Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
331/07.9TTVCT.P1.S1
Nº Convencional: 4ª SECCÇÃO
Relator: PINTO HESPANHOL
Descritores: VIOLAÇÃO DAS REGRAS DE SEGURANÇA
NEGLIGÊNCIA GROSSEIRA
ALCOOLEMIA
CULPA EXCLUSIVA
ÓNUS DA PROVA
DIREITO A PENSÃO
ASCENDENTE
Nº do Documento: SJ
Data do Acordão: 11/25/2009
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: CONCEDIDA REVISTA
Sumário : 1. O preceituado na 2.ª parte da alínea a) do n.º 1 do artigo 7.º da Lei n.º 100/97 não abarca todas e quaisquer condições de segurança, antes se reporta às que estejam ligadas com a própria execução do trabalho que a sinistrada se obrigou a prestar, donde, no caso, porque a sinistrada desempenhava a actividade de distribuidora, não se incluem nessas específicas condições de segurança as regras atinentes à segurança rodoviária, daí que careça de fundamento legal a descaracterização do acidente de trabalho ao abrigo do sobredito normativo.
2. Para que se verifique a descaracterização do acidente nos termos previstos na alínea b) do n.º 1 do referido artigo 7.º, é necessário que o mesmo provenha exclusivamente de negligência grosseira do trabalhador, pelo que, na ausência desse pressuposto, não é possível denegar o direito à reparação do acidente, ao abrigo do sobredito normativo.
3. Competia à seguradora, como responsável pela reparação do acidente, o ónus da prova dos factos conducentes à descaracterização do acidente de trabalho, já que tais factos são impeditivos do direito invocado pelos autores (artigo 342.º, n.º 2, do Código Civil), ónus que, no caso concreto, não se mostra cumprido.
4. O direito dos ascendentes à pensão por morte de vítima de acidente de trabalho depende do preenchimento de dois requisitos: (i) a contribuição do sinistrado, com carácter de regularidade, para o sustento dos beneficiários; (ii) a necessidade dessa contribuição para o seu sustento.
5. A exigência da necessidade da contribuição da sinistrada para o sustento daqueles beneficiários funda-se na constatação de que o direito dos familiares da vítima à pensão, consagrado na alínea d) do n.º 1 do artigo 20.º da Lei n.º 100/97, é uma emanação do instituto da obrigação alimentar, e esta apenas existe a favor das pessoas que não podem prover integralmente ao seu sustento.
6. Não resultando da factualidade provada qual a relevância que o contributo da sinistrada assumia para o sustento dos autores, não se pode concluir que estes tinham necessidade dessa contribuição para fazerem face às respectivas despesas pessoais, pelo que não se mostram preenchidos os necessários requisitos para a atribuição da pensão por morte da sinistrada aos seus ascendentes.
Decisão Texto Integral: Acordam na Secção Social do Supremo Tribunal de Justiça:

I
1. Em 20 de Maio de 2008, no Tribunal do Trabalho de Viana do Castelo, AA e esposa, BB, com o patrocínio do Ministério Público, intentaram a presente acção, com processo especial, emergente de acidente de trabalho, contra G… – COMPANHIA DE SEGUROS, S.p.A., pedindo a condenação da ré a pagar-lhes: a) € 1.612, a título de despesas de funeral; b) € 817,56, para cada um, a título de pensão anual, actualizável, com início em 10 de Maio de 2007, actualizada para € 837,18, em 1 de Janeiro de 2008; c) juros de mora, vencidos e vincendos sobre as quantias reclamadas, à taxa legal de 4%, até integral e efectivo pagamento.
Alegaram, em resumo, que a filha de ambos, CC, desempenhava a actividade de distribuidora, sob as ordens, direcção e fiscalização da A… Recursos Humanos, L.da, e que, em 9 de Maio de 2007, pelas 17,40 horas, quando regressava do seu local de trabalho, pelo percurso habitualmente utilizado, conduzindo o veículo ligeiro de passageiros, matricula …, propriedade do pai, ao chegar ao km 83,450 da A3, perdeu o controlo do veículo, entrou em derrapagem e chocou com a frente na parte traseira de um tractor/semi-reboque, que circulava na sua dianteira, sofrendo lesões corporais que lhe determinaram a morte, no estado de solteira, sem deixar descendentes, devendo o acidente ser considerado de trabalho, estando a responsabilidade infortunística da empregadora transferida para a ré, sendo certo que a sinistrada contribuía regularmente para as despesas do agregado familiar e que tinham necessidade dessa contribuição, atentos os seus parcos rendimentos.
Relativamente à necessidade daquela contribuição, foi alegado que «apenas o pai tem actividade remunerada, auferindo como vendedor a quantia líquida mensal de € 535, sendo a mãe doméstica, sem qualquer vencimento, tendo deixado de trabalhar há cinco anos por problemas de coluna e joelhos, possuindo ambos duas pequenas leiras, que não ultrapassam os 400 m2, cada uma, donde apenas tiram vinho para consumo da casa».
A ré contestou, invocando que o acidente se ficou a dever «apenas e só por a sinistrada ter desrespeitado, de modo culposo, as regras do Código da Estrada aplicáveis, bem como as mais elementares regras de prudência e destreza na condução viária, o que tudo constituiu negligência grosseira, excluindo, desde logo, qualquer responsabilidade por parte da ré», a isto acrescendo «o facto de a sinistrada se encontrar, no momento do sinistro, com uma taxa de alcoolemia no sangue de 1,47 (cf. relatório de autópsia junto aos autos), pelo que sob a influência do álcool, o que tudo lhe toldou os movimentos, e provocou o sinistro em apreço», desconhecendo «se a sinistrada contribuía ou não para o sustento dos pais».
Após o julgamento, foi proferida sentença que considerou não se verificar a descaracterização do acidente, tendo condenado a ré a pagar «o capital de remição correspondente à pensão anual e vitalícia, para cada um dos AA., de € 817,56, com início em 10/5/2007» e «a quantia de € 1.612,00, a título de despesas de funeral».
2. Inconformada, a seguradora apelou para o Tribunal da Relação do Porto, que negou provimento ao recurso, sendo contra esta decisão que a seguradora agora se insurge, mediante recurso de revista, ao abrigo das seguintes conclusões:
«I. O constante nos pontos 3 e 5 da matéria provada na sentença da 1.ª instância constituem ilícitos, sendo graves violações do disposto nos arts 18.º e 81.º, n.º 2, do CE. Ora, a violação de normas regulamentares como as que aqui estão em causa faz surgir, necessariamente, na esfera jurídica do infractor uma presunção de culpa, sendo esta a posição que vem sendo defendida por doutrina e jurisprudência nacionais. Ao demonstrar aqueles ditos ilícitos, a recorrente satisfez o seu ónus de provar os factos que permitem a descaracterização do sinistro em apreço como de trabalho, por o mesmo se ter ficado a dever a culpa grave e exclusiva da sinistrada.
Que, recorde-se, quis conduzir e conduziu o respectivo veículo quando estava sob a influência de 1,47 g/l [de] álcool no sangue e com os reflexos toldados pelo mesmo.
II. Em face do cumprimento deste ónus, caberia, pois, aos aqui recorridos, provar que a contravenção em causa foi estranha à vontade da sinistrada, tendo na sua base uma qualquer avaria mecânica, caso fortuito ou de força maior, ou que não foi tal facto determinante para o desencadeamento do facto danoso, o que tudo aqueles não lograram, em momento algum, fazer, não se afastando, desta forma, a presunção de culpa que recaía sobre a sinistrada, no bom cumprimento do previsto no art. 342.º do CC.
III. Face à factualidade dada como provada e a tudo o que foi até agora referido dúvidas não podem restar no que se refere à descaracterização do sinistro enquanto acidente de trabalho, pois que o mesmo resultou da violação, sem qualquer razão que o justificasse, das mais elementares regras previstas na lei para o exercício e condução por parte da sinistrada, ficando, desta forma, privada, por sua culpa, do uso da razão, dando assim origem ao acidente de viação em causa, o qual se deveu única e exclusivamente a negligência grosseira da mesma e à privação da mesma e a ela devida do uso da razão, pelo que o tribunal recorrido, ao não o considerar, violou o disposto no art. 7.º da Lei 100/97 e o art. 342.º do CC.
IV. Dos factos 8 e 10 da matéria de facto constante da sentença recorrida consta matéria meramente conclusiva e não factual, pelo que os mesmos, e à semelhança do entendimento do voto de vencido resultante do acórdão de que ora se recorre, deverão ser dados como não escritos, nos termos dos arts 653.º/2, 664.º, 659.º/2 e 3 e 772.º do CPC.
V. Mesmo que assim não se entenda, e se mantenham como escritos aqueles factos, o que aqui se admite como mera hipótese que não se consente, ainda assim não poderão aqueles ser valorados como o foram pelo tribunal recorrido, isto porque, inexistindo factos que os concretizem, maxime se o vencimento da sinistrada era utilizado para fazer face às necessidades do agregado familiar, e no caso afirmativo em que medida, ou se, pelo contrário, aquela contribuía apenas na medida do necessário para o seu próprio sustento, não poderá o tribunal condenar a recorrente no pagamento de qualquer indemnização com base naqueles, no que tudo, ao fazê-lo, o tribunal recorrido violou o disposto no art. 20.º da Lei 100/97 de 13.09.»
Os autores contra-alegaram, defendendo a confirmação do julgado.
3. No caso vertente, as questões suscitadas são as que se passam a enunciar, segundo a ordem lógica que entre as mesmas intercede:
Se os factos 8) e 10) da matéria de facto provada devem ter-se como não escritos, por conterem matéria conclusiva [conclusão IV) da alegação do recurso de revista];
Se está excluído o direito à reparação do acidente por este ter resultado (i) da violação, sem causa justificativa, das regras previstas na lei para o exercício da condução, (ii) de negligência grosseira da sinistrada e (iii) da privação, por sua culpa, do uso da razão [conclusões I) a III) da alegação do recurso de revista];
Se os pais da sinistrada têm direito, em consequência da morte desta, à reparação prevista no Regime Jurídico dos Acidentes de Trabalho e das Doenças Profissionais [conclusão V) da alegação do recurso de revista].
Corridos os «vistos», cumpre decidir.
II
1. O tribunal recorrido considerou provada a seguinte matéria de facto:
1) Os AA. são pais de CC, a qual faleceu no dia 9/5/07, no estado de solteira e sem deixar descendentes — alínea A) da matéria assente;
2) A CC desempenhava a actividade de distribuidora, sob as ordens, direcção e fiscalização de «A… Recursos Humanos, L.da», mediante a remuneração anual de € 5.450,40 — alínea B) da matéria assente;
3) No dia 9/5/07, quando regressava a casa do trabalho, pelo percurso habitualmente utilizado, conduzindo o veículo ligeiro de passageiros de matricula …, ao chegar ao km 83,450 da A3, perdeu o controlo do veículo, entrou em derrapagem e chocou com a frente na parte traseira de um tractor [e] semi-reboque que circulava à sua frente — alínea C) da matéria assente;
4) Em consequência, sofreu lesões corporais que determinaram a sua morte imediata — alínea D) da matéria assente;
5) Apresentava uma taxa de álcool no sangue de 1,47 g/l, o que lhe toldava os movimentos — alínea E) da matéria assente e resposta ao quesito 1.º;
6) A sua entidade patronal havia transferido para a R. seguradora, através de contrato de seguro titulado pela apólice n.º …, a sua responsabilidade por acidente de trabalho ocorrido com aquela sua trabalhadora e pelo salário referido em 2) — alínea F) da matéria assente;
7) O agregado familiar da sinistrada era composto por ela, pelos seus pais, por uma irmã e um cunhado, vivendo todos eles em comunhão de mesa e habitação — resposta ao quesito 3.º;
8) As despesas do agregado familiar, mormente com a alimentação, eram suportadas por todos, contribuindo cada um na medida das suas possibilidades — resposta ao quesito 4.º;
9) A sinistrada, todos os fins-de-semana, contribuía com géneros alimentícios que comprava — resposta ao quesito 5.º;
10) Esta ajuda era necessária para os AA. fazerem face às suas despesas pessoais — resposta ao quesito 7.º;
11) O A. é vendedor — resposta ao quesito 8.º;
12) A A. deixou de trabalhar há cerca de cinco anos por problemas de saúde — resposta ao quesito 9.º;
13) Os AA. são proprietários de duas pequenas leiras, donde apenas retiram vinho para consumo doméstico — resposta ao quesito 10.º
A recorrente sustenta, porém, que «[d]os factos 8 e 10 da matéria de facto constante da sentença recorrida consta matéria meramente conclusiva e não factual, pelo que os mesmos, e à semelhança do entendimento do voto de vencido resultante do acórdão de que ora se recorre, deverão ser dados como não escritos, nos termos dos arts 653.º/2, 664.º, 659.º/2 e 3 e 772.º do CPC», na versão aqui aplicável, anterior à introduzida pelo Decreto-Lei n.º 303/2007, de 24 de Agosto.
Tal questão, reconduzindo-se a saber se a matéria constante de respostas à base instrutória é de direito ou de facto versa, afinal, sobre matéria de direito, pelo que não está subtraída ao conhecimento oficioso deste Supremo Tribunal.
Com efeito, o n.º 4 do artigo 646.º do Código de Processo Civil, dispõe que «[t]êm-se por não escritas as respostas do tribunal colectivo sobre questões de direito e bem assim as dadas sobre factos que só possam ser provados por documentos ou que estejam plenamente provados, quer por documentos, quer por acordo ou confissão das partes».
Atento a que só os factos podem ser objecto de prova, tem-se considerado que o n.º 4 do artigo 646.º citado estende o seu campo de aplicação às asserções de natureza conclusiva, «[n]ão porque tal preceito, expressamente, contemple a situação de sancionar como não escrito um facto conclusivo, mas, como tem sido sustentado pela jurisprudência, porque, analogicamente, aquela disposição é de aplicar a situações em que em causa esteja um facto conclusivo, as quais, em rectas contas, se reconduzem à formulação de um juízo de valor que se deve extrair de factos concretos objecto de alegação e prova, e desde que a matéria se integre no thema decidendum» — acórdão desde Supremo Tribunal, de 23 de Setembro de 2009, Processo n.º 238/06.7TTBGR.S1, da 4.ª Secção, disponível in www.dgsi.pt.
Assim, ainda que a formulação dos aludidos juízos de valor não envolva a interpretação e aplicação de normas jurídicas, devem as afirmações de natureza conclusiva ser excluídas da base instrutória e, quando isso não suceda e o tribunal se pronuncie sobre as mesmas, deve tal resposta ter-se por não escrita.
Ora, o facto provado n.º 8 traduz uma realidade empírica, revelando dados ou ocorrências de vida real («[a]s despesas do agregado familiar, mormente com a alimentação, eram suportadas por todos, contribuindo cada um na medida das suas possibilidades») e que, como tal, não pode ser censurado por este Supremo Tribunal.
Aliás, a sobredita asserção é completada pelo n.º 9 dos factos provados, no qual se refere que «[a] sinistrada, todos os fins-de-semana, contribuía com géneros alimentícios que comprava».
Já o n.º 10 dos factos provados, ao afirmar que «[e]sta ajuda era necessária para os AA. fazerem face às suas despesas pessoais», encerra um juízo de valor só possível de ser alcançado mediante o recurso a critérios de ordem jurídico-normativa e que se integra no thema decidendum, pelo que não pode subsistir no elenco da matéria de facto a considerar.
Assim, nos termos do n.º 4 do artigo 646.º citado, há que eliminar a matéria de facto constante do n.º 10 dos factos provados, dando-a por não escrita.
Será, pois, com base no acervo factual anteriormente delimitado que há-de ser resolvida a questão da qualificação da relação jurídica firmada entre as partes.
2. Em primeira linha, importa examinar a invocada descaracterização do sinistro enquanto acidente de trabalho.
A sentença da primeira instância concluiu que, atenta a matéria de facto provada, não se verificava qualquer das circunstâncias previstas nas alíneas do n.º 1 do artigo 7.º da Lei n.º 100/97, de 13 de Setembro, e que, embora a ré tivesse alegado que o sinistro teria resultado exclusivamente da negligência grosseira da sinistrada, por estar a conduzir com uma taxa de álcool no sangue muito superior ao permitido por lei, «era necessário que se tivesse provado que havia sido essa circunstância, ou antes esse comportamento ilícito da trabalhadora que desencadeou o sinistro — o que não aconteceu».
Por seu turno, o acórdão recorrido, tendo concluído que «[d]o julgamento efectuado não resultam as causas concretas da produção do acidente, ou seja, não foi possível estabelecer [o] nexo causal entre o grau de alcoolemia da sinistrada e o acidente, isto é, não se apurou que tal facto fosse a causa concreta e exclusiva do mesmo», decidiu que, no caso, não se verificava a pretendida descaracterização.
Na revista, a recorrente sustenta que o constante nos pontos 3 e 5 da matéria provada constituem ilícitos, sendo graves violações do disposto nos artigos 18.º e 81.º, n.º 2, do Código da Estrada, violações essas que fazem surgir na esfera jurídica do infractor uma presunção de culpa, pelo que, ao demonstrar aqueles ilícitos, satisfez o seu ónus de provar os factos que permitem a descaracterização do sinistro em apreço como de trabalho, por o mesmo se ter ficado a dever a culpa grave e exclusiva da sinistrada, a qual conduziu o respectivo veículo quando estava sob a influência de 1,47 g/l de álcool no sangue e com os reflexos toldados pelo mesmo.
Assim, prossegue a recorrente, tendo cumprido o referido ónus, caberia aos recorridos provar que as infracções em causa foram estranhas à vontade da sinistrada, emergindo de uma qualquer avaria mecânica, caso fortuito ou de força maior, ou que não foi tal facto determinante para o desencadeamento do facto danoso, o que aqueles não lograram fazer, não tendo afastado a presunção de culpa que recaía sobre a sinistrada, pelo que tudo apontava no sentido da «descaracterização do sinistro enquanto acidente de trabalho, pois que o mesmo resultou da violação, sem qualquer razão que o justificasse, das mais elementares regras previstas na lei para o exercício e condução por parte da sinistrada, ficando, desta forma, privada, por sua culpa, do uso da razão, dando assim origem ao acidente de viação em causa, o qual se deveu única e exclusivamente a negligência grosseira da mesma e à privação da mesma e a ela devida do uso da razão, pelo que o tribunal recorrido, ao não o considerar, violou o disposto no art. 7 da Lei 100/97 e o art. 342.º do CC».
2.1. O direito dos trabalhadores à prestação do trabalho em condições de higiene, segurança e saúde recebeu expresso reconhecimento constitucional na alínea c) do n.º 1 do artigo 59.º da Lei Fundamental, prevendo a alínea f) do n.º 1 do mesmo preceito constitucional, o direito dos trabalhadores à assistência e justa reparação, quando vítimas de acidente de trabalho ou doenças profissionais.
O acidente dos autos ocorreu em 9 de Maio de 2007, por isso, no plano infraconstitucional aplica-se o regime jurídico da Lei n.º 100/97, de 13 de Setembro (Regime Jurídico dos Acidentes de Trabalho e das Doenças Profissionais), que entrou em vigor em 1 de Janeiro de 2000, conforme resulta da alínea a) do n.º 1 do seu artigo 41.º, conjugada com o disposto no n.º 1 do artigo 71.º do Decreto-Lei n.º 143/99, de 30 de Abril (Regulamento da Lei de Acidentes de Trabalho), na redacção que lhe foi dada pelo Decreto-Lei n.º 382-A /99, de 22 de Setembro.
Note-se que, embora o acidente dos autos se tenha verificado após a entrada em vigor do Código do Trabalho, aprovado pela Lei n.º 99/2003, de 27 de Agosto, que ocorreu em 1 de Dezembro de 2003 (n.º 1 do artigo 3.º da Lei n.º 99/2003), não se aplica o respectivo regime, cuja aplicação carecia de regulamentação (artigos 3.º, n.º 2, e 21.º, n.º 2, ambos da Lei n.º 99/2003).
2.2. O n.º 1 do artigo 1.º da Lei n.º 100/97, diploma a que pertencem os demais preceitos a citar neste ponto, sem menção da origem, estabelece que os trabalhadores e seus familiares têm direito à reparação dos danos emergentes de acidentes de trabalho e doenças profissionais, nos termos previstos naquela lei e demais legislação complementar.
E, segundo o n.º 1 do artigo 6.º, entende-se por acidente de trabalho «aquele que se verifique no local e no tempo de trabalho e produza directa ou indirectamente lesão corporal, perturbação funcional ou doença de que resulte a morte ou redução na capacidade de trabalho ou de ganho ou a morte».
Apesar de não ter ocorrido no local de trabalho, o acidente em causa poderá considerar-se também como acidente de trabalho, porque ocorrido no trajecto normalmente utilizado e durante o período de tempo habitualmente gasto pela sinistrada entre o local de trabalho e a sua residência (artigos 6.º, n.º 2, alínea a), da Lei n.º 100/97, e 6.º, n.º 2, alínea a), do Decreto-Lei n.º 143/99).
Porém, o n.º 1 do artigo 7.º, subordinado à epígrafe «Descaracterização do acidente», reza que «[n]ão dá direito a reparação o acidente: a) que for dolosamente provocado pelo sinistrado ou provier de seu acto ou omissão, que importe violação, sem causa justificativa, das condições de segurança estabelecidas pela entidade empregadora ou previstas na lei; b) que provier exclusivamente de negligência grosseira do sinistrado; c) que resultar da privação permanente ou acidental do uso da razão do sinistrado, nos termos da lei civil, salvo se tal privação derivar da própria prestação do trabalho, ou for independente da vontade do sinistrado, ou se a entidade empregadora ou o seu representante, conhecendo o seu estado, consentir na prestação; d) que provier de caso de força maior».
Por sua vez, o artigo 8.º do Decreto-Lei n.º 143/99, de 30 de Abril, esclarece a noção de causa justificativa da violação das condições de segurança estipuladas na lei ou pela empregadora (n.º 1) e delimita o conceito de negligência grosseira (n.º 2).
Assim, nos termos do mencionado artigo 8.º, «[p]ara efeitos do disposto no artigo 7.º da lei, considera-se existir causa justificativa da violação das condições de segurança se o acidente de trabalho resultar de incumprimento de norma legal ou estabelecida pela entidade empregadora da qual o trabalhador, face ao seu grau de instrução ou de acesso à informação, dificilmente teria conhecimento ou, tendo-o, lhe fosse manifestamente difícil entendê-la» (n.º 1), definindo-se a negligência grosseira como «comportamento temerário em alto e relevante grau, que não se consubstancie em acto ou omissão resultante da habitualidade ao perigo do trabalho executado, da confiança na experiência profissional ou dos usos e costumes da profissão» (n.º 2).
A causa excludente do direito à reparação do acidente a que se reporta a segunda parte da alínea a) do n.º 1 do artigo 7.º, tal como se afirmou no acórdão deste Supremo Tribunal, de 17 de Maio de 2007, Processo n.º 53/2007, da 4.ª Secção, disponível in www.dgsi.pt, documento n.º SJ200705170000534, exige a verificação cumulativa dos seguintes requisitos: (i) existência de condições de segurança estabelecidas pelo empregador ou previstas na lei; (ii) acto ou omissão do sinistrado que importe a violação dessas condições de segurança; (iii) voluntariedade desse comportamento, ainda que não intencional, e sem causa justificativa; (iv) nexo causal entre o acto ou omissão do sinistrado e o acidente.
E anote-se que, consoante o entendimento acolhido no sobredito acórdão de 17 de Maio de 2007, a previsão legal constante da referida norma não pretende abarcar todas e quaisquer condições de segurança – onde quer que elas venham previstas e independentemente dos seus destinatários –, antes se reporta às condições de segurança ligadas com a própria execução do trabalho que o sinistrado se obrigou a prestar no exercício da sua actividade laboral.
Relativamente à situação descaracterizadora do acidente prevista na alínea b) do n.º 1 do artigo 7.º, impõe-se que se configure a negligência grosseira do sinistrado e que essa negligência seja a causa exclusiva do acidente.
Conforme é pacífico na doutrina e na jurisprudência, para que ocorra negligência grosseira, não basta a culpa leve, como negligência, imprudência, distracção, imprevidência ou comportamentos semelhantes, exigindo-se um comportamento temerário, reprovado por um elementar sentido de prudência.
Como é sabido, a mera culpa ou negligência traduz-se na violação de um dever objectivo de cuidado, sendo comum distinguir os casos em que o agente prevê a produção do resultado lesivo como possível, mas por leviandade, precipitação, desleixo ou incúria crê na sua não verificação (representa um puro vício de vontade), daqueles que, por inconsideração, descuido, imperícia ou ineptidão, o agente não concebe a possibilidade do resultado lesivo se verificar, podendo e devendo prevê-lo e evitar a sua verificação (representa um vício de representação e de vontade).
No primeiro caso fala-se de negligência consciente, no segundo de negligência inconsciente.
A par das apontadas modalidades de negligência, é tradicional a distinção entre negligência grave, leve e levíssima, em função da intensidade ou grau da ilicitude (a violação do cuidado objectivamente devido) e da culpa (a violação do cuidado que o agente é capaz de prestar segundo os seus conhecimentos e capacidades pessoais).
Neste plano de consideração, a lei acolheu a figura da negligência grosseira que corresponde a uma negligência particularmente grave, qualificada, atento, designadamente, o elevado grau de inobservância do dever objectivo de cuidado e de previsibilidade da verificação do dano ou do perigo.
Trata-se de uma negligência temerária, configurando uma omissão fortemente indesculpável das precauções ou cautelas mais elementares, que deve ser apreciada em concreto, em face das condições da própria vítima e não em função de um padrão geral, abstracto, de conduta.
Assim, para que se verifique a apontada exclusão da responsabilidade emergente de acidente de trabalho é necessária a prova de que ocorreu um acto ou omissão temerários em alto e relevante grau por parte do sinistrado, injustificados pela habitualidade ao perigo do trabalho executado, pela confiança na experiência profissional ou pelos usos e costumes da profissão, e, além disso, que o acidente tenha resultado exclusivamente desse comportamento.
No que toca à previsão da alínea c) do n.º 1 do artigo 7.º, exige-se que o acidente resulte da privação permanente ou acidental do uso da razão do sinistrado, nos termos da lei civil, ressalvadas as circunstâncias expressamente discriminadas.
2.3. Resulta da matéria de facto provada que a sinistrada desempenhava a actividade de distribuidora, sob as ordens, direcção e fiscalização de «A… Recursos Humanos, L.da», e que, no dia 9/5/07, quando regressava a casa do trabalho, pelo percurso habitualmente utilizado, conduzindo o veículo ligeiro de passageiros de matricula …, ao chegar ao km 83,450 da A3, perdeu o controlo do veículo, entrou em derrapagem e chocou com a frente na parte traseira de um veículo pesado que circulava à sua frente, sofrendo, em consequência, lesões corporais que determinaram a sua morte imediata, sendo que apresentava uma taxa de álcool no sangue de 1,47 g/l, «o que lhe toldava os movimentos» [factos provados 2) a 5)].
Na contestação, a ré invocou «[…] o facto de a sinistrada se encontrar, no momento do sinistro, com uma taxa de alcoolemia no sangue de 1,47 (cf. relatório de autópsia junto aos autos), pelo que sob a influência do álcool, o que tudo lhe toldou os movimentos, e provocou o sinistro em apreço», levando à elaboração dos n.os 1 e 2 da Base Instrutória, em que se perguntava, respectivamente, se «[e]m consequência do referido em E) [facto assente no qual se consignou que a sinistrada «apresentava a taxa de álcool no sangue de 1,47 g/l»], a CC tinha os movimentos toldados», «[o] que provocou o acidente referido em C)», tendo o tribunal dado como provado o primeiro desses factos e como não provado o segundo.
Isto é, o tribunal, perante a prova produzida, apenas foi capaz de ajuizar que, por virtude da taxa de álcool no sangue apurada, a sinistrada tinha os movimentos toldados, tendo dado como não provado que o acidente tivesse sido provocado pelo facto da sinistrada apresentar a taxa de álcool no sangue de 1,47 g/l.
Por conseguinte, a sinistrada desempenhava a actividade de distribuidora, sob as ordens, direcção e fiscalização de A… Recursos Humanos, L.da, sendo que o disposto na 2.ª parte da alínea a) do n.º 1 do artigo 7.º da Lei n.º 100/97, como já se explicitou supra, «não pretende abarcar todas e quaisquer condições de segurança — onde quer que elas venham previstas e independentemente dos seus destinatários —, antes se reporta às condições de segurança ligadas com a própria execução do trabalho que o sinistrado se obrigou a prestar no exercício da sua actividade laboral».
No caso, não estão incluídas, nessas específicas condições de segurança, as regras atinentes à segurança rodoviária, que se dirigem a qualquer utente da estrada, pelo que, não se tendo provado que o acidente resultou da violação de condições de segurança pertinentes à actividade profissional desenvolvida pela sinistrada, carece de fundamento legal a descaracterização do acidente de trabalho ao abrigo da 2.ª parte da alínea a) do n.º 1 do artigo 7.º da Lei n.º 100/97.
Relativamente à alegada descaracterização do acidente de trabalho ao abrigo do preceituado na alínea b) do n.º 1 do aludido artigo 7.º, apesar da conduta assumida pela sinistrada se dever qualificar como gravemente culposa, pois conduzia com a taxa de álcool no sangue de 1,47 g/l, o certo é que a ré não conseguiu demonstrar que o acidente proveio exclusivamente dessa sua conduta, ignorando-se as razões pelas quais a sinistrada perdeu o controlo do veículo, entrou em derrapagem e chocou com a frente na parte traseira do veículo que circulava à sua frente.
A este propósito, o acórdão recorrido ponderou o seguinte:
« […] voltando ao acidente dos autos, dir-se-á que quanto à sua dinâmica está, inquestionavelmente, assente, na base instrutória que, em 9 de Maio de 2007, a sinistrada quando regressava a casa do trabalho pelo percurso habitualmente utilizado conduzindo um veiculo ligeiro de passageiros com matricula, …, ao chegar ao quilometro 83,450 da A3 perdeu o controlo do veiculo entrou em derrapagem e chocou com a frente na parte traseira de um tractor semi-reboque que circulava à sua frente, sendo certo que a sinistrada apresentava uma TAS de 1,47g/l e que tal taxa de álcool no sangue lhe toldava os movimentos — resposta ao quesito 1.
Também resulta dos autos não ter sido feita qualquer prova de que o acidente foi determinado pelo facto de a sinistrada conduzir com a referida taxa de álcool e por via disso o quesito 2º da base instrutória teve resposta negativa. Quanto a este ponto concreto dá-se aqui por reproduzido o que consta da fundamentação da matéria de facto — “nenhuma prova foi produzida quanto à matéria que se deu como não provada, sendo de realçar que se ignora, em absoluto, as circunstâncias concretas em que ocorreu o acidente de viação; não é, assim, possível afirmar que este resultou, em maior ou menor grau, dos movimentos menos seguros da sinistrada em consequência da ingestão de álcool; este elemento, por si só, não permite, através da sua simples compaginação com os dados da experiência comum afirmar com a segurança suficiente para se constituir em convicção positiva que foi essa a causa que desencadeou o sinistro, pois que muitos outros factores, igualmente plausíveis, poderiam ter sido os determinantes para a perda do controlo do veículo: falha mecânica, rebentamento de um pneu, encandeamento solar, óleo na estrada, manobra inusitada de terceiro, súbito aparecimento de um animal na via, etc.”»
Ora, pese embora a alegada presunção de culpa reportada, pela recorrente, às infracções rodoviárias indiciadas, para que se verifique a descaracterização do acidente nos termos da alínea b) do n.º 1 do artigo 7.º citado, é necessário, como tem sido jurisprudência corrente, que o mesmo provenha exclusivamente de negligência grosseira do trabalhador, pelo que, na ausência desse pressuposto, não é possível denegar o direito à reparação do acidente, ao abrigo do sobredito normativo.
Resta consignar que, perante a factualidade apurada, e apesar da sinistrada apresentar uma taxa de álcool no sangue de 1,47 g/l, nada permite concluir que a sinistrada se encontrasse privada do uso da razão, apenas se tendo demonstrado que a assinalada taxa de álcool no sangue lhe toldava os movimentos, daí que também não se configure a descaracterização do acidente de trabalho, ao abrigo do disposto na alínea c) do n.º 1 do artigo 7.º da Lei n.º 100/97.
Ora, competia à seguradora, como responsável pela reparação do acidente, o ónus da prova dos factos conducentes à descaracterização do acidente de trabalho, já que tais factos são impeditivos do direito invocado pelos autores (artigo 342.º, n.º 2, do Código Civil), ónus que, no caso concreto, não se mostra cumprido.
Improcedem, pois, as conclusões I) a III) da alegação do recurso de revista.
3. A recorrente defende, por outro lado, que, mesmo que se mantenham como escritos os factos 8) e 10) da matéria de facto provada, «ainda assim não poderão aqueles ser valorados como o foram pelo tribunal recorrido, isto porque, inexistindo factos que os concretizem, maxime se o vencimento da sinistrada era utilizado para fazer face às necessidades do agregado familiar e, no caso afirmativo, em que medida, ou se, pelo contrário, aquela contribuía apenas na medida do necessário para o seu próprio sustento, não poderá o tribunal condenar a recorrente no pagamento de qualquer indemnização com base naqueles, no que tudo, ao fazê-lo, o tribunal recorrido violou o disposto no art. 20.º da Lei 100/97 de 13.09».
No que ora releva, a alínea d) do n.º 1 do artigo 20.º da Lei n.º 100/97, sob a epígrafe «Pensões por morte», estabelece que, se do acidente resultar a morte, terão direito a pensão os ascendentes e quaisquer parentes sucessíveis à data do acidente até perfazerem 18, 22 ou 25 anos, enquanto frequentarem, respectivamente, o ensino secundário ou equiparado ou o ensino superior, «desde que o sinistrado contribuísse com regularidade para o seu sustento».
Esta norma corresponde à alínea d) do n.º 1 da Base XIX da Lei n.º 2127, de 3 de Agosto de 1965, na redacção da Lei n.º 22/92, de 14 de Agosto, que atribuía pensões por morte aos ascendentes e parentes sucessíveis, em condições similares às da lei actual, «desde que a vítima contribuísse com regularidade para o seu sustento».
As expressões transcritas têm sido interpretadas, de forma pacífica pela jurisprudência, no sentido de que o direito dos ascendentes e parentes sucessíveis à pensão por morte de vítima de acidente de trabalho depende do preenchimento de dois requisitos: (i) a contribuição do sinistrado, com carácter de regularidade, para o sustento dos beneficiários; (ii) a necessidade dessa contribuição para o seu sustento.
Verifica-se a sobredita regularidade, quando há contribuições sucessivas, normalmente equidistantes no tempo, à medida que a vítima vai percebendo o seu salário, e com as quais os beneficiários contavam para o seu sustento.
Registe-se que não é necessário que o sinistrado satisfaça a totalidade das necessidades dos beneficiários e, além disso, que é irrelevante o quantitativo que os beneficiários concretamente beneficiam em proveito próprio.
Doutro passo, a exigência da necessidade da contribuição do sinistrado para o sustento dos beneficiários funda-se na constatação de que o direito dos familiares da vítima à pensão, consagrado na alínea d) do n.º 1 do artigo 20.º da Lei n.º 100/97, é uma emanação do instituto da obrigação alimentar, e esta apenas existe a favor das pessoas que não podem prover integralmente ao seu sustento, como flui do disposto nos artigos 2003.º e 2004.º, ambos do Código Civil.
Ora, no quadro desse concreto instituto, a medida dos alimentos afere-se pela «necessidade daquele que houver de recebê-los» (artigo 2004.º, n.º 1, do Código Civil), sendo que a obrigação de prestar alimentos cessa quando aquele que os recebe deixe de precisar deles [artigo 2013.º, n.º 1, alínea b), do Código Civil].
Como se afirmou no acórdão deste Supremo Tribunal, de 7 de Junho de 2000, proferido na Revista n.º 31/2000, da 4.ª Secção, tal necessidade «não deve ter--se por absoluta e total, alheando-se de padrões de mínima subsistência e de indigência, sempre há-de representar um contributo sem o qual a subsistência e o sustento são afectados em termos de diminuição da qualidade de vida correspondente ao seu estatuto pessoal e social».
Nesta conformidade, o juízo sobre a efectiva necessidade da contribuição que lhes era prestada pelo sinistrado pressupõe, necessariamente, a prova da sua situação económica, com referência ao confronto entre os rendimentos do trabalho ou outros auferidos por cada um dos autores e os encargos do agregado familiar.
Assim, no que respeita aos ascendentes e parentes sucessíveis, a lei exige a demonstração de uma efectiva dependência económica em relação às contribuições do sinistrado, para que assumam a categoria de beneficiários, sendo que compete àqueles o ónus de alegar e provar os anteditos requisitos, visto que consubstanciam os factos constitutivos do direito arrogado — artigo 342.º, n.º 1, do Código Civil.
No caso, provou-se que «[o]s AA. são pais de CC, a qual faleceu no dia 9/5/07, no estado de solteira e sem deixar descendentes» e que «[o] agregado familiar da sinistrada era composto por ela, pelos seus pais, por uma irmã e um cunhado, vivendo todos eles em comunhão de mesa e habitação» [factos provados 1) e 7)].
Mais se apurou que:
«8) As despesas do agregado familiar, mormente com a alimentação, eram suportadas por todos, contribuindo cada um na medida das suas possibilidades;
9) A sinistrada, todos os fins-de-semana, contribuía com géneros alimentícios que comprava;
11) O A. é vendedor;
12) A A. deixou de trabalhar há cerca de cinco anos por problemas de saúde;
13) Os AA. são proprietários de duas pequenas leiras, donde apenas retiram vinho para consumo doméstico.»
Ora, tendo-se provado que as despesas do agregado familiar a que pertencia a sinistrada, mormente com a alimentação, eram suportadas por todos, contribuindo cada um na medida das suas possibilidades, e que aquela, todos os fins-de-semana, contribuía com géneros alimentícios que comprava, está verificado o primeiro requisito de que a lei faz depender o direito à pensão que os autores reclamam.
Quanto ao requisito da necessidade dessa contribuição para o sustento dos autores, apenas se provou que a autora, mãe da sinistrada, «deixou de trabalhar há cerca de cinco anos por problemas de saúde».
E, relativamente ao pai da sinistrada, provou-se que é vendedor, mas não se apurou que retribuição ou outros eventuais rendimentos auferia, isto é, não se provou a correspondente situação económica.
Na verdade, perguntava-se no artigo 8.º da base instrutória se «[o] A. aufere como vendedor a quantia líquida mensal de € 535,00», apenas se tendo provado que «[o] A. é vendedor».
Não resulta, pois, da factualidade provada qual a relevância que o contributo da sinistrada assumia para o sustento dos autores, daí que não se possa concluir que tinham necessidade dessa contribuição para fazerem face às suas despesas pessoais.
Nesta conformidade, não se mostram preenchidos os necessários requisitos para a atribuição da pensão por morte da sinistrada aos autores, o que prejudica, do mesmo passo, a peticionada reparação por despesas de funeral.
III
Pelo exposto, decide-se conceder a revista, revogar o acórdão recorrido e absolver a ré do pedido formulado pelos autores.
Sem custas, nas instâncias e na revista, porque os autores, patrocinados pelo Ministério Público, estão delas isentos.

Lisboa, 25 de Novembro de 2009
Pinto Hespanhol (Relator)
Vasques Dinis
Bravo Serra