ACORDAM OS JUÍZES QUE CONSTITUEM O SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:
AA – CONSULTORES ASSOCIADOS, LDA., com sede na Av.. J.., n…, em Lisboa, BB, residente na Av.. B.., n.º …, em Lisboa, e CC, residente na Av… I…, n.º …., em Lisboa, instauraram a presente acção declarativa, sob a forma de processo ordinário, contra o BANCO DD, SA, actualmente, incorporado no BANCO EE, SA, com sede na Av… F… P…M…, n.º .., Apartado …, em Lisboa, pedindo, inicialmente, que, na sua procedência, o réu fosse condenado a pagar-lhes a quantia de €162.144,98, a título de danos emergentes, a quantia que se vier a apurar, em sede de execução de sentença, a título de indemnização pelos danos causados, por figurarem com apontamento de crédito em mora no Banco de Portugal, e a quantia diária de €100,00, a título de sanção pecuniária compulsória, até que os seus nomes deixem de figurar com apontamento de crédito não cumprido, junto dos Serviços de Centralização de Risco de Crédito do Banco de Portugal, e, para o caso dos demais pedidos não serem atendidos, a título de pedido subsidiário, que seja declarado que não são devedores de qualquer quantia ao banco réu.
Alegam, para tanto, em síntese, que a autora AA – CONSULTORES ASSOCIADOS, LDA. contratou com a sociedade francesa “FF” a aquisição de 2500 caixas de aparelhos médicos para emagrecimento, tendo-lhe sido exigido por esta, para pagamento do material a adquirir, um crédito documentário, no valor de €67.500,00.
Contactou o réu, para o efeito, a fim de concretizar a operação comercial, tendo obtido junto do mesmo um crédito documentário, no valor em causa, emitido com data de 16 de Maio de 2003, na modalidade de crédito irrevogável, válido até ao dia 10 de Junho de 2003, nele figurando como ordenadora a autora sociedade, como beneficiária a “FF” e como emitente o banco réu.
Tendo sido definidos os documentos necessários, quando a mercadoria já se encontrava na alfândega, verificou-se existirem divergências entre os documentos referidos no crédito documentário e os que haviam sido enviados ao réu, pelo que a gestora de cliente deste, em 6 de Junho de 2003, deu conta das mesmas à autora sociedade que, nesse mesmo dia, informou prescindir do certificado de circulação (EUR), atenta a urgência no desalfandegamento da mercadoria.
Persistindo as divergências, devido a outros documentos, no dia 18 de Junho de 2003, o réu, de novo, informou a autora sociedade que, por seu turno, considerando que os produtos se destinavam a ser comercializados no Verão e por haver interesse em aproveitar o período sazonal de venda, após nisso ter sido aconselhada pelo réu, que lhe dava instruções para o efeito, de modo a poder levantar a mercadoria e fechar a operação, informou-o que aceitava as divergências referentes à abertura de crédito.
Todavia, continuando a não ser possível aceder à mercadoria, a autora sociedade informou o réu que iria revogar o crédito documentário e não pretendia aceitar a mercadoria enviada, tendo esta ordem sido seguida de um «e-mail», em 16 de Junho de 2003, no qual aquela explicava ao réu que deveria revogar o crédito documentário, não aceitando a mercadoria, por não ter sido possível desalfandegá-la, nos prazos previstos, isto é, antes de 10 de Junho de 2003, deixando claro que havia aceite fazer o fax, onde referiu aceitar as desconformidades na documentação, por lhe haver sido garantido que a mercadoria seria desalfandegada, em 48 horas.
Em 25 de Julho de 2003, no seguimento da comunicação do transitário de que iria proceder à anulação do despacho, o réu ficou de informar qual seria o procedimento a tomar, tendo, no dia 29 de Julho seguinte, uma funcionária deste informado que o banco GG continuava a reclamar o respectivo pagamento, dando a autora sociedade instruções ao réu para o não efectuar.
No dia 11 de Setembro de 2003, o réu, contra as instruções da autora sociedade, decidiu proceder ao pagamento do crédito documentário, tendo a conta bancária desta sido debitada, para o efeito, no valor de €67.500,00, apesar do crédito documentário já ter expirado e de pela mesma ter sido revogado.
Solicitados esclarecimentos ao réu, este informou que a documentação havia sido entregue ao banco negociador, dentro do respectivo prazo de validade, exigindo o pagamento da quantia em causa, sob pena da instauração de acções judiciais e de informação dos serviços de centralização de crédito do Banco de Portugal.
Perante isso, e, uma vez que tal penalizaria toda a sua actividade, a autora sociedade foi obrigada a subscrever uma proposta de crédito, como se fosse da sua autoria, tendo, em reunião com o réu, combinado que iria abrir um crédito de €150.000,00, ficando com a mercadoria na sua posse.
Na sequência dessa reunião, a autora sociedade veio a obter o referido crédito, titulado por uma livrança, avalizada pelos restantes autores, na qualidade de sócios da mesma.
Acontece que tal apenas serviu para agravar a situação, tendo a autora sociedade vindo a sofrer prejuízos, no montante global de €162.144,98, respeitantes ao montante do crédito documentário, a €35.252,38, que teve de pagar ao transitário, a €3.145,71 e €11.903,91, referentes a juros e despesas bancárias dos vários autores, tendo ainda despendido €39.408,00, com campanhas publicitárias para tentar vender a mercadoria, e ainda €4.934,98, com viagens de prospecção realizadas para o mesmo efeito.
Todo o sucedido deveu-se à conduta do réu que nunca esclareceu os autores das condições de validade e de funcionamento do crédito documentário e das respectivas particularidades técnicas, designadamente, nunca lhes facultando as Regras Uniformes aplicáveis aos créditos documentários, sendo seu dever prestar essas informações, não tendo a autora esses conhecimentos ou experiência, o que fez que aceitasse a falta de documentação, ficando convencida que não poderia revogar o crédito documentário, contrariando o réu uma instrução directa de não pagamento do mesmo.
Finalmente, o réu comunicou aos serviços de centralização de crédito do Banco de Portugal que os restantes autores tinham responsabilidades de crédito em mora, omitindo a sua responsabilidade no sucedido, facto esse que lhes virá a causar prejuízos muito elevados, já que necessitam, por força das suas actividades profissionais, de recorrer ao crédito, o que deixou de ser possível, desde então.
Entendem, por isso, os autores que o réu violou as regras aplicáveis ao crédito documentário contratado, bem como os deveres de informação e competência a que estava obrigado, tendo, assim, incorrido em responsabilidade contratual para com aqueles, com o dever de os indemnizar pelos prejuízos sofridos.
Na contestação, o réu invoca a ineptidão da petição inicial, em virtude de os autores não concretizarem os prejuízos por cada um deles sofridos, alegando não ter a autora sociedade qualquer dívida para consigo, por a mesma ter sido paga pelos restantes autores, pedindo a improcedência da acção e a sua consequente absolvição do pedido.
Para tanto, alegou, em síntese, que foi aberto um crédito documentário, conforme o solicitado pela autora sociedade, tendo o banco beneficiário, em 13 de Junho de 2003, informado que os documentos foram apresentados de acordo com os termos do crédito documentário, excepto no que se refere a determinadas divergências acerca de parte dos documentos, as quais foram, devidamente, informadas aquela autora.
Na altura, foram dadas instruções à autora sociedade que, em 25 de Junho de 2003, aceitou todas as divergências, tendo-lhe, no dia seguinte, sido entregues todos os documentos necessários para proceder ao desalfandegamento da mercadoria.
Contudo, passado algum tempo, tomou conhecimento de que o desalfandegadamento se havia complicado, devido ao facto de aquela autora ter sido informada da necessidade de proceder a um pagamento suplementar de €20.000,00, custo não, inicialmente, previsto.
Então, a autora sociedade solicitou o cancelamento do crédito, alegando que não estava obrigada ao respectivo cumprimento, por ter expirado o prazo do seu vencimento e nunca ter entrado na posse da mercadoria.
Perante as insistências do banco beneficiário e a posição assumida pela autora, decorrido o prazo para a resolução da situação, o réu procedeu ao respectivo pagamento, de acordo com a natureza irrevogável do crédito e as normas internacionais em vigor.
Em conformidade com estas normas, não tendo a operação sido cancelada com o acordo de todos os intervenientes, uma vez que aquela autora confirmou a recepção das mercadorias, o que foi transmitido ao banco beneficiário, e tendo as desconformidades detectadas sido aceites pela autora, nada mais podia fazer do que proceder ao respectivo pagamento, na medida em que o crédito documentário constitui uma garantia autónoma do cumprimento assente nos documentos trocados.
Adicionalmente, o réu invocou a existência de negociações, tendo em vista a regularização das responsabilidades da autora sociedade, o pagamento dos custos de manutenção da mercadoria alfandegada e a realização do negócio a que se tinham proposto, no novo período sazonal, as quais se concretizaram na concessão de um financiamento, no valor de €150.000,00, sob a forma de desconto de livrança, aos sócios da sociedade, os ora dois restantes autores, em seu nome pessoal.
A livrança emitida veio a ser, sucessivamente, reformada, com nova data de vencimento, em 10 de Outubro de 2004, sem que tenha sido paga, até à presente data.
No mais, o réu negou ter dado quaisquer instruções aos autores e ser o prazo de validade do crédito o prazo para a entrega dos documentos, no banco beneficiário, em França, tendo os mesmos sido entregues, em tempo, sendo certo que a autora sociedade aceitou as respectivas desconformidades, sem que possa, unilateralmente, revogar o crédito documentário.
Quanto à comunicação ao Banco de Portugal, alega que a mesma é automática e que os eventuais prejuízos sofridos não são da sua responsabilidade, impugnando todos os demais danos invocados e que se aquela autora acabou por ficar com a mercadoria e procedeu a campanhas publicitárias, sempre deveriam ser considerados os ganhos que auferiu da respectiva venda e não apenas apresentar custos.
Finalmente, alega ter sempre prestado todos os esclarecimentos solicitados e agido no cumprimento da legalidade e dos usos bancários, não lhe sendo exigível fornecer uma cópia das condições uniformes aplicáveis aos créditos documentários, tudo tendo feito para a defesa dos seus clientes.
Na réplica, os autores responderam à nulidade da ineptidão da petição inicial, designadamente, com o fundamento de o réu ter interpretado, correctamente, a mesma e, através do mesmo articulado, vieram alterar a causa de pedir e o pedido.
Assim, aceitam, parcialmente, os factos invocados pelo réu, respeitantes à emissão da livrança, e mantêm que não foram, devidamente, informados do regime aplicável aos créditos documentários, bem assim como que os autores, pessoas individuais, contrataram o financiamento, com base em erro criado pelo próprio réu, que os informou que o crédito não podia ser revogado, forçando-os a aceitar uma dívida que não era deles.
Concluíram, assim, com a formulação de novos pedidos principais, solicitando a condenação do réu a pagar à autora sociedade a quantia de €67.500,00, acrescida de juros de mora, declarando-se a nulidade do financiamento, sob a forma de desconto de livrança, no valor de €150.000,00, celebrado entre o réu e os dois restantes autores, condenando-se, também, o réu a pagar aos autores a quantia de €94.644,98, e ainda a pagar a quantia a apurar, em sede de execução de sentença, resultante dos danos causados aos autores, por figurarem com apontamento de crédito em mora no Banco de Portugal, condenando-se, igualmente, o réu na quantia de €100,00 diários, a título de sanção pecuniária compulsória, até que os nomes dos autores deixem de figurar com apontamento de crédito não cumprido, junto dos Serviços de Centralização de Risco de Crédito no Banco de Portugal.
A título de primeiros pedidos subsidiários, solicitam ainda a condenação do réu no pagamento da quantia de €162.144,98, a título de danos emergentes, a condenação do réu no pagamento da quantia a apurar, em sede de execução de sentença, resultante dos danos causados aos autores, por figurarem com apontamento de crédito em mora no Banco de Portugal, a condenação do réu, na quantia de €100,00 diários, a título de sanção pecuniária compulsória, até que os nomes dos autores deixem de figurar com apontamento de crédito não cumprido, junto dos Serviços de Centralização de Risco de Crédito do Banco de Portugal.
A título de segundo pedido subsidiário, solicitam que o Tribunal declare que os autores não são devedores de qualquer quantia ao banco réu.
Os referidos novos pedidos, principais e subsidiários, foram admitidos, ao abrigo do preceituado pelo artigo 273.º, n.º 2, do Código de Processo Civil (CPC).
A sentença julgou a presente acção improcedente e, consequentemente, absolveu o réu de todos os pedidos, principais e subsidiários, contra si formulados pelos autores, absolvendo estes, igualmente, do pedido de condenação como litigantes de má fé.
Desta sentença, os autores interpuseram recurso, tendo o Tribunal da Relação julgado improcedente a apelação e, em consequência, confirmou a decisão impugnada.
Do acórdão da Relação de Lisboa, os autores interpuseram recurso de revista, terminando as alegações com o pedido da sua revogação e substituição por outro que julgue a acção, procedente por provada, formulando as seguintes conclusões que se transcrevem:
1ª – A relação entre recorrentes e recorrido tinha uma duração continuada permanente e duradoura, sendo que o contrato celebrado foi um acto de um relacionamento contratual continuado entre o banqueiro e o seu cliente, em cujo decurso se inscrevem os mais diversos actos.
2ª - A relação bancária tem uma natureza de Direito Privado e de clara concepção contratual, que se caracteriza pela clara intenção de prosseguir e na qual o banqueiro existe, justamente para desenvolver a sua actividade e, por isso, tem uma vontade explícita, - pensa-se na publicidade - de celebrar novos negócios bancários, enquanto o cliente, estando satisfeito, pretende precisamente obter do banqueiro, os inúmeros produtos do tipo bancário.
3ª - É uma relação na qual existem entre banqueiro e cliente deveres de lealdade, com especial incidência sobre o profissional: justamente o banqueiro, que encontram acolhimento na Direito positivo vigente, designadamente o dever de competência técnica, artigo 73.° do Regime Jurídico das Instituições de Crédito e Sociedades Financeiras (RJICSF), o dever de diligência, de neutralidade, lealdade e discrição e respeito consciencioso dos interesses que lhe estão confiados, artigo 74.° do RJICSF.
4ª - A sociedade recorrente e o banco recorrido celebraram efectivamente, um crédito documentário irrevogável, que pode ser descrito como o foi a fls. 23 da sentença: "um banco compromete-se, a solicitação de um seu cliente, a efectuar o pagamento de determinada quantia em dinheiro a uma outra pessoa, previamente designada, credora do cliente do banco, desde que lhe sejam apresentados determinados documentos, nos termos previamente estabelecidos”.
5ª - No caso dos autos o banco emitente era o recorrido, entendendo-se este como o banco que procederá ao pagamento do crédito, in casu o EE pagaria os €67.500,00, a sociedade recorrente na medida em que solicitou o crédito documentário junto do banco e por conta de quem o pagamento será efectuado, é a ordenante, e o beneficiário é o credor da quantia em causa, que no caso dos autos foi a FF.
6ª - Há ainda nesta operação a intervenção do Banco GG que é o banco do beneficiário - in casu a FF - da existência do crédito a seu favor.
7ª - O crédito documentário foi ainda, denominado pela primeira recorrente e pelo recorrido de irrevogável, significando isso que o "banco é obrigado a pagar desde que lhe sejam apresentados os documentos determinados contratualmente, não podendo, por sua iniciativa decidir fazer cessar o crédito concedido ao beneficiário.
8ª - Sustentam os recorrentes que o banco recorrido incumpriu o crédito documentário irrevogável contratado, uma vez que no seu entendimento o recorrido não devia ter procedido ao seu pagamento atentas as instruções expressas para o seu não pagamento. E ao contrário do afirmado a fls. 30 da sentença não foi só porque não lhes explicaram sobre a possibilidade do mesmo ser revogado, mas sim porque quando foi pago, o mesmo já se encontrava licitamente revogado.
9ª – O documento que corporiza o crédito documentário, é o swift junto como documento n.° 2 com a petição inicial, e aí se diz de forma clara e inequívoca - linha 78 - que após a recepção dos documentos devidamente em ordem no nosso banco e após informação sobre a data de chegada da mercadoria no local de destino nós confirmaremos a maturidade e agiremos de acordo com as vossas instruções para pagamento.
10ª - Daqui resulta de forma clara e inequívoca que era junto do EE que deveriam ser apresentados os documentos até à data de validade do documentário, e que verificada a conformidade dos documentos então procederiam ao pagamento de acordo com as instruções do banco GG, isto significa que quando os documentos foram apresentados, no dia 13 de Junho, junto do Banco GG e somente no dia 17 de Junho junto do EE, já tinha expirado a data de validade do crédito documentário.
11ª - Quando o EE deu ordem de pagamento em 11 de Setembro de 2003, não existia a obrigação jurídica de o fazer, existindo até a obrigação de não o fazer atento o facto de ter expirado o prazo de validade e a existência de uma ordem expressa no sentido de não pagamento. O recorrido violou por isso uma ordem expressa do seu cliente, a aqui sociedade recorrente.
12ª - A questão reside por isso em saber se em 11 de Setembro quando deu ordem de pagamento, estava o EE obrigado ou não ao pagamento. Essa é a questão essencial e já se viu que atento o prazo de validade - recordamos que os documentos só foram presentes ao EE - no dia 17 de Junho o crédito documentário irrevogável já havia expirado e por isso bastava a ordem da sociedade recorrente para que o pagamento não fosse efectuado.
13ª – O Tribunal a quo colocou grande ênfase na questão de aceitação da desconformidade dos documentos, dedicando-lhe extensa análise - páginas 33 a 36. Porém o problema suscitado não se prende com o facto da sociedade recorrente ter aceitado essa desconformidade, reside precisamente em saber se os documentos foram presentes dentro prazo de validade e se a desconformidade foi igualmente, aceite dentro desse prazo.
14ª - Não havia qualquer banco designado. O banco GG era um banco correspondente e que na transmissão via swift do crédito documentário não lhe foi cometida qualquer função. Aliás da leitura de tal documento resulta inequivocamente que os documentos deveriam ser apresentados junto do EE veja-se a tradução do documento n.° 2 - corporização em papel da mensagem swift enviada pelo EE para o banco GG - junto com a petição inicial e que corresponde ao documento n.° 7 junto com a contestação - onde, no swift, se diz claramente que os documentos deviam ser presentes junto do EE.
15ª – O banco GG nunca actuou como banco designado, mas sim como banco representando o seu cliente francês, a FF, daqui decorre que a entrega dos documentos ao banco GG não tem as consequências que o Tribunal a quo, pretendeu ver, pela simples razão que não actuando tal banco por conta do EE não se podiam ter por produzidos os efeitos jurídicos pretendidos.
16ª - E não se diga que há abuso de direito por parte da sociedade recorrente ou dos outros recorrentes, pois de tal afirmação apenas releva um sentir ético jurídico merecedor de profunda censura e revelador de um desconhecimento e compreensão do sistema da boa-fé e ético do Direito, o Tribunal a quo considerou, erradamente, que os recorrentes estariam próximos da figura do abuso de direito quando expressamente aceitou as divergências, e pretende agora a invalidade do crédito.
17ª - A recorrente não pretende o não pagamento - ou melhor dizendo o ressarcimento pelo pagamento indevido de um crédito - com fundamento em
divergências que ela própria aceitou, o que seria inevitavelmente má-fé da sua
parte e eventual abuso de direito, mas não pode deixar de pretender de ser
ressarcida de um prejuízo que resultou de um pagamento indevido por parte do EE.
18ª – O EE não demonstrou nos autos ter comunicado ao beneficiário a aceitação das divergências antes da ordem de não pagamento, pelo que sempre deveria ter actuado em conformidade com as instruções do seu cliente.
19ª – O banco recorrido procedeu ao pagamento indevido do crédito documentário e descontou a conta de depósito à ordem dos recorrentes nesse montante, devendo ser condenado a pagar esse montante acrescido dos juros moratórios e deve ainda, ressarcir os recorrentes de todas as despesas no montante de €49.500,26 – vide factos provados pontos 34, 38 e 39 da sentença (folhas 20-21).
20ª - O recorrido violou outros deveres da sua relação contratual com os recorrentes, violou assim o dever legal de agir na relação com os seus clientes com diligência, neutralidade, lealdade e discrição e respeito consciencioso dos interesses que lhe estão confiados.
21ª - O recorrido não agiu de forma diligente ao nunca ter esclarecido os recorrentes acerca das condições de validade e funcionamento das particularidades técnicas do crédito documentário, violação que impediu a primeira recorrente de poder decidir conscienciosamente sobre os efeitos da sua recusa em sanar as divergências da documentação, pois estava convicta da sua obrigatoriedade em pagar o crédito irrevogável.
22ª - Esta violação do dever de diligência constitui uma violação de um dever de natureza contratual, existente na relação banco cliente, e não logrou o EE demonstrar que essa violação não procedeu de culpa sua.
23ª - A violação do dever de informação não se reconduz à falta de informação sobre o teor das cláusulas contratuais gerais, caso em funcionariam as normas contidas nos artigos 5.° e 7.° do Decreto-Lei n.°446/85 de 25 de Outubro, mas da sua completa inexistência pois as mesmas não estão escritas no contrato e pasme-se, não foram facultadas, aos recorrentes.
24ª - Mas a violação do dever de informação recaiu sobre aspectos fácticos do próprio negócio, e sobre direitos essenciais do contrato celebrado. Pois nunca informou os recorrentes das condições em que podiam revogar o crédito documentário, facto que impediu a recorrente de recusar sanar as divergências, convicta que estava que o crédito sendo irrevogável sempre seria pago.
25ª - O acórdão sob recurso violou assim, entre outras as disposições legais contidas nos artigos 397.° e 801.° ambos do Código Civil.
Nas suas contra-alegações, o réu entende que deve ser negado provimento à revista.
O Tribunal da Relação entendeu que se devem considerar demonstrados os seguintes factos, que este Supremo Tribunal de Justiça aceita, nos termos das disposições combinadas dos artigos 722º, nº 2 e 729º, nº 2, do CPC, mas reproduz:
1. A 1.ª autora AA – Consultores Associados, Lda. é uma sociedade comercial que tem como objecto social a prestação de serviços de consultadoria às empresas industriais, comerciais ou não, particularmente, formação, estudos, comunicação, representação e comercialização de diversos produtos - A).
2. O 2.º autor, BB, e a 3.ª autora, CC, são sócios gerentes da 1.ª autora - B).
3. O réu Banco DD, SA, actualmente, incorporado no Banco EE, SA, é uma instituição de crédito - C).
4. A 1.ª autora, na prossecução da sua actividade, acordou com a FF a aquisição de 2.500 caixas de aparelhos médicos, à base de electroacupunctura, para emagrecimento - D).
5. Em virtude da FF ter exigido à 1.ª autora um crédito documentário de €67.500,00 para pagamento do material a adquirir, esta, em 2 de Maio de 2003, enviou ao réu um fax do qual consta:
“… Vimos por este meio solicitar a abertura de crédito a 30 dias, relativamente à factura proforma que segue em anexo…”, factura essa emitida pela FF, no valor de €67.500,00 - E).
6. Em 15 de Maio de 2003 a 1.ª autora enviou ao réu um fax do qual consta:
“… Vimos por este meio solicitar uma abertura de crédito, pelo que junto enviamos os respectivos formulários devidamente preenchidos…” - F).
7. Através desse mesmo fax, o réu enviou à 1.ª autora, devidamente preenchido, o documento intitulado “Créditos Documentários”, cuja cópia consta de fls. 61 e 62, acompanhado dos documentos de fls. 63 a 66, constando daquele:
“(…)
Proposta de X abertura Data 03/05/16
Banco Notificador -------------- Tipo de Crédito X Irrevogável
Validade do Crédito: 10/06/03
Local da Validade: Hong Kong
Ordenador Conta nº 0018/8020/0180 Beneficiário
Nome: AA – Consultores Associados, Lda Nome: FF
(…) (…)
Moeda Montante Extenso
Euro 67.500,00 Sessenta e sete mil e quinhentos euros
(...)
Condições de Pagamento
X A Prazo 30 dias após recepção da mercadoria
(…)
Expedição de: Hong Kong Para: Lisboa- Portugal Data limite de Embarque 30/05/03
Mercadoria (…)
2500 caixas de aparelhos médicos à base de electro acupunctura para emagrecimento (…)
X FCA (…)
Documentos requeridos
X Factura comercial (original e 3 cópias) (…)
X CMR (…) X Certificado de circulação (EUR) (…)
X Apólice
X Seguro feito pelo ordenador a favor do RIC com as coberturas ICCA (…)
Prazo para entrega dos documentos após a data da expedição, mas dentro da validade do crédito 10 dias (…)
Fica expressamente convencionado que:
- A presente abertura de Crédito Documentário fica subordinada às regras e Usos Uniformes Relativos aos Créditos Documentários, adaptadas pela Câmara de Comércio Internacional, à data da sua abertura sem prejuízo dos usos e costumes na praça da sua liquidação ou negociação (…)
- Um crédito irrevogável não poderá ser anulado antes de findo o prazo para entrega dos documentos em ordem, nem alterado ou modificado, salvo acordo expresso de todas as partes nele interessadas (...)” – G.
8. Em 23 de Maio de 2003 a 1.ª autora enviou ao réu um fax, com o seguinte teor:
“…Vimos por esta forma comunicar que nos comprometemos a avisar da data de recepção da mercadoria, relativamente à nossa abertura de crédito no montante de 67.500,00 € para efeitos da data de pagamento da mercadoria…” - H).
9. Em 26 de Maio de 2003, o réu procedeu à abertura do crédito documentário e comunicou tal abertura, via swift, ao banco da FF e deu conhecimento de tal facto, via fax, a 1.ª autora - I).
10. Em 5 de Junho de 2003, a 1.ª autora enviou ao réu um fax com o seguinte teor:
“Acusamos a recepção da mercadoria referente à abertura de crédito. Agradecemos que nos facultem original da factura para podermos proceder ao desalfandegamento da mesma …” - J).
11. Quando a mercadoria se encontrava na alfândega, verificou-se existir divergências entre os documentos referidos no crédito documentário e os que tinham sido enviados ao réu, o que foi comunicado à 1.ª autora pela gestora de cliente do balcão do réu da Av. F… P… M… - K).
12. Nesse mesmo dia, 6 de Junho de 2003, a 1.ª autora enviou ao réu, via fax, uma carta da qual consta:
“…Vimos por este meio informar que prescindimos do documento “Certificado de circulação (EUR)” que tínhamos solicitado aquando do pedido de abertura de crédito.
Temos alguma urgência no desalfandegamento da mercadoria pelo que agradecemos que tomem as providência necessárias por forma a que o processo possa prosseguir…” - L).
13. Em 18 de Junho de 2003, o réu enviou à 1.ª autora, via telecópia, uma carta da qual consta:
“Assunto; Documentos no valor de Eur. 67.500,00. Em anexo informamos divergências notadas nos documentos acima referenciados. Ficamos a aguardar os comentários de V. Exas. às mesmas, os quais deverão ser transmitidos através do V. Gestor (…)” - M).
14. Do documento de fls. 70, junto com a carta referida em 13, consta:
“Recebemos do nosso correspondente documentos no montante de Eur. 67.500,00 a fim de obtermos o acordo para as divergências abaixo mencionadas:
Divergências: Factura não faz referência a proforma; Factura não faz referência ao Incoterm; Falta EUR 1; AWB não indica data de embarque. Nota: Solicitamos que nos informem a data efectiva da chegada da mercadoria a fim de marcarmos o vencimento…” - N).
15. Em 25 de Junho de 2003, a 1.ª autora enviou ao réu um fax com o seguinte teor:
“Exmos Senhores, Vimos por este meio informar que aceitamos todas as divergências referentes ao V/fax datado de 18 de Junho, referente a uma abertura de crédito a 30 dias no valor de 67.500,00€…” - O).
16. Em 9 de Julho de 2003, a 1.ª autora enviou ao réu um e-mail do qual consta:
“Conforme tive oportunidade de lhe explicar telefonicamente, só ontem é que a empresa que está a tratar do desalfandegamento da mercadoria nos informou de que falta apenas agora o pagamento de uma determinada quantia para podermos ter acesso à mesma. Só assim é que o processo ficará completo e teremos então finalmente acesso à mercadoria. O facto de o fabricante não ter enviado a documentação em conformidade com o que estava determinado nos impressos de abertura de crédito fez com que todo este processo se tenha atrasado mais daquilo que é habitual. Mesmo esta situação só foi contornada pelo facto da AA ter prescindido dos documentos em conformidade, caso contrário o processo ainda teria sido mais moroso (…)” - P).
17. Em 14 de Julho de 2003, a 1.ª autora enviou ao réu um e-mail do qual consta:
“(...) Conforme já tinha expressado telefonicamente, a situação com a FF tornou-se incomportável. Por um lado, pelo facto da mercadoria ter vindo por Hong Kong obrigava-nos a disponibilizar mais cerca de 20.000,00€ que não estavam previstos. Por outro lado, com o arrastar de toda a situação, em que não fomos culpados, perdemos a oportunidade de vender as 2.500 peças que tínhamos encomendado para o efeito. Sendo assim, agradeço que não seja dada ordem de pagamento da abertura de crédito (…)” - Q).
18. Em 16 de Julho de 2003, a 1.ª autora enviou ao réu um e-mail com o seguinte conteúdo: “No seguimento da nossa conversa de ontem, confirmo os seguintes pontos: 1) A AA não vai aceitar a mercadoria enviada pelo exportador FF; 2) A não aceitação da mercadoria fica a dever-se a não ter sido possível desalfandegar a mesma nos prazos previstos dadas as inconformidades existentes na documentação de acompanhamento;
a) A mercadoria não vinha acompanhada dos documentos indispensáveis à entrada no espaço europeu;
b) A mercadoria não nos foi entregue antes da data de expirar o prazo previsto no Crédito Documentário 10/06/03 ponto 31 da carta de crédito.
A AA concordou em fazer um fax onde referia aceitar as inconformidades, única e exclusivamente porque o Transitário K… garantiu que caso os problemas fossem resolvidos pelo exportador em 48 horas desalfandegava a mercadoria.
Tal não aconteceu porque o exportador FF e o seu Banco não resolveram os problemas a tempo.
Conclusão: Com este atraso a AA não forneceu os clientes na data prevista e sofreu um enorme prejuízo…” - R).
19. No dia 25 de Julho de 2003, a 1.ª autora enviou ao réu um e-mail com o seguinte teor: “…Fui ontem informado pelo transitário K… que iriam proceder à anulação do despacho alfandegário a favor da AA e realizar um outro a favor da FF para que estes possam posteriormente recolher a mercadoria. Logo que isto aconteça (até terça feira dia 29) o Banco GG ficará na posse dos documentos necessários para cancelar a carta de crédito e comunicar ao DD …” - S).
20. Em resposta a esse e-mail, o réu enviou à 1.ª autora, nesse mesmo dia, um e-mail, com o seguinte conteúdo: “…Foi enviada a v/ mensagem à nossa direcção para que seja decidido qual o procedimento a tomar…” - T).
21. Ainda em resposta ao e-mail, referido em 19., no dia 29 de Julho de 2003, o réu enviou à 1.ª autora um e-mail, do qual consta: “Subject: RE: Carta de Crédito (…) Não obtivemos do banco GG até agora qualquer informação nesse sentido, continuando o mesmo a reclamar o mais urgentemente possível o pagamento.
Lamentamos, mas como sabe fizemos tudo o possível face à situação, a qual não podemos adiar mais…” - U).
22. No dia 30 desse mesmo mês de Julho, a 1.ª autora enviou ao réu um e-mail com o seguinte teor: “(…) Fui ontem informado da anulação do despacho alfandegário a favor da AA. A mercadoria nunca entrou na nossa posse nem foi aceite. O exportador vai levantar a mercadoria, conforme Hong Kong nos informou. Hoje envio-lhe um fax do transitário. Quanto ao Banco GG julgo que devemos ter todo o cuidado, dado que essas reclamações nos parecem completamente abusivas. Atenção que a AA não recebeu nenhuma mercadoria e já não pode receber…” - V).
23. Também nesse dia a 1.ª autora enviou ao réu um e-mail do qual consta: “Informo que foi feito através do nosso transitário requerimento ao Director Geral das Alfândegas informando do comportamento do exportador em relação a este processo de importação fundamentando a anulação do despacho. A AA através de todos os meios possíveis tentará resolver da melhor forma este problema. Solicitamos ao DD que defenda os interesses do vosso cliente de 13 anos como é a AA…” - W).
24. Em 4 de Agosto de 2003, a 1.ª autora enviou ao réu um e-mail com o seguinte teor: “(…) achamos que não se deverá proceder ao pagamento da carta de crédito pelo seguinte:
1º. A carta de crédito expirou em 10 de Junho de 2003 e o fax em que nós aceitávamos as divergências datava de 25 de Junho de 2003. Segundo o advogado, este fax não tem validade porque já foi efectuado depois de o prazo da carta de crédito ter expirado. Um fax não se pode sobrepor a uma carta de crédito.
2º. Só no dia 9 de Julho é que a K…, empresa que estava a tratar de desalfandegar a mercadoria em questão, é que nos contactou a dizer que a mesma estava em posição de ser desalfandegada e se ainda estávamos interessados em aceitar a mercadoria, ao que respondemos que não. Isto porque já não tínhamos qualquer hipótese de efectuar o negócio. A culpa de a mercadoria só estar agora disponível, não foi da AA.
3º. A mercadoria nunca entrou na posse e a carta de crédito foi feita para pagar esta mercadoria que deveria ter estado em nossa posse até ao dia 10 de Junho de 2003.
Face a este crédito, não vemos hipótese de pagamento da carta de crédito em questão. Esta é a posição da AA (…)” - X).
25. No dia 11 de Setembro de 2003, o réu procedeu ao pagamento do crédito documentário, tendo, para o efeito, debitado a conta bancária da 1.ª autora - Y).
26. No dia 30 de Setembro de 2003, o transitário K… enviou à 1.ª autora o documento de fls. 78 e 79, informando a mesma que o exportador, depois de receber o pagamento do crédito documentário, se preparava para levar a mercadoria para Espanha - Z).
27. No dia 6 de Outubro de 2003, a 1.ª autora enviou ao réu o documento de fls. 80 a 82, do qual consta, nomeadamente, o seguinte: “Exmos, Senhores: No seguimento da reunião realizadas com os Exmos Senhores A… G… e Dra. C… S…, vimos por esta forma esclarecer os seguintes pontos relativos à carta de crédito acima descriminada.
1) A AA Consultores Associados solicitou no dia 16/05/2003 a abertura de crédito documentário a favor da sociedade FF no valor de 67.500,00 (Sessenta e sete mil e quinhentos Euros). Nesta estava explicitamente referido que a validade da abertura de crédito era até 10.06.03 ponto CL 60, sendo a data limite de embarque 30.05.03 (Anexo Doc. 1);
2) No dia 2.06.03 somos informados pelo Transitário K… que a mercadoria estava na Alfândega de Lisboa, mas que não vinha acompanhada dos documentos necessários à realização do despacho Alfandegário.
3) A AA sabendo que tinha que cumprir prazos de entrega, faz todos os esforços junto do DD (telefone e fax) no sentido de serem remetidos ao Transitário os documentos em falta. Inclusive fomos informados de que os documentos já estariam na posse do DD faltando apenas o EUR quando na realidade isso não aconteceu (Anexo Doc. 2).
4) O Crédito Documentário a favor da FF expirou no dia 10 de Junho sem que a AA tenha conseguido receber a documentação em falta e em consequência desalfandegar a mercadoria.
5) O Banco Emitente e o Banco Receptor não solicitam uma prorrogação do Crédito Documentário.
6) Após ter caducado a carta de crédito o DD envia no dia 12.06.03 um swift urgente para o Banco receptor solicitando como e quando iriam ser enviados os documentos (Anexo Doc. 3).
7) A AA não cumpriu com os seus clientes os compromissos de entrega de mercadoria, e dado ser um produto sazonal perdeu a oportunidade de mercado.
8) No dia 18.06.03 a AA é informada que existem divergências. Não são feitas referências ao facto de a carta de crédito ter caducado. (Anexo Doc. 4).
9) Dia 25.06.03 foi solicitado à AA envio de fax onde se referia a aceitação de divergências não especificadas. A AA não aceitou a prorrogação da carta de crédito.
10) A pedido do transitário a AA informa que não aceita a mercadoria enviada pelo exportador em virtude de inconformidades existentes e consequentemente o facto de não ter sido possível desalfandegar a mercadoria dentro do prazo acordado. (Anexo Doc. 5) (...)
Conclusão:
A conta da AA é debitada de 67.500.00 Euros referente a um crédito documentário cuja data expirou. A AA nunca teve acesso à mercadoria. A AA perdeu uma oportunidade de mercado de vender as 2.500 unidades na época de Verão.
Face ao exposto solicitamos que haja uma avaliação dos factos apresentados, e uma reavaliação da decisão de pagar a carta de crédito que não é da nossa responsabilidade (...)” - A1).
28. No dia 20 de Novembro de 2003, o réu enviou à 1.ª autora o documento de fls. 84, do qual consta, nomeadamente, o seguinte: “Exmos Senhores. Recebemos a v/ prezada carta datada de 06 de Outubro de 2003, a que passamos a responder:
O Banco DD, S.A., conforme v/ oportunas instruções, abriu um Crédito Documentário de Importação de valor EUR 67.500,00 (sessenta e sete mil e quinhentos euro) nas condições solicitadas por V. Exas. em impresso próprio.
As divergências na documentação a que V. Exas. aludem e deram acordo, não tinham a ver com a validade do crédito, pois a referida documentação foi entregue ao Banco Negociador (GG) dentro do respectivo prazo de validade. (...)” - B1).
29. Os 2.º autor e 3.ª autora subscreveram e enviaram ao réu um fax, com o seguinte teor: “(…) Assunto: Crédito Documentário DD 001/8284 (…) Conforme o combinado na nossa última reunião acerca do assunto em epígrafe, vimos por esta forma apresentar a nossa proposta para resolução do mesmo. Tal como foi explicado e documentado durante todo este processo a AA foi claramente prejudicada com esta operação de Crédito Documentário. O não recebimento no prazo previsto das 2500 unidades necessárias para a nossa campanha de Verão e o posterior pagamento pelo DD da respectiva carta de crédito implicou para a AA um prejuízo no mínimo equivalente ao valor da venda das 2.500 peças no mercado farmacêutico. Dado o melindre desta situação para os intervenientes, a AA pretende encontrar uma solução que a todos possa agradar.
Assim propomos:
A) A AA está disposta a ficar com a mercadoria que foi para trás e que nunca chegou a estar em nossa posse.
B) Esta situação permitirá que organizemos a próxima campanha de Verão 2004 e 2005, dado tratar-se de um produto sazonal.
C) Para que esta operação seja possível, solicitamos ao DD abertura a nosso favor de uma conta corrente caucionada para um valor máximo de 150 000 Euros (Cento e cinquenta mil euros) para um prazo de 24 meses e pagamento de juros mensais.
D) Esta proposta, apesar de não ressarcir os prejuízos que a AA já teve, permitirá que recuperemos, se bem que num prazo mais dilatado os investimentos feitos (…)” - C1).
30. Depois de negociadas algumas propostas, foi acordado que a regularização das responsabilidades da 1.ª autora seria efectuada, mediante a concessão de um financiamento, sob a forma de desconto de livrança, a conceder aos 2.º e 3.ª autores - D1).
31. O financiamento em causa foi efectuado, mediante a forma de desconto de livrança, no valor de €150.000,00, com data valor de 20 de Janeiro de2004, e vencimento, em 20 de Maio de 2004, destinando-se à liquidação das responsabilidades da 1.ª autora - E1).
32. Com data valor de 20 de Maio de 2004, foi aprovado um novo financiamento, sob a forma de desconto de livrança, de igual valor, destinando-se à reforma, por inteiro, do financiamento, anteriormente, concedido e, entretanto, vencido, com um prazo de vencimento de 60 dias, em 19 de Julho de 2004 - F1).
33. Tal livrança veio a ser reformada, por inteiro, no vencimento, com nova data de 10 de Outubro de 2004 - G1).
34 - Os 2.º e 3.ª autores suportaram as seguintes quantias relativas a despesas e juros do financiamento:
- 20 de Janeiro a 20 de Maio de 2004 - 5.389,02 €,
- 20 de Maio a 19 de Julho de 2004 - 2.820,86 €,
- 20 de Julho a 10 de Janeiro de 2004 - 3.694,03 € - H1).
35. Em virtude dos 2.º e 3.ª. autores não terem pago a livrança, referida em 33., o réu comunicou aos Serviços de Centralização de Responsabilidade de Crédito do Banco de Portugal que os mesmos tinham responsabilidades de crédito em mora, compreendendo juros e capital não pagos, no prazo contratado - I1).
36. Os autores são clientes do Grupo EE, há mais de 13 anos - J1).
37. Os produtos, referidos em 4, destinavam-se a ser comercializados no Verão, pelo que havia, por parte da 1.ª autora, todo o interesse em conseguir o acesso imediato aos mesmos - 1.º.
38. A 1.ª autora teve que proceder ao pagamento de €35.252,38 ao Transitário K… - 6.º.
39. A 1.ª autora suportou com despesas bancárias relacionadas com o descoberto bancário, referido em 25, os seguintes montantes:
- 13 de Setembro de 2003 – 31,48 €,
- 13 de Outubro de 2003 – 482,37 €,
- 1 de Novembro de 2003 – 234,00 €,
- 13 de Novembro de 2003 – 519,99 €,
- 13 de Dezembro de 2003 – 513,59 €,
- 13 de Janeiro de 2003 – 562,54 € - 7.º.
40. O réu nunca esclareceu os autores acerca das condições de validade e funcionamento, nem das particularidades técnicas do crédito documentário - 11º.
41. O réu não disse à 1.ª autora que a mesma podia, livremente, revogar o crédito, após o prazo de validade, caso não tivesse recebido a documentação necessária para efectuar o pagamento - 12.º.
42. E não facultou aos autores cópia das Regras e Usos Uniformes Relativos aos Créditos Documentários adoptadas pela Câmara de Comércio Internacional - 13.º.
43. Nem informou os mesmos dos usos e costumes da praça de liquidação ou negociação - 14.º.
44. Os 2.º e 3.ª autores, por força das suas actividades profissionais, necessitam de recorrer ao crédito bancário - 16.º.
45. Em virtude da comunicação aos Serviços de Centralização de Responsabilidade de Crédito do Banco de Portugal, referida em 35., a obtenção de crédito pelos 2.º e 3.ª autores ficou dificultada - 17.º.
46. Em 17 de Junho de 2003, foram recepcionados pelo réu os documentos, acompanhados por carta do beneficiário, datada de 13 de Junho de 2003, salvaguardando que os mesmos tinham sido apresentados, em conformidade com os termos do crédito documentário e dentro do prazo de validade, excepto no que diz respeito à factura comercial, à carta de porte aéreo e ao certificado EUR 1 - 20.º.
47. Em 26 de Junho de 2003, foram entregues à 1.ª autora os documentos necessários para proceder ao desalfandegamento da mercadoria, nos termos que constam de fls. 159 a 162 - 21.º.
48. O réu confirmou ao banco GG a recepção da mercadoria, em Portugal - 22.º.
49. O banco GG efectuava, insistentemente, pedidos para o réu proceder ao pagamento do crédito - 23.º.
50. As despesas, aludidas no artigo 39, têm origem no facto da conta da 1ª autora ter ficado a descoberto aquando do débito, referido em 25. - 24.º.
51. O réu sempre prestou aos autores todos os esclarecimentos que lhe foram solicitados - 25.º.
Tudo visto e analisado, ponderadas as provas existentes, atento o Direito aplicável, cumpre, finalmente, decidir.
As questões a decidir, na presente revista, em função das quais se fixa o objecto do recurso, considerando que o «thema decidendum» do mesmo é estabelecido pelas conclusões das respectivas alegações, sem prejuízo daquelas cujo conhecimento oficioso se imponha, com base no preceituado pelas disposições conjugadas dos artigos 660º, nº 2, 661º, 664º, 684º, nº 3, 690º e 726º, todos do CPC, são as seguintes:
I – A questão da revogação do crédito documentário celebrado como irrevogável.
II – A questão do montante dos danos a ressarcir.
I. DO CRÉDITO DOCUMENTÁRIO IRREVOGÁVEL
Efectuando uma síntese da factualidade essencial que ficou demonstrada, importa reter que, no exercício da actividade a que se dedica, a autora sociedade acordou com a “FF” a aquisição de 2.500 caixas de aparelhos médicos, à base de electroacupunctura, para emagrecimento, tendo aquela aceite, para pagamento do aludido material adquirido, com data de 26 de Maio de 2003, a abertura de um crédito documentário, no banco réu, de natureza irrevogável, no montante de €67.500,00, válido até 10 de Junho de 2003, a pagar, no prazo 30 dias, após recepção da mercadoria, a expedir de Hong Kong para Lisboa, com a data limite do embarque de 30 de Maio de 2003, FCA, requerendo-se como documentos, a entregar, no prazo de dez dias, após a data da expedição, mas dentro do período de dez dias da validade do crédito, a factura comercial, original e três cópias, o CMR, o certificado de circulação (EUR), a apólice e o seguro feito pelo ordenador, a favor do RIC, com as coberturas ICCA.
Mais se convencionou, nomeadamente, que o crédito documentário ficava subordinado às Regras e Usos Uniformes Relativos aos Créditos Documentários, adoptados pela Câmara de Comércio Internacional (RUU), à data da sua abertura, sem prejuízo dos usos e costumes, na praça da sua liquidação ou negociação, não podendo ser anulado, antes de findo o prazo para entrega dos documentos exigidos, nem alterado ou modificado, salvo acordo expresso de todas as partes nele interessadas.
Entretanto, em 5 de Junho de 2003, a autora sociedade avisou o réu da recepção da mercadoria, solicitando o original da factura para poder proceder ao seu desalfandegamento.
Porém, verificando-se a existência de divergências entre os documentos referidos no crédito documentário e os que tinham sido enviados ao réu, no próprio dia 6 de Junho de 2003, a autora informou-o que prescindia do documento “Certificado de Circulação (EUR)”, requerendo urgência no desalfandegamento da mercadoria.
Em 17 de Junho de 2003, foram recepcionados pelo réu os documentos, acompanhados por carta do beneficiário, datada de 13 de Junho anterior, salvaguardando que os mesmos tinham sido apresentados, em conformidade com os termos do crédito documentário e dentro do prazo de validade, excepto no que diz respeito à factura comercial, à carta de porte aéreo e ao certificado EUR 1.
Em 25 de Junho de 2003, a autora voltou a informar que aceitava todas as demais divergências referentes ao processo de abertura de crédito, ou seja, que a factura não fazia referência a «pro forma», nem ao Incoterm, faltava o EUR1 e o AWB não indicava a data de embarque.
Entretanto, em 26 de Junho de 2003, foram entregues à autora os documentos necessários para proceder ao desalfandegamento da mercadoria.
Em 14 e 16 de Julho de 2003, a autora sociedade comunicou ao réu que não aceitava a mercadoria enviada pela “FF”; por não ter sido possível efectuar o respectivo desalfandegamento, nos prazos previstos, dadas as inconformidades existentes na documentação de acompanhamento, indispensáveis à entrada no espaço europeu, por não ter sido entregue antes da data de expiração do prazo previsto e por ter perdido a oportunidade de vender o material encomendado, solicitando que não fosse dada ordem de pagamento da abertura de crédito.
Em 4 de Agosto de 2003, a autora comunica ao réu que não deveria proceder ao pagamento da carta de crédito, por ter expirado a sua validade, em 10 de Junho de 2003, e o fax em que aceitava as divergências datar de 25 de Junho de 2003, e por já não ter qualquer hipótese de efectuar o negócio.
Porém, no dia 11 de Setembro de 2003, o réu procedeu ao pagamento do crédito documentário, tendo, para o efeito, debitado a conta bancária da autora sociedade.
No âmbito da vocação cosmopolita e universal do Direito Comercial, assiste-se, actualmente, a uma internacionalização e globalização, sem precedentes, das relações jusmercantis, em especial, das relações de natureza contratual.
Verifica-se, por isso, um aumento exponencial das normas jurídicas de origem supra-estadual que visam a uniformização, coordenação ou aproximação do direito aplicável aos contratos mercantis, donde emerge uma lei universal dos mercadores, com destaque para os usos mercantis internacionais, coligidos e aprovados por organizações de comércio, como acontece com as “Regras e Usos Uniformes sobre Crédito Documentário” de 1993, elaboradas pela Câmara de Comércio Internacional (RUU).
Este corpo normativo uniformizado(1) e principiológico actua, hoje, no mínimo, como direito dispositivo, para o qual as empresas remetem, frequentemente, a regulação das suas relações contratuais plurilocalizadas, ao abrigo do princípio da liberdade contratual, constante do artigo 405º, nº 1, do Código Civil, sendo, assim, perfeitamente, admissível, por exemplo, que as partes de um contrato jusmercantil internacional escolham o direito aplicável, através de uma remissão, directa ou indirecta, para semelhante «lex mercatoria»(2), de que as RUU constituem expressão(3).
O crédito documentário constitui um instrumento fundamental do financiamento das operações comerciais internacionais(4), enquanto forma de pagamento do preço ou de obtenção de crédito a elas destinado, determinando que o credor de certa importância, como acontece com o vendedor de uma mercadoria, esteja garantido quanto ao pagamento desse valor por um terceiro, muitas vezes, uma entidade bancária, que paga ao credor a importância reclamada contra a entrega de documentos, atento o acordo estabelecido entre a entidade bancária e o devedor dessa quantia (5).
A figura do crédito documentário desempenha, assim, várias funções, entre as quais se destacam a função de segurança e de crédito às partes envolvidas na transacção comercial e a função de financiamento da operação.
Por outro lado, o crédito documentário tutela, de igual modo, os interesses das duas partes principais do contrato, eliminando os inconvenientes da distância entre as praças do vendedor e do comprador, garantindo ao primeiro o pagamento pontual do preço, através de um banco, e ao segundo o exacto cumprimento da obrigação de entrega dos bens, atestado pelos documentos exigidos pelo banco contra o pagamento do crédito.
É, por isso, que o recurso ao crédito documentário permite uma intervenção conciliadora desta divergência de interesses.
É que a operação de crédito documentário desdobra-se numa relação trilateral, ou seja, num contrato de compra e venda entre o comprador e o vendedor, na abertura do crédito documentário e, finalmente, na realização do crédito documentário.
Para o efeito, o comprador deve solicitar a uma instituição bancária a abertura de um crédito documentário, através do qual estipulam uma cláusula de pagamento do preço, a favor do vendedor, a satisfazer mediante a apresentação de determinados documentos (6), que, expressamente, indicará, que comprovem a expedição da mercadoria adquirida, enquanto que, por seu turno, o banco informará o vendedor da abertura do crédito efectuada e dos documentos exigidos para proceder ao pagamento do respectivo montante.
E o vendedor, por seu lado, após ter expedido a mercadoria e recebido do transportador os respectivos documentos comprovativos, apresentá-los-á ao banco respectivo, juntamente com outros que sejam requeridos, e verá, então, satisfeito o seu crédito sobre o montante correspondente ao preço.
Seguidamente, o banco emitente entregará esses mesmos documentos ao comprador da mercadoria, de modo a que este possa proceder ao seu levantamento, no local de destino, sendo agora reembolsado, contra a sua entrega, do montante, anteriormente, satisfeito ao vendedor, nos termos do disposto pelo artigo 16º, a), das RUU, eventualmente, acrescido, conforme tenha sido acordado, de uma comissão pelo serviço prestado.
A emissão da carta de crédito é feita pelo banco, em execução das instruções ditadas pelo ordenante, e com a sua recepção, o beneficiário fica a conhecer os seus direitos, variáveis segundo a natureza do crédito aberto, atento o estipulado pelo artigo 7º, a), b) e c), das RUU.
É que a natureza jurídica dos créditos documentários, face à ausência da sua previsão legal, no ordenamento jurídico português, só pode ser encontrada, através do regime jurídico definido pelas RUU.
Efectivamente, o maior denominador possível de identificação entre o regime do crédito documentário e as regras do ordenamento jurídico nacional encontra-se no instituto do mandato (7), negócio jurídico que potenciou o contrato-base de compra e venda celebrado entre o ordenante e o beneficiário, muito embora, mesmo assim, por forma a não esgotar a extensão do problema, porquanto se limita à relação inicial estabelecida entre o ordenador, o banco emitente e o banco confirmador ou o banco notificador, na fase progressiva da utilização do crédito documentário, esquecendo a relação inicial que se cria entre o banco emitente ou o banco confirmador e o beneficiário, proveniente da promessa de pagamento contra a apresentação dos documentos, onde inexiste qualquer relação contratual, e bem assim como a relação da segunda fase ou regressiva de utilização do crédito, entre o beneficiário e o banco designado.
Preceitua o artigo 1157º, do Código Civil, que “mandato é o contrato pelo qual uma das partes se obriga a praticar um ou mais actos jurídicos por conta da outra”.
Assim, no que concerne à parte útil da identificação entre as duas figuras em apreço, o negócio jurídico bilateral celebrado entre a autora sociedade e o réu traduz-se num contrato de mandato, em que o banco emitente se obriga a praticar um ou mais actos jurídicos, por conta do ordenador, sendo certo que aquele actua sempre, por conta do ordenador e não por conta própria, mas no seu próprio nome, e não em representação do ordenador, atento o estipulado pelos artigos18º, a) e d), das RUU, 1180º e 471º, parte final, do Código Civil.
Diversamente, porém, no caso de inexecução do mandato ou da inobservância das instruções recebidas, hipótese em que o regime contemplado pelo artigo 1162º, do Código Civil, é inaplicável à relação existente entre o banco emitente e o ordenador, porquanto, no caso de inexistir a exigida aparente conformidade dos documentos com os termos da carta de credito, ou o banco recusa os documentos ou solicita ao ordenador a aceitação das divergências, impedindo-se, ao contrário do que sucede com o mandato, qualquer margem de discricionariedade do banco na aceitação dos documentos não conformes, nos termos do preceituado pelo artigo 14º, c), das RUU.
Por seu turno, sendo o mandato, livremente, revogável, por qualquer das partes, não obstante convenção em contrário, cessa essa faculdade, quando exercitada pelo mandante, desde que o mandato tenha sido conferido, também, no interesse do mandatário ou de terceiro, hipótese em que não pode ser revogado por aquele, sem acordo do interessado, salvo existindo justa causa, atento o estipulado pelo artigo 1170º, nºs 1 e 2, do CC.
Assim sendo, esta ressalva à regra geral do princípio da livre revogabilidade do mandato é compatível com o instituto do crédito documentário, pelo menos e, desde logo, na redacção actual que resulta dos artigos 6º, c) e 9º, d), das RUU (8).
Efectivamente, tratando-se de um crédito irrevogável, que é a hipótese que aqui interessa considerar, o banco emitente assume uma obrigação perante o beneficiário, a que não pode eximir-se, unilateralmente, ainda que haja incumprimento ou cumprimento defeituoso do contrato principal, salvo o caso de fraude do beneficiário, gozando este, consequentemente, perante aquele de um direito próprio, autónomo e independente, quer das relações existentes entre o banco emitente e o ordenante, quer das relações entre ele próprio e o comprador, em conformidade com o preceituado pelos artigos 10º, a) e d), 6º e 3º, das RUU.
O crédito irrevogável significa que não pode ser objecto de nenhum acto jurídico que, unilateralmente, faça cessar os seus efeitos ou alterar o seu conteúdo, funcionando como uma verdadeira garantia, independentemente das vicissitudes ulteriores (9), vinculando o banco emitente e o banco confirmador, não sendo, portanto, possível a alteração ou o cancelamento pelas partes envolvidas, a qualquer tempo, do crédito contratado.
Assim sendo, o beneficiário de crédito documentário irrevogável confirmado goza de dois direitos, autónomos e independentes, um perante o banco emitente e o outro perante o banco confirmador.
A última fase da operação do crédito documentário consiste no pagamento do crédito pelo banco emitente, em contrapartida dos documentos enumerados na carta de crédito, os quais assumem uma importância decisiva, ou não fosse aquele um negócio, sobre, e, apenas, sobre documentos, que constituem o respectivo objecto, nos termos do disciplinado pelos artigos 3º, 4º e 14º, b), das RUU, e em que a separação entre eles e as respectivas mercadorias assume uma relevância fundamental.
Efectivamente, a existência do crédito documentário baseia-se na entrega, pelo beneficiário, de certos documentos, previamente, requeridos e que são aqueles que hão-de servir ao ordenante para levantar a mercadoria, objecto da compra e venda, contrato-base da origem do crédito, sendo certo que o banco emitente pode recusar-se a aceitar os documentos e, consequentemente, impedir a utilização do crédito documentário, por seu intermédio, no caso de divergência daqueles com as condições estipuladas, nos termos do disposto pelos artigos 9º, a) e 14º, d), das RUU.
Na perspectiva do importador, os diversos documentos requeridos atestam o bom cumprimento do contrato pelo vendedor, dando aquele a certeza de não ser debitado pelo seu banco se o beneficiário não apresentar os documentos exigidos, nisto residindo mesmo a pedra angular do funcionamento do crédito documentário, sobre que assenta a segurança do tráfico internacional, isto é, a garantia de pagamento para o exportador e a garantia do exacto cumprimento do contrato para o importador (10).
Assim sendo, o adquirente goza da garantia de que o banco só efectuará o pagamento se os documentos que tiverem sido apresentados estiverem em total conformidade com os termos formais da solicitação da abertura de crédito.
Se o pagamento ao beneficiário for efectuado em incumprimento das regras relativas ao dever de exame dos documentos, não pode o ordenador exigir o reembolso da quantia recebida por aquele, gozando antes da faculdade de não pagar ao banco emitente (11).
Efectuando uma análise crítica final do essencial da prova obtida, para, em seguida, decidir, impõe-se concluir que a autora sociedade, sediada em Lisboa, acordou na utilização de uma carta de crédito, que abriu no réu, no dia 26 de Maio, como forma de pagamento do preço da compra e venda de 2.500 caixas de aparelhos médicos, à base de electroacupunctura, para emagrecimento, expedidas de Hong-Kong, à empresa “FF”, com sede em Nanterre, sendo a data do limite do embarque 30 de Maio de 2003.
A mercadoria deveria ser entregue à autora, no prazo de dez dias, após a data da expedição, mas dentro do período de validade do crédito documentário, que decorria até 10 de Junho de 2003, durante o qual, impreterivelmente, deveriam ser entregues os documentos requeridos, em ordem, ou seja, a factura comercial, o CMR, o certificado de circulação (EUR), a apólice e o seguro, no decurso do qual, outrossim, não poderia ser anulado, salvo o acordo de todas as partes interessadas.
Porém, tendo a mercadoria sido recebida, em 5 de Junho de 2003, a autora sociedade não logrou proceder ao seu desalfandegamento, devido a existência de divergências entre os documentos, referidos no crédito documentário, e os que tinham sido enviados ao réu, prescindindo aquela do “certificado de circulação (EUR)”, sendo certo que, apenas, em 26 de Junho de 2003, o conseguiu fazer, por, então, lhe terem sido entregues os documentos necessários para o efeito, não obstante, no dia anterior, ter informado o réu que aceitava todas as demais divergências referentes ao processo de abertura de crédito.
Entretanto, em 14 e 16 de Julho de 2003, a autora comunicou ao réu que não aceitava a mercadoria enviada pela “FF”, por não ter sido possível proceder ao seu desalfandegamento, nos prazos previstos e, a 4 de Agosto seguinte, informa o réu que não deveria efectuar o pagamento da carta de crédito, o que o réu não acatou, porquanto, no dia 11 de Setembro de 2003, realizou o pagamento do crédito documentário, tendo, para o efeito, debitado a conta bancária da autora sociedade.
O beneficiário encontra-se na situação jurídica activa de, mediante a entrega dos documentos, exigir a satisfação do seu crédito, através da respectiva prestação do banco emitente, nos termos do estipulado pelo artigo 10º, das RUU.
Porém, o direito de que o beneficiário goza de poder exigir a satisfação do seu crédito e até ao termo do respectivo prazo, é, tão-só, exercitável contra a apresentação dos documentos exigidos que, assim, funcionam como condição suspensiva da exigibilidade da prestação (12).
Ora, tendo a autora sociedade, apenas, em 26 de Junho de 2003, conseguido desalfandegar a mercadoria recebida, por, só, então, lhe terem sido entregues os documentos necessários para o efeito, não foi respeitado o prazo da respectiva entrega, que coincidia com o prazo de validade do crédito documentário, que decorria até 10 de Junho de 2003, durante o qual, impreterivelmente, deveriam ser entregues à autora sociedade os documentos requeridos, indispensáveis para o efeito.
Assim sendo, de pouco importa relevar, com o muito respeito devido, a circunstância que, aliás, ficou demonstrada de, em 17 de Junho de 2003, terem sido recepcionados pelo réu os documentos, acompanhados por carta do beneficiário, datada de 13 de Junho de 2003, mostrando-se, meramente conclusiva, a afirmação do réu de que os mesmos tinham sido apresentados, em conformidade com os termos do crédito documentário e dentro do prazo de validade, para além de que faltavam a factura comercial e a carta de porte aéreo, de que a autora sociedade ainda não havia prescindido, o que só aconteceu, a 25 de Junho de 2003, e o certificado EUR 1, de que já havia abdicado, a 6 de Junho anterior.
Funcionando a entrega dos documentos enumerados na carta de crédito, pelo beneficiário ao banco emitente, como contrapartida e garantia do pagamento do crédito, assumindo, portanto, uma importância decisiva, ou não fosse aquele um negócio, sobre, e, apenas, sobre documentos, como já se referiu, com vista a que o ordenante possa levantar a mercadoria, objecto da compra e venda, deveria o réu ter impedido a utilização do crédito documentário, por seu intermédio, o que não aconteceu, contra as instruções expressas da autora sociedade, procedendo ao pagamento do crédito documentário, tendo, para o efeito, debitado a conta bancária desta.
E, sendo certo que as partes acordaram em que, no decurso do período de validade do crédito documentário, que decorria até 10 de Junho, qualquer delas não poderia proceder à sua anulação, salvo o acordo de todas as partes interessadas, semelhante limitação contratual já se não verificava, posteriormente, ou seja, em 14, 16 de Julho e 4 de Agosto de 2003, quando a autora comunicou ao réu que não aceitava a mercadoria e solicitou ao mesmo que não fosse dada ordem de pagamento da abertura de crédito.
Verificou-se, pois, uma causa legítima de revogação do crédito documentário que o réu deveria ter atendido.
II. DO MONTANTE DOS DANOS A RESSARCIR
Mas, não tendo considerado essa causa legítima de revogação do crédito documentário, antes retirando da conta bancária da autora sociedade o montante necessário ao seu pagamento, urge, portanto, que o réu o devolva, repondo a respectiva conta bancária da importância de que, ilicitamente, se apropriou, no total de €67.500,00, acrescido do montante das despesas bancárias relacionadas com o descoberto bancário, no quantitativo de €2343,97, e da importância de €35.252,38, que a autora despendeu com o transitário K…, no total de €105096,35, a quanto montam os danos de natureza patrimonial suportados por esta.
Efectivamente, a ilicitude da conduta do réu ao retirar a aludida quantia de €67.500,00 da conta bancária referida não é susceptível de ser afastada pela posterior abertura, acordada entre a autora sociedade e o réu, em 20 de Janeiro de 2004, a favor daquela, com vista à regularização das responsabilidades da mesma, de uma conta corrente caucionada, que se traduziu na concessão de um financiamento, sob a forma de desconto de livrança, aos segundo e terceiro autores, no valor de €150.000,00, suas posteriores reformas, despesas e juros de financiamento.
Ao efectuar o pagamento do crédito documentário, contra as instruções expressas da autora sociedade, debitando, para o efeito, a conta bancária desta, o réu violou as normas jurídicas consideradas, destinadas a proteger os interesses daquela, sendo-lhe o facto imputável, a título de culpa.
E, outrotanto se diga, até por maioria de razão, com a falta de fundamento legal do réu para, em consequência do não pagamento da livrança, comunicar aos Serviços de Centralização de Responsabilidade de Crédito do Banco de Portugal que os autores tinham responsabilidades de crédito em mora, compreendendo juros e capital não pagos, no prazo contratado.
Procedem, assim, em parte, as conclusões constantes das alegações dos autores.
CONCLUSÕES:
I – As Regras e Usos Uniformes sobre Crédito Documentário (RUU) constituem direito dispositivo para o qual as empresas remetem a regulação das suas relações contratuais plurilocalizadas, ao abrigo do princípio da liberdade contratual, enquanto expressão da denominada «lex mercatoria».
II - A natureza jurídica dos créditos documentários, face à ausência da sua previsão legal, no ordenamento jurídico português, só pode ser encontrada, através do regime jurídico definido pelas RUU.
III - O maior denominador possível de identificação entre o regime do crédito documentário e as regras do ordenamento jurídico nacional encontra-se no instituto do mandato, negócio jurídico que potencia o contrato-base de compra e venda celebrado entre o ordenante e o beneficiário.
IV – O direito de que o beneficiário goza de poder exigir a satisfação do crédito documentário, até ao termo do prazo de validade da respectiva carta de crédito, é, tão-só, exercitável contra a apresentação dos documentos exigidos com vista a que o ordenante possa levantar a mercadoria, objecto da compra e venda, que, assim, funcionam como condição suspensiva da exigibilidade da prestação.
V – Deveria, assim, o banco emitente ter impedido a utilização do crédito documentário, por seu intermédio, em especial, contra as instruções expressas do ordenante, não procedendo ao respectivo pagamento ao beneficiário, porquanto aquele goza da faculdade de não pagar ao banco emitente, por este ter efectuado o pagamento ao beneficiário, em incumprimento das regras relativas ao dever de exame dos documentos.
VI – O ordenante que comunica ao banco emitente que não aceita a mercadoria e solicita que não seja dada ordem de pagamento da abertura de crédito ao beneficiário, em virtude de os documentos exigidos que viabilizam o seu desalfandegamento não haverem sido recebidos, no período temporal da validade da carta de crédito, goza de uma causa legítima de revogação do crédito documentário, denominado como irrevogável.
DECISÃO:
Por tudo quanto exposto ficou, acordam os Juízes que constituem a 1ª secção cível do Supremo Tribunal de Justiça, em julgar a revista, parcialmente, procedente, e, em consequência, na parcial procedência da acção, condenam o réu BANCO DD, SA, actualmente, incorporado no BANCO EE, SA, a pagar aos autores AA – CONSULTORES ASSOCIADOS, LDA., BB e CC, a título de danos patrimoniais emergentes, a quantia de €105096,35, revogando, consequentemente, o acórdão recorrido, e, quanto ao mais, julgam a revista e a acção improcedentes, por não provadas.
Custas pelo réu e pelos autores, na proporção de metade.
Notifique.
Lisboa, 22 de Setembro de 2009
Hélder Roque (Relator)
Sebastião Povoas
Moreira Alves
________________________________
(1) STJ, de 10-11-2005, Revista nº 05B1538; e STJ, de 3-5-1974, Revista nº 064969, in www.dgsi.pt
(2) Lima Pinheiro, Direito do Comércio Internacional, Almedina, 2005, 179 e ss.
(3) Gonçalo Andrade e Castro, O Crédito Documentário Irrevogável, UCP, Porto, 1999, 103.
(4) Guzman Cosp (e outros), Aspectos Jurídicos das Operações Bancárias, 3ª edição, Barcelona, 1984, 201 e ss.
(5) Pedro Romano Martinez e Pedro Fuzeta da Ponte, Garantias de Cumprimento, 4ª edição, 2003, 239 e 240; Fernando Olavo, Abertura de Crédito Documentário, Lisboa, 1952, 95.
(6) Meneses Cordeiro, Manual de Direito Bancário, Almedina, Coimbra, 1998, 593.
(7) Meneses Cordeiro, Manual de Direito Bancário, Almedina, Coimbra, 1998, 546; Galvão Telles, Garantia Bancária Autónoma, 284, O Direito, nº 3/4, Jul/Dez/88, 1999, Lisboa, 284; para José Maria Pires, in Direito Bancário – As Operações Bancárias, 2º volume, Rei dos Livros, Lisboa, 290, “o crédito documentário é a operação pela qual um banco (emitente) agindo por mandato e instruções do seu cliente (ordenador), se compromete a regularizar a favor de terceiro (beneficiário), em troca dos documentos estipulados, o valor das mercadorias expedidas em virtude de um contrato de compra e venda”; para Irineu Strenger, in Direito do Comércio Internacional, Lex Mercatória, S.Paulo, 1996, 78, ”o crédito documentário é um mandato ou autorização formal…”.
(8) Com a redacção, a partir de 1-7-2007, que resulta das novas RUU CCI para Créditos Documentários, abreviadamente designadas por UCP 600.
(9) Meneses Cordeiro, Manual de Direito Bancário, Almedina, Coimbra, 1998, 545.
(10) Calvão da Silva, Crédito Documentário e Conhecimento de Embarque, in Estudos de Direito Comercial, Almedina, 1999, 71, 73 e 76.
(11) Carlos Costa Pina, Créditos Documentários, Coimbra Editora, 2000, 19 e 52.
(12) Carlos Costa Pina, Créditos Documentários, Coimbra Editora, 2000, 138.