Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça | |||
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| Nº Convencional: | 7.ª SECÇÃO | ||
| Relator: | NUNO PINTO OLIVEIRA | ||
| Descritores: | NULIDADE DE ACÓRDÃO OPOSIÇÃO ENTRE OS FUNDAMENTOS E A DECISÃO AMBIGUIDADE OBSCURIDADE RECLAMAÇÃO PARA A CONFERÊNCIA | ||
| Data do Acordão: | 05/20/2021 | ||
| Votação: | UNANIMIDADE | ||
| Texto Integral: | S | ||
| Privacidade: | 1 | ||
| Meio Processual: | REVISTA | ||
| Decisão: | INDEFERIDA A RECLAMAÇÃO | ||
| Sumário : | I. — A oposição entre os fundamentos e a decisão corresponde a um vício lógico do acórdão — se, na fundamentação da sentença, o julgador seguir determinada linha de raciocínio, apontando para determinada conclusão, e em vez de a tirar, decidir noutro sentido, oposto ou divergente, a oposição será causa de nulidade da sentença. II.— Enquanto vício lógico, a oposição entre os fundamentos e a decisão distingue-se da errada interpretação de uma determinada disposição legal, síndicável em sede de recurso. III. — A ambiguidade ou a obscuridade prevista na alínea c) do n.º 1 do art. 615.º só releva quando torne a parte decisória ininteligível e só torna a parte decisória ininteligível “quando um declaratário normal, nos termos dos arts. 236.º, n.º 1, e 238.º, n.º 1, do Código Civil, não possa retirar da decisão um sentido unívoco, mesmo depois de recorrer à fundamentação para a interpretar”. IV. — A reclamação para a conferência não é um meio vocacionado para o reclamante manifestar a sua discordância da decisão (ou da fundamentação da decisão) com o fito de obter uma decisão que lhe seja mais favorável. | ||
| Decisão Texto Integral: | ACORDAM EM CONFERÊNCIA NO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA I. — RELATÓRIO 1. AA, BB e mulher CC, DD e mulher EE e FF e GG, sucessoras habilitadas de HH e marido II, vieram reclamar para a conferência, arguindo a nulidade do acórdão reclamado, por os fundamentos estarem em oposição com a decisão e por ocorrer ambiguidade ou obscuridade que torna a decisão ininteligível.
2. Fundamentaram a sua reclamação nos seguintes termos: 1 — Em consonância com o Acórdão proferido pelo Tribunal da Relação o Acórdão em crise, fundamenta a sua decisão com a aplicação aos autos da lei em vigor à data da entrada da acção, e, portanto, a Lei 68/93 de 4/09. 2 — No entanto, considerando os fundamentos invocados na decisão, considera o ora Recorrido, que os mesmos não são apenas ambíguos e confusos, como também se encontram em oposição com a própria decisão. 3 — Vejamos, de acordo com o artigo 9º do C.C, a interpretação não deve cingir-se à letra da lei, mas reconstituir a partir dos textos o pensamento legislativo, tendo sobretudo em conta a unidade do sistema jurídico, as circunstâncias em que a lei foi elaborada e as condições específicas do tempo em que é aplicada. 2. Não pode, porém, ser considerado pelo intérprete o pensamento legislativo que não tenha na letra da lei um mínimo de correspondência verbal, ainda que imperfeitamente expresso. 3. Na fixação do sentido e alcance da lei, o intérprete presumirá que o legislador consagrou as soluções mais acertadas e soube exprimir o seu pensamento em termos adequados. 4 — A Lei 68/93 de 4/09, sofreu várias alterações desde a sua entrada em vigor e sua revogação, sendo que o Acórdão em crise, defende a legitimidade da Autora, com base no artigo 4º da mencionada lei, interpretando-o como se a referida legitimidade fosse uma legitimidade primária, e não secundária em relação aos órgãos de administração dos baldios, que são os compartes. 5 — Alicerça tal interpretação, recorrendo ao DL 40/76 de 19/01, que apenas previa a legitimidade da junta ou juntas de freguesia na falta de existência de compartes, considerando que entre a versão que foi dada ao artigo 4º da Lei 68/93 pela Lei 72/2014 e a versão originária existe uma diferença substancial, designadamente, a versão originária, referia-se à legitimidade dos representantes da administração central, local e regional e a versão de 2014, já não se lhe refere. 6 — Acontece que, a interpretação da versão originária do artigo 4º da Lei 68/93, com o sendo a legitimidade da junta uma legitimidade originária, não encontra, diferentemente do pugnado pelo Acórdão em crise, suporte nem na letra da lei, nem no pensamento legislativo, nem na unidade do sistema jurídico. 7 — Com efeito, e recorrendo à própria fundamentação do acórdão em crise, a interpretação da redacção da versão originária, tendo em conta a unidade do sistema jurídico e do pensamento legislativo apenas pode ser no sentido de que a legitimidade dos compartes, desde que existam, mesmo de forma pouco activa, é sempre primária em relação à administração local ou regional. 8 — Na verdade, tendo em conta o espírito da lei plasmado no DL 40/76 e posteriormente a versão dada ao artigo 4º da Lei 63/98, pela Lei 72/2014, conjugado com o artigo 34º n.º 6 m) da Lei 169/99 de 18/09, e também a sua redacção original nos artigos 11º, 22º e 36º, as juntas de freguesia, nos termos previstos, respectivamente, dos arts. 36º e 22º do referido diploma, só podem gerir os baldios em situações excepcionais de administração provisória ou de delegação de poderes. Nos termos do art. 11º da referida lei, “os baldios são administrados, por direito próprio, pelos respectivos compartes, nos termos dos usos e costumes aplicáveis ou, na falta deles, através de órgão ou órgãos democraticamente eleitos”. É entendimento da doutrina que não sendo já existentes e aplicáveis os “usos e costumes” na administração do baldio (ao contrário dos existentes na fruição) a única forma legal de proceder à sua administração é através dos referidos órgãos. 9 — Ou seja, toda a unidade do sistema jurídico e do próprio pensamento legislativo, com suporte às próprias Leis e DL mencionados pelo Acórdão cuja nulidade se invoca, apontam para uma única interpretação possível, que é, a de que as juntas de freguesia, nos termos da lei em vigor à data da propositura da acção, apenas poderiam ser detentoras de uma legitimidade secundária em relação aos compartes, e portanto, sempre careciam de legitimidade para o presente pleito face à existência de compartes, o que, de resto, foi reconhecido pela Recorrente. 10 — Nem outra interpretação é possível, considerando a própria sucessão das Leis, uma vez que a Lei 72/2014, veio reformular a redacção da versão original, indo ao encontro quer, do DL 40/76, quer da Lei 169/99, e, atualmente, a Lei 75/2017 de 17/08, no seu artigo 6º n.º 9, manteve essa interpretação e unidade sistemética, conforme se alcança infra pelas transcrição do mesmo: 9 - A declaração de nulidade pode ser requerida: a) Pelos órgãos da comunidade local ou por qualquer dos compartes; b) Pelo Ministério Público; c) Pela entidade na qual os compartes tenham delegado poderes de administração do baldio ou de parte dele; d) Pelos cessionários do baldio. 10 - As entidades referidas no número anterior têm também legitimidade para requerer a restituição da posse do baldio, no todo ou em parte, a favor da respetiva comunidade ou da entidade que legitimamente o explore. 11 — Pelo que, face ao estatuído pelo artigo 12º do C.C, conjugado, necessariamente com o artigo 9º do mesmo diploma, o Acórdão em crise é nulo, uma vez que os seus fundamentos estão exatamente em oposição com o decidido, já que os motivos invocados conduzem necessariamente para uma decisão diversa e oposta, e em simultâneo, denota-se claramente uma ambiguidade na argumentação apresentada, na medida em que os diplomas invocados para sustentarem a interpretação da legitimidade primária da junta, vão precisamente, em sentido oposto, ferindo a interpretação sustentada pelo Acórdão em crise, a unidade do sistema jurídico e do pensamento legislativo. 12 — Ou seja, a fundamentação apresentada, torna-se ambígua uma vez que se presta a mais do que um sentido, conforme se depreende nos argumentos indicados em 37, 38 e 39 do mencionado Acórdão, que limitando-se ao texto da lei, da versão original do artigo 4º da Lei 68/93, descontextualizado dos seus artigos 11º, 22º, e 36º, descorando também os diplomas mencionados, que apontam para sentido diferente, força uma interpretação de convolação da legitimidade secundária em legitimidade primária, quando a leitura das passagens levam o seu intérprete, para um sentido diferente. 13 — Pelo que, atendo a tudo exposto, encontra o Acórdão em crise ferido de nulidade, o que se invoca com todas as legais consequências. Termos em que nos Doutamente supridos e nos mais de Direito, devem Vossas Excelências julgar procedente a presente nulidade invocada, com todas as legais consequências. 3. A freguesia de Fajão respondeu à reclamação, pugnando pela sua improcedência. II. — FUNDAMENTAÇÃO 4. O art. 615.º, n.º 1, do Código de Processo Civil, aplicável aos acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça por remissão dos arts. 666.º e 585.º, é do seguinte teor: É nula a sentença quando: a) Não contenha a assinatura do juiz; b) Não especifique os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão; c) Os fundamentos estejam em oposição com a decisão ou ocorra alguma ambiguidade ou obscuridade que torne a decisão ininteligível; d) O juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento; e) O juiz condene em quantidade superior ou em objeto diverso do pedido. 5. Em primeiro lugar, os Reclamantes AA, BB e mulher CC, DD e mulher EE e FF e GG, sucessoras habilitadas de HH e marido II, alegam que está preenchida a previsão da primeira parte do art. 615.º, n.º 1, alínea c), porque os fundamentos do acórdão recorrido estariam em oposição com a decisão. 6. O Supremo Tribunal de Justiça tem afirmado constantemente que “A nulidade do acórdão por oposição entre os fundamentos de facto e a decisão, prevista na al. c), do nº1, do art. 615º, do CPC, segundo a qual a sentença é nula quando os fundamentos estejam em manifesta oposição com a decisão, sanciona o vício de contradição formal entre os fundamentos de facto ou de direito e o segmento decisório da sentença” [1]. “5. A oposição entre os fundamentos e a decisão [se consubstancia] num vício lógico do acórdão. 6. ‘Se, na fundamentação da sentença, o julgador seguir determinada linha de raciocínio, apontando para determinada conclusão, e em vez de a tirar, decidir noutro sentido, oposto ou divergente, a oposição será causa de nulidade da sentença’ 7. Não se trata de um simples erro material (em que o julgador, por lapso, escreveu coisa diversa da que pretendia — contradição ou oposição meramente aparente), mas de um erro lógico-discursivo, em que os fundamentos invocados pelo julgador conduziriam logicamente, não ao resultado expresso na decisão, mas a resultado oposto ou, pelo menos, direção diferente (contradição ou oposição real). 8. O vício em apreço também não se confunde com o assim denominado erro de julgamento, id est, com a errada subsunção dos factos concretos à correspondente hipótese legal, nem, tão pouco, a uma errada interpretação da norma aplicada, vícios estes apenas sindicáveis em sede de recurso jurisdicional” [2]. 7. O teor da reclamação deduzida pelos Reclamantes é claro no sentido de que, ao imputarem ao acórdão reclamado uma contradição entre os fundamentos e a decisão, aquilo que pretendem é imputar-lhe um erro na interpretação das disposições legais aplicadas. 8. O facto de invocarem o art. 9.º do Código Civil, cuja epígrafe é Interpretação da lei, e de chamarem ao caso os critérios de interpretação esclareceria qualquer dúvida de que não pretendem arguir uma nulidade, e sim exprimir a sua discordância com a interpretação do art. 4.º da Lei n.º 68/93, de 4 de Setembro, na sua redacção inicial, feita pelo acórdão reclamado. 9. Ora, o alegado erro de julgamento, concretizado no alegado erro na interpretação das disposições legais aplicadas, não faz com que fique preenchida a previsão da primeira alternativa da alínea c) do art. 615.º, n.º 1, do Código de Processo Civil. 10. Em segundo lugar, os Reclamantes AA, BB e mulher CC, DD e mulher EE e FF e GG, sucessoras habilitadas de HH e marido II, alegam que está preenchida a previsão da segunda parte do art. 615.º, n.º 1, alínea c), porque a fundamentação do acórdão recorrido é ambígua ou obscura. 11. A ambiguidade ou a obscuridade prevista na alínea c) do n.º 1 do art. 615.º só releva quando torne a parte decisória ininteligível [3] e só torna a parte decisória ininteligível “quando um declaratário normal, nos termos dos arts. 236.º, n.º 1, e 238.º, n.º 1, do Código Civil, não possa retirar da decisão um sentido unívoco, mesmo depois de recorrer à fundamentação para a interpretar” [4]. 12. Ou seja: a alegada ambiguidade ou obscuridade na fundamentação não faz com que fique preenchida a previsão da segunda alternativa da alínea c) do art. 615.º, n.º 1, do Código de Processo Civil. 13. Em tema de ambiguidade ou de obscuridade da decisão, dir-se-á tão-só duas coisas: I. — A parte decisória do acórdão reclamado é do seguinte teor: Face ao exposto, concede-se provimento ao recurso e revoga-se o acórdão recorrido, determinando-se a remessa dos autos ao Tribunal da Relação para que se pronuncie sobre as questões que deu como prejudicadas. II. — Os Reclamantes admitem implicitamente que retiram da decisão um sentido unívoco — no sentido de a Junta de Freguesia ter legitimidade para propor a acção de declaração de nulidade. 14. Esclarecido que não estão preenchidos os pressupostos das nulidades previstas na alínea c) do art. 615.º, n.º 1, deverá reafirmar-se, como o Supremo Tribunal de Justiça tem constantemente reafirmado, que “a reclamação para a conferência não é um meio vocacionado para o reclamante manifestar a sua discordância com a decisão (ou com a fundamentação da decisão) com o fito de obter uma decisão que lhe seja mais favorável” [5]. III. — DECISÃO Face ao exposto, indefere-se a presente reclamação. Custas pelos Reclamantes: AA, BB e mulher CC, DD e mulher EE e FF e GG, sucessoras habilitadas de HH e marido II, fixando-se a taxa de justiça em 3 UC’s. Lisboa, 20 de Maio de 2021 Nuno Manuel Pinto Oliveira (relator) José Maria Ferreira Lopes Manuel Pires Capelo
Nos termos do art. 15.º-A do Decreto-Lei n.º 10-A/2020, de 13 de Março, aditado pelo Decreto-Lei n.º 20/2020, de 1 de Maio, declaro que o presente acórdão tem o voto de conformidade dos Exmos. Senhores Conselheiros José Maria Ferreira Lopes e Manuel Pires Capelo. _______ [1] Vide, p. ex., o acórdão do STJ de 8 de Outubro de 2020 — processo n.º 361/14.4T8VLG.P1.S1. [2] Vide, p. ex., o acórdão do STJ de 17 de Novembro de 2020 — processo n.º 6471/17.9T8BRG.G1.S1 . [3] José Lebre de Freitas / Isabel Alexandre, anotação ao art. 615.º, in: Código de Processo Civil anotado, vol. II — Artigos 362.º a 626.º, 3.ª ed., Livraria Almedina, Coimbra, 2018 (reimpressão), págs. 733-740 (735). [4] José Lebre de Freitas / Isabel Alexandre, anotação ao art. 615.º, in: Código de Processo Civil anotado, vol. II — Artigos 362.º a 626.º, cit., pág. 735. [5] Vide, p. ex., acórdão do STJ de 14 de Janeiro de 2021 — processo n.º 873/19.3T8VCT-A.G1.S1 |