Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
899/19.7T8VCT.G1.S1
Nº Convencional: 1.ª SECÇÃO
Relator: JORGE DIAS
Descritores: RESPONSABILIDADE EXTRACONTRATUAL
ACIDENTE DE VIAÇÃO
CÁLCULO DA INDEMNIZAÇÃO
DANO BIOLÓGICO
DANOS FUTUROS
EQUIDADE
INCAPACIDADE PERMANENTE ABSOLUTA PARA O TRABALHO HABITUAL
JUROS DE MORA
INICIO DA MORA
VENCIMENTO
DECISÃO
ATUALIZAÇÃO
DANOS PATRIMONIAIS
Data do Acordão: 02/15/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: CONCEDIDA PARCIALMENTE A REVISTA
Indicações Eventuais: TRANSITADO EM JULGADO
Sumário :
I - Na determinação do montante da justa indemnização destinada a ressarcir danos futuros, perante a constatação da impossibilidade de averiguar o valor concreto dos danos, tem a jurisprudência recorrido ao juízo de equidade a que se reporta o art. 566º, n.º 3, do Cód. Civil, a partir dos elementos de facto apurados, conjugados com diversos critérios de cálculo de natureza instrumental.

II - Em caso de julgamento segundo a equidade, devem os tribunais de recurso limitar a sua intervenção às hipóteses em que o tribunal recorrido afronte, manifestamente, aquelas regras.

III - Tendo ficado provado que os esforços suplementares exigíveis à autora, para desempenhar a profissão, seriam insuportáveis e reveladores de incapacidade total para o exercício da atividade que exercia (e que não mais exerceu), a determinação da indemnização nesta sede deve ser calculada com base no rendimento anual que a autora recebia, mesclada com critérios de equidade com função corretora.

IV - Quando a decisão (sentença ou acórdão) fixa o valor de uma indemnização com base na equidade, deve ser considerada uma decisão atualizadora para o efeito previsto no Acórdão de Uniformização de Jurisprudência n.º 4/2002.

V - Estando a indemnização atualizada à data da prolação da sentença, os juros de mora só se vencem a partir dessa data e não desde a citação.

Decisão Texto Integral:

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça, 1ª Secção Cível.



AA, BB, CC e DD, intentaram ação declarativa sob a forma de processo comum contra Liberty Seguros Compañia de Seguros Y Reaseguros, S.A., pedindo a condenação da ré no pagamento:

À autora AA:

Da quantia global de €1.827.706,99 (Conforme retificação do pedido inicial, entretanto requerida, e admitida pelo Tribunal de 1ª Instância) sendo:

a) € 900.000,00 a título de danos patrimoniais futuros, decorrentes do défice funcional permanente de que alegadamente ficou a padecer em virtude do acidente de viação em causa nos presentes autos;

b) € 99.964,00 a título de perdas salariais, computadas desde o dia do acidente até fevereiro de 2019;

c) € 482.090,00 a título de dano futuro no que concerne à aquisição de próteses;

d) € 44.401,28 a título de dano futuro atinente à necessidade de manutenção/revisões das próteses;

e) € 4.950,00 a título de dano futuro atinente a despesas com cremes hidratantes para a zona amputada;

f) € 115.145,10 a título de ajuda de terceira pessoa;

g) € 41.736,62 a título de dano futuro atinente a despesas com tratamentos de fisioterapia/terapia ocupacional;

h) € 25.905,48 a título de dano futuro atinente a despesas com acompanhamento em Psicologia/Psiquiatria;

i) € 13.514,51 de despesas de cabeleireiro;

j) € 100.000,00 a título de danos não patrimoniais.

B) Ao autor BB:

Da quantia de € 40.000,00 a título de danos não patrimoniais;

C) À autora CC:

Da quantia de € 7.500,00 a título de danos não patrimoniais;

D) Ao autor DD: da quantia de € 40.000,00, por danos patrimoniais futuros decorrentes do défice funcional permanente de que alegadamente ficou a padecer em decorrência do acidente de viação em causa nos presentes autos e por danos não patrimoniais.

Os autores formularam os aludidos pedidos a título de indemnização por danos patrimoniais e não patrimoniais sofridos em virtude de acidente de viação, ocorrido a … de abril de 2014, na E.N. 202, ao Km …, sito na freguesia de …, do concelho de …, em que intervieram os veículos ligeiros de passageiros com a matrícula ...-...-VX, conduzido pelo seu proprietário, o autor BB e ...-...-AQ, conduzido pelo proprietário DD, a cujo condutor atribuem a culpa exclusiva na produção do acidente, alegando ainda que o proprietário de tal veículo tinha transferido para a ré a responsabilidade civil por danos causados a terceiros.

A ré contestou, aceitando que o acidente ocorreu por culpa do veículo seguro, bem como o alegado na petição inicial quanto à dinâmica do acidente, impugnando, contudo, os factos relativos aos danos alegados e os valores indemnizatórios peticionados pelos autores, que reputa de muito exagerados.

Dispensada a realização da audiência prévia, foi fixado o valor da causa, selecionado o objeto do litígio, e foram enunciados os temas da prova, em termos que não mereceram reclamação das partes.

Admitidos os meios de prova, foi realizada a audiência final, no início da qual os autores - BB, CC e DD - e ré chegaram a acordo nos termos da transação exarada em ata e que foi homologada judicialmente, prosseguindo a ação para instrução e decisão referente às pretensões formuladas pela autora AA.

Após produção de prova foi proferida sentença julgando a ação parcialmente procedente, a qual se transcreve na parte dispositiva:

«(…)

Pelo exposto, julga-se a acção parcialmente procedente e, em consequência:

a) condena-se a Ré a pagar à A. a quantia de 1.337.614,65, sendo €1.237.614,65 a título de danos patrimoniais e €100.000,00 a título de danos não patrimoniais;

b) condena-se a Ré a pagar à A. os juros de mora à taxa de 4% (Portaria 291/03, de 8Abr): desde a citação até integral pagamento, sobre o montante relativo aos danos patrimoniais; desde hoje até integral pagamento, sobre o montante relativo aos danos não patrimoniais.

c) Custas a cargo de Autora e Ré na proporção do decaimento.

d) Registe e notifique».

Inconformada a ré recorreu de apelação, sendo deliberado e a final proferido acórdão com o seguinte dispositivo:

“Pelo exposto, acordam os Juízes deste Tribunal da Relação em julgar parcialmente procedente a apelação, em consequência do que:

a) Alteram a decisão recorrida - no que concerne ao montante indemnizatório referente ao dano patrimonial futuro decorrente do défice funcional permanente de que a autora ficou a padecer, condenando-se a ré a pagar a este título à autora o valor de € 460.000,00 em vez da quantia de € 500.000,00 atribuída na sentença recorrida;

b) Revogam a sentença recorrida, no segmento em que condenou a ré a pagar a autora o valor de €13.514,51 a título de despesas de cabeleireiro, e despesas futuras com acompanhamento em Psicologia, absolvendo-a nesta parte;

c) Em decorrência do enunciado em a) e b), alteram a alínea a) do dispositivo da sentença recorrida, reduzindo para € 585.016,70 a indemnização aí fixada a título de danos patrimoniais, e condenam a ré/recorrente a pagar à autora as quantias que se vierem a liquidar posteriormente, ao abrigo do disposto nos artigos 564.º, n.º 2, do CC e 609.º, n.º 2, do CPC, relativas a dano futuro no que concerne à aquisição de próteses biónicas (de substituição da mão direita) e custos com revisões e/ou reparações de tais próteses, dano futuro atinente a despesas com cremes hidratantes para a zona amputada, dano futuro atinente a despesas com tratamentos de fisioterapia/terapia ocupacional, - seja no membro amputado, seja no contralateral, assim como a uma consulta prévia de fisiatria, dano futuro atinente a despesas com acompanhamento em Psiquiatria, até aos montantes máximos que vêm peticionados a esse título.

d) Alteram a sentença recorrida relativamente à alínea b) do dispositivo, determinando que os juros de mora sobre a quantia de €460.00,00 fixada a título de indemnização pelo dano patrimonial futuro decorrente do défice funcional permanente da integridade físico-psíquica sejam calculados desde a data da decisão da 1.ª instância;

e) Decidem manter, em tudo o mais, o decidido na sentença recorrida, sendo os juros desde a citação até integral pagamento, sobre o montante relativo aos restantes danos patrimoniais já liquidados, e desde a data da decisão da 1.ª instância sobre o montante relativo aos danos não patrimoniais.

Custas da ação e da apelação pelas ré/apelante e autora/recorrida, na proporção dos respetivos decaimentos”.


*


Inconformada com o decidido pela Relação, a autora interpõe recurso de Revista para este STJ e, formula as seguintes conclusões:



O presente recurso prende-se com duas questões: - por um lado a quantificação do dano patrimonial futuro; por outro, a momento a partir do qual se inicia a contagem dos juros de mora no que respeita ao dano patrimonial futuro.



Quanto à primeira questão importa desde já afirmar que o Tribunal de 1ª Instância arbitrou, a esse título, a quantia de 500.000,00 € (quinhentos mil euros).



E com a extensa fundamentação constante do acórdão aqui em crise, o Tribunal a quo entendeu reduzir essa quantia para 460.000,00 €.

Mas fê-lo depois de ter aferido que a quantia devida à recorrente a esse título ascendia à quantia de 713.057,40 €.




A essa quantia assim apurada (que fez questão de referir que era superior àquela que foi encontrada pela Meritíssima Juíza de 1ª Instância) deduziu – e mal – 10% por ser recebida de uma só vez e para não gerar um enriquecimento injustificado por parte da aqui recorrente, tendo resultado dessa operação a quantia de 641.751,44 €.



E depois, pasme-se, por comparação com outras decisões e com recurso à equidade, arbitrou a quantia global de 460.000,00 €, isto é, 181.751,66 € a menos em relação à quantia que tinha encontrado!!!.



Ora, com o devido respeito, essa decisão do Tribunal a quo é tudo menos equitativa ou justa; parece-nos antes que, sempre com o devido respeito, se trata de uma decisão absolutamente arbitrária e não equitativa.



Que justificação se poderá encontrar para reduzir uma indemnização de 713.057,40 € para 460.000,00 €, isto é, que justificação será possível encontrar para uma redução – sem mais – de 253.057,40 €?

Por mais que a recorrente se esforce – e esforçou – não consegue encontrar no acórdão em crise no presente recurso a mais ténue explicação e/ou justificação para tamanha e tão desproporcional redução.

Nem mesmo à luz do critério errado que utilizou da aplicação de uma redução de 10% pelo recebimento por inteiro e de uma só vez daquela quantia.




Será que a recorrente teve alguma culpa na eclosão do acidente? Será que a sua situação económica perante a da lesante (no caso a recorrida) imporia essa redução?

Uma e outra questão só podem ter uma resposta clara e objectiva: - NÃO.




Por isso, resta ao Tribunal a quo a tão falada equidade; mas como se lê em variadíssimos acórdãos dos nossos Tribunais Superiores equidade não é arbitrariedade.

A este propósito, e tal como vem referido no corpo do acórdão aqui em crise (pág. 95), diz-nos um acórdão do S.T.J. de 12.04.2007, que a utilização de fórmulas matemáticas, ou tabelas financeiras só possa servir para determinar o minus indemnizatório, o qual terá, posteriormente, de ser corrigido com vários outros elementos, quer objectivos quer subjectivos, que possam conduzir a uma indemnização justa.


10ª


Poderá, assim, reputar-se esta indemnização, com uma redução de mais de 250.000,00 € ao valor encontrado com base nessas tabelas financeiras ou fórmulas matemáticas, de justa?

Com o devido respeito, seguramente que não.

Nem se encontra eco de tamanha redução em situações similares à da recorrente na Jurisprudência dos nossos Tribunais Superiores.


11ª


Houve, assim, uma errónea interpretação por parte do Tribunal a quo do conceito de equidade, pois que isso não pode, de todo em todo, significar reduzir-se em quase metade o valor de uma indemnização, sem mais, sob o chapéu da equidade.

12ª


E com o devido respeito, o Tribunal a quo parece ter parado no tempo, ao considerar, como o fez, que teria de se operar uma redução (que previu entre os 10% e os 33%) pelo simples facto de, recebida aquela quantia de uma só vez, poder a recorrente enriquecer à custa da recorrida com alguma aplicação financeira.

Que aplicação financeira será essa que permitiria à recorrente, ou a qualquer um de nós, receber juros que capitalizassem aquela quantia?

Desconhecerá o Tribunal a quo um facto público e notório – que nos entra casa adentro diariamente – que os juros estão, há já vários anos, em patamares negativos, isto é, que têm os depositantes quase de pagar para que as entidades financeiras e bancárias aceitem esses depósitos?

Parece-nos óbvio que essa circunstância será do desconhecimento do Tribunal a quo...


13ª


Mas independentemente desse facto público e notório ser ou não do seu conhecimento, deveria ser do seu conhecimento o que vai referido, entre muitos outros doutos acórdãos, a este propósito, nos seguintes acórdãos:

- Ac. do S.T.J. de 19.04.2018, no Proc. nº 196/11.6TCGMR.G2.S1 e

- Ac. do S.T.J. de 14.12.2017, no Proc. nº 1520/04.3TBPBL-A.C1.S1, cujo trecho se transcreveu no corpo desta alegações e aqui se não reproduz por uma questão de economia processual.


14ª


Pelo acabado de referir, parece-nos pacífico que nos tempos que correm não poderá ocorrer seja que redução seja em virtude dessa quantia ser recebida de uma só vez.

Bem pelo contrário. A constante e galopante inflacção impõe mesmo que essa redução não seja uma dupla penalização para o lesado, no caso a recorrente.


15ª


Por isso, e depois de terem encontrado os valores que encontraram, melhor teria andado o Tribunal a quo se tivesse deixado inalterada a decisão de 1ª Instância no que tange ao valor arbitrado a título de dano patrimonial futuro, ou seja, a quantia de 500.000,00 €, podendo reputá-la, quando muito, de pecar por defeito; jamais por excesso.

16ª


Permita-se-nos o desabafo para afirmar que o único local onde ainda vale a pena ter um deposito é nos Tribunais, onde vigora uma taxa de juro (ainda que de mora) de 4%...

17ª


Quanto aos juros moratórios do dano patrimonial futuro e o momento a partir do qual se deve iniciar a sua contagem, também o Tribunal a quo esteve mal ao ter alterado o que vinha doutamente decidido, o que fez até em flagrante violação do AUJ nº 4/2002, de 09.05.2002.

18ª


O Tribunal de 1ª Instância decidiu – e bem – que os juros moratórios devidos pelo dano patrimonial futuro se contavam desde a data da citação.

E entendeu fazê-lo desse modo porque, não obstante ter apelado à intervenção da equidade na fixação desse montante (500.000,00 €) – como se lhe impõe e é do conhecimento geral – não actualizou essa quantia à data da prolação da decisão.


19ª


Ora, como decorre cristalinamente desse AUJ os juros de mora quanto aos danos patrimoniais são devidos desde a data da decisão desde que essa seja actualizadora do capital a receber; resulta igualmente de forma clara e cristalina da decisão de 1ª Instância que a quantia encontrada para indemnizar a recorrente pelo dano patrimonial futuro não o foi de forma actualizada.

20ª


Logo, e com o devido respeito por opinião diversa, jamais o Tribunal a quo poderia ter afirmado o que não tinha sido referido na decisão de 1ª Instância.

E, desse modo, estava-lhe vedada, até por força do supra referido AUJ, qualquer alteração relativamente ao momento a partir do qual deveriam ser contados os juros de mora relativamente ao dano patrimonial futuro arbitrado.


21ª


Do mesmo modo jamais se poderá considerar que a quantia de 460.000,00 € que entendeu – e mal – arbitrar à recorrente o foi de modo actualizado.

Como se poderá entender que a quantia de 460.000,00 € é actualizada quando partiu da quantia de 713.057,40 €?

E teria o Tribunal a quo actualizado a quantia de 500.000,00 € para a quantia final de 460.000,00€?

Tanto quanto a recorrente julga saber, quando se está perante uma actualização a mesma há-de resultar numa melhoria, num acréscimo que justifique essa mesma actualização para mais.

Jamais uma redução, e do jaez do que consta do acórdão em recurso poderá reputar-se de actualização...!


22ª


Por isso, e a este propósito, melhor teria andado o Tribunal a quo se tivesse deixado intocada a decisão de 1ª Instância no que tange ao momento do início da contagem dos juros de mora relativos ao dano patrimonial futuro.

23ª


É que essa diferença de a recorrente ver os juros de mora que incidem sobre o seu dano patrimonial futuro serem contados desde a data da citação ou desde a data da prolação da decisão de 1ª Instância resulta em mais uma redução de mais de 50.000,00 €!!!

E a conta é fácil de se realizar:

a) - a recorrida foi citada para presente lide em 12.03.2019; aplicando-se a taxa de juro de 4%, até à presente data (29.10.2021) tinha a recorrente direito à quantia de 52.712,33 € a título de juros de mora sobre a quantia de 500.000,00 €;

b) - contando-se os juros de mora apenas da data da decisão proferida em 1ª Instância, que ocorreu no dia 21.01.2021, de juros de mora por aquela mesma quantia de 500.000,00 € iria a recorrente receber (contados até ao dia 29.10.2021) apenas a quantia de 15.397,26 €

Até por aqui, de forma singela, se percebe a insensatez da decisão do Tribunal a quo a propósito da contabilização dos juros de mora.


24ª


Assim, e para não ocorrer esta dupla penalização e por tudo quanto supra se deixou referido a este propósito, os juros de mora sobre a quantia de 500.000,00 € deverão ter o início da sua contagem à data da citação, tanto mais que se assim não suceder se viola de forma grosseira o disposto no AUJ supra referido.

Pelo exposto deverá o acórdão proferido e aqui em crise ser revogado e em sua substituição ser proferido douto acórdão que condene a recorrida ao pagamento da quantia de 500.000,00 € a título de dano patrimonial futuro, com juros a vencerem-se desde a data da citação até efectivo e integral pagamento.

Foram apresentadas contra-alegações pela ré, nas quais conclui:

1. Vem a Recorrente refutar o montante fixado pelo Tribunal recorrido, de € 460.000,00, a título de dano patrimonial futuro decorrente do défice funcional permanente de que ficou a padecer, defendendo que o mesmo se encontra subvalorizado.

2. Contrariamente ao que o Recorrente alega, sendo a perda da capacidade de ganho um dano presente, com repercussão no futuro, durante o período laboralmente activo do lesado, o Tribunal recorrido, à luz do que dispõe o artigo 566.º, n.º 3, do CPC, jamais poderia olvidar o recurso à equidade, tendo em conta que não se poderá antever a “evolução do mercado laboral, do nível remuneratório e do emprego, a evolução do custo de vida, os níveis dos preços, do juros, da inflação, a evolução tecnológica, bem como de outros elementos que influem na retribuição (como é o caso dos impostos)” – cfr. Ac. do STJ de 18-12-2012, Proc. n.º 1030/09.2TBFLG.G1.S1.

3. Mais, invoca a Recorrente que o Tribunal da Relação não se socorreu da equidade, mas antes de arbitrariedade, fazendo tábua rasa do recurso a tabelas financeiras.

4. Neste conspecto, entendeu o Tribunal da Relação, e bem, que “as tabelas por vezes utilizadas para apurar a indemnização têm um mero caráter orientador, não substituindo de modo algum a ponderação judicial com base na equidade, importa avaliar o método de cálculo do dano patrimonial futuro enunciado na decisão recorrida, como meio auxiliar ou indicativo, porquanto estamos perante a aferição de um dano de natureza patrimonial.” (negrito e sublinhado nosso)

5. Ao revogar a indemnização fixada nesta sede pelo Tribunal de 1.ª instância, cita-se o acórdão proferido nesta matéria “Trata-se, porém, de um valor que assenta, essencialmente, no cálculo aritmético de rendimentos específicos, e que, por isso, entendemos dever ser alterado, tendo por base o recurso à equidade, enquanto critério legalmente previsto, e considerando todos os elementos, quer objetivos quer subjetivos, que possam conduzir a uma indemnização justa e adequada.”. (negrito e sublinhado nosso)

6. O Tribunal da Relação fez uma criteriosa conjugação da prova e ponderação da matéria de facto dada como provada, nomeadamente as sequelas que a Recorrente ficou portadora e que lhe causaram um défice permanente da integridade físico-psíquica de 55 pontos, sendo as mesmas compatíveis com o exercício da atividade habitual, ainda que impliquem esforços suplementares.

7. No que respeita aos considerandos tecidos pela Relação em face das concretas lesões sofridas pela Recorrente, demonstrou-se não ser possível concluir, necessariamente, pela ocorrência, em definitivo, de uma perda efectiva de ganho futuro no âmbito do exercício da sua actividade profissional habitual, “mas antes que a lesada tem de fazer um maior e considerável esforço para obter o mesmo rendimento (tais sequelas implicam esforços suplementares).” – (negrito e sublinhado nosso)

8. Tal como se refere Ac. do STJ de 13-07-2017, Revista n.º 3214/11.4TBVIS.C1.S1, “Em caso de défice funcional permanente que não seja impeditivo de exercício da atividade profissional do lesado, mas que implique ainda assim um maior esforço no desempenho dessa atividade e/ou a supressão ou restrição de outras oportunidades profissionais ou de índole pessoal, no decurso do tempo de vida expetável, mesmo fora do quadro da sua profissão habitual, não se mostra viável, em regra, estabelecer o quantum indemnizatório com base em cálculo aritmético de rendimentos específicos, devendo recorrer-se à equidade dentro dos padrões delineados pela jurisprudência em função do tipo de gravidade das sequelas sofridas”.

9. Aqui chegados, contrariamente ao invocado pela Recorrente, torna-se mais do que evidente pela leitura do acórdão proferido que o Tribunal da Relação conjugou, além dos elementos objectivos (com base nas lesões advindas para a Recorrente), os padrões seguidos em decisões jurisprudenciais recentes, assentes em casos que merecem tratamento análogo, por forma a obter-se uma interpretação e aplicação uniformes do direito, à luz do que prevê os critérios da equidade (artigo 8.º n.º 3 do CC),

10. Sendo que, recorrendo ao método comparativo, elencou, para o efeito, diversas decisões deste Supremo Tribunal de Justiça que versam sobre o dano patrimonial futuro por reporte a situações análogas com a dos presentes autos, concluindo-se, pela análise das mesmas que o montante, a final, arbitrado nos presentes autos revela-se justo e equitativo.

11. Acresce que, vem a Recorrente invocar que a redução de 10% efectuada pelo Tribunal da Relação em virtude da antecipação do pagamento da totalidade do capital se afigura arbitrária, no entanto sem lhe assistir qualquer razão.

12. Será forçoso ponderar-se o imediato recebimento e disponibilidade de valores pecuniários que, normalmente, apenas seriam recebidos faseadamente ao longo de muitos anos, com a consequente possibilidade de rentabilização imediata em termos financeiros.

13. Veja-se o Acórdão do STJ de 8-05-2012, donde resulta que se deve ponderar o facto de a indemnização ser paga de uma só vez, o que permitirá ao seu beneficiário rentabilizá-la em termos financeiros; logo, haverá que considerar esses proveitos, introduzindo um desconto no valor achado, sob pena de se verificar um enriquecimento sem causa do lesado à custa alheia.

14. Na verdade, trata-se de subtrair o benefício respeitante ao recebimento antecipado de capital, de efectuar uma dedução correspondente à entrega imediata e integral do capital, sob pena de se verificar um enriquecimento sem causa do lesado à custa alheia.

15. Na quantificação do desconto em equação, a jurisprudência tem oscilado na consideração de uma redução entre os 10% e os 33% (cfr. acórdãos do STJ de 25/11/2009, proc. nº. 397/03.0GEBNV e da RC de 15/02/2011, proc. nº. 291/07.6TBLRA, ambos disponíveis em www.dgsi.pt).

16. Nestes termos, verifica-se que no que ao dano patrimonial futuro diz respeito, o Tribunal recorrido, atendeu às circunstâncias do caso concreto, sem deixar de atender aos padrões de indemnização adoptados em decisões jurisprudenciais recentes, e com base na equidade decidiu fixar a indemnização no montante de € 460.000,00 em vez dos € 500.000,00 fixados pela 1.ª instância, pelo que entende a Recorrida que o acórdão não merece qualquer censura, devendo manter-se inalterado nesta sede, improcedendo a pretensão da Recorrente.

17. Vem a Recorrente pôr em crise o acórdão proferido no que respeita à contagem de juros de mora, mormente, quanto ao momento da sua contagem, definindo que os mesmos serião calculados a partir da decisão de primeira instância, ao invés da citação, tal como havia sido decidido na sentença revogada.

18. Alicerça a sua argumentação com base na inexistência de actualização da indemnização a título de perda futura de ganho, porém conforme se exporá não merece qualquer crédito o explanado pela Recorrente.

19. Entendeu o Tribunal da Relação que “No caso, a indemnização pelos danos patrimoniais futuros decorrentes do défice funcional permanente da integridade físicopsíquica foi fixada com base na equidade, e de forma atualizada, critério que também resulta ter sido observado na sentença recorrida, razão pela qual os juros de mora da indemnização pelos danos patrimoniais futuros decorrentes da incapacidade ou défice funcional permanente devem contar-se desde a data da decisão recorrida.”.

20. A decisão de primeira instância decidiu que “Quanto aos juros de mora, entende-se que, tendo os danos não patrimoniais sido calculados segundo um juízo de equidade (conforme o art.496º-3 CC), os respectivos juros de mora se aplicam apenas a partir da data em que tais danos foram fixados, e não desde a citação como sucede em relação aos danos patrimoniais (…)”.

21. A decisão plasmada no Acórdão recorrido teve apoio no Acórdão de Uniformização de Jurisprudência n.º 4/2002, de 09-05-200256, donde «Sempre que a indemnização pecuniária por facto ilícito ou pelo risco tiver sido objecto de cálculo actualizado, nos termos do n.º 2 do artigo 566.º do Código Civil, vence juros de mora, por efeito do disposto nos artigos 805.º, n.º 3 (interpretado restritivamente), e 806.º, n.º 1, também do Código Civil, a partir da decisão actualizadora, e não a partir da citação».

22. Conforme resulta do mencionado acórdão, «nesta problemática, não há que distinguir entre danos não patrimoniais e danos patrimoniais e ainda entre as diversas espécies ou categorias de danos patrimoniais, uma vez que todos são indemnizáveis em dinheiro e susceptíveis, portanto, do cálculo actualizado constante do n.º 2 do artigo 566º».

23. O citado acórdão uniformizador assentou na ideia de uma decisão actualizadora da indemnização, por danos patrimoniais ou não patrimoniais, em razão da inflação no período compreendido entre ela e o momento do evento danoso.

24. Nestes termos, jamais poderá a aqui Recorrida conceber que os juros de mora sejam contabilizados a partir da citação tal como defende a Recorrente, devendo a sua pretensão improceder veemente.

25. Pelo que, deverá manter-se inalterado o acórdão proferido na parte em que determinou que os juros de mora, sobre a quantia de €460.00,00 fixada a título de indemnização pelo dano patrimonial futuro decorrente do défice funcional permanente da integridade físicopsíquica, sejam calculados desde a data da decisão da 1.ª instância.

Nestes termos e nos demais de direito, deve ser negado provimento ao recurso da Autora Recorrente a que ora se responde, e em consequência, ser a Recorrida absolvida dos pedidos ora formulados pela Recorrente.


*


O recurso foi admitido.

Cumpre apreciar e decidir.


*


Nas Instâncias foram julgados como provados e não provados, os seguintes factos:

1. Factos provados:

1.1. Cerca das 17h15 do dia … de Abril de 2014, ocorreu um acidente de viação na E.N. 202, ao Km …, sito na freguesia de …, do concelho de …, em que intervieram os veículos ligeiros de passageiros:

a) ...-...-VX, conduzido pelo seu proprietário, o demandante BB e

b) ...-...-AQ, conduzido pelo proprietário DD.

1.2. O veículo ...-...-AQ circulava pela referida E.N. no sentido … → …, pela metade direita da faixa de rodagem, atento o referido sentido e com uma velocidade de cerca de 100 Kms/hora, sendo que circulava em localidade com casas de habitação e de comércio de um e do outro lado da via.

1.3. Desenhando-se o local em recta, e circulando nas circunstâncias supra descritas, de um modo repentino e inopinado, o veículo AQ invadiu a metade esquerda da faixa de rodagem, atento o seu sentido de marcha, onde acabou por embater violentamente na parte lateral esquerda do veículo ...-...-VX, conduzido pelo demandante Manuel.

1.4. O veículo ...-...-VX circulava em sentido contrário, ou seja, … → …, pela metade direita da faixa de rodagem, atento o sentido … → …, com uma velocidade de cerca de 50 Kms/hora.

1.5. Assim, quando o condutor do veículo ...-...-VX se apercebeu da manobra repentina e inopinada do veículo ...-...-AQ de invasão da sua faixa de rodagem, atenta a proximidade a que circulavam os veículos, para evitar a colisão frontal, encostou à sua direita o mais que pôde, ou seja, aos railes de protecção lateral (do lado direito, conforme o sentido … → …), com o que, ainda assim, não conseguiu evitar ser embatido na parte lateral esquerda do veículo ...-...-VX pela parte da frente do lado esquerdo do veículo ...-...-AQ.

1.6. A demandante AA era passageira do veículo ...-...-VX, transportada gratuitamente.

1.7. Em consequência do embate a demandante sofreu: - amputação transradial direita, pelo terço distal do antebraço direito e - fractura dos ossos do antebraço esquerdo.

1.8. No local do acidente foi assistida e estabilizada por uma equipa do INEM, após o que foi transportada para o S.U. do Hospital de …, …, onde, à entrada, apresentava amputação transradial direita, pelo terço distal do antebraço direito, com fractura dos ossos do antebraço esquerdo.

1.9. Ficou ali internada até ao dia 05.06.2014, tendo sido submetida às seguintes cirurgias:

a) - no dia 27.04.2014 a amputação a nível do antebraço direito, com osteotomia do rádio e do cúbito e redução e fixação com placa ao nível do cúbito esquerdo;

b) - no dia 06.05.2014 fez revisão do coto de amputação e operações de limpeza;

c) - no dia 13.05.2014 fez desbridamento do coto e remodelação com plastia, com enxerto da face medial da coxa direita e

d) - no dia 02.06.2014 fez nova revisão do coto.

1.10. No dia 05.06.2014 teve alta hospitalar, recolhendo a sua casa, onde se manteve em repouso absoluto - mas com indicação de realizar penso diário -, pois não estava capaz de fazer o que quer que fosse, já que tinha o membro superior direito amputado e no membro superior esquerdo mantinha uma tala gessada.

1.11. Em finais de Setembro de 2014 inicia Terapia Ocupacional para transferência de lateralidade, no Hospital de ….

1.12. No dia 11.11.2014, por ter surgido uma intercorrência infecciosa, a demandante AA foi novamente internada naquele Hospital de …, … (doc.4), onde efectuou reconstrução e nova plastia da área de amputação.

1.13. Permaneceu ali internada até ao dia 12.11.2014, altura em que teve alta hospitalar, recolhendo a sua casa, onde se manteve em repouso.

1.14. Em finais de Novembro de 2014 inicia os tratamentos de fisioterapia e terapia ocupacional.

1.15. No dia 24.02.2015 foi novamente internada no Hospital de … - …, por suspeita de pseudartrose, tendo sido nessa ocasião efectuada extracção do material de osteossíntese dos ossos do antebraço esquerdo (doc.5)

1.16. Esteve ali internada durante 2 dias, após o que teve alta hospitalar, recolhendo a sua casa, onde permaneceu em repouso.

1.17. A partir de 28.04.2015, face à evolução insatisfatória do seu estado clínico e à manutenção de queixas dolorosas intensas, que não cediam à medicação (doc.6) passou a ser seguida pelo Sr. Prof. EE, em …, para tratamento da pseudartrose do antebraço esquerdo, num contexto de amputação traumática do terço proximal do antebraço direito, sendo, no dia 19.06.2015, submetida a nova intervenção cirúrgica para regularização da referida pseudartrose e exérese de neuromas do coto de amputação à direita (doc.7).

1.18. Após esta intervenção cirúrgica a demandante iniciou o processo de adaptação a prótese mioeléctrica, com terapia ocupacional e fisioterapia na Santa Casa da Misericórdia de … .

1.19. A demandante foi seguida pelas Consultas Externas de Ortopedia, MFR e Cirurgia Plástica do Hospital de …, …, até finais do ano de 2014, tendo, a partir dessa data, passado a ser seguida pelas mesmas especialidades no Hospital de …, a que acresce a consulta da Dor, por ser o da sua área de residência.

1.20. Entretanto foi sendo também acompanhada em Consulta Externa de MFR e Ortopedia pelos Serviços Clínicos a cargo da demandada; assim como foi mantendo - como ainda mantém - o acompanhamento de Psicoterapia e Psiquiatria, pois desenvolveu um quadro de grande ansiedade, revolta, baixa auto-estima, labilidade emocional, dificuldade em aceitar a sua imagem corporal.

1.21. Em consequência do acidente de viação, a A. ficou a padecer das seguintes sequelas: ao nível do abdómen: cicatriz linear de 10 centímetros ao longo da crista ilíaca anterior direita; ao nível do membro superior direito amputação do membro pelo terço superior do antebraço; cicatriz linear no coto; cicatriz linear curvilínea de 10 cms no coto; ao nível do membro superior esquerdo: cicatriz linear de treze centímetros nos terços superior e médio, e posterior do antebraço; cicatriz linear de 10 cms nos terços superior e médio e posterior; ao nível do membro inferior direito: área de descoloração da pele de 10 por 9 cms no terço superior e medial da coxa.

1.22. Apresenta como queixas a nível funcional apresenta ao nível da manipulação e preensão: dificuldade em pegar e transportar objectos pesados e/ou volumoso com a mão esquerda; ansiedade, recordando o acidente com bastante frequência, vivenciando todos os acontecimentos, frequenta consultas de psiquiatria, fazendo medicação frequente; fenómeno doloroso no membro superior direito com sensação de membro fantasma.

1.23. Ao nível situacional: dificuldade em pegar e transportar objectos pesados e /ou volumosos; dificuldade nas actividades da vida diária (vestir/despir, lavar-se pentear-se, cortar/arranjar carne / peixe.

1.24. Em consequência das sequelas de que ficou portadora, a A. ficou a padecer de um défice permanente da integridade físico-psíquica de 55 pontos, compatíveis com o exercício da actividade habitual, mas implicam esforços suplementares.

1.25. Ficou a padecer de um dano estético permanente de grau 6, numa escala de sete graus de gravidade crescente

1.26. Ficou a padecer de uma repercussão permanente nas actividades desportivas e de lazer no grau 3 numa escala de 7 graus de gravidade crescente.

1.27. Ficou com as seguintes dependências permanentes de ajuda: medicação analgésica e psiquiátrica; tratamento de medicina física de reabilitação; e de prótese antebraquial direita.

1.28. A A. obteve a consolidação médico-legal das lesões em 13/10/2016.

1.29. Sofreu um défice funcional temporário total de 90 dias; parcial de 810 dias; e uma repercussão temporária na actividade profissional total de 900 dias.

1.30. Sofreu de um quantum doloris de grau 6 numa escala de sete graus de gravidade crescente.

1.31. Para além das ajudas descritas supras em 1.28., a A. necessita: uso permanente de prótese mioeléctrica; uso permanente de creme hidratante na zona amputada; ajuda de terceira pessoa para apoio à própria A. para alguma higiene pessoal (quando o marido e/ou filhos não estão disponíveis) ajuda a vestir e/ou despir determinadas peças de roupa; calçar, cerca de 4 horas por dia.

1.32. Por outro lado, em consequência das sequelas de ficou a padecer, a A. passou a necessitar de contratar pessoa terceira para executar tarefas da lida diária da casa: limpeza, confecção de refeições.

1.33. As lesões sofridas provocaram à demandante um enorme sofrimento e fortíssimas dores, tanto no momento do acidente, como no decurso do demorado tratamento.

1.34. E as graves sequelas de que ficou a padecer definitivamente continuam a provocar-lhe dores físicas, incómodo, mal estar e angústia, que a vão acompanhar até ao fim dos seus dias e que se exacerbam com as mudanças de tempo.

1.35. Na altura do acidente tinha 44 anos de idade e era saudável, fisicamente bem constituída, dinâmica, alegre, trabalhadora, social, sociável e divertida.

1.36. Em consequência do acidente e das sequelas perdeu a alegria de viver, não conseguindo sequer pegar no seu filho … (de 3 anos à data do acidente) ao colo, vesti-lo, dar-lhe banho, vivendo em constante tristeza e incapaz de se adaptar à sua nova realidade e imagem.

1.37. E porque a sua actividade profissional consistia, essencialmente, em lidar com terceiros, onde é necessária determinada imagem, a demandante, por força da amputação que sofreu, perdeu essa imagem, sentindo de forma particularmente brutal as sequelas de que ficou afectada permanentemente, sobretudo a amputação do antebraço direito, pois, não tendo a mão direita, apercebe-se do incómodo que os outros sentem ao cumprimentá-la, pois ou estranham utilizar uma prótese (quando não está em reparação) e cumprimentá-la com o aperto da prótese, ou estranham a demandante não ter a mão direita e hesitam em cumprimentá-la, o que, numa situação, ou noutra, lhe causa profundo incómodo, desgosto e amargura.

1.38. E toda a lide da casa, ou seja, aspirar, limpar o pó, cozinhar, fazer as camas, passar a ferro, dobrar a roupa, ou a tarefa mais simples desse dia-a-dia tornam-se numa montanha quase intransponível para a demandante AA, tanto mais que é nessas pequenas tarefas da lide da casa que a demandante ganha cada vez mais consciência da sua dependência para o que quer que seja.

1.39. A demandante AA à data do acidente exercia funções de directora de uma agência de recursos humanos (ADECO), com um rendimento mensal de 1.940,00 €, 14 vezes por ano, acrescido do subsídio mensal de alimentação de 143,00 €, 11 vezes por ano e do prémio anual de produtividade de 7.280,00 €.

1.40. A tudo isto, acrescia também, viatura de serviço, telemóvel e computador portátil, inteiramente a cargo da entidade patronal (doc. 14).

1.41. Competia-lhe, assim, no exercício das suas funções de directora apresentar aos seus clientes, a solicitação destes, uma “carteira” de trabalhadores, assim como recrutar pessoal, procurar novos clientes, com diversas reuniões semanais, onde tudo era apontado à mão, sendo a demandante dextra.

1.42. Internamente na empresa que dirigia, cabia-lhe também proceder à avaliação dos seus colaboradores, bem como fazer cobranças dos serviços prestados pela empresa e gestão dos equipamentos.

1.43. Assim, e em consequência do acidente (das lesões sofridas, dos tratamentos a que teve de se submeter e das sequelas de que ficou a padecer definitivamente) a demandante nunca mais trabalhou.

1.44. A demandante recebeu, a título de adiantamento da demandada, a quantia de 35.000,00 €, e da segurança social a quantia de €40.288,34.

1.45. Por outro lado, e para agravar ainda mais o estado de saúde da demandante AA, sofreu em 5.7.2017 um AVC, qual lhe trouxe sequelas nomeadamente a nível cognitivo, com um discurso, por vezes, incompleto e incoerente e com lapsos de memória.

1.46. A prótese biónica que a demandante vai utilizando, é mais o tempo que a demandante está privada do seu uso para reparações e/ou manutenções, do que aquele que a utiliza.

1.47. Com efeito, essa prótese biónica (de substituição da mão direita) necessita de um período de adaptação, por “trabalhar” com impulsos nervosos, o que carece de treino específico em unidade especializada, ao que se deverá seguir uma utilização diária pela demandante para sedimentação desse treino.

1.48. Todavia, e considerando que a demandante utiliza a prótese no período de alguns meses e depois a mesma tem de ser enviada para … ou para a … para revisões e/ou reparações, a demandante acaba por estar privada do seu uso durante 4 meses - ao qual é totalmente alheia -, ou seja, em 12 meses poucos são os que a demandante utiliza essa prótese, o que é manifestamente insuficiente para que se possa adaptar à sua utilização diária, tanto mais que apenas dispõe de uma prótese, passando, por isso, longos períodos sem qualquer prótese, a não ser a estética.

1.49. Cada prótese tem um custo unitário médio de €50.000,00, com duração não concretamente apurada, dispondo de um prazo de garantia de 3 anos ou de 5 anos, este último opcional (se for contratada essa extensão de garantia por mais 2 anos) para componentes mecânicos, acompanhamento e revisões incluídas no preço da prótese, estando sujeita a revisões anuais obrigatórias durante os 3 primeiros anos e incluídas no preço da prótese e as restantes opcionais, importando a manutenção de cada prótese em valor não concretamente apurado.

1.50. A demandante vai ter de utilizar cremes hidratantes, para toda a vida, para hidratar a zona amputada, nos quais terá de despender quantia não apurada.

1.51. A demandante, por força das graves sequelas de que ficou a padecer em consequência do acidente dos autos, ficou a necessitar do auxílio de uma terceira pessoa, o que deverá ocorrer à razão de 20 horas semanais, tanto mais que necessita desse auxílio de terceira pessoa quer para alguma da sua higiene pessoal, quer para a lide da casa (aspirar, limpar o pó, fazer as camas, confeccionar as refeições, passar a ferro, etc…), a quem paga a quantia mensal de 400,00 €, 12 vezes por ano.

1.52. Até agora foi a demandada quem suportou esses custos.

1.53. A autora necessita de se submeter a sessões de fisioterapia/terapia ocupacional, com periodicidade e valor por sessão não concretamente apurados, - seja no membro amputado, seja no contralateral -, assim como a uma consulta prévia de fisiatria, de valor não concretamente apurado.

1.54. A autora é acompanhada em consultas médicas na especialidade de Psiquiatria, com periodicidade e valor por consulta não concretamente apurados.

1.55. Por contrato de seguro titulado pela apólice nº 0131…0 a Ré assumiu a responsabilidade civil emergente da circulação do veículo ligeiro de passageiros ...-...-AQ que no momento da colisão era conduzido pelo respetivo proprietário, DD, único causador do acidente.

2. Factos não provados:

2.1. Entretanto foi descoberta patologia ao nível da coifa dos rotadores do ombro direito, que poderá requerer, no futuro, abordagem cirúrgica, tendo também as queixas contralaterais se tornado patentes, por uso excessivo daquele membro (doc.8).

2.2. A demandante necessita de ser submetida a mais uma intervenção cirúrgica – acromioplastia de Neer e sutura da coifa dos rotadores à direita, cirurgia que chegou a estar programada para Março de 2017 mas que a demandante por não estar física e mentalmente preparada para a mesma, acabou por não realizar.

2.3. A idade da A., o meio em que se insere e o actual estado do mercado de trabalho em que nem para as pessoas válidas existe emprego, não lhe permitem encontrar uma ocupação remunerada compatível com a capacidade restante.

2.4. A autora tem de se submeter mensalmente a 20 sessões de fisioterapia/terapia ocupacional.

2.5. As sessões de fisioterapia custam 130,00 e a consulta ronda 15,00 €.

2.6. Que, a autora gaste anualmente a quantia de € 150,00 com cremes hidratantes para hidratar a zona amputada.

2.7. Que, a autora seja acompanhada em consultas de Psicologia;

2.8. Que, a autora seja acompanhada uma vez por mês em consultas de Psiquiatria, no que gasta a quantia mensal de €90,00, 12 meses por ano.

2.9. E até na sua higiene pessoal a demandante tem dificuldade, pois, não sendo sequer habitual antes do acidente dos autos deslocar-se ao cabeleireiro, passou a ter de o fazer duas vezes por semana uma vez que não consegue lavar o cabelo em casa sem ajuda de terceiros;

3.0. E, por força das sequelas de que ficou a padecer definitivamente, a demandante passou a frequentar duas vezes por semana a cabeleireira, para lavar e secar o cabelo, o que não consegue fazer em sua casa, gastando, por mês, a quantia de 40,00 € (5,00 € x 8), 12 vezes por ano.

3.1. Que, até à data da propositura da presente ação, a autora já gastou a quantia de 2.000,00 € em cabeleireiro, para lavar e secar o cabelo.

3.2. Que cada prótese tem um custo unitário de €68.870,00, com uma duração média de 5 anos, coincidente com o período máximo de garantia, bem como que as manutenções/revisões entre os 1.º e 2.º anos e 3.º e 5.º anos tenham os seguintes custos: - entre o 1.º e 2.º anos: - sensor de pressão e recalibração dos motores e engrenagens, com um custo total de € 1.652,00; - entre o 3.º e 5.º anos: - troca do sistema de baterias, recalibração de motores e engrenagens e sensor de pressão, com um custo total de € 4.332,00.


*


Conhecendo:

Sendo o objeto do recurso delimitado pelas conclusões das alegações – artigo 635º do Código de Processo Civil – as questões a decidir respeitam:

- Quantificação do dano patrimonial futuro, entendendo que o acórdão recorrido subvalorizou a quantificação da perda futura de ganho/dano biológico;

- Momento a partir do qual são devidos os juros moratórios respeitantes ao dano patrimonial futuro.


*


Dano biológico e dano patrimonial futuro:

Nos termos do art. 562º do Cód. Civil, “quem estiver obrigado a reparar um dano deve reconstituir a situação que existiria, se não se tivesse verificado o evento que obriga à reparação”.

Na determinação do montante da justa indemnização destinada a ressarcir danos futuros, perante a constatação da impossibilidade de averiguar o valor concreto dos danos, tem a jurisprudência recorrido ao juízo de equidade a que se reporta o art. 566º, n.º 3, do Cód. Civil, a partir dos elementos de facto apurados, conjugados com diversos critérios de cálculo de natureza instrumental.

O art. 566º do Cód. Civil, consagra o princípio da reconstituição natural do dano, mandando o art. 562º reconstituir a situação hipotética que existiria se não fosse o facto gerador da responsabilidade e não sendo possível a reconstituição natural, não reparando a mesma integralmente os danos ou sendo excessivamente onerosa para o devedor, deve a indemnização ser fixada em dinheiro – nº1. do art. 566º.

E a indemnização pecuniária deve medir-se pela diferença entre a situação (real) em que o facto deixou o lesado e a situação (hipotética) em que ele se encontraria sem o dano sofrido, diferença que se estabelece entre a situação real atual e a situação hipotética correspondente ao mesmo momento.

Deve atender-se aos danos futuros, nº 2, do art. 564º, desde que previsíveis, sendo que o nº 3, do art. 566º, confere ao tribunal a faculdade de recorrer à equidade quando não seja possível, designadamente face à imprecisão dos elementos de cálculo, fixar o valor exato dos danos.

Assim, a lei prevê a indemnização dos danos futuros, exigindo tão só a sua previsibilidade.

Constitui entendimento da jurisprudência que a indemnização a arbitrar por tais danos patrimoniais futuros deve corresponder a um capital produtor do rendimento de que a vítima ficou privada e que se extinguirá no termo do período provável da sua vida, determinado com base na esperança média de vida e não apenas em função da duração da vida profissional ativa do lesado, até este atingir a idade normal da reforma.

Não havendo fórmula exata de cálculo destes danos, a solução encontrada deve ser mitigada, como já dito, com o recurso à equidade.

A fixação da indemnização em termos de equidade deve ter em conta as regras de boa prudência, de bom senso prático, de justa medida das coisas e de criteriosa ponderação das realidades da vida. Em caso de julgamento segundo a equidade, devem os tribunais de recurso limitar a sua intervenção às hipóteses em que o tribunal recorrido afronte, manifestamente, aquelas regras.

“IV. O juízo de equidade de que se socorrem as instâncias para a fixação de indemnizações por danos patrimoniais futuros e por danos não patrimoniais, alicerçado na ponderação das particularidades e especificidades do caso concreto, não integra, em rigor, a resolução de uma questão de direito, pelo que tal juízo prudencial e casuístico deverá, em princípio, ser mantido, salvo se o critério adoptado se afastar, de modo substancial e injustificado, dos padrões que, generalizadamente, se entende deverem ser adoptados numa jurisprudência evolutiva e actualística, abalando a segurança na aplicação do direito e o princípio da igualdade” – Ac. do STJ desta Secção, de 26-01-2021, no proc. nº 688/18.6T8PVZ.P1.S1.

A equidade desempenha um papel corretor e de adequação da indemnização decretada às circunstâncias do caso, nomeadamente quando, como é frequente, os tribunais recorrem a “cálculos matemáticos e tabelas financeiras.

Os danos futuros decorrentes de uma lesão física “se não reduzem à redução da sua capacidade de trabalho, já que, antes do mais, se traduzem numa lesão do direito fundamental do lesado à saúde e à integridade física; que, por isso mesmo, não pode ser arbitrada uma indemnização que apenas tenha em conta aquela redução. Nomeadamente, não pode ser considerada a relevância da lesão apenas com referência à vida activa provável do lesado; antes se há de considerar também o período posterior à normal cessação de actividade laboral, com referência à esperança média de vida (…)” (cfr. também os acórdãos deste Supremo Tribunal de 28 de Outubro de 1999, proc. nº 99B717, e de 25 de Junho de 2002, proc. nº 02A1321, disponíveis em www.dgsi.pt).

Esse recurso à equidade não afasta, todavia, a necessidade de observar as exigências do princípio da igualdade, o que implica a procura de uma uniformização de critérios, não incompatível, naturalmente, com a devida atenção às circunstâncias do caso.

É entendimento deste STJ que, não equivalendo a equidade a arbitrariedade, a fixação de indemnização com recurso a esse juízo não pode surgir como expressão de sensibilidades ou intuições meramente subjectivas do julgador, tendo antes de se alicerçar em factualidade donde se possa, com base em padrões sedimentados na experiência comum, chegar a um valor racional – neste sentido cfr. acórdão de 21-04-2016, Proc. n.º 2138/03.3TCSNT.L1.S1, em www.stj.pt

A matéria de facto relevante vem provada nos pontos 1.7 e seguintes até 1.43, da matéria de facto provada, e destes salientamos:

- Em consequência do embate a demandante sofreu: - amputação transradial direita, pelo terço distal do antebraço direito e - fractura dos ossos do antebraço esquerdo.

- No local do acidente foi assistida e estabilizada por uma equipa do INEM, após o que foi transportada para o S.U. do Hospital de …, …, onde, à entrada, apresentava amputação transradial direita, pelo terço distal do antebraço direito, com fractura dos ossos do antebraço esquerdo.

- Ficou ali internada até ao dia 05.06.2014, tendo sido submetida às seguintes cirurgias:

a) - no dia 27.04.2014 a amputação a nível do antebraço direito, com osteotomia do rádio e do cúbito e redução e fixação com placa ao nível do cúbito esquerdo;

b) - no dia 06.05.2014 fez revisão do coto de amputação e operações de limpeza;

c) - no dia 13.05.2014 fez desbridamento do coto e remodelação com plastia, com enxerto da face medial da coxa direita e

d) - no dia 02.06.2014 fez nova revisão do coto.

- Tratamento da pseudartrose do antebraço esquerdo, num contexto de amputação traumática do terço proximal do antebraço direito, sendo, no dia 19.06.2015, submetida a nova intervenção cirúrgica para regularização da referida pseudartrose e exérese de neuromas do coto de amputação à direita (doc.7).

- Em consequência do acidente de viação, a A. ficou a padecer das seguintes sequelas: ao nível do abdómen: cicatriz linear de 10 centímetros ao longo da crista ilíaca anterior direita; ao nível do membro superior direito amputação do membro pelo terço superior do antebraço; cicatriz linear no coto; cicatriz linear curvilínea de 10 cms no coto; ao nível do membro superior esquerdo: cicatriz linear de treze centímetros nos terços superior e médio, e posterior do antebraço; cicatriz linear de 10 cms nos terços superior e médio e posterior; ao nível do membro inferior direito: área de descoloração da pele de 10 por 9 cms no terço superior e medial da coxa.

- Apresenta como queixas a nível funcional apresenta ao nível da manipulação e preensão: dificuldade em pegar e transportar objectos pesados e/ou volumoso com a mão esquerda; ansiedade, recordando o acidente com bastante frequência, vivenciando todos os acontecimentos, frequenta consultas de psiquiatria, fazendo medicação frequente; fenómeno doloroso no membro superior direito com sensação de membro fantasma.

- Ao nível situacional: dificuldade em pegar e transportar objectos pesados e /ou volumosos; dificuldade nas actividades da vida diária (vestir/despir, lavar-se pentear-se, cortar/arranjar carne / peixe.

- Em consequência das sequelas de que ficou portadora, a A. ficou a padecer de um défice permanente da integridade físico-psíquica de 55 pontos, compatíveis com o exercício da actividade habitual, mas implicam esforços suplementares.

- Ficou a padecer de um dano estético permanente de grau 6, numa escala de sete graus de gravidade crescente

- Ficou a padecer de uma repercussão permanente nas actividades desportivas e de lazer no grau 3 numa escala de 7 graus de gravidade crescente.

- Sofreu um défice funcional temporário total de 90 dias; parcial de 810 dias; e uma repercussão temporária na actividade profissional total de 900 dias.

- Sofreu de um quantum doloris de grau 6 numa escala de sete graus de gravidade crescente.

- Para além das ajudas descritas supras em 1.28., a A. necessita: uso permanente de prótese mioeléctrica; uso permanente de creme hidratante na zona amputada; ajuda de terceira pessoa para apoio à própria A. para alguma higiene pessoal (quando o marido e/ou filhos não estão disponíveis) ajuda a vestir e/ou despir determinadas peças de roupa; calçar, cerca de 4 horas por dia.

- Em consequência das sequelas de ficou a padecer, a A. passou a necessitar de contratar pessoa terceira para executar tarefas da lida diária da casa: limpeza, confecção de refeições.

- As lesões sofridas provocaram à demandante um enorme sofrimento e fortíssimas dores, tanto no momento do acidente, como no decurso do demorado tratamento.

- Na altura do acidente tinha 44 anos de idade e era saudável, fisicamente bem constituída, dinâmica, alegre, trabalhadora, social, sociável e divertida.

- Em consequência do acidente e das sequelas perdeu a alegria de viver, não conseguindo sequer pegar no seu filho Tomás (de 3 anos à data do acidente) ao colo, vesti-lo, dar-lhe banho, vivendo em constante tristeza e incapaz de se adaptar à sua nova realidade e imagem.

- E porque a sua actividade profissional consistia, essencialmente, em lidar com terceiros, onde é necessária determinada imagem, a demandante, por força da amputação que sofreu, perdeu essa imagem, sentindo de forma particularmente brutal as sequelas de que ficou afectada permanentemente.

- E toda a lide da casa, ou seja, aspirar, limpar o pó, cozinhar, fazer as camas, passar a ferro, dobrar a roupa, ou a tarefa mais simples desse dia-a-dia tornam-se numa montanha quase intransponível para a demandante AA, tanto mais que é nessas pequenas tarefas da lide da casa que a demandante ganha cada vez mais consciência da sua dependência para o que quer que seja.

- A demandante AA à data do acidente exercia funções de directora de uma agência de … (…), com um rendimento mensal de 1.940,00 €, 14 vezes por ano, acrescido do subsídio mensal de alimentação de 143,00 €, 11 vezes por ano e do prémio anual de produtividade de 7.280,00 €.

- A tudo isto, acrescia também, viatura de serviço, telemóvel e computador portátil, inteiramente a cargo da entidade patronal (doc. 14).

- Competia-lhe, assim, no exercício das suas funções de directora apresentar aos seus clientes, a solicitação destes, uma “carteira” de trabalhadores, assim como recrutar pessoal, procurar novos clientes, com diversas reuniões semanais, onde tudo era apontado à mão, sendo a demandante dextra.

- Internamente na empresa que dirigia, cabia-lhe também proceder à avaliação dos seus colaboradores, bem como fazer cobranças dos serviços prestados pela empresa e gestão dos equipamentos.

- Assim, e em consequência do acidente (das lesões sofridas, dos tratamentos a que teve de se submeter e das sequelas de que ficou a padecer definitivamente) a demandante nunca mais trabalhou.

- Por outro lado, e para agravar ainda mais o estado de saúde da demandante AA, sofreu em … .7.2017 um AVC, qual lhe trouxe sequelas nomeadamente a nível cognitivo, com um discurso, por vezes, incompleto e incoerente e com lapsos de memória.

Relevante na fixação da indemnização, nesta sede é o défice funcional permanente fixado em 55 pontos percentuais, “compatíveis com o exercício da actividade habitual, mas implicam esforços suplementares”, ou seja, não afetam a sua capacidade de trabalho, nem reduzindo a sua eficiência, qualidade e produtividade.

Esse défice é compatível com o exercício da profissão e a repercussão reflete-se a nível de esforços suplementares que implica.

Nessa medida, tal défice não pode deixar de relevar em sede do chamado dano biológico patrimonial, suscetível, portanto, de indemnização reparatória daquela redução do rendimento económico potencial, com vem sendo seguido pela jurisprudência.

O referido défice funcional é de 55 pontos percentuais, e estranha-se que não represente incapacidade para o exercício da atividade profissional habitual da autora, face às lesões sofridas (acabadas de descrever), mas mesmo assim tem influência na sua capacidade económica geral.

No caso concreto o défice funcional em tal percentagem, não só representaria dificuldades acrescidas para o exercício da atividade que a autora exercia, como é limitativo para o exercício de outras atividades económicas, a exercer em simultâneo ou alternativas, que à autora pudessem, entretanto, surgir na área da sua formação profissional, bem como na realização de tarefas pessoais quotidianas.

Referimos a estranheza de o défice de 55 pontos não representar incapacidade para o exercício da atividade profissional habitual da autora, pois que, por causa das lesões sofridas no acidente, ou seja, “em consequência do acidente a demandante nunca mais trabalhou” (facto provado).

Os ditos “esforços suplementares” seriam de tal monta que se revelaram em total incapacidade da autora para desempenhar a atividade que vinha exercendo e, ficou a necessitar de “ajuda de terceira pessoa para apoio à própria A. para alguma higiene pessoal (quando o marido e/ou filhos não estão disponíveis) ajuda a vestir e/ou despir determinadas peças de roupa; calçar”, “dificuldade nas actividades da vida diária (vestir/despir, lavar-se pentear-se, cortar/arranjar carne / peixe” e, “passou a necessitar de contratar pessoa terceira para executar tarefas da lida diária da casa: limpeza, confecção de refeições”. Factos provados reveladores da total dependência da autora.

A jurisprudência do STJ, nomeadamente os Acs. do STJ de 12-07-2018, no Proc. nº 1842/15.8T8STR.E1.S1 e de 16-12-2017, no Proc. nº 1509/13.1TVLSB.L1.S1, tem entendido que a indemnização não deve ser calculada com base no rendimento anual, auferido no âmbito da atividade profissional habitual do lesado, quando o défice funcional não implica incapacidade parcial permanente para o exercício da atividade que exerce, envolvendo apenas esforços suplementares.

Assim entende Rita Mota Soares in Revista Julgar, nº 33º, 2017, pág. 111 e segs., in “.. O Dano Biológico quando da Afetação Funcional não Resulta Perda da Capacidade de Ganho…” ao referir: “se encararmos o dano biológico como uma lesão da integridade psicofísica, não podemos recusar a premissa de que esta é igual para todos.

Nessa medida, nos casos em que os lesados não sofram uma efectiva diminuição dos rendimentos profissionais (quer porque estes não ficam diminuídos, quer porque estão em causa estudantes, desempregados ou reformados), havendo antes a necessidade de maiores esforços para obtenção dos mesmos rendimentos, não há razão alguma para tratamentos diferenciados por referência ao salário ou ao rendimento habitual”.

No caso em analise temos que ficou provado que os esforços suplementares exigíveis à autora, para desempenhar a profissão, seriam insuportáveis e reveladores de incapacidade total para o exercício da atividade que exercia (e que não mais exerceu).

Pelo que a determinação da indemnização nesta sede deve ser calculada com base no rendimento anual que a autora recebia, mesclada com critérios de equidade com função corretora.

E em caso de julgamento segundo critérios de equidade, como já dito, deve o tribunal de recurso limitar a sua intervenção às hipóteses em que o tribunal recorrido afronte, manifestamente, aquelas regras.

O acórdão recorrido refere, “No caso, importa considerar a idade da autora (44 anos, à data do acidente, ou 46 anos à data da consolidação médico-legal das lesões), as respetivas qualificações e contexto laboral da autora - à data do acidente exercia funções de diretora de uma agência de … (…) -, o rendimento anual auferido pela autora (cf. o ponto 1.39 dos factos provados), com referência à data do acidente (€ 36.013,00), o período temporal correspondente ao período provável de vida da recorrente - atenta a sua esperança média de vida que em Portugal, ultrapassa os 83 anos nas mulheres (Cf. dados publicados em

https://www.pordata.pt/Portugal/Esperan%c3%a7a+de+vida+%c3%a0+nascen%c3%a7a+total+e+por+sexo+(base+tri%c3%a9nio+a+partir+de+2001)-418-5194.) - atendendo a que as necessidades básicas da lesada não cessam no termo da sua vida ativa -, e o défice permanente da integridade físico-psíquica de 55% que lhe foi fixado (cf. o ponto 1.24 dos factos provados).

De acordo com a fórmula que julgamos ter sido seguida na decisão recorrida, e tomando como referência a data da consolidação médico-legal das lesões (Critério que é aceite pela própria autora/recorrida.) (em 13-10-2016 - cf. o ponto 1.27 da matéria de facto provada) o valor obtido ascenderia a € 713.057,40 (€36.013,00 x 36 x 55%) valor que é, inclusivamente, superior ao que foi fixado na sentença recorrida.

Ainda assim, entendemos que tal valor deve sempre merecer um ajustamento liminar, dado o facto de ocorrer uma antecipação do pagamento de todo o capital duma só vez e de modo a evitar o enriquecimento injusto que poderia resultar desse facto, sendo que neste domínio a jurisprudência vem oscilando na consideração de uma dedução entre os 10% e os 33% (Cf., a propósito, o Ac. do STJ de 25-11-2009 (relator: Raul Borges), p. 397/03.0GEBNV.S1 - 3.ª Secção - disponível em www.dgsi.pt.), circunstância que julgamos não ter sido ponderada na decisão recorrida.

Ora, atendendo precisamente à atual tendência de rigidez das aplicações de capital em valores muito baixos, por efeito das taxas de juros mais baixas, afigura-se adequada uma dedução não superior a 10% relativa ao recebimento antecipado, tal como entendeu o Ac. do STJ de 19-05-2020 (Relator Acácio das Neves; p. 3907/17.2T8BRG.G1.S1, disponível em https://jurisprudencia.csm.org.pt/ecli/ECLI:PT:STJ:2020:3907.17.2T8BRG.G1.S1/; em sentido idêntico, cf. os Acs. do STJ de 30-03-2017 (relator: Olindo Geraldes; p. 2233/10.2TBFLG.P1.S1; de 26-05-2009 (relator: Paulo Sá), p. 3413/03.2TBVCT.S1, disponíveis em www.dgsi.pt.).

Desta forma, após dedução de uma parcela equivalente a 10%, o valor do capital obtido através do cálculo de base antes enunciado a título indicativo para o cálculo do dano patrimonial futuro ascenderia a €641.751,66 [€ 713.057,40 – (€ 713.057,40 X 10 % = 71.305,74) = € 641.751,66]], valor ainda assim muito superior ao fixado na sentença recorrida e que se revela, a nosso ver, excessivo, atendendo ao conjunto da matéria de facto provada e considerando os padrões seguidos em decisões jurisprudenciais recentes.

Trata-se, porém, de um valor que assenta, essencialmente, no cálculo aritmético de rendimentos específicos, e que, por isso, entendemos dever ser alterado, tendo por base o recurso à equidade, enquanto critério legalmente previsto, e considerando todos os elementos, quer objetivos quer subjetivos, que possam conduzir a uma indemnização justa e adequada.

(…)

Além dos já enunciados elementos objetivos, os quais são demonstrativos das graves e irreversíveis consequências advindas para a autora em resultado do facto ilícito do qual foi vítima, e para o qual em nada contribuiu, importa ainda atender aos padrões seguidos em decisões jurisprudenciais recentes, uma vez que a quantificação do montante indemnizatório em causa é efetuada com recurso à equidade, prevendo o artigo 8.º, n.º 3, do CC que, nas decisões a proferir, o julgador terá em consideração todos os casos que mereçam tratamento análogo, a fim de obter uma interpretação e aplicação uniformes do direito.

Tal como salienta o citado Ac. do STJ de 1-03-2018, «[n]a fixação da indemnização por danos patrimoniais por perda de capacidade de ganho ou “dano biológico”, a comparação com outras decisões deste Supremo Tribunal revela-se particularmente difícil porque, diversamente do que por vezes as partes vêm invocar, tal comparação não assenta apenas na ponderação dos tradicionais factores de idade, esperança média de vida e índice de incapacidade geral permanente, antes tem de ter em conta o supra enunciado factor da conexão entre as lesões físicas sofridas e as exigências próprias de actividades profissionais ou económicas alternativas, compatíveis com as qualificações e competências de cada lesado concreto».

Assim, recorrendo ao método comparativo ao nível da indemnização pelo dano patrimonial futuro, emergente de défice funcional permanente da integridade físico-psíquica parcial, e a título meramente exemplificativo, encontramos diversas decisões, ao nível da jurisprudência dos tribunais superiores, que entendemos de ponderar:

- Ac. do STJ de 06-04-2021 (Relatora Fátima Gomes; p. 2908/18.8T8PNF.P1.S1, acessível em www.dgsi.pt.): sinistrado com 6 anos à data do acidente; as lesões sofridas pelo autor determinaram-lhe um défice funcional permanente da integridade físico-psíquica fixável em 50 pontos; As sequelas são compatíveis com a atividade de estudante, mas exigem esforços suplementares, mormente nas deslocações e locomoção; estes esforços suplementares manter-se-ão no exercício de atividade profissional futura, estando impossibilitado de exercer atividade profissional que exija andar, correr, saltar, permanecer largos períodos em pé; o STJ confirmou o valor da indemnização arbitrada a esse título no Tribunal da Relação (€300.000,00);

- Ac. do STJ de 19-05-2020 (Relator Acácio das Neves; p. 3907/17.2T8BRG.G1.S1, antes referenciado.): sinistrado com 21 anos à data do acidente; as lesões sofridas pelo autor determinaram-lhe um défice funcional permanente da integridade físico-psíquica fixável em 55 pontos; as sequelas de que ficou a padecer são impeditivas do exercício da atividade profissional habitual, no entanto, são compatíveis com outras profissões da área de preparação técnico profissional do autor; o STJ reduziu para €450.000,00 o valor da indemnização arbitrada a esse título no Tribunal da Relação (€500.000,00), partindo de um rendimento mensal líquido de € 993,00, 14 meses por ano;

- Ac. do STJ de 19-09-2019 (Relatora Maria do Rosário Morgado; p. 2706/17.6T8BRG.G1.S1, acessível em www.dgsi.pt.): sinistrado com 45 anos à data do acidente; défice funcional permanente da integridade físico-psíquica de 32 pontos, que o impede de exercer a sua profissão habitual de serralheiro mecânico, bem como qualquer outra dentro da sua área de preparação técnico-profissional; auferia um rendimento mensal ilíquido de € 788,00, à data do acidente, que subiu cerca de dois meses depois para € 816,00, acrescido de € 80,00 de subsídio de alimentação; o STJ fixou em € 200.000,00 o valor da indemnização fixada a esse título pelo Tribunal da Relação (€150.000,00);

- Ac. do STJ de 23-05-2019 (Relatora Maria dos Prazeres Beleza; p. 2476/16.5T8BRG.G1.S2; acessível em www.stj.pt/wp-content/uploads/2017/10/jurisprudenciatematica_danocorporal2015aoutubro2019.pdf): a sinistrada ficou impedida de exercer a sua atividade profissional habitual de educadora de infância mas não de exercer outras profissões da área da sua preparação técnico-profissional embora com acrescidas dificuldades; auferia uma retribuição mensal de € 1.706,20, catorze meses por ano; ficou com um défice funcional de 26 pontos; tinha 44 anos de idade à data do acidente; o STJ confirmou o montante de € 250.000,00 fixado pelo Tribunal da Relação a título de indemnização por perda de capacidade de ganho, aqui incluída a vertente patrimonial do dano biológico;

- Ac. do STJ de 11-04-2019 (Relator Oliveira Abreu; p. 465/11.5TBAMR.G1.S1, acessível em www.dgsi.pt.): sinistrado com 12 anos à data do acidente; défice funcional permanente da integridade físico-psíquica de 46 pontos; as sequelas de que ficou a padecer são compatíveis com o exercício da atividade de estudante, implicando esforços suplementares, sequelas que, no entanto, condicionarão, de forma indelével as suas opções profissionais futuras, sendo que o autor ingressou, em setembro de 2017, no curso de licenciatura; a indemnização foi arbitrada na quantia de € 390.000,00 partindo de um rendimento mensal médio de € 1.200,00, 14 meses por ano;

- Ac. do STJ de 1-03-2018 (Relatora Maria da Graça Trigo; p. 773/07.0TBALR.E1.S1, acessível em www.dgsi.pt.) sinistrado com 39 anos à data do acidente; as lesões sofridas pelo autor determinaram-lhe um défice funcional permanente da integridade físico-psíquica fixável em 53 pontos; as sequelas de que ficou a padecer são impeditivas do exercício da atividade profissional habitual, sendo no entanto compatíveis com outras profissões da área da sua preparação técnico-profissional; o STJ fixou em €400.000,00 o valor da indemnização arbitrada a esse título no Tribunal da Relação (€ 280.000,00).

Ponderando então as circunstâncias do caso concreto em apreciação, sem deixar de atender aos padrões de indemnização adotados em decisões jurisprudenciais recentes, entende-se conforme à equidade fixar a indemnização devida à autora pelos danos patrimoniais futuros decorrentes da incapacidade ou défice funcional permanente de que a autora ficou a padecer, no montante de € 460.000,00 em vez dos € 500.000,00 fixados pela 1.ª instância”.

Reportando-nos à jurisprudência referida pelo acórdão recorrido temos que, não só temos de olhar ao rendimento dos lesados e grau de défice funcional, mas também à idade dos lesados e esperança de vida.

Em alguns desses arestos verifica-se que apenas foi aplicado o cálculo matemático e com pouca ou nula interferência de critérios de equidade.

No caso, o Tribunal recorrido calculou: € 713.057,40 (€36.013,00 (rendimento anual x 36 (esperança de vida) x 55% (incapacidade)).

A que acrescentou: “Ainda assim, entendemos que tal valor deve sempre merecer um ajustamento liminar, dado o facto de ocorrer uma antecipação do pagamento de todo o capital duma só vez e de modo a evitar o enriquecimento injusto que poderia resultar desse facto, sendo que neste domínio a jurisprudência vem oscilando na consideração de uma dedução entre os 10% e os 33% (Cf., a propósito, o Ac. do STJ de 25-11-2009 (relator: Raul Borges), p. 397/03.0GEBNV.S1 - 3.ª Secção - disponível em www.dgsi.pt.), circunstância que julgamos não ter sido ponderada na decisão recorrida”.

O que daria a indemnização entre 641751,66€ e 477748,46€, sendo que o Tribunal recorrido entendeu justa a indemnização “no montante de € 460.000,00”.

Outros entendem como fator de correção equitativo a dedução entre 1/3 e ¼, pela antecipação do pagamento de todo o capital (que será variável entre estes limites tendo em conta os valores da taxa de juro e da inflação).

Com a variante corretiva entre 1/3 e ¼, teríamos a indemnização entre 534793,05€ e 475324,06€.

Assim que entendemos que na fixação da indemnização em termos de equidade deve ter-se em conta as regras de boa prudência, de bom senso prático, de justa medida das coisas e de criteriosa ponderação das realidades da vida, temos que a dedução operada pelo Tribunal recorrido afronta estas regras, pelo que se corrige a indemnização nesta sede, tendo como mais justa a quantia de 500.000,00€.


*


- Momento a partir do qual são devidos os juros moratórios respeitantes ao dano patrimonial futuro.

A autora peticiona juros de mora a partir da citação.

A 1ª Instância condenou “a Ré a pagar à A. os juros de mora à taxa de 4% (Portaria 291/03, de 8Abr): desde a citação até integral pagamento, sobre o montante relativo aos danos patrimoniais; desde hoje até integral pagamento, sobre o montante relativo aos danos não patrimoniais”.

O Tribunal da Relação decidiu, “determinando que os juros de mora sobre a quantia de … fixada a título de indemnização pelo dano patrimonial futuro decorrente do défice funcional permanente da integridade físico-psíquica sejam calculados desde a data da decisão da 1.ª instância”, entendendo: “No caso, a indemnização pelos danos patrimoniais futuros decorrentes do défice funcional permanente da integridade físico-psíquica foi fixada com base na equidade, e de forma atualizada, critério que também resulta ter sido observado na sentença recorrida, razão pela qual os juros de mora da indemnização pelos danos patrimoniais futuros decorrentes da incapacidade ou défice funcional permanente devem contar-se desde a data da decisão recorrida”.

A recorrente termina as conclusões pedindo que a quantia a título de dano patrimonial futuro vença juros “desde a data da citação até efectivo e integral pagamento”.

Em contrário a recorrida conclui que “jamais poderá conceber que os juros de mora sejam contabilizados a partir da citação tal como defende a Recorrente, devendo a sua pretensão improceder”.

Referem a recorrente e a recorrida que entendimento contrário ao que sustentam (e têm entendimentos contraditórios) viola o Acórdão de Uniformização de Jurisprudência n.º 4/2002, de 09-05-2002

É do seguinte teor a doutrina deste acórdão uniformizador: “Sempre que a indemnização pecuniária por facto ilícito ou pelo risco tiver sido objecto de cálculo actualizado, nos termos do n.º 2 do artigo 566º do Código Civil, vence juros de mora, por efeito do disposto nos artigos 805º, n.º 3 (interpretado restritivamente), e 806º, n.º 1, também do Código Civil, a partir da decisão actualizadora, e não a partir da citação”.

Deste Acórdão Uniformizador resulta que é incompatível a fixação de taxa de juros de mora desde a citação em cumulação com atualização da indemnização em função da taxa de inflação (correção monetária), “na medida em que ambas as providências influenciadoras do cálculo da indemnização devida obedecem à mesma finalidade, que consiste em fazer face à erosão do valor da moeda no período compreendido entre a localização no tempo do evento danoso e o da satisfação da obrigação indemnizatória”.

A intenção do legislador de 1983, com a alteração ao nº 3 do art. 805º, do Cód. Civil operada pelo Dl. nº 262/83 de 16-06, foi a de compensar o prejuízo da inflação que na altura grassava e que a previsão do n.º 2 do art. 566º do Cód. Civil podia não resolver atentos os limites da condenação, art. 609º, nº 1 do CPC (então art. 661º, do então CPC). Nessa altura, por efeito da inflação o valor do pedido podia depreciar-se em termos tais que a atualização com referência à data da sentença conduzia a um valor superior ao do pedido, que o tribunal não podia considerar atenta aquela (a sentença não pode condenar em quantidade superior à do pedido).

Como se diz neste acórdão uniformizador, “O critério regra é o estabelecido no n.º 2 do artigo 566º, limitando-se o critério introduzido pela nova redacção do n.º 3 do artigo 805º a ter um valor complementar do primeiro, «destinado a garantir a plena eficácia da respectiva intenção normativa».

Nem se diga que a cumulação de juros e correcção monetária poderia encontrar fundamento na função não meramente indemnizatória (e de correcção monetária) dos juros de mora, mas também na componente sancionatória que lhes corresponderia.

É que, por um lado, e tal como se disse, a ideia que presidiu à retroacção da mora, nos casos dos créditos ilíquidos provenientes de responsabilidade civil por facto ilícito e pelo risco, não teve origem em qualquer pretensão sancionatória ou punitiva, visando tão-somente combater os efeitos nefastos da inflação”.

Entendendo este acórdão uniformizador como regra que a indemnização em dinheiro visa repor a situação patrimonial do lesado na data mais recente que puder ser atendida pelo tribunal, ao nível da que ocorreria caso não tivesse acontecido a lesão.

E deixando escapatória para aplicação do critério do art. 805º, nº 3 quando a indemnização pecuniária por facto ilícito ou pelo risco com base de cálculo atualizado, nos termos do n.º 2 do artigo 566º, do Código Civil, não reponha a situação que o lesado teria caso não tivesse ocorrido a lesão.

Em princípio, a sentença que fixa o valor de uma indemnização com base na equidade deve ser considerada uma decisão atualizadora para o efeito previsto no Acórdão de Uniformização de Jurisprudência n.º 4/2002- assim decidiu o Ac. Rel. Évora de 14-01-2021, no Proc. 1615/18.6T8STR.E1.

O acórdão recorrido refere que, “resulta igualmente dos fundamentos enunciados no citado aresto [acórdão uniformizador] que a orientação nele assumida pressupõe que tenha sido efetuada a atualização da indemnização pecuniária à data da decisão” e que no caso, “…foi fixada com base na equidade, e de forma atualizada, critério que também resulta ter sido observado na sentença recorrida”.

E assim tinha sido referido na sentença “apelando adequadamente à equidade”.

Como suprarreferimos, a indemnização por danos patrimoniais futuros resultantes de défice funcional é calculada com base em tabelas matemáticas e mitigada ou ajustada com recurso à equidade.

Por isso concordamos com o acórdão recorrido de que foi atualizada à data da prolação da sentença e por isso, os juros de mora só se vencem a partir dessa data e não desde a citação.

Assim entendeu o Ac. deste STJ de 04-11-2021, no Proc. 590/13.8TVLSB.L1.S1, em que fomos adjunto e onde se concluiu: “V. A contagem de juros de mora desde a citação tem em vista a mesma finalidade que a atualização da indemnização à data da sentença: “imputar ao lesante o risco da depreciação monetária” ou da erosão do valor da moeda.

VI. O art. 805.º, n.º 3, do CC, tem por objetivo a consagração de um critério abstrato de cálculo dos danos sofridos pelo lesado, decorrentes da demora no pagamento, ulteriores à citação e anteriores à liquidação, sem afastar a teoria da diferença. No caso de a avaliação dos danos ser reportada à data da sentença do Tribunal de 1.ª Instância, à indemnização não podem acrescer juros de mora desde a citação”.

Assim entendeu o Ac. do STJ de 14-09-2006, no Proc. 06B2634, ao referir: “Atentemos agora ao terminus a quo da contagem de juros moratórios relativamente à indemnização por danos patrimoniais - no quadro da responsabilidade civil extracontratual - fixada ao recorrido.

A regra, no caso de créditos líquidos, é no sentido de que o devedor fica constituído em mora depois de ter sido interpelado judicial ou extrajudicialmente para cumprir, salvo se a obrigação tiver prazo certo, ou provier de facto ilícito ou o devedor impedir a interpelação, caso em que há mora sem interpelação, considerando-se, na última situação, que ela ocorreu na data em que o deveria ter sido (artigo 805.º, n.ºs 1 e 2, do Código Civil).

No caso de os créditos em causa serem ilíquidos, a regra é no sentido de que o devedor não incorre em mora enquanto não forem liquidados, salvo se a iliquidez lhe for imputável.

A excepção ocorre na hipótese de se tratar de responsabilidade civil por facto ilícito ou pelo risco, caso em que o devedor se constitui em mora desde a citação, salvo se, antes disso, por a iliquidez lhe ser imputável, dever considerar-se nessa situação (artigo 805.º, n.º 3, do Código Civil).

No caso vertente, como se está perante uma obrigação de indemnização no quadro da responsabilidade civil extracontratual por facto ilícito, é aplicável a excepção prevista na segunda parte do n.º 3 do artigo 805.º do Código Civil, no sentido de a recorrente se haver constituído na situação de mora na data da citação.

A indemnização moratória corresponde aos juros legais ou convencionais a contar do dia da constituição em mora, salvo se antes desta forem devidos juros mais elevados ou as partes houverem estipulado juros moratórios diferentes (artigo 806.º, nºs 1 e 2, do Código Civil).

Assim, a lei presume jure et de jure que o dano do credor pelo atraso de cumprimento de obrigações pecuniárias por parte do devedor corresponde à referida taxa de juro legal ou convencional.

Perante este quadro legal, a conclusão não pode deixar de ser no sentido de que a função dos juros moratórios é essencialmente indemnizatória do dano do lesado decorrente do atraso de cumprimento da concernente obrigação pecuniária, aferida, segundo o Acórdão de Fixação de Jurisprudência n.º 4/2002, de 29 de Maio, deste Tribunal, sob a envolvência de actualização correspondente à depreciação da moeda.

Tendo em conta que o juiz da 1.ª instância, no âmbito da sentença, procedeu ao cálculo da indemnização, devida pela recorrente ao recorrido, por danos patrimoniais, por via da operação de actualização a que se reporta o mencionado Acórdão de Uniformização de Jurisprudência, o débito dela de juros moratórios decorre apenas desde a data daquela sentença.

Por isso, não tem fundamento legal a decisão da Relação no sentido de que a recorrente devia ser condenada no pagamento de juros de mora desde a data da sua citação sob o fundamento de a sentença não ter operado a actualização autónoma da indemnização por danos futuros ou lucros cessantes”.

Assim, são julgadas improcedentes as conclusões do recurso, neste segmento.

Pelo que o recurso de revista apenas procederá parcialmente.


*


Sumário elaborado ao abrigo do disposto no art. 663 nº 7 do CPC:

I - Na determinação do montante da justa indemnização destinada a ressarcir danos futuros, perante a constatação da impossibilidade de averiguar o valor concreto dos danos, tem a jurisprudência recorrido ao juízo de equidade a que se reporta o art. 566º, n.º 3, do Cód. Civil, a partir dos elementos de facto apurados, conjugados com diversos critérios de cálculo de natureza instrumental.

II - Em caso de julgamento segundo a equidade, devem os tribunais de recurso limitar a sua intervenção às hipóteses em que o tribunal recorrido afronte, manifestamente, aquelas regras.

III - Tendo ficado provado que os esforços suplementares exigíveis à autora, para desempenhar a profissão, seriam insuportáveis e reveladores de incapacidade total para o exercício da atividade que exercia (e que não mais exerceu), a determinação da indemnização nesta sede deve ser calculada com base no rendimento anual que a autora recebia, mesclada com critérios de equidade com função corretora.

IV - Quando a decisão (sentença ou acórdão) fixa o valor de uma indemnização com base na equidade, deve ser considerada uma decisão atualizadora para o efeito previsto no Acórdão de Uniformização de Jurisprudência n.º 4/2002.

V - Estando a indemnização atualizada à data da prolação da sentença, os juros de mora só se vencem a partir dessa data e não desde a citação.

Decisão:

Pelo exposto acordam, no STJ e 1ª Secção Cível, em julgar parcialmente procedente o recurso de revista e, consequentemente:

a) Quantifica-se a indemnização da autora a título de dano patrimonial futuro, (perda futura de ganho/dano biológico), no montante de 500.000,00€, nesta parte se revogando o acórdão recorrido.

b) No mais confirma-se o acórdão recorrido.

Custas por recorrente e recorrida na proporção de ½ para cada.


Lisboa, 15-02-2022


Fernando Jorge Dias – Juiz Conselheiro relator

Jorge Arcanjo – Juiz Conselheiro 1º adjunto

Isaías Pádua – Juiz Conselheiro 2º adjunto