Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
1/22.8KPRT-K.S1
Nº Convencional: 3.ª SECÇÃO
Relator: LOPES DA MOTA
Descritores: HABEAS CORPUS
PRAZO DA PRISÃO PREVENTIVA
ACUSAÇÃO
NULIDADE DE ACÓRDÃO
DATA
RETIFICAÇÃO DE ACÓRDÃO
ARGUIÇÃO DE NULIDADES
INCONSTITUCIONALIDADE
Data do Acordão: 07/04/2024
Votação: UNANIMIDADE COM * DEC VOT
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: HABEAS CORPUS
Decisão: IMPROCEDÊNCIA/ NÃO DECRETAMENTO
Sumário :
I. Proferida a sentença, fica imediatamente esgotado o poder jurisdicional do juiz quanto à matéria da causa, sendo lícito retificar erros materiais, suprir nulidades e reformar a sentença (artigo 613.º, n.ºs 1 e 2, do CPC, aplicável em “harmonia” com o processo penal, nos termos do artigo 4.º do CPP). Pode ainda ser interposto recurso para o Tribunal Constitucional de decisão que aplique norma cuja inconstitucionalidade haja sido suscitada anteriormente, durante o processo (artigo 70.º, n.º 1, al. b), da Lei n.º 28/82, de 15 de novembro), o que não sucede no processo desta providência de habeas corpus.

II. A apreciação da arguição de «inexistências, nulidades e inconstitucionalidades» do acórdão de 4.6.2024, que, por falta de fundamento, indeferiu o pedido de habeas corpus, julgando a petição manifestamente infundada, deve conter-se estritamente no âmbito dos poderes legalmente conferidos ao STJ pelos artigos 379.º (nulidades) e 380.º (retificações) do CPP.

III. A circunstância de, no acórdão, constar a data de 29.5.2024 e não a de 4.6.2024, que é a data em que se realizou a audiência e em que o acórdão foi proferido e assinado eletronicamente, é mero lapso sem qualquer relevância; nem irregularidade chega a ser, pois não está em desconformidade com a lei. O acórdão, elaborado no sistema de informação de suporte à atividade dos tribunais, que garante a sua datação, e assinado pelo relator e pelos outros juízes, nos termos definidos pela portaria prevista no n.º 2 do artigo 132.º do CPC, na redação do Decreto-Lei n.º 97/2019, de 26 de julho (Portaria n.º 280/2013, com as alterações posteriores), encontra-se devidamente datado e assinado pelos membros do tribunal que julgaram o pedido de habeas corpus, em conformidade com o disposto no n.º 1 do artigo 153.º do CPC aplicável ex vi artigo 4.º do CPP.

IV. Porém, para que não subsista qualquer dúvida determina-se, oficiosamente, nos termos do artigo 380.º, n.º 1, al. b), do CPP, que seja eliminada a expressão «Supremo Tribunal de Justiça, 29 de maio de 2024» e que, em seu lugar, passe a constar «Supremo Tribunal de Justiça, data supra certificada».

V. Não se verifica nulidade por omissão de pronúncia quanto ao fundamento do habeas corpus que o requerente invocou (al. c) do n.º 2 do artigo 222.º do CPP – manter-se a prisão para além dos prazos fixados por lei ou por decisão judicial); a invocada «anomalia processual» resultante da não notificação da acusação não constitui fundamento de habeas corpus da previsão deste preceito, pelo que, verificada esta falta de fundamento, nada mais tinha o tribunal de, quanto a ela, conhecer.

VI. Também não se verifica nulidade por excesso de pronúncia por se julgarem não verificados os fundamentos de ilegalidade da prisão constantes das alíneas a) e b) do mesmo preceito. Sendo questões de direito, de que pode sempre conhecer oficiosamente, deve este tribunal verificar esses fundamentos, para se certificar que não subsiste motivo que, embora não invocado, possa afetar a legalidade da prisão e impor a libertação do arguido, assim se assegurando uma tutela efetiva e compreensiva do direito à liberdade no âmbito do habeas corpus.

VII. A condenação na sanção prevista no artigo 223.º, n.º 6, do CPP decorre necessariamente do facto de o peticionante ter apresentado uma petição de habeas corpus sem qualquer fundamento, sendo manifesta a falta de fundamento que invocou, que é simples e claro: ter decorrido o prazo fixado pela lei para a prisão em que o peticionante se encontra.

Decisão Texto Integral:

Acordam na 3.ª Secção do Supremo Tribunal de Justiça:


I. Relatório

1. AA, arguido, requerente da providência de habeas corpus, argui «inexistências, nulidades e inconstitucionalidades» do acórdão de 4.6.2024, dizendo o seguinte:

«1.º Decorridos mais de 7 lustros sobre a entrada em vigor do atual Código de Processo Penal, e mais de 3 lustros sobre as últimas alterações legislativas em matéria de habeas corpus, o acórdão notificado invoca “jurisprudência constante” do Supremo Tribunal de Justiça, cristalizada ao longo de décadas.

2.º Parece pressuposto pacífico (que se pode ter por adquirido pela comunidade jurídica) que, no uso das competências próprias, e em matéria marcada pela “premente atualidade”, na decisão de um (qualquer) habeas corpus, do Supremo Tribunal de Justiça promane decisão que (i) cumpra os formalismos legais e (ii) conheça da substância da questão de legalidade concretamente suscitada; sem o que não se cumprem, (iii) nem o dever do tribunal conceder, (iv) nem o direito do cidadão aceder, à tutela jurisdicional efectiva.

3.º Dever e direito que, salvo o devido respeito, mereceriam ter sido contemplados em termos distintos daqueles que se mostram plasmados na decisão notificada.

Tanto mais que a sociedade da informação em que vivemos, os recursos materiais e as ferramentas de que a justiça dispõe, e em especial os meios robustos colocados ao serviço do titular da acção penal, impõem a criação de jurisprudência que vete condutas processuais como as seguidas pelo Ministério Público neste processo; condutas claramente orientadas para a exasperação dos prazos legalmente fixados como limite de vigência de medidas de coação restritivas dos direitos, liberdades e garantias.

Vejamos:

4.º O acórdão notificado tem data de 29 de maio de 2024, como resulta expressamente da decisão.

Na mesma data de 29 de maio de 2024 foi proferido despacho, com a referência 12415296, designando para audiência o dia 4 de junho de 2024, às 12h00.

A audiência teve lugar no dia 4 de junho de 2024, tendo sido cumpridos os ritos da exposição, pelo Exmº Relator, e do uso da palavra por Ministério Público e Defensor.

No acórdão de 29 de maio de 2024 foram apostas assinaturas electrónicas em 4 de junho de 2024.

Porém,

5.º A essência do direito de acesso à tutela jurisdicional efectiva não se esgota, nem se alcança, no cumprimento de ritos, sendo paradigmática desta insuficiência a tramitação deste concreto processo em que não foram observados, (i) nem todos os procedimentos legalmente obrigatórios, (ii) nem a sequência de atos, também legalmente obrigatória.

Identificando-se no acórdão de 29 de maio vícios de omissão de pronúncia e de excesso de pronúncia.

6.º Nos termos da lei do processo a audiência precede a deliberação, como resulta expressamente das disposições conjugadas dos artigos 223.º, n.º 3 e 424º, nº 1 do Código de Processo Penal.

7.º Ainda nos termos da lei do processo a deliberação precede a elaboração do acórdão, como resulta expressamente das disposições conjugadas dos artigos 223º, nºs 2 e 3, 424º, nº 1 e 425º, nº 1do Código de Processo Penal.

8.º O caso dos autos sucedeu o inverso, pois que o acórdão (ainda que assinado em 4 de junho) mostra-se elaborado na data anterior de 29 de maio.

9.º No caso dos autos a elaboração do acórdão precedeu a audiência.

No caso dos autos a elaboração do acórdão precedeu a deliberação.

10.º Da subversão do rito do processo decorre a inexorável preterição do contraditório legalmente consagrado.

E, por decorrência, identifica-se o sacrifício da qualidade da própria deliberação, posto que para a deliberação não contribuíram – não puderam lógica e cronológica contribuir - as razões de facto e de direito apresentadas em audiência pela defesa do Requerente.

11.º A deliberação/acórdão – ou pelo menos o projecto de deliberação/acórdão – da responsabilidade do Exmº Conselheiro Relator, data, sem margem para dúvida, de 29 de maio de 2024.

12.º Ainda que apenas “um projecto” de acórdão tenha sido elaborado a 29 de maio, e ainda que apenas em 4 de junho, os demais Exmºs Conselheiros subscritores tenham conhecido o “projecto” de acórdão, é facto que qualquer deliberação e acórdão ficaram irremediavelmente inquinados pela elaboração do acórdão em data anterior àquela em que teve lugar a realização da audiência contraditória e a deliberação.

E ficaram inquinados porque o acórdão de 29 de maio nasce órfão da discussão em audiência.

Nasce também órfão de deliberação após a audiência.

Audiência que veio a ser cumprida como mera formalidade, quando o acórdão que veio a ser assinado já se encontrava elaborado pelo Exmº Relator.

13.º Inexiste acórdão elaborado após a realização de audiência e após deliberação.

14.º E não se alegue que a datação do acórdão como sendo de 29 de maio resulta de lapso de escrita ou de processamento de texto sobre minuta anterior, porquanto a data constitui elemento essencial de qualquer decisão judicial.

15.º E nem se diga que a questão é semântica, pois que o teor do acórdão revela a desconsideração absoluta do que foi produzido em audiência.

Da leitura do acórdão de 29 de maio resulta que nenhuma menção, nenhuma referência, e nenhuma análise, é referida ao teor da discussão em audiência.

Ao acórdão não chegaram quaisquer “ecos” da alegação em audiência ou da própria deliberação.

Não surpreende, por isso, que ao acórdão de 29 de maio não tenha chegado um único dos argumentos desenvolvidos na audiência.

Não surpreende por isso que no acórdão de 29 de maio não tenha sequer identificado correctamente a concreta questão suscitada na petição de habeas corpus qual seja a de extrair consequências da opção do Ministério Público de, em 21 de maio, recusar efectuar a notificação da acusação alegadamente deduzida em 16 de maio.

Acusação (alegadamente de 16 de maio) a que, na data da recusa de notificação (21 de maio) e para lá do ano de vigência da prisão preventiva, faltava (como se demonstrou na audiência) “prova de vida”.

16.º O teor da decisão notificada “fala por si”, apresentando o acórdão de 29 de maio a seguinte estrutura, dividida em três partes e dezasseis pontos:

- I. Relatório, com os pontos 1. a 4., sendo o 1. com a transcrição integral da petição de habeas corpus, solicitada e disponibilizada em 28 de maio de 2024;

- II. Fundamentação com os pontos 5. a 15.

- III. Decisão, no ponto 16.

17.º Detalhando a “fundamentação” temos que:

- dos pontos 5. a 9. constam generalidades abstratamente aplicáveis a qualquer providência de habeas corpus, sem valia de fundamentação para o caso concreto;

- do ponto 10. consta uma limitadíssima seleção de factos processualmente relevantes, incluindo a data da notificação da acusação ao arguido (31 de maio de 2024), mas excluindo a referência à recusa da notificação em 21 de maio de 2024 da acusação alegadamente deduzida em 16 de maio de 2024; sendo que a recusa de notificação, e os efeitos produzidos por tal recusa, constituíam o cerne da petição de providência;

- do ponto 11. consta apenas a delimitação do objecto da providência: “verificar se ocorre excesso de prazo da prisão preventiva”;

- do ponto 12. consta a conclusão (conforme jurisprudência cristalizada) segundo a qual “Proferido o despacho de acusação a data a considerar para determinação do tempo máximo da prisão preventiva passou a ser a da decisão instrutória, se for requerida a instrução, ou a da condenação em 1ª instância, as quais devem ocorrer dentro de um ano e quatro meses ou de dois anos e seis meses, respectivamente, consoante o caso”;

Em abono desta “conclusão” consta do acórdão a seguinte parca fundamentação: “Mostra-se, assim, que a prisão preventiva não se mantém atualmente para além dos prazos fixados na lei. Pelo que não se verifica o motivo de ilegalidade previsto na alínea c) do nº 2 do artigo 222º do CPP.”

Mas “mostra-se” como e porquê?

Quod erat demonstrandum, eis ao que se resume a fundamentação do acórdão de 29 de maio.

Aliás, e prosseguindo na análise da fundamentação,

- do ponto 13. consta nova transcrição de passagens da petição de providência, sem consignação de qualquer juízo próprio do decisor que integre a fundamentação legalmente obrigatória e necessária;

- apenas no ponto 14. do acórdão constam os fundamentos do indeferimento do pedido de providência, a que dedicaremos análise desenvolvida nos números subsequentes;

- finalmente, do ponto 15. consta nova referência, geral, abstracta e inaplicável ao caso concreto, excluindo “qualquer dos motivos de ilegalidade da prisão preventiva previstos nas alíneas a) e b) do nº 2 do artigo 222º do CPP”, referência também ininteligível posto que nenhum desses motivos foi invocado na petição de habeas corpus.

18.º O ponto 14. da fundamentação apresenta o seguinte teor (transcrição, com negritos nossos):

14. Como o próprio requerente reconhece, a ilegalidade da prisão preventiva resultaria de ser ultrapassado o prazo de um ano para dedução da acusação, não para que se procedesse à notificação da acusação deduzida nesse prazo.

Pelo que, na lógica decorrente da sua própria argumentação, a não notificação nesse prazo não poderia produzir a ilegalidade da prisão, mas apenas, como igualmente reconhece, um pretenso «prolongamento» da prisão que, no caso, nunca seria violador de qualquer prazo – como se viu, deduzida a acusação no prazo de um ano, passam então a considerar-se os prazos de um ano e quatro meses ou de dois anos e seis meses, consoante seja ou não requerida instrução (supra, 12).

Tudo isto independentemente das razões que tenham motivado o alegado atraso da notificação, que, por irrelevantes, não podem nem devem ser conhecidas no âmbito desta providência de habeas corpus. Tanto mais que a notificação da acusação prejudica o requisito de atualidade da alegada ilegalidade prisão no momento da apreciação do pedido (supra, 9).

Assim sendo, se deve concluir pela manifesta falta de fundamento do pedido de habeas corpus.

19.º A fundamentação expendida no ponto 14. do acórdão surge, a vários títulos, viciada.

Viciada desde logo porque não respeita sequer a questão colocada pelo Requerente da providência e que é a de saber se ocorre extinção da medida de coação da prisão preventiva por efeito da recusa do Ministério Público em proceder à notificação da acusação alegadamente deduzida.

Viciada também porque qualifica como “atraso na notificação” a documentada “recusa de notificação”, confundindo uma inexistente omissão (causal de atraso), com uma documentada acção (de positiva recusa).

Viciada finalmente porque nega o próprio conhecimento da concreta questão colocada à apreciação deste Supremo Tribunal de Justiça, como resulta inequívoca e indesmentivelmente da formulação adotada:

“Tudo isto independentemente das razões que tenham motivado o alegado atraso da notificação, que, por irrelevantes, não podem nem devem ser conhecidas no âmbito desta providência de habeas corpus.”

20.º Do ponto único da fundamentação do acórdão de 29 de maio resulta que este Supremo Tribunal optou por não conhecer as razões pelas quais o Ministério Público recusou notificar ao requerente, e para lá do prazo máximo de duração da medida de prisão preventiva, a acusação alegadamente deduzida.

21.º Optando por não conhecer as razões pelas quais o Ministério Público recusou notificar a acusação (alegadamente deduzida) o Supremo Tribunal de Justiça deixou de poder conhecer, e não conheceu de facto, os concretos fundamentos invocados na providência.

22.º Tomando a opção de considerar irrelevantes as razões da recusa de notificação, deixando de as conhecer, como disse que “não podem, nem devem ser conhecidas”, o Supremo Tribunal de Justiça omitiu a pronúncia devida sobre a exata questão que lhe foi colocada como fundamento do pedido de habeas corpus.

23.º Vale a pena recordar os termos de algumas das questões suscitadas na petição de providência, também discutidas na audiência de 4 de junho, e a que não é feita nenhuma menção no acórdão de 29 de maio.

24.º Recordatório que, por simplicidade de exposição, se insere em nota de rodapé.

25.º Revistos alguns dos termos da discussão em audiência cabe perguntar:

- será mesmo que estas razões “não podem, nem devem ser conhecidas”, como não foram?

- será sequer que para este circunstancialismo de facto existe jurisprudência, constante ou avulsa, do Supremo Tribunal de Justiça que possa ser invocada, e na afirmativa qual?

- será por fim que as razões da atuação do Ministério Público, em clamoroso abuso de poder, “não podem, nem devem ser conhecidas” (maxime em face do disposto no art.º 242º n.º 1 al. b) CPP).

26.º Analisemos agora os termos do dispositivo do acórdão de 29 de maio de 2024 que apresenta o seguinte teor (por transcrição):

16. Pelo exposto, deliberando nos termos dos n.ºs 3, 4, alínea a), e 6 do artigo 223.º do Código de Processo Penal, acorda-se em indeferir o pedido de habeas corpus, por falta de fundamento, julgando-se a petição manifestamente infundada.

Custas pelo peticionante, fixando-se a taxa de justiça em 3 UC, nos termos do artigo 8.º, n.º 9, e da Tabela III do Regulamento das Custas Processuais.

Nos termos do n.º 6 do artigo 223.º do CPP condena-se o peticionante ao pagamento da soma de 10 UCs.

27.º Também o dispositivo enferma de vícios.

Se, como resulta da fundamentação de 14., o STJ decidiu que não pode, nem deve, tomar conhecimento das razões fundamentam o pedido, então:

- não lhe caberia indeferir, mas rejeitar o pedido;

- e, “na lógica decorrente da sua própria argumentação”, não conhecendo das razões, como não conheceu, vedado lhe ficava declarar a natureza manifestamente infundada do pedido que deixou por conhecer;

- sendo, por consequência, ilegal (sobre não fundamentada) a opção de condenação nos termos do artigo 223º, nº 6 do CPP; demais que não resulta esclarecido se a condenação resulta da inverificação dos motivos de prisão ilegal consagrados nas alíneas a) e b), se da inverificação do motivo consagrado na alínea c), se de todos os motivos indicados nesse número.

Acresce que,

28.º Em qualquer caso, o Supremo Tribunal de Justiça deveria ter-se abstido de aplicar a norma consagrada no artigo 223º, nº 6 do CPP.

Com efeito, e como resulta expresso no próprio acórdão, o direito à providência de habeas corpus está constitucionalmente consagrado “como direito fundamental contra o abuso de poder”.

E se assim está consagrado, não pode o legislador ordinário introduzir no ordenamento norma com aptidão para restringir, ou pelo menos condicionar, significativamente a liberdade, e por isso também a capacidade de acção de um qualquer requerente de habeas corpus.

E tal sucede quando se prevê a possibilidade de (e para mais numa providência expedita e urgente), entregar ao órgão decisor – e que para mais funciona em instância única – o poder de decidir pesada condenação pecuniária, lançando mão do conceito indefinido e impreciso “manifestamente infundado”.

29.º Manifestamente infundado “aquém ou além dos Pirineus”? “Na cidade ou nas serras”? No continente ou nas ilhas? Para o homem comum ou para o qualificado.

30.º Defende-se que a exemplo do consagrado para processo administrativo de intimação para proteção de direitos fundamentais, também a providência de “habeas corpus” constitucionalmente não pode admitir taxação, nem ordinária (taxa remuneratória), por aplicação do Regulamento das Custas Processuais, nem extraordinária (taxa sancionatória), por aplicação da previsão do nº 6 do artigo 223º do CPP.

A norma do artigo 223º, nº 6 do CPP contém em si a aptidão inibidora do exercício ou recurso ao direito fundamental de providência de habeas corpus, devendo ter-se por constitucionalmente excluída a possibilidade da sua aplicação.

31.º Aqui chegados importa subsumir ao direito os vícios que se enunciaram no decurso da presente exposição.

Assim,

32.º Ao decidir não conhecer da concreta causa invocada na petição da providência de habeas corpus, consubstanciada na recusa de notificação de acusação (alegadamente deduzida em momento anterior ao do termo do prazo de duração máxima da prisão preventiva) o acórdão do STJ notificado incorre em omissão de pronúncia quanto ao motivo de ilegalidade consagrado na indicada alínea al. c), do nº 2, do artigo 222º do CPP.

Da omissão de pronúncia emerge a nulidade da decisão que, no caso, só pode ser arguida perante o autor do ato.

Omissão de pronúncia que sempre, no caso concreto, importa a inexistência de decisão, vício mais grave que o da nulidade insanável, e que deve ser declarado.

33.º Ao decidir conhecer de causas não invocadas na petição de providência (als. a) e b) do nº 2 do artigo 222º do CPP) o acórdão do STJ incorreu em excesso de pronúncia.

34.º Ao decidir fazer uso da norma consagrada no artigo 223º, nº 6 do CPP, sancionando o Requerente da providência, o STJ aplica norma materialmente inconstitucional, por cerceadora de providência consagrada como direito fundamental, que se deveria ter abstido de aplicar.

35.º E, sem prescindir, ao não concretizar na decisão se a manifesta falta de fundamento da providência, que dá origem à condenação no pagamento de 10 UCs, emerge da inverificação dos motivos das alíneas a), b) ou c) do nº 2 do artigo 222º do CPP, o STJ profere decisão obscura, carecida de aclaração.

E, acima de tudo o mais,

36.º Ao proceder à elaboração do acórdão na data de 29 de maio de 2024, ie, seis dias antes da data designada para realização da audiência, que apenas teve lugar na data de 2024, verifica-se preterição da audiência e da deliberação que nos termos da lei constituem atos prévios à elaboração do acórdão.

37.º Inexiste acórdão do STJ elaborado após a audiência e a deliberação.

38.º A inexistência de acórdão elaborado em momento posterior à audiência e à deliberação, integra preterição absoluta e radical das disposições da lei do processo penal aplicáveis em matéria de habeas corpus, vício mais grave que qualquer nulidade sanável ou insanável tipificada.

39.º Ao dispensar a elaboração de acórdão em momento posterior ao da realização da audiência pública e contraditória e da subsequente reunião da secção para deliberação, o Supremo Tribunal de Justiça incorre na violação de todas as garantias de defesa, procedendo à aplicação de dimensão inconstitucional das normas dos artigos 223º, nº 3 e 424º, nº 1, e 425º, nº 1 do CPP.

40.º Designadamente por violação do princípio do acesso ao Direito, por violação da garantia de que se assegurarão em processo penal todos os direitos de defesa, por violação do princípio da tutela efectiva, bem como por violação do próprio Princípio do Estado de Direito, incluindo nas subdimensões da intangibilidade do direito de resistência, do império dos direitos fundamentais contra toda e qualquer acção questionável do poder do Estado, em outros diretamente aplicáveis.»

2. Pronunciando-se sobre o requerimento, em contraditório, o Senhor Procurador-Geral Adjunto é de parecer que este, na falta de indicação de norma em que se apoie, deve ser entendido como arguição de nulidades e pedido de correção e indeferido por não se verificar qualquer dos vícios apontados.

Diz, em síntese, que: a sentença (acórdão) existe, foi cumprido todo o rito processual, a data aposta a final é um mero lapso suprível nos termos do artigo 380.º do CPP, não está ferida de nulidade, não foi aplicada norma com dimensão inconstitucional nem a alegação de inconstitucionalidade é processualmente admissível nesta fase.

Cumpre apreciar e decidir.

II. Fundamentação

3. Proferida a sentença, fica imediatamente esgotado o poder jurisdicional do juiz quanto à matéria da causa, sendo lícito ao juiz retificar erros materiais, suprir nulidades e reformar a sentença (artigo 613.º, n.ºs 1 e 2, do CPC, aplicável em “harmonia” com o processo penal, nos termos do artigo 4.º do CPP).

O artigo 379.º do CPP rege sobre nulidades da sentença e o artigo 380.º sobre a correção da sentença.

Dispõe o n.º 1 do artigo 379.º:

«1 - É nula a sentença:

a) Que não contiver as menções referidas no n.º 2 e na alínea b) do n.º 3 do artigo 374.º ou, em processo sumário ou abreviado, não contiver a decisão condenatória ou absolutória ou as menções referidas nas alíneas a) a d) do n.º 1 do artigo 389.º-A e 391.º-F;

b) Que condenar por factos diversos dos descritos na acusação ou na pronúncia, se a houver, fora dos casos e das condições previstos nos artigos 358.º e 359.º;

c) Quando o tribunal deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento.»

E o n.º 1 do artigo 380.º:

«1 - O tribunal procede, oficiosamente ou a requerimento, à correcção da sentença quando:

a) Fora dos casos previstos no artigo anterior, não tiver sido observado ou não tiver sido integralmente observado o disposto no artigo 374.º;

b) A sentença contiver erro, lapso, obscuridade ou ambiguidade cuja eliminação não importe modificação essencial.»

Por sua vez, o n.º 1 do artigo 616.º do CPC estabelece que:

«1 - A parte pode requerer, no tribunal que proferiu a sentença, a sua reforma quanto a custas e multa (…)».

4. Pode ainda ser interposto recurso para o Tribunal Constitucional de decisão que aplique norma cuja inconstitucionalidade haja sido suscitada anteriormente, durante o processo (artigo 70.º, n.º 1, al. b), da Lei n.º 28/82, de 15 de novembro), o que não sucede no processo desta providência de habeas corpus.

5. Deverá, pois, a apreciação do que agora vem requerido conter-se estritamente no âmbito dos poderes legalmente conferidos ao Supremo Tribunal de Justiça pelos artigos 379.º e 380.º do CPP, anteriormente transcritos.

6. Da síntese que apresenta na parte final do requerimento (ponto 31 e seguintes) – em que «subsume ao direito os vícios» que enuncia –, extrai-se que o requerente:

a. Argui nulidade do acórdão por omissão de pronúncia [artigo 379.º, n.º 1, al. c), acrescenta-se] «quanto ao motivo de ilegalidade consagrado na indicada alínea al. c), do nº 2, do artigo 222º do CPP», que, a seu ver e sem que invoque norma que o justifique, «importa a inexistência de decisão, vício mais grave que o da nulidade insanável, e que deve ser declarado» (ponto 32)

b. Alega que o «o acórdão do STJ incorreu em excesso de pronúncia», «ao decidir conhecer de causas não invocadas na petição de providência (als. a) e b) do nº 2 do artigo 222º do CPP)», o que, também se acrescenta, implicaria nulidade do acórdão – artigo 379.º, n.º 1, al. c), do CPP (ponto 33);

c. Alega que ao «fazer uso da norma consagrada no artigo 223º, nº 6 do CPP, sancionando o Requerente da providência» o acórdão aplicou «norma materialmente inconstitucional, por cerceadora de providência consagrada como direito fundamental, que se deveria ter abstido de aplicar» (ponto 34);

d. Alega que «ao não concretizar na decisão se a manifesta falta de fundamento da providência, que dá origem à condenação no pagamento de 10 UCs , emerge da inverificação dos motivos das alíneas a), b) ou c) do nº 2 do artigo 222º do CPP, o STJ profere decisão obscura, carecida de aclaração» (ponto 35);

e. E, «acima de tudo o mais» a «inexistência de acórdão elaborado em momento posterior à audiência e à deliberação», pois que «Ao proceder à elaboração do acórdão na data de 29 de maio de 2024, ie, seis dias antes da data designada para realização da audiência, que apenas teve lugar na data de 2024, verifica-se preterição da audiência e da deliberação que nos termos da lei constituem atos prévios à elaboração do acórdão», com «violação de todas as garantias de defesa, procedendo à aplicação de dimensão inconstitucional das normas dos artigos 223º, nº 3 e 424º, nº 1, e 425º, nº 1 do CPP», «por violação do princípio do acesso ao Direito» e por violação do próprio Princípio do Estado de Direito» (tudo como especifica nos pontos 36 a 40).

i) Quanto à alegada «inexistência» do acórdão [6. (e)]

7. Começa-se por apreciar a questão da alegada «inexistência» do acórdão, suscetível de afetar as demais.

Sem invocar qualquer norma em que apoie a sua argumentação, a alegação do recorrente de que o acórdão não existe resulta da circunstância de, na parte final, dele constar a data de 29 de maio de 2024 e não a data de 6 de junho de 2024, que é a data em que se realizou a audiência e em que o acórdão foi proferido e assinado.

De facto, assim é.

O que resulta de mero lapso de escrita.

8. A audiência teve lugar no dia 4 de junho de 2024 (cfr. ata), constando do acórdão: «Convocada a secção criminal e notificados o Ministério Público e o defensor, realizou-se audiência, em conformidade com o disposto nos n.ºs 1, 2 e 3 do artigo 223.º do CPP. Terminada a audiência, a secção reuniu para deliberar (artigo 223.º, n.º 3, 2.ª parte, do CPP), fazendo-o nos termos que se seguem.» (ponto 4).

Nele se dizendo-se mais adiante (ponto 18) que «resulta esclarecido que: (…) (d) (…) A acusação foi notificada ao arguido no dia 31 de maio de 2024» – facto posterior a 29 de maio de 2024 de que só se teve conhecimento na manhã do dia 4 de junho de 2024, por comunicação então recebida, exibida e dada a conhecer pelo relator aos sujeitos processuais, incluindo os senhores advogados subscritores do requerimento agora em apreciação, presentes no ato, em audiência, quando da exposição da petição e da resposta a que se refere o n.º 3 do artigo 223.º do CPP («email» junto aos autos nessa data – ref. Citius 12430484).

9. Mas, sendo um mero lapso, é um lapso totalmente irrelevante.

É certo que, nos termos do artigo 374.º, n.º 3, al. e), do CPP, a sentença deve terminar pelo dispositivo que contém «A data e as assinaturas dos membros do tribunal».

Mas a omissão ou erro na data não tem o efeito radical que o requerente lhe pretende atribuir, de afetação da própria existência do acórdão.

Nem motivo de nulidade constitui (cfr. artigo 379.º, n.º 1, al. c), que, do dispositivo, apenas indica, como motivo de nulidade, a menção referida na alínea b) do n.º 3 do artigo 374.º, isto é, à «decisão condenatória ou absolutória»).

Seria, pois, uma mera irregularidade (artigo 118.º, n.º 2, do CPP), por não observância integral do disposto no artigo 374.º do CPP, sanável oficiosamente ou a requerimento (como dispõe o artigo 380.º, n.º 1, al. a), do CPP).

10. No caso, porém, nem irregularidade constitui, pois que o acórdão se encontra devidamente datado e assinado pelos membros do tribunal que julgaram o pedido de habeas corpus.

É o que resulta da circunstância de, nos termos do n.º 1 do artigo 153.º do Código de Processo Civil («CPC») aplicável ex vi artigo 4.º do CPP, o acórdão ter sido elaborado no sistema de informação de suporte à atividade dos tribunais, que garante a sua datação, e assinado pelo relator e pelos outros juízes, nos termos definidos pela portaria prevista no n.º 2 do artigo 132.º do mesmo diploma, na redação do Decreto-Lei n.º 97/2019, de 26 de julho (Portaria n.º 280/2013, com as alterações posteriores, sendo a última a introduzida pela Portaria n.º 86/2023, de 27 de março).

Como se pode verificar da informação constante do sistema de informação de suporte à atividade dos tribunais («Citius») relativa às assinaturas eletrónicas, estas são certificadas em conformidade com o exigido pelo Regulamento (UE) 910/2014 do Parlamento Europeu e do Conselho de 23 de julho de 2014 relativo à identificação eletrónica e aos serviços de confiança para as transações eletrónicas no mercado interno, que garante a genuinidade da assinatura e a data da prática do ato, correspondente à da assinatura.

11. A data do acórdão, inserida e garantida pelo sistema informático (artigo 153.º, n.º 1, do CPC, cit.), é, pois, a data em que este foi assinado pelo relator e pelos demais juízes que o subscrevem (adjuntos e presidente da secção criminal): o dia 4 de junho de 2024.

E, para que não restem dúvidas ao requerente de que essa é a data e que é posterior à audiência, que se iniciou pelas 12 horas do mesmo dia, as assinaturas foram nele apostas nesse dia 4 de junho entre as 16:36:11 horas (hora da 1.ª assinatura, do relator) e as 17:44:40 horas (hora da última assinatura, do presidente da secção), como se pode verificar pela consulta, no Citius, das propriedades de cada uma das assinaturas eletrónicas.

12. Nesta conformidade se conclui, nesta parte, que o requerimento apresentado carece em absoluto de fundamento, sendo, por conseguinte, indeferido.

13. Também nesta conformidade e para se evitar a subsistência de qualquer dúvida, determina-se, oficiosamente, nos termos do artigo 380.º, n.º 1, al. b), do CPP, que seja eliminada a expressão «Supremo Tribunal de Justiça, 29 de maio de 2024» e que, em seu lugar, passe a constar «Supremo Tribunal de Justiça, data supra certificada».

ii) Quanto aos vícios e nulidades arguidos [6. (a), (b), (c) e (d)]

14. A omissão de pronúncia, resultaria, em síntese, na alegação do requerente (desenvolvida nos pontos 15 a 27 do requerimento), de o acórdão ter «optado» («optou», diz, ponto 20) «por não conhecer as razões pelas quais o Ministério Público recusou notificar ao requerente, e para lá do prazo máximo de duração da medida de prisão preventiva, a acusação alegadamente deduzida», deixando, assim, «de poder conhecer, e não conheceu de facto, os concretos fundamentos invocados na providência», pelo que este Tribunal «omitiu a pronúncia devida sobre a exata questão que lhe foi colocada como fundamento do pedido de habeas corpus» (pontos 21 e 22).

15. Não se verifica, porém, qualquer nulidade por omissão de pronúncia quanto ao fundamento do habeas corpus, que o requerente invocou, previsto na al. c) do n.º 2 do artigo 222.º do CPP (manter-se a prisão para além dos prazos fixados por lei ou por decisão judicial).

Tal como não se verifica nulidade por excesso de pronúncia por se julgarem não verificados os fundamentos de ilegalidade da prisão constantes das alíneas a) e b) do mesmo preceito.

Os fundamentos do habeas corpus são estes e só estes (de enumeração taxativa, como se diz no acórdão).

Pelo que (também como se diz no acórdão), este Tribunal apenas tinha de verificar se, na data em que a petição é apreciada, (a) a prisão, em que o peticionante se encontrava, resultava de uma decisão judicial exequível e ordenada por entidade competente, (b) se a prisão se encontrava motivada por facto que a admite e (c) se estavam respeitados os respetivos limites de tempo fixados na lei ou em decisão judicial (ponto 9 do acórdão).

E foi isso que o acórdão fez, no âmbito dos poderes nesta matéria atribuídos ao Supremo Tribunal de Justiça.

16. Muito sinteticamente, repetindo o que já foi dito, extrai-se do acórdão que:

16.1. Quanto à petição, que no acórdão se transcreve:

a) O requerente fundamenta a petição de habeas corpus na alínea c) do n.º 2 do artigo 222.º do CPP (manter-se a prisão para além dos prazos fixados pela lei ou por decisão judicial.»

b) Diz o requerente (ponto 1) «conhecer e aceitar a jurisprudência deste Supremo Tribunal de Justiça segundo a qual resulta excluída a admissibilidade da providência de habeas corpus quando caiba interposição de recurso das decisões que aplicaram ou mantiveram a medida de coação de prisão preventiva.»

c) Diz o requerente (pontos 4 e 5) que «conhece o entendimento jurisprudencial segundo o qual o prazo de duração máxima da prisão preventiva se conta da data de aplicação da medida de coação e não da data da detenção, pelo que, no caso concreto o prazo máximo aplicável, fixado no artigo 215º, nº 3 do CPP, é de um ano, sem que tenha sido deduzida acusação» e que «Tal prazo completou-se no dia 19 de maio de 2024.»

d) Diz o requerente (ponto 6) que «conhece o entendimento jurisprudencial segundo o qual a aplicação dos prazos máximos de duração da prisão preventiva sem que tenha sido proferida decisão instrutória ou havido condenação em primeira instância dependem apenas da dedução da acusação e não da sua notificação» e que «não discute para efeitos do presente pedido de providência de habeas corpus este entendimento».

e) Diz o requerente (ponto 7) que «não discute para efeitos do presente pedido de providência de habeas corpus estes entendimentos jurisprudenciais todos desfavoráveis para a defesa.»

f) Conforme explicita na petição, em particular nos pontos 9, 14, 15 16, 17, 18, 24, 25, 26, 27, 28, 29, 30, 31, 32, 33, 34, 35, 36, 38 e 40, para que se remete, o requerente fundamenta o pedido de concessão de habeas corpus numa «situação de prisão anómala em 24 de maio de 2024» que, diz, «justifica e legitima a apresentação do presente pedido de providência», pois que, até ao dia 24 de maio de 2024, «não foi notificada ao Requerente a acusação dita deduzida no dia 16 de maio de 2024» (ponto 15), nem aos seus defensores (ponto 16), precisando que «Na recusa da notificação da acusação pelo Ministério Público deve considerar-se preenchida a previsão do artigo 222º, nº 2, al. c) do Código de Processo Penal» (ponto 43), o que constitui «Fundamento bastante para que o Requerente seja restituído à liberdade» (ponto 44).

16.2. Quanto aos fundamentos da decisão de indeferimento:

a) Resultou esclarecido que (ponto 10):

- O peticionante foi submetido a primeiro interrogatório de arguido detido, e, por despacho do juiz de instrução de 19 de maio de 2023, ficou sujeito à medida de prisão preventiva.

- Em 7 de setembro de 2023 foi judicialmente declarada a excecional complexidade do processo.

- Em 16 de maio de 2024 foi, no final do inquérito, deduzida acusação pelo Ministério Público, a qual ainda não tinha sido notificada ao arguido à data da apresentação do requerimento que originou a presente providência de habeas corpus.

- A acusação foi notificada ao arguido no dia 31 de maio de 2024.

b) Perante o alegado pelo requerente, que funda a sua pretensão na al. c) do n.º 2 do artigo 222.º do CPP, precisou-se que haveria que «verificar se ocorre excesso de prazo da prisão preventiva» (ponto 11).

c) E verificou-se e concluiu-se que (ponto 12):

- Tendo em conta que a prisão preventiva se iniciou com a sua aplicação, no dia 19 de maio de 2023, os crimes por que o peticionante se encontrava indiciado e que o processo havia sido declarado de espacial complexidade, a prisão preventiva extinguir-se-ia decorrido um ano sem que tivesse sido deduzida acusação ou seja, no dia 19 de maio de 2024.

- Alguns dias antes do termo do prazo, no dia 16 de maio de 2024, foi proferido despacho de acusação.

- Proferido o despacho de acusação, a data a considerar para determinação do tempo de duração máxima da prisão preventiva passou a ser a da decisão instrutória, no caso de ser requerida a instrução, ou a da condenação em 1.ª instância, as quais devem ocorrer dentro de um ano e quatro meses ou de dois anos e seis meses, respetivamente, consoante o caso (supra, ibidem).

- Pelo que, não estando ultrapassados estes prazos, a prisão não se mantinha «atualmente» – isto é, em 4 de junho de 2026, data do acórdão – para além dos prazos fixados por lei, não se verificando, por conseguinte, o motivo de ilegalidade previsto na alínea c) do n.º 2 do artigo 222.º do CPP.

d) Quanto aos fundamentos invocados pelo peticionante, considerou-se e concluiu-se designadamente que (pontos 13 e 14):

- «Como o próprio requerente reconhece, a ilegalidade da prisão preventiva resultaria de ser ultrapassado o prazo de um ano para dedução da acusação, não para que se procedesse à notificação da acusação deduzida nesse prazo

- «Pelo que, na lógica decorrente da sua própria argumentação, a não notificação nesse prazo não poderia produzir a ilegalidade da prisão, mas apenas, como igualmente reconhece, um pretenso «prolongamento» da prisão que, no caso, nunca seria violador de qualquer prazo», pois que, «como se viu, deduzida a acusação no prazo de um ano, passam então a considerar-se os prazos de um ano e quatro meses ou de dois anos e seis meses, consoante seja ou não requerida instrução», prazos que estavam a decorrer, não ultrapassados.

- As razões (invocadas) que «tenham motivado o alegado atraso da notificação», «por irrelevantes», «não podem nem devem ser conhecidas no âmbito desta providência de habeas corpus», «Tanto mais que a notificação da acusação prejudica o requisito de atualidade da alegada ilegalidade prisão no momento da apreciação do pedido».

17. Dito de outro modo, e lendo o acórdão como um todo, como deve ser lido, na consideração de todos os elementos de facto e de direito constantes da fundamentação, o tribunal disse que não podia nem devia conhecer, e não conheceu, em substância, das razões que o peticionante invocou como fundamento do habeas corpus – recorde-se: a «recusa da notificação da acusação pelo Ministério Público» (supra, 16.1) – simplesmente porque a recusa da notificação da acusação (proferida dentro do prazo), embora pudesse conduzir a um «prolongamento» da situação da prisão preventiva (como diz o peticionante), não constitui fundamento de habeas corpus.

O que, no caso, poderia constituir o fundamento invocado era o decurso do prazo de um ano, fixado na lei, sem que a acusação tivesse sido proferida – independentemente do motivo que o determinasse, incluindo o dito «prolongamento do prazo» que, todavia, porque sendo facto ocorrido após a acusação, nunca dilataria e faria ultrapassar o prazo de dedução desta, que lhe era anterior –, o que não aconteceu, disse-se no acórdão.

Para além disso, mesmo que se pudesse problematizar a relevância do tempo decorrido entre a data em que a acusação foi deduzida (16 de maio de 2024) e a data em que foi notificada (31 de maio de 2024) – a dita «situação anómala» que o requerente invocava –, essa situação já não ocorria na data em que a petição foi discutida, apreciada e decidida (4 de junho de 2024). Era um facto passado, fora do objeto da providência do habeas corpus em apreciação, não podendo ser conhecido neste processo.

À data da decisão a prisão não se mantinha para além do prazo fixado na lei, como se concluiu.

18. Em conclusão, não pode afirmar-se, como faz o requerente, em respeitável, mas infundada, discordância do decidido, que o tribunal não se pronunciou sobre uma questão que, no caso, devesse apreciar.

Pronunciou-se sobre o fundamento invocado, dizendo que não era fundamento incluído na previsão da al. c) do n.º 2 do artigo 222.º do CPP (excesso do prazo), afastando-o; e afastando-o nada mais tinha de dizer (artigo 379.º, n.º 1, al. c), do CPP: a nulidade respeita a questão que o tribunal “devesse apreciar”).

Pelo que não ocorre a invocada nulidade do acórdão.

19. Também não ocorre nulidade por excesso de pronúncia quanto à não verificação dos fundamentos das alíneas a) e b) do mesmo preceito.

Sendo questões de direito, de que pode sempre conhecer oficiosamente, independentemente da alegação dos sujeitos processuais, deve este tribunal verificar esses fundamentos, para que se possa certificar que não subsiste motivo que, embora não invocado, possa afetar a legalidade da prisão e impor a libertação do arguido, assim se assegurando uma tutela efetiva e compreensiva do direito à liberdade no âmbito do habeas corpus.

20. A condenação na sanção prevista no artigo 223.º, n.º 6, do CPP decorre necessariamente do facto de o peticionante ter apresentado uma petição de habeas corpus sem fundamento, sendo manifesta a falta de fundamento que invocou – o fundamento da al. c) do n.º 2 do artigo 222.º do CPP. Este fundamento é simples e claro: ter decorrido o prazo fixado pela lei para a prisão em que o peticionante se encontra.

No caso, como se diz no acórdão, sem necessidade de qualquer aclaração, o prazo terminava no dia 19 de maio sem que fosse proferida acusação. Sendo irrelevante, como o requerente reconhece na petição, a data da notificação dessa acusação proferida dentro do prazo, que então impediu a ocorrência do seu termo final, movido para o final da instrução ou para a condenação em 1.ª instância, consoante o caso (um ano e quatro meses ou de dois anos e seis meses depois do início da prisão, respetivamente, consoante o caso – ponto 12 do acórdão).

Sublinha-se que o requerente disse na petição que aceitava e não discutia este «entendimento jurisprudencial» (supra, 16.1). Mas invocou e quis discutir uma situação que considerou «anómala» – a alegada recusa de notificação da acusação –, sabendo e assumindo que esta «anomalia», relacionada com a prática de um ato (notificação da acusação) irrelevante para o estabelecimento do prazo, de acordo com a jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça, não era fundamento do pedido.

Assim sendo, impunha-se ao tribunal, aplicar, como aplicou, a sanção prevista no artigo 223.º, n.º 6 do CPP.

21. A alegação da inconstitucionalidade do n.º 6 do artigo 223.º do CPP é matéria que não pode nem deve ser conhecida nesta sede processual, que se limita ao conhecimento de nulidades ou à correção do acórdão (artigos 379.º e 380.º do CPP), como já se explicitou (supra, 4).

Não tendo sido arguida no processo, não tinha de ser conhecida no acórdão que o requerente agora pretende pôr em crise (artigo 70.º, n.º 1, al. b), da Lei n.º 28/82, cit); logo não pode ser apreciada em reclamação que sobre ele incide.

III. Decisão

22. Pelo exposto, acorda-se em indeferir o requerimento do peticionante de arguição de «inexistências, nulidades e inconstitucionalidades» do acórdão de 4 de junho de 2024.

Nos termos do artigo 380.º, n.º 1, al. b), do CPP, determina-se que, a final, seja eliminada a expressão «Supremo Tribunal de Justiça, 29 de maio de 2024» e que, em seu lugar, passe a constar «Supremo Tribunal de Justiça, data supra certificada».

Custas pelo requerente, fixando-se a taxa de justiça em 3 UC, nos termos do artigo 8.º, n.º 9, e da Tabela III do Regulamento das Custas Processuais.

Supremo Tribunal de Justiça, 4 de julho de 2024.

José Luís Lopes da Mota (Relator)

Ana Maria Barata de Brito (Adjunta)

Horácio Correia Pinto (Adjunto, com declaração de voto)

Nuno António Gonçalves (Presidente da Secção)


***


Declaração de voto:

O signatário vota o acórdão, com a seguinte manifestação:

A jurisprudência sobre esta matéria é a perfilhada no acórdão; contudo o STJ ao firmar-se na dedução da acusação tem como pressuposto que este ato processual desempenhe a sua eficácia processual – seja do conhecimento atempado dos normais destinatários.

Neste sentido, como forma de evitar aproveitamentos indesejáveis, sugere ao Senhor Presidente da Secção encetar diligências junto dos Conselhos respetivos a fim de apurar eventuais responsabilidades dos operadores judiciários envolvidos.

A recusa de notificação encerra um grave precedente, com sério prejuízo do arguido requerente em primeira linha.

Os pressupostos do habeas corpus não se verificam, sem prejuízo da observação supra referida.

Lisboa, 4 de julho de 2024

Horácio Correia Pinto.