Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
06S4613
Nº Convencional: JSTJ000
Relator: FERNANDES CADILHA
Descritores: ACIDENTE DE TRABALHO
DESCARACTERIZAÇÃO DE ACIDENTE
ALCOOLÉMIA
NEXO DE CAUSALIDADE
Nº do Documento: SJ200703010046134
Data do Acordão: 03/01/2007
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA
Sumário :
Não é possível considerar descaracterizado o acidente de trabalho, por negligência grosseira do sinistrado, nos termos previstos da alínea b) do n.º 1 do artigo 7º da Lei n.º 100/97, de 13 de Setembro, quando se não encontram determinadas as causas próximas da ocorrência e se não demonstra que ele tenha sido devido, em exclusivo, à elevada taxa de alcoolémia que o sinistrado apresentava nessa ocasião.
Decisão Texto Integral:
Acordam na Secção Social do Supremo Tribunal de Justiça

1. Relatório.

AA, patrocinada pelo Ministério Público intentou a presente acção emergente de acidente de trabalho contra a ... – Companhia de Seguros, S.A., com sede em Lisboa, pedindo o pagamento das pensões e indemnizações devidas pelo acidente de trabalho de que resultou a morte do seu cônjuge BB, ocorrido quando prestava a sua actividade profissional a favor da entidade patronal ... – Agregados e Extracção de Inertes, Ld.ª, que havia transferido a sua responsabilidade infortunística para seguradora.

Tendo sido suscitada, na contestação, a descaracterização do acidente, por virtude, além do mais, da elevada taxa de alcoolémia que o sinistrado acusava na ocasião em que ele ocorreu, a sentença de primeira instância veio, todavia, a considerar insubsistente essa questão e a julgar procedente a acção, por ter entendido que não se encontra apurado nos autos a relação causal entre a excessiva ingestão de álcool e a produção do acidente, não sendo, por isso, possível atribuí-lo a negligência grosseira do sinistrado.

Em apelação, o Tribunal da Relação do Porto manteve o mesmo entendimento, vindo a concluir que, desconhecendo-se as causas do acidente e não estando provado o nexo de causalidade adequada entre o grau de alcoolémia e o acidente, o caso não é subsumível na previsão do artigo 7º, n.º 1, alínea b), da Lei n.º 100/97, de 13 de Setembro, e, por conseguinte, não pode considerar-se excluído o direito à reparação.

É contra esta decisão que a ré seguradora de novo reage, mediante recurso de revista, em que formula as seguintes conclusões:

1. A infeliz vítima cometeu uma temeridade em alto e relevante grau na medida em que, estando sob o efeito do álcool com uma taxa de 2,45 g/litro e com as suas capacidades necessariamente afectadas, decidiu, de sua iniciativa, pôr em marcha uma máquina carregadora "pá de rodas";
2. E, pior do que isso, abandonou a cabine da máquina logo a seguir a tê-la posto em movimento, com esta a rolar em manobra de recuo;
3. Sem que haja para o facto qualquer explicação;
4. Pois a máquina continuou a rolar normalmente, obedecendo aos comandos que lhe tinham sido imprimidos pela vítima e sem que se tenha, antes ou depois do infeliz evento, detectado qualquer avaria na "Furukava";
6. De tão arriscado acto resultou, como era previsível, que a vítima acabou por ser colhida pelo rodado da máquina em movimento;
7. O que causou a sua morte.
8. O sinistro ficou assim a dever-se, em exclusivo, a comportamento temerário em alto e relevante grau, consubstanciador de negligência grosseira do sinistrado.
9. Não tendo reconhecido que estão preenchidas as hipóteses dos arts. 7.°, n.º 1,
alínea b), da Lei n.º 100/97, de 13 de Setembro, e 8.°, n.º 2, da Lei n.º 143/99, de 30 de Abril, como efectivamente estão;
10. O Tribunal da Relação - que manteve a decisão de primeira instancia – violou estas disposições legais.

O magistrado do Ministério Público, em representação da autora, contra-alegou, defendendo a manutenção do julgado

Colhidos os vistos dos Juízes Adjuntos, cumpre apreciar e decidir.

2. Matéria de facto.

As instâncias deram como provada a seguinte matéria de facto:

a) No dia 3 de Maio de 2004, em Sobrado, Vila das Aves, Santo Tirso, o sinistrado BB trabalhava, como operador de fragmentação, sob as ordens, direcção e fiscalização de ... – Agregados e Extracção de Inertes, Ld.ª.
b) Auferia a retribuição € 584,48 [ e não € 548,48, como se veio a reconhecer pelo douto despacho de fls. 172 e 173] x 14 + € 118,14 x 11 + € 545,47 x 12.
c) No dia do acidente a vítima tinha procedido à lubrificação de uma máquina britadeira, conhecida por “primário”.
d) Para o desempenho de tal tarefa são, normalmente, utilizadas as máquinas de perfuração e de lubrificação e a massa de lubrificação.
e) Pelo seu peso e volume, tais elementos carecem de ser transportados para o local por sistema mecânico de transporte.
f) Naquele dia, os referidos elementos foram carregados para a proximidade do “primário” através de uma máquina pá de rodas, marca Furukava.
g) A movimentação de tal máquina foi feita pelo seu manobrador habitual, A...T...
h) Após a conclusão da lubrificação do primário, as peças referidas foram novamente colocadas no balde da Furukava, para serem retiradas do local.
i) Mostrava-se necessário retirar a aludida máquina do local, para que, à hora do início da laboração da pedreira, o primário estivesse operacional.
j) Foi então que o sinistrado, por si só, decidiu pôr a Furukava a trabalhar, que tinha a si atrelado um tanque de rega.
k) Pôs a máquina a trabalhar, engrenou a marcha-atrás e iniciou a viagem, com a máquina em manobra de recuo.
l) O piso ali era plano e ligeiramente descendente, atento o sentido que a máquina prosseguia.
m) Ao iniciar a condução de uma pá carregadora “ROC” em direcção à oficina, abandonou a respectiva cabine, tendo, então, sido apanhado por um rodado dessa máquina, quando esta circulava em marcha-atrás.
n) Na altura em que o sinistrado abandonou a pá carregadora, esta deslizava rumo a um precipício.
o) Em consequência sofreu fractura transversal do andar médio da calote craniana e hemorragia sub-aracnoideia parietal esquerda, lesões que lhe determinaram, directa e necessariamente, a morte.
p) Após o sinistro a máquina continuou a rolar em recuo, sem ninguém a conduzi-la, com a marcha-atrás engrenada, até se imobilizar junto a um talude.
q) Não tinha ele recebido formação para conduzir tal veículo, pois que o seu trabalho se desenvolvia junto do primário.
r) Porém, frequentes vezes o sinistrado conduzira anteriormente aquela máquina e sempre o fizera com o conhecimento e sem oposição da sua entidade patronal.
s) Apresentava na altura do sinistro uma taxa de alcoolémia de 2,45 g/l de sangue, encontrando-se, por isso, sob o efeito do álcoo
t) Antes e depois do sinistro, a máquina não evidenciava qualquer avaria. u) O sinistrado faleceu no Hospital de Guimarães e foi sepultado em Santo Tirso.
v) A autora é viúva da vítima e nasceu a 21.11.61.
w) Despendeu ela a quantia de € 10,00 em transportes nas vindas a Tribunal, a diligências para que foi regularmente convocada.
x) À data do acidente, a responsabilidade infortunística da entidade, em sede de acidentes de trabalho, encontrava-se transferida para Ré através do contrato de seguro titulado pela apólice nº AT82005630, pela totalidade do salário auferido pela vítima.

3. Fundamentação de direito.

A única questão em debate no presente recurso consiste em saber se face à factualidade apurada se deve considerar descaracterizado o acidente de trabalho, por negligência grosseira imputável ao sinistrado.

As instâncias consideraram, no essencial, que não se determinaram as concretas circunstâncias em que ocorreu o acidente e também se não apurou em que termos é que a ingestão de álcool pode ter afectado as faculdades e a capacidade reactiva do sinistrado, pelo que não foi possível estabelecer um exclusivo nexo causal entre o comportamento do trabalhador e a ocorrência do acidente.

A ré discorda deste entendimento, argumentando que os factos provados evidenciam um comportamento temerário em alto e relevante grau, porquanto este decidiu, por sua iniciativa, pôr em marcha uma máquina pesada, quando se encontrava sob o efeito do álcool com uma taxa de 2,45 g/litro e com as suas capacidades necessariamente afectadas, além de que abandonou a cabine da máquina logo a seguir a tê-la posto em movimento, com esta a rolar em manobra de recuo.

Para dilucidar a questão suscitada, importa começar por chamar à colação o regime jurídico ao caso aplicável.

O artigo 7° da Lei n.° 100/97, de 13 de Setembro, sob a epígrafe “Descaracterização do acidente”, dispõe o seguinte:

"1 - Não dá direito a reparação o acidente:

a) Que for dolosamente provocado pelo sinistrado ou provier de seu acto ou omissão, que importe violação, sem causa justificativa, das condições de segurança estabelecidas pela entidade empregadora ou previstas na lei;
b) Que provier exclusivamente de negligência grosseira do sinistrado;
c) Que resultar da privação permanente ou acidental do uso da razão do sinistrado, nos termos da lei civil, salvo se tal privação derivar da própria prestação do trabalho, for independente da vontade do sinistrado ou se a entidade empregadora ou o seu representante, conhecendo o estado do sinistrado, consentir na prestação;
d) Que provier de caso de força maior."

Por outro lado, constitui entendimento jurisprudencial pacífico que é à entidade responsável que cabe o ónus da prova dos factos descaracterizadores do acidente, tendo em conta que estes constituem factos impeditivos do direito invocado pelo sinistrados ou seus beneficiários (entre outros, os acórdãos do STJ de 21 de Abril de 1999, Processo n° 3/99, 12 de Maio de 1999, Processo n.º 104/99, 16 de Dezembro de 1999, Processo n.º 196/99, e 1 de Junho de 2000, Processo n.º 102/2000).

No caso dos autos, e com especial incidência sobre os aspectos em discussão, a recorrente, na sua contestação, alegou o seguinte:

- foi então que o infeliz BB, de seu alvedrio, decidiu pôr a Furukava a
trabalhar, quando esta tinha ainda atrelada a si um tanque de rega (artigo 8º);
- o BB não tinha recebido formação para conduzir este veículo (9º);
- tinha pouca experiência a conduzi-la, pois a sua função na empresa consistia
em desenvolver o seu trabalho junto do primário (10º);
- encontrava-se sob o efeito do álcool, apresentando uma taxa de alcoolémia de 2,45 gramas por litro de sangue (11º);
- que o privava do uso da razão (12º);
- pôs a máquina a trabalhar, engrenou a marcha-atrás e assim iniciou a viagem (13º);
- todavia, após ter rodado não mais de vinte metros, o BB saiu da máquina com esta em andamento e o motor a trabalhar (16º);
- e sem que previamente tivesse imobilizado a sua marcha (17º);
- o BB desceu pelo lado esquerdo da máquina, pela sua porta e deslizou por ela abaixo, de forma a colocar-se entre as rodas do lado esquerdo, sempre em andamento (18º);
- acabando por ser esmagado pela roda da frente da máquina que seguia rolando em marcha-atrás (19º);
- após o sinistro a máquina continuou a rolar em recuo, sem ninguém a conduzi­la, com a marcha-atrás engrenada, até se imobilizar junto a um talude (20º).

Toda esta factualidade, pela qual a contestante pretendia descrever as circunstâncias em que ocorreu o acidente e demonstrar a influência que a taxa de alcoolémia poderia ter tido na capacidade psicomotora do sinistrado, transitou para a base instrutória, passando a constituir os quesitos 8º a 16º e 19º a 22º.

Os quesitos 8º, 9º e 10º, que reproduziam o alegado nos artigos 8º e 9º da contestação, foram dados como provados. Mas ao quesito 11º, em que se perguntava se o sinistrado tinha pouca experiência na condução da máquina pesada (questão aduzida no artigo 10º da contestação), o tribunal respondeu restritivamente, dando como provado apenas o que consta da resposta ao quesito 3º, isto é, que o sinistrado “frequentes vezes conduzira anteriormente aquela máquina”.

Provou-se ainda que o trabalhador apresentava, na altura do sinistro, uma taxa de alcoolémia de 2,45 gramas por litro de sangue, e que por isso se encontrava sob o efeito do álcool, factos alegados no artigo 11º da contestação e que constituíam os quesitos 13º e 14º da base instrutória; mas quanto à alegação de que a ingestão de álcool o privava do uso da razão, que constava do artigo 12º da contestação e tinha transitado para o quesito 15º, o tribunal respondeu não provado.

Relativamente às circunstâncias em que o sinistrado foi colhido, interessavam os quesitos 19º, 20º, 21º e 22º, elaborados com base no que se alegara nos artigos 16º a 19º da contestação.

Perguntava-se:

19º - Após ter rodado não mais de vinte metros, o sinistrado saiu da máquina com esta em andamento e o motor a trabalhar ?
20º - Desceu pelo lado esquerdo da máquina, pela sua porta e deslizou por ela abaixo ?
21º - De forma a colocar-se entre as rodas do lado esquerdo, enquanto que a máquina continuava em andamento ?
22º Acabando por ser esmagado pela roda da frente da máquina que seguia em marcha-atrás ?

A resposta do tribunal quanto a essa matéria foi a seguinte: Provado apenas o que consta da alínea C) dos factos provados. Isto é, provado apenas que “ao iniciar a condução de uma pá carregadora “ROC” em direcção à oficina, abandonou a respectiva cabine, tendo, então, sido apanhado por um rodado dessa máquina, quando esta circulava em marcha-atrás” (alínea m) da decisão de facto antes transcrita).

Temos, por conseguinte, quanto ao circunstancialismo em que se verificou o atropelamento do sinistrado, que não se provou a versão dos factos que a ré tinha alegado, que indiciaria um comportamento altamente temerário. Apenas se demonstra que o trabalhador abandonou o veículo – não se sabendo por que razões ou com que objectivo – e que foi apanhado por um rodado – sem que se conheçam as circunstâncias concretas em que tal sucedeu.

E não pode sequer dizer-se que o sinistrado incorreu num comportamento temerário e indesculpável por não possuir a necessária preparação para manobrar uma máquina daquele tipo, quando que se demonstra que frequentes vezes a conduzira, anteriormente, com o conhecimento e sem oposição da sua entidade patronal (alínea r) da decisão de facto), o que faz supor que lhe era reconhecido um mínimo de aptidão e perícia técnica para a operar, ao menos ocasionalmente.

Por outro lado, embora se tenha provado que o sinistrado apresentava um elevado grau de alcoolémia, não se demonstrou que a quantidade de álcool ingerida o tenha privado da razão ou que, de algum modo, tenha afectado a sua capacidade de reacção ou de análise de riscos ou a percepção dos obstáculos e das distâncias, valendo aqui plenamente as considerações expendidas pelo Tribunal da Relação, já que a capacidade de resistência varia de individuo para individuo em função de diversos factores e não pode falar-se, a esse propósito, em reacções padrão por cada quantidade de álcool ingerido (quanto a este aspecto, em situação similar, o acórdão do STJ de 29 de Outubro de 2003, no Processo n.º 2056/03).

E neste condicionalismo, não poderá concluir-se que a taxa de alcoolémia e o défice de capacidade psico­motora a ela eventualmente associada foi causa exclusiva do acidente, não sendo, por isso, de excluir que ele se tenha ficado a dever a outros factores, que se não encontram também esclarecidos nos autos, visto que se desconhecem as causas próximas da ocorrência (neste sentido, em caso semelhante, além do aresto citado, o acórdão do STJ de 8 de Junho de 2006, Processo n.º 1538/06).

Ora, conforme tem sido jurisprudência corrente, para que se verifique a descaracterização do acidente nos termos previstos na alínea b) do n. ° 1 do artigo 7° da Lei n.º 100/97, é necessário que o mesmo provenha exclusivamente de negligência grosseira do trabalhador, pelo que, na ausência desse pressuposto, não é possível denegar o direito à reparação (acórdãos do STJ de 21 de Abril de 1999, Processo n° 3/99, 16 de Dezembro de 1999, Processo n.º 196/99, 4 de Dezembro de 2002, Processo n.º 2426/02).

4. Decisão

Em face do exposto, acordam em negar a revista e confirmar a decisão recorrida.

Custas pela recorrente.

Lisboa, 1 de Março de 2007

Fernandes Cadilha (relator)
Mário Pereira
Maria Laura Leonardo