar num prato, livro ou no manuseamento do tablet, bem como noutras um pouco mais complexas, como a manipulação de objectos e aparelhos mais sensíveis como os que o Autor utiliza no laboratório de Física e de Química, tendo, por várias vezes, deixado cair objectos que segurava nas mãos.

107) O Autor sente grande tristeza quando toca violino, já que os movimentos das mãos lhe provocam dor ao fim de alguns minutos de execução do instrumento.

108)Este facto deixa-o muito triste, pois a música, e o violino em particular, acompanham-no desde os 10 anos de idade.

109) O Autor estudou música no Conservatório Nacional ..., onde fez o curso geral.

110) O Autor já tocou em várias orquestras de jovens da cidade do ... e nas freguesias do concelho de ....

111) O Autor chegou a leccionar música em escolas amadoras enquanto estudante universitário.

112) Mesmo depois de iniciar a sua actividade profissional enquanto professor de ..., o Autor sentiu necessidade de continuar com a música de forma activa na sua vida.

113) Tocar violino, para o Autor, foi e será sempre muito importante, fazendo parte da sua vida, é algo que lhe é intrínseco e muito difícil de dissociar do seu percurso ele vida.

114) O médico assistente do Autor requereu que o mesmo fizesse a avaliação psiquiátrica tendo, depois disso, passado a ser acompanhado por psiquiatra.

115) Desse acompanhamento resultou a necessidade de o Autor tomar um conjunto de medicamentos prescritos pelo médico psiquiatra.

116) O Autor tem vindo a seguir escrupulosamente as indicações do seu médico psiquiatra, mas é-lhe difícil ver-se dependente de antidepressivos.

117) O Autor sempre fui muito activo, sendo o seu dia-a-dia sempre foi muito preenchido com diversas actividades.

118) É professor de ... desde que terminou a sua formação académica e lecciona há 16 anos no Colégio ... onde para além das actividades lectivas está envolvido em muitas actividades, como cargos de coordenação, divulgação científica e tecnológica e classificação de exames nacionais.

119) Para além disso, o Autor acompanha vários alunos em casa em explicações para os exames nacionais de ... A.

120) A nível social o Autor está envolvido em algumas actividades paroquiais das quais se destaca a direcção do grupo coral S... do qual é fundador desde 2005 e que absorve muito do tempo livre do Autor.

121) Têm ensaios semanais e, para além da celebração da eucarística semanal, participam e organizam concertos em várias épocas do ano.

122) O Autor apresenta uma irritabilidade constante, propensa a situações de desconforto e de ansiedade que se repercutiram em muitos momentos do dia-a-dia.

123) O Autor tomou a medicação recomendada pelo seu médico psiquiatra.

124) Este recomendou-lhe a manutenção do tratamento.

125) No âmbito do processo especial de acidente de trabalho foi fixada ao Autor uma incapacidade temporária parcial de 10%, segundo a Tabela nacional de Incapacidades para o Direito do Trabalho, pela Companhia de Seguros Lusitânia.

126) O Autor recebeu uma comunicação por parte da companhia de seguros Lusitânia, datada de 15.9.2016, de que lhe tinha sido atribuída uma incapacidade de 10%, altura em que retomou a sua actividade profissional a tempo inteiro.

127) Desde essa data até hoje o Autor tem registo de momentos em que o seu dia-a-dia decorreu dentro da normalidade, mas também tem registo de vários momentos de insegurança, cansaço, angústia e até alguma frustração.

128) O Autor realizou uma ressonância magnética à sua coluna vertebral no dia 30.12.2016.

129) O processo judicial decorrente do acidente de trabalho - que correu termos pelo Juízo do Trabalho de ..., sob o número 2961/l6.9... tendo o Autor recebido, a final, o capital de remição de 28 335, 05 €.

130) A data da consolidação médico-legal das lesões sofridas pelo Autor foi fixada como tendo ocorrido em 14.9.2017.

131) O Autor sofreu deficit funcional temporário de 8 dias por causa do acidente dos autos.

132) O seu deficit funcional temporário parcial foi de 299 dias.

133) A repercussão temporária na sua actividade profissional total foi de 96 dias.

134) A repercussão temporária na actividade profissional parcial foi de 211 dias.

135) O quantum doloris sofrido pelo Autor é de grau 6, numa escala crescente de 0 a 7 de acordo com a Tabela de Avaliação de Incapacidades Permanentes em Direito Civil.

136) Por causa do acidente, o Autor é portador de deficit funcional permanente da integridade físico-psíquica de 17 pontos de acordo com a Tabela de Avaliação de Incapacidades Permanentes em Direito Civil.

137) A repercussão permanente dessa incapacidade na sua actividade profissional traduz-se na necessidade de realizar esforços acrescidos.

138) O dano estético permanente sofrido pelo Autor foi fixado no grau 3, numa escala crescente de 0 a 7 de acordo com a Tabela de Avaliação de Incapacidades Permanentes em Direito Civil.

139) A repercussão na actividade sexual foi fixada no grau 3, numa escala crescente de 0 a 7 de acordo com a Tabela de Avaliação de Incapacidades Permanentes em Direito Civil.

140) A repercussão permanente nas actividades desportivas e de lazer foi fixada no grau 3, numa escala crescente de 0 a 7 de acordo com a Tabela de Avaliação de Incapacidades Permanentes em Direito Civil.

141) De uma pessoa alegre, bem-disposta, extrovertida e com facilidade para as relações sociais, amante de uma vida activa, o Autor passou a ser, como decorrência das sequelas de que é portador, uma pessoa triste, de difícil contacto, desconcentrada, ansiosa e mais introvertida.

142) A situação descrita supra entristece-o muito.

143) O Autor auferia mensalmente a quantia ilíquida de € 1.750 ,00 (mil, setecentos e cinquenta euros), correspondente ao valor líquido de 1334, 78 €.

144) Auferia um valor médio nunca inferior a € 500 (quinhentos) mensais durante pelo menos nove meses por ano (Outubro a Junho), nas explicações que dava.

145) Em consequência das lesões sofridas no acidente de viação em apreço nos presentes autos o Autor, nada recebeu da segurança social.

146) Durante esse período de incapacidade temporária o Autor recebeu da seguradora de acidente de trabalho a quantia de 5 292,23 € (cinco mil, duzentos e noventa e dois euros e vinte e três cêntimos) e recebeu da sua entidade patronal a quantia de 6 125,00 € (seis mil, cento e vinte e cinco euros).

147) Em tratamentos e consultas decorrentes das sequelas de que é portador o Autor despendeu já 1080 €.

148) O inquérito (P. 809/15.0..., 2ª Secção Diap ...), instaurado na sequência do acidente em apreço, foi arquivado por despacho de 30-03-2016 junto a fls. 92 a 94 cujo teor é aqui se dá por integralmente reproduzido, não tendo sido imputada ao Réu BB qualquer responsabilidade criminal na sua produção e não tendo tal despacho merecido de quem quer que fosse qualquer manifestação de discordância.

2.3. – Os factos não provados

a) No momento referido em 9) o Autor desviou o seu automóvel o mais possível para a sua direita.

b) Quando a colisão ocorreu, o veículo de matrícula AL estava praticamente parado e encostado à guia do passeio do lado direito, atento o sentido de marcha ....

c) O embate entre as duas viaturas, verificou-se próximo do eixo da via, mas ainda na hemi-faixa de rodagem do veículo (HM) conduzido pelo Réu.

d) Antes do acidente o Autor percorria diariamente mais de 40/50 quilómetros com o seu automóvel.

e) A avaliação da incapacidade do Autor do processo especial de acidente de trabalho apenas se debruçou sobre as questões de natureza ortopédica.

2.4. - O dano biológico – enquanto dano patrimonial futuro

No recurso de revista está em causa a quantificação do dano patrimonial futuro.

A sentença quantificou o dano em € 23.664,95 sendo € 10.000,00 pelo dano biológico e € 13.664,95 pelo dano pela perda da capacidade de ganho.

A Relação fixou a indemnização no valor global de € 116.104,39 e quanto ao chamado “dano biológico” atribuiu o valor de € 30.00,00, na vertente não patrimonial (a que acresce a quantia de € 25.00,00 atribuída na sentença a título de danos não patrimoniais) e € 42.000,00 pelo dano patrimonial futuro do dano biológico, embora seguindo a metodologia da sentença, tenha designado de “dano futuro decorrente da perda da capacidade de trabalho”.

O Fundo de Garantia Automóvel pede em revista a reponderação, requerendo que em vez dos € 42.000,00 (arbitrados no acórdão) se mantenha a quantia de € 23.664,95 (fixada na sentença) e a indemnização pelo dano biológico deve fixar-se em somente € 10.000,00, ao invés de €30.000,00 ( arbitrado no acórdão).

Está provado que:

O acidente que vitimou o Autor ocorreu em 11 de Novembro de 2015

O Autor sofreu as seguintes lesões como consequência do acidente: i. traumatismo abdominal fechado uma perfuração de víscera oca com peritonite; ii. ferida na mão direita; trauma cervical indirecto por mecanismo de chicote cervical; iii. dor às manobras de estabilidade pélvica; iv. traumatismo a nível do cotovelo esquerdo com dor e dificuldade à mobilização activa e passiva com limitação à extensão total do cotovelo; e, v. dor a nível da tacícula radial à palpação e aos movimentos de pronação e supinação.

A data da consolidação médico-legal das lesões sofridas pelo Autor foi fixada como tendo ocorrido em 14.9.2017.

Por causa do acidente, o Autor é portador de deficit funcional permanente da integridade físico-psíquica de 17 pontos de acordo com a Tabela de Avaliação de Incapacidades Permanentes em Direito Civil.

A repercussão permanente dessa incapacidade na sua actividade profissional traduz-se na necessidade de realizar esforços acrescidos.

A categoria do chamado “dano biológico” foi-se sedimentando na jurisprudência, e no Ac STJ de 1171/2024 (proc nº 25713/15), em www dgsi pt, faz-se o seguinte resumo:

“A categoria do “dano biológico” (também chamado “dano da saúde”, “dano corporal”) e a categoria, mais abrangente ainda, do “dano existencial” vêm sendo usadas por alguma doutrina com a intenção de superar a dificuldade na identificação dos danos susceptíveis de resultar da ofensa de direitos de personalidade e na distinção entre os vários tipos. Tendo em conta a unidade da pessoa, importando, em qualquer caso, manifestar a percepção crescente dos “multifacetados níveis de protecção que a personalidade humana reclama”, trata-se de um conceito tentativamente englobalizador ou (re)unificador.

Segundo os adeptos destas categorias, pondo em causa a rigidez da distinção entre danos patrimoniais e não patrimoniais, a categoria do “dano biológico” visaria conduzir à ampliação do número e do tipo de consequências que o julgador deve ter em consideração no momento de calcular o montante da indemnização e propiciaria as condições para o cálculo de uma indemnização mais justa, uma vez que permitiria compreender que o facto lesivo origina um conjunto de consequências que não são absolutamente autónomas ou dissociáveis e em que se incluem as consequências conhecidas como de natureza não patrimonial bem como de natureza patrimonial futura, não se esgotando, contudo, nestas.

Embora tenha tido origem no Direito italiano, esta nova orientação foi bem recebida em Portugal, sendo aplicada, actualmente, por parte da jurisprudência, em particular, quando estão em causa danos decorrentes de acidentes de viação. De acordo com esta jurisprudência, na avaliação destes danos, o julgador deve ponderar os factores mais variados, quais sejam as restrições que o lesado tem de suportar na qualidade da sua vida em virtude das lesões biológicas, a criação ou indução de dependências que afectam o exercício da sua liberdade pessoal, os prejuízos nas suas aptidões familiares ou afectivas, as necessidades especiais dos lesados que sejam pessoas débeis, como os idosos ou as crianças, e quaisquer outros que possam assumir relevância consoante as circunstâncias do caso concreto”

Segundo a orientação jurisprudencial do Supremo Tribunal de Justiça, a afectação da pessoa do ponto de vista funcional, no que vem sendo qualificado como “dano biológico,” determinante de consequências negativas a nível da sua actividade geral, justifica a indemnização no âmbito do dano patrimonial, para além da valoração que se imponha a título de dano não patrimonial.

O dano biológico que emerge da incapacidade geral permanente, de natureza patrimonial, reclama a indemnização por danos patrimoniais futuros, independentemente de o mesmo se repercutir no respectivo rendimento salarial, consubstancia um “dano de esforço,” na medida em que o lesado para desempenhar as mesmas tarefas e obter o mesmo rendimento, necessitará de uma maior actividade e esforço suplementar. (Neste sentido, no plano jurisprudencial, por exemplo, Ac STJ de 16/6/2016 (proc. nº 1364/06), Ac STJ de 5/12/2017 (proc. nº 505/15), Ac STJ de 22/2/2022 (proc nº 1082/19), Ac STJ de 21/4/2022 ( proc. nº 96/18), disponíveis em www dgsi.pt ).

Muito embora as regras gerais do processo indemnizatório, designadamente a “teoria da diferença” se ajustem mais facilmente, à diminuição da capacidade de ganho, o certo é que a incapacidade funcional ou “dano biológico”, numa perspectiva sistémica da teoria geral da indemnização, implica a ressarcibilidade, enquanto dano patrimonial futuro.

Para a quantificação deste dano serão convocadas as normas dos arts.564 e 563 nº3 do CC, onde se extrai a legitimação do recurso à equidade (art.4 do CC). Nesta medida, o direito equitativo não se compadece com uma construção apriorística, emergindo, porém, do “facto concreto”, como elemento da própria compreensão do direito, rectius, um direito de resultado, em que releva a força criativa da jurisprudência, com o imprescindível recurso ao “pensamento tópico” que irá presidir à solução dos concretos problemas da vida.

Como é sabido, têm sido vários os critérios utilizados para a quantificação do dano, mas quaisquer tabelas financeiras para o cálculo indemnizatório não são vinculativas, apenas servindo como critério geral de orientação para a determinação equitativa (art.566 nº3 CC), sendo, por isso, de repudiar a utilização pura e simples de critérios mais positivistas, como determinadas fórmulas matemáticas.

Neste contexto, para a determinação equitativa do dano patrimonial futuro do lesado, relevam, designadamente, os seguintes tópicos:

a). A esperança média de vida. Na verdade, finda a vida activa do lesado por incapacidade permanente não é razoável ficcionar que a vida física desaparece nesse momento ou com elas todas as necessidades, é que atingida a idade da reforma, isso não significa que a pessoa não continue a trabalhar ou simplesmente a viver ainda por muitos anos, como, aliás, é das regras da experiência comum. Ora, o que está em causa é não só o maior esforço despendido na actividade laboral, enquanto trabalhador, mas também a actividade do lesado como pessoa, afectado por uma incapacidade funcional. Por conseguinte, mantendo-se este dano na saúde para além da vida activa, é razoável que, no juízo de equidade sobre o dano patrimonial futuro, se apele à esperança média de vida.

Considerando que o Autor tinha 38 anos de idade, à data do acidente, e 40 anos à data da alta, e tomando-se por referência a esperança média de vida de 78 anos, significa que a esperança média de vida para o Autor, desde a alta é de pelo menos 38 anos

b) A evolução profissional e os reflexos a nível remuneratório, quer se trabalhe por conta própria ou de outrem, ou até as duas actividades em simultâneo.

O Autor, é professor e aufere um rendimento anual líquido de € 23.186,92.

c) A taxa média de inflação e a taxa de rentabilidade do capital, baseadas num juízo de previsibilidade.

d) A gravidade das lesões, sendo que o Autor ficou com Défice Funcional Permanente da Integridade ... de 17 pontos a partir da data de consolidação.

Valorando estes elementos, em juízo de equidade, a quantia de € 42.000,00 estimada no acórdão, a título de dano patrimonial futuro não se revela de modo algum excessiva, bem pelo contrário. Basta atentar que se dividirmos este montante por 38 anos de esperança média de vida chegamos a um valor anual de € 1.105,26.

O recorrente considera existir uma duplicação com a indemnização arbitrada no foro laboral, a qual deve ser deduzida, em virtude de ter ficado provado que no âmbito do processo especial de acidente de trabalho foi fixada ao Autor uma incapacidade temporária parcial de 10%, segundo a Tabela nacional de Incapacidades para o Direito do Trabalho, pela Companhia de Seguros Lusitânia., tendo Autor recebido uma comunicação por parte da companhia de seguros Lusitânia, datada de 15.9.2016, de que lhe tinha sido atribuída uma incapacidade de 10%, altura em que retomou a sua actividade profissional a tempo inteiro e no processo judicial decorrente do acidente de trabalho - que correu termos pelo Juízo do Trabalho de ..., sob o número 2961/l6.9... o Autor recebeu, a final, o capital de remição de 28 335, 05 €.

Quando o acidente é simultaneamente de viação e de trabalho, embora o principal responsável seja o lesante, o lesado pode exigir de qualquer dos responsáveis a reparação do dano, mas é ponto assente que as duas indemnizações se completam, sem sobreposição, de molde a ressarci-lo do total dos prejuízos, tendo a faculdade de optar pela maior delas,

Em acidente simultaneamente de viação e de trabalho cada uma das indemnizações assenta em critérios distintos e têm funções e objectivos próprios, e por isso se apresentam como complementares, a jurisprudência vem entendendo que “A indemnização devida ao lesado/sinistrado a título de perda da sua capacidade de ganho, mesmo no caso do autor ter optado pela indemnização arbitrada em sede de acidente de trabalho, não contempla a compensação do dano biológico, consubstanciado na diminuição somático-psíquica e funcional do lesado, com substancial e notória repercussão na sua vida pessoal e profissional, porquanto estamos perante dois danos de natureza diferente” ( cf., por ex., Ac STJ de 14/3/2019 ( proc. nº 394/14), em www dgsi.pt ).

Por isso, a justificação do acórdão é consistente, ao referir que “No caso em apreciação verifica-se situação paralela: não estamos em presença de um mesmo dano uma vez que na jurisdição laboral se atendeu ao grau de incapacidade laboral enquanto na presente sede se teve em conta diversamente o dano biológico, enquanto dano esforço em geral, sem perda de rendimento concreto. Mantém-se, pois, o valor indemnizatório fixado de € 42 000,00, sem qualquer dedução”.

O dano biológico enquanto dano não patrimonial:

O acórdão recorrido estimou o dano biológico na vertente não patrimonial no valor de € 30.000,00, verba acrescida aos € 25.000,00 atribuída na sentença a título dos danos não patrimoniais. Significa que foi fixado o valor global de € 55.000,00 pelos danos não patrimoniais.

O recorrente objecta dizendo que o dano deve ser quantificado apenas em € 10.000,00€ ao invés de € 30.000,00, pois já lhe fora atribuído € 25.000,00 pelos danos não patrimoniais.

Neste contexto, está em causa a reponderação dos danos não patrimoniais quanto a saber se a verba de € 55.000,00 se apresenta razoável, respeitando o critério normativo do juízo de equidade.

A propósito dos danos não patrimoniais, afirmou-se no Ac STJ de 9/5/2023 (proc nº 7509/19), e no Ac STJ de 10/4/2024 (proc nº 404/14), disponíveis em www dgsi. – “Há hoje uma preocupação superadora da tradicional categoria de “dano moral”, ampliando o seu espectro, de molde a abranger outras manifestações que a lesão provoca na pessoa, e já não a simples perturbação emocional, a dor ou o sofrimento, procurando erigir-se um novo modelo centralizado no “dano pessoal” que afecta a estrutura ontológica do ser humano, entendido como entidade psicossomática e sustentada na sua liberdade, correspondendo a duas únicas categorias de danos: o “dano psicossomático” e o “dano ao projecto de vida”, com consequências extrapatrimoniais, sendo esta a concepção que melhor se adequa à natureza e finalidade da indemnização pelos danos extrapatrimoniais/pessoais, pondo o enfoque na vítima, com implicações na (re)valorização compensatória, maximizada pelo princípio da reparação integral”.

É neste contexto que se deve equacionar a valoração dos danos não patrimoniais.

Em termos factuais, relevam os factos provados descritos de 30 a 125, e 130 a 142, destacando-se a natureza e gravidade das lesões sofridas, foi operado, esteve nos cuidados intensivos e ventilado (de 11 a 15 de Novembro de 2015), o período de 299 de incapacidade temporária, ocorrendo a consolidação médico-legal das lesões em 14/9/2017.

As implicações familiares, o quantum doloris sofrido pelo Autor é de grau 6, numa escala crescente de 0 a 7 de acordo com a Tabela de Avaliação de Incapacidades Permanentes em Direito Civil.

Por causa do acidente, o Autor é portador de deficit funcional permanente da integridade físico-psíquica de 17 pontos de acordo com a Tabela de Avaliação de Incapacidades Permanentes em Direito Civil.

A repercussão permanente dessa incapacidade na sua actividade profissional traduz-se na necessidade de realizar esforços acrescidos.

O dano estético permanente sofrido pelo Autor foi fixado no grau 3, numa escala crescente de 0 a 7 de acordo com a Tabela de Avaliação de Incapacidades Permanentes em Direito Civil.

A repercussão na actividade sexual foi fixada no grau 3, numa escala crescente de 0 a 7 de acordo com a Tabela de Avaliação de Incapacidades Permanentes em Direito Civil.

A repercussão permanente nas actividades desportivas e de lazer foi fixada no grau 3, numa escala crescente de 0 a 7 de acordo com a Tabela de Avaliação de Incapacidades Permanentes em Direito Civil.

De uma pessoa alegre, bem-disposta, extrovertida e com facilidade para as relações sociais, amante de uma vida activa, o Autor passou a ser, como decorrência das sequelas de que é portador, uma pessoa triste, de difícil contacto, desconcentrada, ansiosa e mais introvertida, tendo acompanhamento psiquiátrico.

No Ac STJ de 1/3/2023 ( proc nº 10849/17), em www dgsi, foi atribuída a quantia de € 60.000,00 por danos não patrimoniais a lesado 43 anos à data do sinistro; com défice funcional permanente de integridade físico-psíquica de 15 em 100, sem impossibilidade do exercício da actividade profissional mas com esforços acrescidos no seu desempenho; passando a registar limitação nas tarefas profissionais que obrigam a permanência prolongada na posição de sentado (por exemplo, trabalho à secretária ou exercício da condução).

No Ac STJ de 11/11/2024 ( proc nº 25713/15), em www dgsi – decidiu-se que“A indemnização de 45 000 euros é proporcional ao seguinte quadro de danos não patrimoniais: quantum doloris avaliado no grau 4 numa escala de sete graus de gravidade; défice funcional da integridade física e psíquica de nove (9) pontos; consolidação das lesões cerca de três anos após o acidente; durante cerca de um ano a lesada esteve submetida a terapêutica medicamentosa agressiva; por força das lesões a lesada desistiu do projecto de ser mãe; a lesada deixou de conviver com amigos e de sair com estes, devido às dores que sente, passou a apresentar um quadro de humor depressivo, com episódios de ansiedade, tendo recorrido a apoio psicológico, e deixou de praticar desportos que praticava, nomeadamente corrida e bicicleta”.

Considerando este critério de orientação, os elementos factuais dados como provados, e porque os danos não patrimoniais devem ser dignamente compensados, a verba de € 55.000,00 revela-se proporcional.

Improcede a revista, confirmando-se o douto acórdão recorrido, com a rectificação requerida, pelo que o valor global importa em € 113.104,39.


III – DECISÃO

Pelo exposto, decidem:

1)

Julgar improcedente a revista e confirmar o acórdão, com a rectificação de que o valor global da indemnização ascende a € 113.104,39, passando a constar o seguinte segmento decisório

“Assim, e em conclusão, julga-se a acção parcialmente provada e parcialmente procedente e, em consequência: condenam-se solidariamente os Réus a pagar ao Autor indemnização no valor de 113,104, 39 €, sendo: 8 745, 71 €, por danos patrimoniais a que acrescem os juros de mora, a taxa legal desde a citação e até efectivo pagamento; 7 358,68 € por força da perda de rendimento durante os períodos de incapacidade temporária a que acrescem os juros de mora, a taxa legal desde a citação e até efectivo pagamento; 30 000,00 € para ressarcimento do dano biológico a que acrescem juros a contar da presente data e até efectivo e integral pagamento; 25 000 € para ressarcimento do dano não patrimonial e que acrescem juros a contar da presente data e até efectivo e integral pagamento; 42 000 € para ressarcimento do dano patrimonial futuro decorrente da perda da capacidade de trabalho a que acrescem os juros de mora, a taxa legal desde a citação e até efectivo pagamento.


2)

Condenar o recorrente nas custas.

Lisboa, Supremo Tribunal de Justiça, 7 de Maio de 2024.

Jorge Arcanjo (Relator)

Manuel Aguiar Pereira

Jorge Leal.