Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
1911/16.7T8STS-G.P2.S1
Nº Convencional: 6.ª SECÇÃO
Relator: LUIS ESPÍRITO SANTO
Descritores: ABUSO DO DIREITO
ADMINISTRADOR DE INSOLVÊNCIA
CONTRATO-PROMESSA
INCUMPRIMENTO
RECUSA
Data do Acordão: 06/25/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA (COMÉRCIO)
Decisão: REVISTA IMPROCEDENTE.
Sumário :

I - Resulta da conjugação dos artigos 102º, nº 1, e 106º, nº 1, do CIRE, que o administrador da insolvência apenas fica adstrito ao dever de celebrar o contrato prometido firmado pela ora insolvente (não o podendo recusar) se o contrato promessa tiver eficácia real, existindo ainda tradição da coisa a favor do promitente comprador, sendo que, no caso de o contrato promessa revestir eficácia meramente obrigacional, como sucede na situação sub judice, assistirá ao administrador da insolvência o direito a recusar a celebração do contrato definitivo, o que se compreende na medida em que a sua função principal (não descurando a sua qualidade de servidor da justiça e do direito, e o dever de mostrar-se digno da honra e das responsabilidades que lhe são inerentes em conformidade com o disposto no artigo 12º, nº 1, do Estatuto do Administrador Judicial, aprovado pela Lei nº 22/2013, de 26 de Fevereiro), é a de prosseguir a satisfação máxima dos direitos dos credores da insolvente, em conformidade com o disposto no artigo 1º, nº 1, do CIRE.

II – A válvula de segurança do sistema prevista no artigo 334º do Código Civil, respeitante à figura do abuso do direito, visa primacialmente salvaguardar situações que se prendem com valores essenciais e nevrálgicos do ordenamento jurídico, envolvendo necessariamente a defesa e afirmação de princípios elementares de justiça e premente reposição do equilíbrio de interesses, por sua natureza intangíveis, e que de outra forma – sem a qualificação como ilícito do modo de exercício desse (aparente) direito pelo seu titular - seriam grave e irreversivelmente afectados (ou mesmo aniquilados) por força da aplicação puramente formal ao caso dos institutos jurídicos genérica e abstractamente avocados a regulá-lo.

III - No fundo, trata-se de evitar uma clamorosa injustiça, profundamente irritante e totalmente intolerável para o mais elementar senso jurídico, resultante da utilização enviesada e altamente censurável das faculdades concedidas ao titular do direito que as aproveita de modo notoriamente abusivo, extrapolando em absoluto os fundamentos e as finalidades sócio económicos que justificaram a sua atribuição pelo ordenamento.

IV – Não é qualificável como abuso do direito a recusa do administrador da insolvência na celebração do contrato prometido quando não foi confrontado, em termos perfeitamente seguros, com a demonstração do integral pagamento pelos promitentes compradores do preço da coisa prometida vender; quando a cessão da posição contratual da promitente compradora que veio a ocorrer obrigaria, nos termos da cláusula quarta do contrato promessa, à celebração de novo contrato promessa com a promitente vendedora, o que nunca aconteceu; quando a tradição da coisa, segundo a cláusula sexta do contrato promessa, obrigava à realização prévia de “um auto de recepção provisório assinado pela promitente compradora”, o que nunca aconteceu; quando o contrato fora celebrado entre duas sociedades comerciais, o que afastava, à partida, que se destinasse a habitação da promitente compradora, sendo certo que se veio a provar nos autos que a gerente desta e cessionária da sua posição contratual nunca residiu de facto na fracção autónoma em causa (arrendada a terceiros até ao ano de 2017, ou seja, até data posterior à declaração de insolvência da promitente vendedora).

V- De resto, na situação sub judice, os promitentes compradores tiveram à sua inteira disposição a possibilidade de reclamar os seus créditos, eventualmente tutelados por direito de retenção nos termos do artigo 755º, alínea f), do Código Civil, não o tendo feito por responsabilidade exclusivamente sua, sendo que a própria acção de verificação ulterior de créditos, instaurada ao abrigo do artigo 146º do CIRE, foi apresentada fora do prazo legalmente destinado a esse efeito.

VI – Acontece outrossim que o feixe variado de pedidos formulados, a título principal, na presente acção – mormente a aquisição da propriedade do imóvel por usucapião; o reconhecimento do seu crédito; a sua protecção derivada do direito de retenção, com prevalência sobre os créditos hipotecários, ainda que registados anteriormente; a dita “restituição integral dos montantes por si entregues” – soçobraram por ausência do indispensável fundamento legal, não existindo justificação séria para concluir que o administrador da insolvência, ao praticar o acto de recusa em causa (que é absolutamente independente da eventual ilicitude da conduta da promitente vendedora), houvesse de algum modo, perante as circunstâncias que na altura percepcionou, incorrido em abuso do direito e que devesse assim ser condenado à celebração do contrato prometido (o que os AA. nem sequer, e em rigor, pediram nestes autos).

Decisão Texto Integral:


Descritores

Revista nº 1911/16.7T8STS-G.P2.S1.

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça (6ª Secção - Cível):

I – Relatório.

Instauraram AA e BB, à data da instauração da ação menor e representada pelo seu tutor CC, ambos por si e em representação da HERANÇA JACENTE DE DD, a presente ação de restituição e separação de bens, sob a forma de processo comum, contra a MASSA INSOLVENTE DE “CECOMINSA - SOCIEDADE DE PROMOÇÃO IMOBILIÁRIA, LDA.”, CREDORES DA MASSA INSOLVENTE e devedora “CECOMINSA - SOCIEDADE DE PROMOÇÃO IMOBILIÁRIA, LDA.”

Essencialmente alegaram:

São herdeiros da falecida DD.

Adquiriram por usucapião a fração B do prédio n.º ..88 apreendida indevidamente para a Massa Insolvente.

A posse adveio por sucessão na sequência do óbito de DD e na sequência de celebração de contrato-promessa com traditio entre a insolvente e a sociedade “P...” e posteriores cessões de posição contratual de promitente-compradora para DD.

Pretendem a acessão da sua posse com a dos anteriores ante-possuidores, incluindo aqui a própria sociedade insolvente.

Mais invocam a titularidade dos bens móveis existentes no interior do imóvel e a realização das benfeitorias descritas na petição inicial.

Alegam, ainda, o incumprimento do contrato-promessa por parte da sociedade insolvente e massa insolvente, invocando direito de crédito com direito de retenção.

Finalmente referem o abuso do direito da massa insolvente, por violação do princípio da boa fé.

Conclui peticionando:

a) que seja judicialmente declarado que beneficiam da acessão da posse de todos os anteriores antepossuidores nos termos expostos e nos termos do disposto nos art.º 1255.º, 1256.º, n.º 1, 1293.º, alínea a), 1297.º e 1300.º, n.º 1, todos do Código Civil;

b) que sejam os Réus condenados a reconhecer o seu direito de propriedade sobre a citada fração, não só pela forma derivada – sucessão –, mas também através de aquisição originária, por usucapião, de harmonia com as disposições conjugadas dos art.º 1263.º, alínea a), 1268.º, n.º 1, 1287.º, 1296.º e 1316.º, todos do Código Civil;

c) que seja judicialmente declarada a nulidade da apreensão efetuada pela Massa Insolvente quanto ao imóvel sub judice, porque tal apreensão configura apreensão de bens alheios e é nesta medida nula (ex vi do disposto nos art.º 892.º e 939.º, ambos do Código Civil);

d) que sejam cancelados todos os registos prediais que contrariam a invocada propriedade, mormente o de apreensão a favor da massa insolvente do imóvel sito na Rua..., freguesia e concelho ..., sendo os mesmos residentes na mesma morada supra mencionada, com a respetiva matriz atual sob o artigo ..60, que teve origem no artigo ..58, descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o n.º ....-B;

e) Ocorrendo a venda do imóvel supra mencionado, seja judicialmente declarada a nulidade de tal ato por configurar a venda de bens que pertencem a terceiro nos termos expostos, ex vi do disposto no art.º 892.º do Código Civil;

f) que seja a Massa Insolvente condenada a reconhecer o seu direito de propriedade sobre todos os móveis que estão no interior do imóvel melhor identificados e descritos na presente peça processual e a restituir-lhes os mesmos;

g) que seja judicialmente declarado que eles e seus antepossuidores realizaram as benfeitorias necessárias de adaptação melhor descritas supra no imóvel sub judice, no valor de pelo menos 15.000,00€;

h) que sejam os Réus condenados a procederam à restituição e separação da massa do bem imóvel sito na Rua..., freguesia e concelho ..., sendo os mesmos residentes na mesma morada supra mencionada, com a respetiva matriz atual sob o artigo ..60, que teve origem no artigo ..58, descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o n.º ....-B;

Subsidiariamente:

i) que seja judicialmente declarado que lhes assiste o direito de retenção por incumprimento da promessa da vendedora, previsto no art.º 755.º, alínea f), do Código Civil e, em conformidade, ser a Massa Insolvente condenada a abster-se da prática de todos os atos lesivos deste direito até que se resolva e transite em julgado toda a situação submetida a juízo e ínsita em todo o petitório final apresentado;

j) que seja judicialmente declarado que tal direito se sobrepõe a todos os demais credores nos termos da lei, mormente sobre que figuram no registo predial do imóvel sub judice;

k) que seja judicialmente declarado e julgada a execução específica do contrato promessa sub judice habilitando-os com sentença que substitua como título a declaração do promitente vendedor faltoso habilitando-os então a procederem ao registo do bem a favor dos herdeiros da de cujus DD em comum e sem determinação de parte ou direito;

l) Caso assim não se entenda, de novo de forma subsidiária, que seja reconhecido o valor integralmente pago com os serviços supra mencionados de empreitada prestados pela empresa “P..., Lda” e a esta pagos pela de cujus DD do imóvel supra mencionado e a restituição do preço integralmente pago pelo imóvel supra mencionado e ainda seja declarado o abuso de direito dos Réus por violação do princípio da boa-fé, nos termos do disposto nos art.º 1207.º, 798.º, 433.º e 289.º todos do CC.

Contestou a Ré deduzindo a exceção de ilegitimidade ativa e a exceção de caducidade do direito invocado (considerando que a ação deveria ser intentada no prazo de 30 dias fixado para a reclamação de créditos, atento o disposto no art. 141.º CIRE), defendendo-se ainda por impugnação.

Foi proferida em 1ª instância sentença que julgou a acção parcialmente procedente e, em consequência, condenou a Ré Massa insolvente a reconhecer o direito de propriedade dos autores sobre a mobília e roupas existentes no interior da fração apreendida n.º ....-B e a restituir aos autores esses mesmos bens móveis; declarou que os autores e a sua falecida mãe realizaram na fração apreendida n.º ....-B as benfeitorias/ obras/adaptações/melhoramentos de pinturas e descritas no ponto 43 dos Factos Provados, no valor de pelo menos € 15.000,00; e absolveu os Réus dos demais pedidos formulados nos autos.

Foi interposto pelos AA. recurso de apelação.

Por acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 20 de Fevereiro de 2024 foi a apelação julgada improcedente, confirmando a decisão recorrida

Vieram os AA. interpor recurso de revista excepcional, nos termos do artigo 672º, nº 1, alínea c), do Código de Processo Civil, apresentando as seguintes conclusões:

1. A decisão que aqui se recorre do Tribunal da Relação do Porto concluiu que não existia abuso de direito na actuação da Ex.ma A.I. dos presentes autos

2. Os recorrentes interpõem o presente recurso para o Supremo Tribunal de Justiça e invocam contradição de julgados, no domínio da mesma legislação e sobre a mesma questão fundamental de direito, com o acórdão, já transitado em julgado, proferido pelo Tribunal da Relação de Lisboa, no âmbito do processo n.º 1932/19.8T8PDL-S.L1-1, datado de 04-07-2023, Relator Manuel Ribeiro Marques, disponível em www.dgsi.pt, no domínio da mesma legislação e sobre a mesma questão fundamental de direito, nos termos do disposto no artigo 672.º, n.º 1 e n.º 2 do CPC.

3. A questão em causa atenta a complexidade obedece ainda a contornos de particular relevância social e de jurídica para uma melhor aplicação do direito.

4. O acórdão fundamento refere em súmula que:

“1. Não tendo o contrato promessa eficácia real, pode ser afectado o negócio, podendo ser recusado o cumprimento desse contrato mesmo que se tenha verificado tradição da coisa, conforme disposto no n.º 1 do art.º 106 do CIRE, interpretação "a contrario”.

2. Nada impede que a norma do art.º 102, n.º 4, do CIRE se estenda à opção pela recusa de cumprimento, devendo entender-se que a recusa é abusiva, no âmbito do contrato-promessa, quando o preço está total ou quase totalmente pago (contrato-promessa com antecipação dos efeitos do contrato- prometido).

3. Os administradores judiciais devem, no exercício das suas funções e fora delas, considerar-se servidores da justiça e do direito (art.º 12º, 1 do EAJ), esperando-se dos mesmos uma actuação pautada por um critério semelhante ao do bonus pater famílias.

4. Caso o promitente-comprador tenha pago integralmente o preço, a recusa do cumprimento do contrato-promessa em tais circunstâncias por parte do AI, sem que, concomitantemente, se disponha a restituir os valores que se vierem a apurar terem sido pagos por aquele a título de sinal, sob a invocação formal de que este não reclamou o seu crédito nos autos de insolvência, constituirá um abuso na utilização do poder contido na estrutura do direito, sendo clamorosamente ofensivo do sentimento de justiça e dos ditames da lealdade e da correcção imperantes na ordem jurídica e nas relações sociais.”.

5. O acórdão fundamento interpretou numa situação com similitude aos presentes autos no caso da promitente-compradora tenha pago integralmente o preço (como no caso sub judice em discussão nos presentes), a recusa do cumprimento do contrato-promessa em tais circunstâncias por parte do AI, sem que, concomitantemente, se disponha a restituir os valores que se vierem a apurar terem sido pagos por aquela a título de sinal, sob a invocação formal de que esta não reclamou o seu crédito nos autos de insolvência, constituirá um abuso na utilização do poder contido na estrutura do direito, sendo clamorosamente ofensivo do sentimento de justiça e dos ditames da lealdade e da correção imperantes na ordem jurídica e nas relações sociais.

6. O acórdão fundamento defendeu que «“A opção pela execução é abusiva se o cumprimento pontual das obrigações contratuais por parte da massa insolvente for manifestamente improvável“) se estenda à opção pela recusa de cumprimento, devendo entender-se que a recusa é abusiva, no âmbito do contrato-promessa, fundamentalmente, em dois casos: quando a recusa viola gravemente o direito fundamental à habitação do promitente-adquirente e quando o preço está total ou quase totalmente pago (contrato-promessa com antecipação dos efeitos do contrato-prometido). Efectivamente, a noção de abuso de direito assenta no exercício legal de um direito, que, no entanto, é feito em termos clamorosamente ofensivos da justiça, ainda que ajustados ao conteúdo formal do direito (art.º 334º do C. Civil).».

7. A opção pela execução é abusiva se o cumprimento pontual das obrigações contratuais por parte da massa insolvente for manifestamente improvável“) se estenda à opção pela recusa de cumprimento, devendo entender-se que a recusa é abusiva, no âmbito do contrato-promessa, fundamentalmente (…) quando o preço está já total ou quase totalmente pago (contrato-promessa com antecipação dos efeitos do contrato prometido).

8. Não tendo o contrato promessa eficácia real, tem sido alvo de controvérsia na doutrina e na jurisprudência a questão de saber se, nestes casos, o administrador da insolvência pode licitamente recusar o cumprimento desse contrato.

9. A questão está em saber se é lícita, como se entendeu a douta decisão que aqui se recorre, ou se, ao invés, foram alegados factos que, a provarem-se, tornam aquela recusa ilícita, mantendo-se o dever de prestação por parte da Massa Insolvente e, consequentemente, legitima o recurso pelos recorrentes da ação de execução específica (artigo 830º do C. Civil).

10. O acórdão fundamento referiu que quando o preço tenha sido integralmente pago, não obstante o contrato promessa de compra e venda ter eficácia meramente obrigacional, a solução de direito poderia (e devia no entender dos Recorrentes) ter sido outra na decisão que aqui se recorre.

11. A jurisprudência do Tribunal da Relação de Guimarães julgou, que mesmo não sendo o contrato promessa dotado de eficácia real, “[e]ntende-se que o administrador não tem a faculdade de optar pela execução ou não do contrato quando ocorre, a circunstância de uma das partes ter cumprido na íntegra a sua obrigação, como aconteceu nestes casos com a promitente compradora, aqui recorrente que pagou por inteiro o preço.” (processo n.º 1551/12.0TBBRG-U.G1, datado de 11.07.2013, disponível em www.dgsi.pt).

12. No mesmo sentido, o acórdão fundamento interpretou, assim como o Supremo Tribunal de Justiça julgou que “ pode haver recusa do seu cumprimento, em virtude da declaração de insolvência, se nenhuma das partes tiver ainda cumprido, integralmente, a sua prestação. (…).

13. Deve entender-se que a recusa é abusiva, no âmbito do contrato promessa, fundamentalmente, dois casos: quando o preço está já totalmente pago (contrato-promessa com antecipação dos efeitos do contrato-prometido) (…)”.

14. Resulta inequívoco que não é, como afirma o acórdão fundamento a decisão “a quo” que aqui se recorre poderia importar uma diferente solução de direito.

15. Paradoxalmente, o acórdão que aqui se recorre interpretou que “o contrato-promessa em causa nos autos não era revestido de eficácia real era lícito à AI, não constituindo abuso de direito ou violação do princípio da boa-fé, optar por não cumprir aquele contrato-promessa. Atenta a declaração de insolvência da sociedade promitente -vendedora, ainda antes de celebrado o contrato definitivo, e não tendo o contrato-promessa eficácia real, era lícito à AI recusar o contrato -promessa ao abrigo do princípio geral quanto aos negócios em curso ainda não cumpridos previsto no art. 102.º CIRE, com o consequente cr édito sobre a insolvência previsto no art. 106.º, n.º 2, 104, n.º 5 e 103.º, n.º 2, CIRE, e a reclamar nos termos do art. 128.º ou 146.º CIRE. De notar, que declarada a insolvência do promitente -vendedor, e não tendo o contrato- promessa eficácia real (ainda que tenha ocorrido traditio), não pode ser exigido pelo promitente -comprador a execução específica do contrato, nos termos do art. 830.º CC, atento o disposto nos art.s 102.º e 106.º CIRE (…)”.

16. Nos dois acórdãos em análise (o fundamento e o que aqui se recorre) existe uma total discrepância do conceito igualdade, equidade, senão vejamos, o Acórdão fundamento supra mencionado, interpretou que “caso o promitente-comprador tenha pago integralmente o preço, a recusa do cumprimento do contrato-promessa em tais circunstâncias por parte do AI, sem que, concomitantemente, se disponha a restituir os valores que se vierem a apurar terem sido pagos por aquele a título de sinal, sob a invocação formal de que este não reclamou o seu crédito nos autos de insolvência, constituirá um abuso na utilização do poder contido na estrutura do direito, sendo clamorosamente ofensivo do sentimento de justiça e dos ditames da lealdade e da correcção imperantes na ordem jurídica e nas relações sociais”.

17. Com efeito existe identidade sobre a mesma questão de direito, isto é, tendo aqui os Recorrentes assumido a qualidade de promitentes-compradores, em representação da herança da DD e tendo sido provado que o preço foi integralmente pago, a recusa do cumprimento do contrato-promessa em tais circunstâncias por parte do AI, sem que, concomitantemente, se disponha a restituir os valores que se vierem a apurar terem sido pagos por aquele a título de sinal, sob a invocação formal de que este não reclamou o seu crédito nos autos de insolvência, constitui um abuso de direito, tal como foi interpretado no acórdão fundamento melhor indicado a fls... dos presentes autos.

18. A equidade consiste na adaptação de uma regra existente a uma situação concreta, observando-se os critérios de justiça e igualdade.

19. Acresce ainda que, a decisão do douto Acórdão que aqui se recorre não observou o critério de justiça e de igualdade, sendo aliás a fundamentação e consequentemente a decisão antagónica à jurisprudência, que a título exemplificativo, o acórdão fundamento supra mencionado.

20. O douto acórdão agora recorrido confirmou a sentença de 1.ª instância que a M.ma Juíza sentenciou do seguinte modo: “Ora, analisada a factualidade assente, não obstante seja de todo triste e lamentável a situação dos autores (que, de forma trágica perderam a mãe, avós e irmão e face a todos os naturais posteriores constrangimentos/dificuldades e relatados na petição inicial apenas se aperceberam tardiamente da insolvência, não tendo reclamado tempestivamente o invocado crédito decorrente do incumprimento do contrato -promessa), o certo é que não é possível afirmar a existência de um abuso de direito por parte da Massa Insolvente ou da AI ao apreender a fração B, que se encontrava registada em nome da insolvente; não constituindo abuso de direito por parte dos réus a não aceitação da alegada aquisição da fração através de contrato -promessa, ou o não reconhecimento de um crédito que não fora tempestivamente reclamado na insolvência, tanto mais que nos autos não ficaram demonstrados os pressupostos necessários à aquisição da fração pelos autores e Herança de DD e ficara demonstrada a reclamação extemporânea do crédito.“.

21. Não podemos descurar a factualidade dada como provada nos autos e que se impõe a análise da aplicação e interpretação do direito de acordo com a realidade subjacente ao caso concreto e a tragédia subjacente igualmente dada como provada impõe decisão diversa e o que a decisão a quo alegou como “bem sentenciado” e não constituir num abuso de direito por parte da massa ou da AI apesar de todos os “constrangimentos/dificuldades” dos Recorrentes que se aperceberam tardiamente da insolvência no período trágico que atravessaram, sendo ambos menores e tendo sido morta toda a família e o pai assassino preso, não tendo reclamado tempestivamente o invocado crédito decorrente do contrato-promessa. (sic pp. 74), pois ofende clamorosamente qualquer entendimento mediano do direito.

22. O douto acórdão não se pronunciou nem equacionou a concreta situação como o decurso do tempo, atendendo quer à demora previsível da ação de comoriência, quer à a menoridade dos Recorrentes, quer ao facto de o preço estar integralmente pago, que geraram inevitavelmente prejuízos e situações de manifesto abuso do direito.

23. A similitude de situações fácticas e com interpretações de direito antagónicas, que não tendo o contrato promessa eficácia real, mas tendo, alegadamente, havido tradição da coisa a favor da promitente-compradora, tem sido alvo de controvérsia na doutrina e na jurisprudência a questão de saber se, nestes casos, o administrador da insolvência pode licitamente recusar o cumprimento desse contrato.

24. A recusa do cumprimento do contrato-promessa, na hipótese de insolvência do promitente- vendedor, por parte do administrador de insolvência, já se não afigura possível, independentemente de o contrato-promessa ter ou não eficácia real, devendo, então, ser reconhecida, no âmbito da graduação de créditos, a garantia do direito de retenção, prevista pelo artigo 755º, nº 1, f), do CC, com base numa interpretação correctiva do disposto pelo artigo 106º, do CIRE”.

25. A fundamentação do Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça n.º 4/2014, de Uniformização de Jurisprudência, publicado no DR, 1.ª Série, n.º 95, 19 de maio de 2014, pp. 2882 e seguintes, exarou-se que “ficará o n.º 2 do artigo 106.º aplicável apenas ao contrato promessa com efeito meramente obrigacional e em que não tenha havido aquela tradição ao promitente-comprador” e “só aqui, e a menos que uma das partes tenha cumprido integralmente a sua obrigação, poderá o administrador optar por cumprir ou recusar a execução do contrato”. (sublinhado nosso).

26. Assim como na fundamentação vertida no AUJ n.º 3/2021, de 27/04/2021, Fernando Jorge Dias (relator), publicado no DR, 1.ª Série, n.º 158/2021, de 2021-08-16 (neste uniformizou-se jurisprudência nos seguintes termos: "Quando o administrador da insolvência do promitente vendedor optar pela recusa do cumprimento de contrato-promessa de compra e venda, o promitente comprador tem direito a ser ressarcido pelo valor correspondente à prestação efetuada, nos termos dos artigos 106.º, n.º 2, 104.º, n.º 5, e 102.º, n.º 3, do CIRE.

27. Na jurisprudência em situações semelhantes é pacífico ver a interpretação de que quando o administrador da insolvência do promitente vendedor optar pela recusa de cumprimento de contrato-promessa de compra e venda meramente obrigacional, sinalizado e relativamente ao qual ocorreu tradição da coisa, o promitente-comprador tem direito a ser ressarcido pelo valor correspondente à prestação efetuada, nos termos dos artigos 106.º, n.º2, 104.º, n.º5, e 102.º, n.º3, do CIRE.

28. A decisão que aqui se recorre faz uma interpretação a contrario da interpretação da jurisprudência uniformizada, incorrendo claramorosamente em abuso de direito quando entende que não existiu na factualidade dada como provada qualquer conduta da A.I. antijurídica ou antiética.

29. Num contrato meramente obrigacional a opção pela execução ou recusa do cumprimento pertence exclusivamente ao Administrador da Insolvência o que exclui a exigência de cumprimento pelo comprador em que se analisa um pedido de execução específica.

30. A opção do Administrador da Insolvência, quando pode ser tomada, vem sendo qualificada como um direito potestativo e que tem como limitação um exercício abusivo, caraterizado no n.º 4 do artigo 102.º, acima citado - a opção pela execução é abusiva se o cumprimento pontual das obrigações contratuais por parte da massa insolvente for manifestamente improvável, de onde se poder extrair que se estará, igualmente, perante um comportamento abusivo quando a recusa de cumprimento acarretar para a massa insolvente um prejuízo considerável.

31. A verificação dos melhores interesses da massa insolvente é sempre concreta e reporta-se à situação verificada – ou seja, no caso concreto, tendo que ter em atenção a comprovação do recebimento do preço. (sublinhado nosso).

32. Com a devida vénia não se verificou no caso concreto uma análise casuística à factualidade sub judicie.

33. Andou mal a douta decisão recorrida que confirmou a douta decisão e respectiva fundamentação proferida na 1.ª instância e que supra se mencionou.

34. Andou mal, pois, o Venerando Tribunal ad quem sendo a douta decisão agora recorrida assaz violadora da lei, pois atenta a interpretação do acórdão fundamento a recusa do cumprimento do contrato-promessa em tais circunstâncias por parte da AI, sem que, concomitantemente, se disponha a restituir os valores que se vierem a apurar terem sido pagos por aquele a título de sinal, sob a invocação formal de que os Recorrentes não reclamaram o crédito nos autos de insolvência, constitui um abuso na utilização do poder contido na estrutura do direito, sendo clamorosamente ofensivo do sentimento de justiça e dos ditames da lealdade e da correcção imperantes na ordem jurídica e nas relações sociais, que se invoca e argui para todos os legais efeitos, sem prescindir da oposição de julgados supra mencionada.

35. A situação sub judice teve assente um fundamento e consequente decisão a contrario do acórdão fundamento e mais jurisprudência.

36. A decisão agora recorrida padece, para além de manifesta contradição/oposição de julgados, ainda de nulidade por a fundamentação se encontrar em manifesta contradição, nos termos do disposto no artigo 615.º, n.º 1, alínea c) do CPC, ex vi artigos 668.º e 684.º do citado diploma.

37. O Venerando Tribunal ao proferir a decisão recorrida e ao ter julgado improcedente a apelação dos aqui recorrentes, em especial no que respeita ao abuso de direito alegado na actuação da A.I. no caso concreto e referido supra violou de forma flagrante a lei.

38. O douto acórdão agora recorrido deve ser anulado por violação da lei, mas também por particular relevância social de acordo com os ditames de igualdade, justiça e legalidade, sob pena de não existir uma justiça e uma lei para todos.

39. Não pode haver justiça com tantas incongruências e a decisão sub judice terá necessariamente anulada, e em consequência, tendo sido provado o pagamento por inteiro do preço estipulado no contrato-promessa, haverá fundamento para neutralizar a recusa da AI à luz do abuso do direito, com a consequente procedência do pedido de execução específica do contrato-promessa (conforme ainda o referido no douto acórdão fundamento que aqui se invoca e melhor se identifica supra), nos termos peticionados na petição inicial ou, por mera cautela cautela de patrocínio, a restituição pela Massa do preço pago.

40. O douto acórdão recorrido não poderá deixar de constituir um atentado contra a realização do Direito e a própria Justiça, por oposição de julgados e por violação de lei do disposto nos artigos 12.º e 14.º do Código de Processo Civil; 102.º, 104.º, 106.º, 141.º e 146.º, todos do CIRE e 755.º, 759.º, 798.º, 433.º, 289.º, 830.º, 1263.º, todos do Código Civil.

41. Por isso e nos termos expostos, ser recebido e analisado o presente recurso de revista excepcional, em razão das contradições flagrantes com a jurisprudência já transitada em julgado, violações na lei, são também de particular relevância social de acordos com os ditames de igualdade, justiça, equidade e legalidade, sob pena de não existir uma justiça e uma lei para todos.

Contra-alegou a Ré pugnado pela manutenção do decidido em 2ª instância, apresentando as seguintes conclusões:

a) A decisão recorrida não padece de qualquer erro na interpretação e aplicação do Direito;

b) Entendem os Recorrentes que havendo pagamento total do preço, nunca deveria a Sra. Administradora judicial ter recusado o cumprimento do contrato promessa;

c) Invocam para tal a contradição de julgados, no domínio da mesma legislação e sobre a mesma fundamentação de direito, com o acórdão da Relação de Lisboa proferido no processo nº 1932/19.8T8PDL-S.L1-1;

d) Certo é que, nos termos do artº 102º do CIRE, tratando-se de contrato promessa com eficácia meramente obrigacional, pode o administrador judicial recusar o cumprimento do mesmo;

e) Pelo que, até aqui, nada a apontar;

f) O facto de ter sido pago o preço na sua totalidade, não pode determinar por si só que a Sra. Administardora judicial tenha agido com abuso de direito ao resolver não cumprir o contrato;

g) Pois que não se verificou qualquer desproporcionalidade, desequilíbrio ou desproporção intolerável entre a decisão da administradora judicial e o direito invocado pelos Recorrentes;

h) O artº 81º do CIRE atribui ao administardor judicial o poder de administrar os bens integrantes na massa insolvente, assumindo todos os efeitos de carater patrimonial;

i) Pelo que deve atender aos interesses da massa insolvente e dos seus credores antes de tudo o mais;

j) Só em situaçõesexcecionais deverá atender aosinteressesdo promitente comprador;

k) A condutada Sra. administradora judicial nãorecai em nenhuma das normas previstas na lei em que se verifique abuso de direito, nomeadamente, o artº 102º nº 4 do CIRE e o artigo 334º CC;

l) A sra. administradora judicial não excedeu os limites impostos pela boa-fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito;

m) Em nenhum momento os Recorrentes lograram provar o pagamento do preço da fracção prometida comprar, através do envio àquela do contrato promessa e dos comprovativos de pagamento;

n) Simplesmente porque não existiam;

o) Assim, em nenhum momento poderia a sra. administradora judicial decidir de forma diferente ao que decidiu limitando-se aquela a efectuar as diligências necessárias aos interesses da massa insolvente, apreendendo o imóvel, enriquecendo a massa em prol dos seus credores;

p) A decisão de não cumprimento do contrato não poderá ser visto como abuso de direito, por ter sido pago o preço, pois que não viola qualquer direito fundamental;

q) Nestas situações sempre deverá o promitente comprador concorrer com os restantes credores nostermosdos artigos106ºnº2,104ºnº 5e102ºnº3,ouseja,opagamento do crédito sobre a insolvência, a ser reclamado nos termos dos artigos 128º ou 146º do CIRE;

r) Mais se diga que ao contrário do alegado pelos Recorrentes, sempre deveriam os mesmos ter reclamado créditos nos autos de insolvência, à cautela, não colhendo a tese dos mesmos quando defendem que não sabiam se a Sra. Administradora judicial iria ou não optar pela apreensão do imóvel;

s) Pois que, como se disse, em nenhum momento haviam provado através de qualquer documento, o pagamento do preço;

t) Devendo manter-se na integra a decisão recorrida.

Por acórdão da Formação de 16 de Maio de 2024 foi admitida a presente revista excepcional.

II – FACTOS PROVADOS.

Foi dado como provado:

AA e BB (doravante designados por AA.) nasceram, respetivamente, a ... de ... de 1998 e a ... de ... de 2005, na freguesia e concelho de ....

AA e BB são irmãos germanos e são filhos de EE e DD.

Entre 1995 e 2013, os pais dos AA. viveram em união de facto.

A mãe dos AA. DD, era filha de FF e de GG.

Os aqui AA. tinham um irmão uterino HH, que nasceu a ... de ... de 1991, filho de II e de DD.

No dia ... de ... de 2015, o pai dos aqui AA., EE atingiu a tiro a respetiva mãe, DD, os avós maternos (FF e GG) e o irmão uterino (HH) tendo sido nessa sequência todos privados da vida na residência e café contíguo à mesma “Café ...”, na Rua....

Nesta sequência o pai dos AA. foi preso preventivamente à ordem do Processo n.º 1183/15.0... do Tribunal Judicial da Comarca ...- Juízo Central Criminal de... – Juiz ....

Naquela data de ... de ... de 2015, os AA. viviam com a mãe (DD), com o irmão uterino maior HH e os avós maternos (GG e FF), falecidos e dado que eram ambos menores, fora nomeado como tutor o tio paterno, CC, por sentença proferida no processo n.º 436/16.5... - Comarca de ... - Instância Central de ... - ... Secção de Família e Menores - J..

À data da instauração da ação, pendia o processo n.º 149/17.0..., a correr termos no Tribunal da Comarca de ... - Juízo de Competência Genérica de ..., para determinação da ordem dos óbitos das vítimas de homicídio supra mencionadas.

Por Acórdão da Relação do Porto de 10.11.2020 proferido nos autos fora determinando o prosseguimento dos autos com a herança jacente de DD como Autora, sendo que por despacho proferido a 14.10.2021 foram os ora autores AA e BB habilitados como únicos e universais herdeiros da referida DD.

A sociedade Cecominsa - Sociedade de Promoção Imobiliária, Ld.ª foi declarada insolvente por sentença proferida nos autos principais a 15.09.2016, transitada em julgado em 06.10.2016.

O anúncio da sentença foi publicado no portal Citius em 16.09.2016 e o edital da sentença foi afixado em 26.09.2016.

Naquela sentença foi fixado o prazo de trinta dias para a reclamação de créditos, sem que AA e BB ou a Herança Jacente aqui autora tenham reclamado crédito sobre a insolvente.

Em 08.11.2016, a Sra. AI apresentou a lista definitiva de créditos, não reconhecendo qualquer crédito aos aqui autores ou à Herança Jacente de DD.

No âmbito do processo de insolvência, a Sra. Administradora da Insolvência procedeu à apreensão, além do mais, da fração B do prédio urbano sito na rua ... da freguesia e concelho ... descrita na CRP ... n.º ....-B (verba n.º 8), juntando o auto de apreensão de bens ao apenso C a 07.04.2017 e tendo procedido ao registo da apreensão e declaração de insolvência naquele prédio n.º ....-B pela AP. ..19 de 2016/09/21.

Da certidão de registo predial da fração n.º ....-B resulta que:

- pela AP. 18 de 2004/06/25 fora registada Hipoteca Voluntária (que abrange no total 114 frações), a favor da CAIXA GERAL DE DEPÓSITOS, S.A., com o montante máximo assegurado de 1.052.450,00 Euros e para garantia de mútuo contraído por CECOMINSA - SOCIEDADE DE PROMOÇÃO IMOBILIÁRIA, LDª

- pela AP. 191 de 2016/09/06 fora registada penhora a favor da CAIXA GERAL DE DEPÓSITOS, S.A. e sendo o sujeito passivo CECOMINSA - SOCIEDADE DE PROMOÇÃO IMOBILIÁRIA, LDª.

AA e BB souberam, no decurso do ano de 2017, que tinha sido decretada a insolvência da sociedade Cecominsa – Sociedade de Promoção Imobiliária, L.da, e consequentemente estaria iminente a liquidação dos bens apreendidos nos presentes autos, tendo a 04.09.2017 intentado a ação de verificação ulterior de créditos, que correu termos sob o apenso E, peticionado, além do mais, o reconhecimento de crédito da falecida DD, com direito de retenção, decorrente de alegado incumprimento de contrato-promessa (também em causa nos presentes autos), alegando o pagamento integral do preço do imóvel.

Os AA. após terem intentado aquela ação de verificação ulterior de créditos, apresentaram proposta de aquisição da dita fração B mediante a dispensa de preço (artigo 815.º do CPC), tendo a Sra. Administradora de Insolvência respondido por carta data de 15.09.2017 referindo a “inoportunidade da proposta apresentada”, e ainda que devem os ocupantes das frações “desocupar de imediato as mesmas”.

A referida ação de verificação ulterior de créditos (apenso E) foi julgada improcedente, por extemporânea, por sentença de 03.06.2018.

A 25 de maio de 2003, a aqui insolvente Cecominsa celebrou com a sociedade P..., Lda um contrato promessa de compra e venda, pelo qual a ora insolvente prometeu vender e a sociedade P..., Lda prometeu comprar as frações “B” e “G”, do prédio urbano, sito na Rua ..., freguesia e concelho ....

De acordo com a Cláusula terceira daquele contrato-promessa, o preço das frações é de € 254.386,92 (sendo € 124.699,47 correspondente à fração B e € 129.687,45 correspondente à fração G). O preço seria pago por acerto de contas correntes e dação em pagamento pelos serviços prestados pela sociedade promitente-compradora (sociedade “P..., Lda”) no âmbito de contrato de empreitada celebrado com a ora insolvente.

Consta da cláusula quarta daquele contrato-promessa o seguinte:

“1 – O comprador fica autorizado a ceder a sua posição no presente contrato, e até ao dia que vier a ser designado para a realização da escritura de compra e venda, devendo para o efeito o cessionário celebrar novo contrato promessa com a Primeira Outorgante.”

No referido contrato promessa de compra e venda, ficou acordado que a promitente-vendedora realizava a escritura de compra e venda assim que a fração estivesse concluída, registado e inscrito o regime de propriedade horizontal e desde que em vigor a licença de utilização, sendo que esta avisava por escrito com a antecedência mínima de 15 dias à promitente-compradora a data, hora e local da realização da escritura (cfr. cláusula nona do contrato).

Em data não concretamente apurada, mas posterior a 25.05.2003 e anterior a 20.02.2006, a promitente-vendedora (aqui insolvente) entregou à promitente-compradora as chaves da fração “B” que dela passou a ter o uso e acesso exclusivo, assim como a gerente daquela sociedade, DD.

Foi acordado entre a insolvente Cecominsa e a sociedade P..., Lda que esta última iria ceder a posição do contrato supra referido quanto à fração “G” a terceiros, tendo entretanto a fração “G” sido alienada a terceiros, conforme cópia da descrição da referida fração G.

O preço da referida fração “B” fora integralmente pago à sociedade insolvente através de dação em pagamento com os serviços prestados pela sociedade P..., Lda

A sociedade P..., Lda cedeu a posição contratual relativamente à fração “B” prometida-comprar a EE e a DD, em acordo com a aqui insolvente Cecominsa – Sociedade de Promoção Imobiliária, L.da, passando EE e DD a usufruir e a utilizar da fração B.

O referido contrato resultou de um acordo prévio realizado verbalmente pelas partes.

Ficou acordado com a aqui insolvente Cecominsa – Sociedade de Promoção Imobiliária Lda, que a mesma iria realizar registo provisório de aquisição a favor do EE e da DD.

Nessa sequência, em 20.02.2006, a sociedade aqui insolvente Cecominsa – Sociedade de Promoção Imobiliária, L.da apresentou a registo pedido de registo provisório de aquisição a favor de EE e de DD, do imóvel sito na Rua ..., freguesia e concelho ..., ali constando que os mesmos eram residentes naquela morada, correspondente à fração n.º ....-B da Conservatória do Registo Predial ..., constando como declaração complementar: “Declaro que pretende vender pelo preço de 121.886,92”.

Na mesma data, EE e de DD apresentaram a registo pedido de registo de hipoteca provisório por natureza a favor do Banco Comercial Português, S.A., no montante de 90.000,00€ de capital e juros devidos à taxa de 3,37% acrescido do juro de 4% em caso de mora, a título penal.

EE e DD encetaram todos os esforços para que a sociedade Cecominsa – Sociedade de Promoção Imobiliária, L.da celebrasse a escritura definitiva do contrato-promessa da fração B, estando esta constantemente a protelar no tempo a escritura definitiva, com a justificação da dificuldade no cancelamento da hipoteca voluntária que existia a favor da Caixa Geral de Depósitos, S.A., registada em 25.06.2004, com o capital de 700.000,00€ e no montante máximo assegurado de 1.052.450,00€.

Ulteriormente, EE e DD acordaram verbalmente nova cessão de posição contratual a favor de DD, sendo que a parte do imóvel que pertencia ao EE foi cedida à DD.

Em razão que antecede, naquela altura foi dado conhecimento dessa cessão à aqui insolvente sociedade Cecominsa para que a escritura de compra e venda fosse realizada a favor da DD, não tendo a insolvente se oposto a tal.

Ora, apesar de todos os esforços e contactos realizados pela DD e ainda pelo EE, a sociedade aqui insolvente Cecominsa protelou de novo a celebração da escritura compra e venda da fração B, referindo sempre que estavam com dificuldades em realizar o cancelamento da hipoteca voluntária da Caixa Geral de Depósitos.

O preço da fração B prometida comprar fora integralmente pago e a sociedade insolvente nunca interpelou extrajudicialmente por qualquer forma que fosse a DD para pagar o que pago estava ou para a marcação da escritura de compra e venda.

Inicialmente, a fração B destinava-se à habitação própria de DD, mas por razões diversas a mesma nunca residiu naquele apartamento.

Por contrato de arrendamento datado de 15.07.2008, DD (arrogando-se proprietária da fração) deu de arrendamento a fração B a JJ e KK, pelo período de cinco anos, recebendo as respetivas rendas, tendo passado dois recibos de pagamentos da renda juntos como Doc. 22 na PI.

O uso da fração B por DD, designadamente através do seu arrendamento, fora feito à vista de toda a gente, sem oposição da sociedade insolvente ou de quem quer que fosse até à apreensão daquela fração no âmbito da presente insolvência.

O aludido arrendamento perdurou até ao mês de junho do ano de 2017, data em que os arrendatários abandonaram a fração.

Após esse abandono do arrendatário, AA celebrou contrato de eletricidade e de fornecimento de água, em seu nome, e entre setembro e dezembro de 2017 ali se instalou, residindo aos fins-de-semana, sendo que durante a semana se encontrava a estudar e a viver em ....

O aqui A. AA, com ajuda de terceiros, procedeu no Verão de 2017 à instalação do recheio no apartamento fração B (tal como: camas, cadeiras, tapete de WC, toalhas de casas de banho), sendo o recheio (mobília e roupas) existente na fração B pertencente aos autores e procedeu a reparações, tais como pinturas.

Acresce, ainda, que pela sua falecida mãe DD já haviam sido realizadas obras e reparações/adaptações de melhoramento do apartamento, a saber, trabalhos de carpinteiro (rodapés e portas), eletricista e canalizador, colocação/substituição janelas, vidros, estores, assim como a colocação de 6 radiadores de aquecimento central, aquecedor de água, móveis de cozinha, a colocação de roupeiros dos quartos e do corredor (portas, gavetas e prateleiras), móveis e loiças (com torneiras, etc.) de casa de banho e cinco motores de estores.

As reparações/adaptações/melhoramentos supra mencionados na fração importaram um custo de pelo menos € 15.000,00.

Foi com o conhecimento e acordo de BB e seu tutor, que AA passou a ocupar aquela fração B.

Em janeiro de 2018, quando o A. AA chegou à residência na ..., após algumas semanas de ter estado ininterruptamente na residência universitária de ..., apercebeu-se que estava impossibilitado de entrar no dito imóvel por ter sido alterado o canhão da fechadura.

A 24.02.2018, AA apresentou queixa junto da Polícia de Segurança Pública, dando conta da alteração da fechadura de residência (imóvel em discussão nos presentes autos) contra desconhecidos.

Factos não provados:

A - Desde 2003 a falecida DD, e após a sua morte, os seus herdeiros, aqui autores, atuaram sobre a fração n.º ....-B apreendida com a convicção de que era efetivamente proprietária da fração e de que exercia um direito próprio;

B - As chaves da fração B foram entregues pela insolvente à promitente-compradora “P..., Lda” logo aquando da outorga do contrato-promessa, passando esta a atuar com a convicção de que era efetivamente a proprietária da fração.

C - Por sua vez, a sociedade P..., Lda recebeu do EE e da DD o preço de 124.699,47€;

D - Na sequência de nova cessão de posição contratual no contrato-promessa da fração B a favor de DD, DD compôs ao EE a parte do preço que lhe competia;

E - O negócio de cessão da posição contratual de EE a DD no contrato-promessa só repôs a intenção inicial de ambos de que a fração “B” fosse adquirida pela DD já que, como o casal necessitava de dinheiro na época, resolveu lançar mão de uma hipoteca tendo sido o Banco Comercial Português a exigir que o EE, também ficasse vinculado para que o empréstimo fosse realizado.

F - DD residiu na fração B;

G - DD ao arrendar a fração B e ao fazer uso da chave do apartamento estava convencida de que já era a única e exclusiva dona e proprietária da fração;

H - A falecida DD e anteriormente a sociedade “P..., Lda” e então casal EE e DD, procederam ao pagamento das quotas de condomínio devido pela fração B, pagando as competentes contribuições e impostos, quer diretamente como taxas municipais de saneamento e lixo, quer indiretamente quando lhe eram apresentadas pela insolvente.

III – QUESTÕES JURÍDICAS ESSENCIAIS DE QUE CUMPRE CONHECER.

Qualificação (ou não) da conduta do administrador da insolvência como ilícita, ao recusar o cumprimento de contrato de promessa celebrado pela insolvente na qualidade de promitente vendedora, por pretensamente haver incorrido desse modo em abuso do direito nos termos do artigo 334º do Código Civil.

Passemos à sua análise:

Tal como foi definido no acórdão da Formação deste Supremo Tribunal de Justiça de 17 de Maio de 2024, a questão essencial que importa apreciar circunscreve-se unicamente à aferição da conduta do administrador da insolvência como manifestamente abusiva, à luz do critério definido no artigo 334º do Código Civil, pela circunstância de haver recusado o cumprimento do contrato promessa celebrado em 2003 entre a ora insolvente Cecominsa – Sociedade de Promoção Imobiliária, Lda., e a sociedade P..., Lda, promitente compradora que veio a ceder entretanto, de forma consensual, a sua posição contratual à mãe dos ora recorrentes, entretanto falecida.

Apreciando:

Em primeiro lugar e desde logo, haverá que atentar na forma como os demandantes estruturaram a sua causa de pedir, bem como no concreto e definido pedido que a este mesmo propósito deduziram na petição inicial.

Neste sentido, no artigo 134º da petição inicial referem, de forma algo simplista e redutora, que a jurisprudência dos tribunais superiores é unânime em defender que nos casos em que o preço foi integralmente pago pelo promitente-comprador o administrador da insolvência não pode recusar o contrato, em homenagem à forte expectativa do promitente fiel (limitando-se, contudo, a referenciar o acórdão apresentado como fundamento para a admissibilidade da revista, isto é, o acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 16 de Fevereiro de 2016, o qual, em termos decisórios, apenas determinou o prosseguimento dos autos para produção de prova e ulterior prolação de decisão de mérito final).

Acrescentam nos artigos 135º a 137º da petição inicial que “inexiste o direito potestativo de recusa do cumprimento pelo administrador da insolvência, ocorrendo o dever de celebrar o contrato prometido, sob a pena da prática de um acto ilícito e culposo” e “neste circunstancialismo, sob pena de responsabilidade profissional e civil futuras, não resta ao administrador da insolvência outro dever senão o de celebrar o contrato prometido e de suspender imediatamente a venda do imóvel que pertence aos AA.”; para concluir que “persistindo na venda do imóvel dos AA. todos os actos preparatórios da venda são nulos por configurarem a venda de bens alheios nos termos expostos assim como será nula qualquer venda efectuada, nulidade cuja declaração desde já se requer de forma subsidiária e a título futuro”.

Nesta sequência, os AA. formulam, a título subsidiário, o seguinte pedido, sob a alínea l):

“que seja reconhecido o valor integralmente pago com os serviços mencionados de empreitada prestados pela empresa P..., Lda, e a esta pagos pela de cujus DD do imóvel supra mencionado e a restituição do preço integralmente pago e ainda que seja declarado o abuso do direito dos RR. por violação do princípio da boa fé, nos termos do disposto nos artigos 1207º (pertinente ao regime do contrato de empreitada), 798º (relativo à responsabilidade do devedor), 433º (concernente aos efeitos do exercício do direito de resolução contratual) e 289º (respeitante aos efeitos da declaração de nulidade ou de anulação), todos do Código Civil”.

O que significa que, não obstante o que vem alegado nos artigos 135º e 137º da sua petição inicial, não existe (devidamente) formulado nos autos qualquer concreto pedido de condenação do administrador da insolvência a celebrar o contrato prometido com base na figura do abuso do direito, havendo os peticionantes, em contrapartida, apresentado uma feixe amplíssimo de outras variadas e muito desenvolvidas pretensões, a saber:

“a) que seja judicialmente declarado que beneficiam da acessão da posse de todos os anteriores antepossuidores nos termos expostos e nos termos do disposto nos art.º 1255.º, 1256.º, n.º 1, 1293.º, alínea a), 1297.º e 1300.º, n.º 1, todos do Código Civil; b) que sejam os Réus condenados a reconhecer o seu direito de propriedade sobre a citada fração, não só pela forma derivada – sucessão –, mas também através de aquisição originária, por usucapião, de harmonia com as disposições conjugadas dos art.º 1263.º, alínea a), 1268.º, n.º 1, 1287.º, 1296.º e 1316.º, todos do Código Civil; c) que seja judicialmente declarada a nulidade da apreensão efetuada pela Massa Insolvente quanto ao imóvel sub judice, porque tal apreensão configura apreensão de bens alheios e é nesta medida nula (ex vi do disposto nos art.º 892.º e 939.º, ambos do Código Civil); d) que sejam cancelados todos os registos prediais que contrariam a invocada propriedade, mormente o de apreensão a favor da massa insolvente do imóvel sito na Rua..., freguesia e concelho ..., sendo os mesmos residentes na mesma morada supra mencionada, com a respetiva matriz atual sob o artigo ..60, que teve origem no artigo ..58, descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o n.º ....-B; e) Ocorrendo a venda do imóvel supra mencionado, seja judicialmente declarada a nulidade de tal ato por configurar a venda de bens que pertencem a terceiro nos termos expostos, ex vi do disposto no art.º 892.º do Código Civil; f) que seja a Massa Insolvente condenada a reconhecer o seu direito de propriedade sobre todos os móveis que estão no interior do imóvel melhor identificados e descritos na presente peça processual e a restituir-lhes os mesmos; g) que seja judicialmente declarado que eles e seus antepossuidores realizaram as benfeitorias necessárias de adaptação melhor descritas supra no imóvel sub judice, no valor de pelo menos 15.000,00€; h) que sejam os Réus condenados a procederam à restituição e separação da massa do bem imóvel sito na Rua..., freguesia e concelho ..., sendo os mesmos residentes na mesma morada supra mencionada, com a respetiva matriz atual sob o artigo ..60, que teve origem no artigo ..58, descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o n.º ....-B; Subsidiariamente: i) que seja judicialmente declarado que lhes assiste o direito de retenção por incumprimento da promessa da vendedora, previsto no art.º 755.º, alínea f), do Código Civil e, em conformidade, ser a Massa Insolvente condenada a abster-se da prática de todos os atos lesivos deste direito até que se resolva e transite em julgado toda a situação submetida a juízo e ínsita em todo o petitório final apresentado; j) que seja judicialmente declarado que tal direito se sobrepõe a todos os demais credores nos termos da lei, mormente sobre que figuram no registo predial do imóvel sub judice; k) que seja judicialmente declarado e julgada a execução específica do contrato promessa sub judice habilitando-os com sentença que substitua como título a declaração do promitente vendedor faltoso habilitando-os então a procederem ao registo do bem a favor dos herdeiros da de cujus DD em comum e sem determinação de parte ou direito” (que foram, aliás, todas e cada uma delas, julgadas improcedentes, havendo transitado em julgado nessa parte o acórdão recorrido).

Daqui decorre, naturalmente, que a alegação constante dos artigos 135º a 137º da petição inicial não é por si só suficiente para significar, segundo a exacta estruturação da sua peça processual, qualquer verdadeiro e concreto pedido de condenação do administrador da insolvência na celebração do contrato permitido, o que não pode deixar de ter o necessário reflexo processual que resulta imperativamente do princípio consignado no artigo 609º, nº 1, do Código de Processo Civil, impossibilitando, desde logo e por si só, o tribunal de condenar as RR. naquilo que não foi efectivamente peticionado pelos AA. (e relativamente ao qual, por não concretamente solicitado, as mesmas RR. não tiveram oportunidade para conscientemente se opor, inviabilizando-se assim o basilar exercício do contraditório que lhes assiste).

Sem prejuízo deste evidente óbice à procedência da acção neste ponto, sempre haverá que aquilatar da verificação in casu dos pressupostos de verificação da figura do abuso do direito, genericamente prevista no artigo 334º do Código de Processo Civil, respeitando desse modo, escrupulosamente, o ordenado pelo Formação deste Supremo Tribunal de Justiça.

Dir-se-á, por conseguinte:

A válvula de segurança do sistema prevista no artigo 334º do Código Civil, respeitante à figura do abuso do direito, visa primacialmente salvaguardar situações que se prendem com valores essenciais e nevrálgicos do ordenamento jurídico, envolvendo necessariamente a defesa e afirmação de princípios elementares de justiça e premente reposição do equilíbrio de interesses, por sua natureza intangíveis, e que de outra forma – sem a qualificação como ilícito do modo de exercício desse (aparente) direito pelo seu titular - seriam grave e irreversivelmente afectados (ou mesmo aniquilados) por força da aplicação puramente formal ao caso dos institutos jurídicos genérica e abstractamente avocados a regulá-lo.

No fundo, trata-se de evitar uma clamorosa injustiça, profundamente irritante e totalmente intolerável para o mais elementar senso jurídico, resultante da utilização enviesada e altamente censurável das faculdades concedidas ao titular do direito que as aproveita de modo notoriamente abusivo, extrapolando em absoluto os fundamentos e as finalidades sócio económicos que justificaram a sua atribuição pelo ordenamento.

Como refere J. Batista Machado, in artigo publicado na Revista de Legislação e Jurisprudência, Ano 117º, pag. 229 e seguintes, subordinado ao título “Tutela da Confiança e “Venire contra factum proprium”:

“(…) dentro da comunidade das pessoas responsáveis (ou imputáveis) a toda a conduta (conduta significativa, comunicativa) é inerente uma “responsabilidade” pelas pretensões de verdade, de rectitude ou de autenticidade inerentes à mensagem que essa conduta transmite. Dir-se-ia que é este desde logo o imposto que teremos de pagar por pertencermos à universo das pessoas de juízo, das pessoas com credibilidade. Desta “autovinculação” inerente à nossa conduta derivam ao mesmo tempo regras de conduta básicas, também postuladas pelas exigências elementares de uma ordem de convivência e de interacção, que o próprio direito não pode deixar de tutelar, já que sem a sua observância nem essa ordem de convivência nem o direito seriam possíveis.

Donde poderíamos já concluir que as próprias “declarações de ciência” ou simples dictum (que não chegue a promissum) podem vincular, quer porque envolvem uma responsabilização pela pretensão da verdade que lhes é inerente, quer pelos efeitos que podem ter sobre a conduta dos outros que acreditam em tais declarações (…) Do exposto, podemos concluir que o princípio da confiança é um princípio ético-jurídico fundamentalíssimo e que a ordem jurídica não pode deixar de tutelar a confiança legítima baseada na conduta de outrem”.

Escreve outrossim sobre esta matéria Jorge Coutinho de Abreu, in “Abuso de direito”, Almedina 1983, a páginas 43 a 44:

“Os direitos subjectivos são instrumentos para as pessoas prosseguirem interesses, são meios de satisfação de necessidades pessoais – a ideia nuclear de que se parte. É para isso que a sociedade judicialmente ordenada os confere ou reconhece – relevando nessa medida o “social”. Logo, se se invoca um direito para legitimar um comportamento inadequado àquela funcionalidade, essa invocação é espúria, pois tal comportamento não pode então traduzir as faculdades em que o direito se analisa. Isto é, não pode em rigor falar-se nesse caso do exercício de um direito – por mais que o comportamento pareça sê-lo (residindo porém nessa aparência distintivo do abuso de direito, em relação à pura e simples ilegalidade). Mas só isto não basta. Assim não actuação ou mesmo negação de interesses próprios pelo sujeito de um direito é juridicamente irrelevante enquanto se não projectar na esfera de interesses de outrem. Só quando o referido comportamento for susceptível de causar um prejuízo não insignificante a um terceiro se configurará o abuso de direito”.

Sobre a mesma figura vide Tatiana Guerra de Almeida, in “Comentário ao Código Civil. Parte Geral”, Universidade Católica Editora, Setembro 2014, a página 789.

“Achamo-nos pois perante uma situação em que uma actuação ou abstenção de determinado comportamento, em si mesmo tutelado pela norma, conduz, pelo modo do seu exercício ou pelo seu efeito, a um resultado que repele ao fundamento de tal tutela jurídica – independentemente de se considerar que tal fundamento se evidencia na própria ratio do preceito, no confronto com outras posições juridicamente tuteladas no sistema normativo ou nos valores que em última instância enformam esse mesmo sistema”.

(Em geral sobre a figura do abuso de direito, vide, entre muitos outros:

- o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 3 de Outubro de 2019 (relatora Rosa Tching), proferido no processo nº 3722/16.0T8BGR.G1.S1, publicado in www.dgsi.pt, onde pode ler-se:

“(..) existirá abuso de direito quando alguém, detentor embora de um determinado direito, válido em princípio, o exercita, todavia, no caso concreto, fora do seu objetivo natural e da razão justificativa da sua existência e em termos apoditicamente ofensivos da justiça e do sentimento jurídico dominante, por exceder manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou fim social ou económico desse direito.

Segundo Menezes Cordeiro, a base ontológica do abuso de direito é a disfuncionalidade intra-subjectiva, ou seja, o exercício do direito que contraria o sistema: o abuso de direito reside na disfuncionalidade de comportamentos jurídico-subjectivos por, embora consentâneos com normas jurídicas permissivas concretamente em causa, não confluírem no sistema em que estas se integram.

Na expressão do Acórdão do STJ, de 07.02.2008 (revista nº 3934/07), o instituto do abuso de direito representa o controlo institucional da ordem jurídica no que tange ao exercício dos direitos subjetivos privados e surge como um modo de adaptar o direito à evolução da vida, servindo como válvula de escape a situações que os limites apertados da lei não contemplam, por forma considerada justa pela consciência social, em determinado momento histórico, ou obstando a que, observada a estrutura formal do poder conferido por lei, se excedam manifestamente os limites que devem ser observados, tendo em conta a boa fé e o sentimento de justiça em si mesmo.

Agir de boa fé, no dizer de Antunes Varela, significa agir com diligência, zelo e lealdade correspondente aos legítimos interesses da contraparte e ter uma conduta honesta e conscienciosa, uma linha de correção e probidade, a fim de não prejudicar os legítimos interesses da contraparte, e não proceder de modo a alcançar resultados opostos aos que uma consciência razoável poderia tolerar.

Por bons costumes, entende-se o conjunto de regras de convivência que, num dado ambiente e em certo momento, as pessoas honestas e corretas aceitam comummente, contrários a laivos ou conotações de imoralidade ou indecoro social.

E, no dizer de Antunes Varela a «consideração do fim económico ou social do direito apela de preferência para os juízos de valor positivamente consagrados na própria lei».

O juízo sobre o abuso de direito está, assim, dependente das conceções ético-jurídicas dominantes na sociedade.

Nas palavras do Acórdão do STJ, de 25.06.2009 (processo nº 599/04.2TBCNT.S1), «o abuso de direito abrange o exercício de qualquer direito de forma anormal, quanto à sua intensidade ou execução de modo a comprometer o gozo de direitos de terceiros, criando uma desproporção entre os respectivos exercícios, de forma ofensiva e clamorosa dos valores sociais que se têm como adquiridos»;

- o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 30 de Março de 2023 (relatora Ana Resende), proferido no processo nº 1709/19.0T8ACB-A.C1.S1, publicado in www.dgsi.pt, onde se refere:

Aceite que a conceção legalmente adotada é essencialmente objetiva, isto é, não é necessária a consciência de se estar a exceder com o exercício do direito os limites impostos, quer pelos bons costumes, quer pelo fim social económico do direito, importa apenas que os limites sejam excedidos de por forma, manifesta, pois como a própria lei indica, sempre se terá de ter presente, no que diz respeito ao fim social e económico do direito, os juízos de valor positivamente consagrados na lei.

Assim compreende-se que, como pressuposto lógico da situação de abuso de direito, esteja a existência de um direito, reportado a um direito subjetivo, ou a um poder legal, caracterizando-se o abuso na utilização do poder contido na estrutura do direito para a prossecução de um interesse que exorbita do fim próprio do direito, ou do contexto em que ele deve ser exercido.

Dir-se-á, em conformidade, que a noção de abuso de direito assenta no exercício legal de um direito, que, no entanto, é feito em termos clamorosamente ofensivos da justiça, ainda que ajustados ao conteúdo formal do direito.

Tal contradição mostra-se mais patente nos casos configurados como venire contra factum proprium, que se verificam quando alguém exerce um direito depois de ter feito crer à contraparte que não o iria fazer, na medida em que exceda manifestamente os limites impostos pela boa fé.

Na realidade, a boa fé, traduzida na conduta leal e correta com vista à obtenção dos fins legitimamente prosseguidos pelas partes, bem como a confiança que cada uma delas atuará de tal forma, em termos de razoabilidade, constitui uma das fundamentais exigências éticas no âmbito do comércio jurídico, surgindo assim como um princípio aplicável em todos os domínios em que possa existir um vínculo específico entre determinados sujeitos, com consagração legal em vários preceitos legais, sobretudo no n.o 2 do art.o 762, do CC.

Para que a conduta sobre a qual incide a valoração negativa resulte ilegítima, importa que se verifique uma situação objetiva de confiança, existente quando se pratica um determinado ato que, em abstrato, é apto a incutir em outrem a expectativa de adoção no futuro, de um dado comportamento coerente com aquele primeiro e que, em concreto, gera efetivamente tal convicção.

Diga-se também, ser necessário que haja, igualmente, boa fé da contraparte que confiou, por supor que o autor da conduta contraditória estava vinculado a adotar a conduta prevista, e convencendo-se de tal, atue com o cuidado e as precauções usuais no tráfego jurídico.

Reitera-se que o venire contra factum proprium constitui uma manifestação da tutela da confiança, atendendo na respetiva concretização a um quadro de proposições enunciadas como, situação de confiança, justificação para essa confiança, investimento de confiança e imputação da situação de confiança criada à pessoa que vai ser atingida pela proteção dada ao confiante, que devendo articular-se entre si, não obedecem a uma hierarquização, não se exigindo, em absoluto, a sua cumulação, pois a falta de um de tais requisitos para a proteção da confiança pode ser compensada pela especial intensidade de outro, ou outros, no atendimento, do caso em concreto.

Com efeito, releva aqui sublinhar que o princípio da confiança “(...) surge como uma mediação entre a boa fé e o caso concreto. Ele exige que as pessoas sejam protegidas quando, em termos justificados, tenham sido levadas a acreditar na manutenção de um certo estado de coisas. Várias razões depõem nesse sentido. (...) Juridicamente, a tutela da confiança acaba por desaguar no grande oceano da igualdade e da necessidade da harmonia, daí resultante: tratar o igual de modo igual e o diferente de modo diferente, de acordo com a medida da diferença. Ora a pessoa que confie, legitimamente, num certo estado de coisas, não pode ser tratada como se não tivesse confiado: seria tratar o diferente de modo igual”

- o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 6 de Junho de 2022 (relator José Rainho), proferido no processo nº 18172/16.0T8LSB-G.L2.S1, publicado in www.dgsi.pt, onde, no âmbito particular do CIRE, se enfatiza que:

“É também verdade (art. 334º do CCivil) que é abusivo o exercício do direito que exceda manifestamente (irrefutavelmente, gritantemente aos olhos da sensibilidade comum) os limites impostos pela boa-fé. Inclui-se neste domínio a proibição do chamado venire contra factum proprium, isto é, a proibição de comportamentos contraditórios. Verifica-se uma tal hipótese quando uma pessoa age de modo a criar noutra a legítima convicção de que irá adotar um certo comportamento (positivo ou negativo), e depois procede de forma contraditória à expetativa assim criada.

Parece ser ainda aceitável a ideia - e pese embora o CIRE apenas se reportar ao exercício abusivo no contexto estrito do art. 102.º, n.º 4 - de que o exercício do direito de opção está submetido à cláusula geral da boa-fé, razão pela qual deverá poder ser neutralizado se atentar contra tal cláusula.

Mas sendo tudo isto assim, não vemos que exista no caso sujeito qualquer comportamento contraditório e frustrador de confiança criada, e muito menos contradição juridicamente relevante, isto é, contradição que represente um exercício manifestamente abusivo do direito.

Efetivamente, os domínios jurídicos (rectius, a densificação ou substanciação desses domínios) de atuação do AJP (nomeadamente em sede de PER) e do AI (em sede em sede de processo insolvencial destinado à liquidação da massa) não coincidem necessariamente, sendo por isso perfeitamente congruente (e não contraditório) que num domínio e noutro sejam usados critérios de decisão (comportamentos) diferentes. Pois que num caso visa-se a revitalização do devedor (ainda que lhe esteja sempre subjacente o interesse sucedâneo dos credores), com a inerente sujeição do AJP a contribuir para a realização, da forma mais vantajosa para a recuperação do devedor, dessa finalidade; no outro visa-se liquidar o património do devedor e dar pagamento aos credores, se necessário (em caso de insuficiência da massa e sem prejuízo para as causas legítimas de preferência) de maneira proporcional ao montante dos créditos, com a inerente sujeição do AI à realização dessa finalidade da forma mais vantajosa para o coletivo de credores”).

- o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 16 de Dezembro de 2010 (relator Alves Venho), proferido no processo nº 1584/06.5TBPRD.P1.S1, publicado in www.dgsi.pt, onde, no âmbito particular do CIRE, onde se salienta:

“O instituto do abuso de direito, como princípio geral moderador dominante na globalidade do sistema jurídico, apresenta-se como verdadeira «válvula de segurança» vocacionada para impedir ou paralisar situações de grave injustiça que o próprio legislador preveniria se as tivesse previsto, de tal forma que se reveste, ele mesmo, de uma forma de antijuridicidade cujas consequências devem ser as mesmas de qualquer acto ilícito.

Quando tal sucede, isto é, quando o direito que se exerce não passa de uma aparência de direito, desligado da satisfação dos interesses de que é instrumento, e se traduz «na negação de interesses sensíveis de outrem» (COUTINHO DE ABREU, “Do Abuso de Direito”, pp. 43), então haverá que afastar as normas que formalmente concedem ou legitimam o poder exercido Importa, pois, determinar se os limites impostos pela boa fé e pelos bons costumes saem ofendidos, designadamente de forma clamorosa, face às concepções ético-jurídicas dominantes, pois que é no âmbito da conduta tida por contrária à boa fé que há-de emergir o “venire”.
A boa fé, como princípio normativo de actuação – que é o conceito em que aqui releva (art. 762º-2 CCiv.) -, encerra o entendimento de que as pessoas devem ter um comportamento honesto, leal, diligente, zeloso, tudo em termos de não frustrar o fim prosseguido pelo contrato e defraudar os legítimos interesses ou expectativa da outra parte”.

Debruçando-nos, agora, sobre as particularidades do caso concreto:

A recusa da celebração do contrato prometido pelo administrador da insolvência da promitente vendedora constitui uma acto lícito que tem o seu devido respaldo nos artigos 102º e 106º do CIRE, onde se estabelece:

“(…) em qualquer contrato bilateral em que, à data da declaração de insolvência, não haja ainda total cumprimento nem pelo insolvente nem pela outra parte, o cumprimento fica suspenso até que o administrador da insolvência declare optar pela execução ou recusar o cumprimento” (artigo 102º, nº 1, do CIRE);

“No caso de insolvência do promitente-vendedor, o administrador da insolvência não pode recusar o cumprimento do contrato-promessa com eficácia real, se já tiver havido tradição da coisa em favor do promitente-comprador” (artigo 106º, nº 1, do CIRE).

Resulta da conjugação dos artigos 102º, nº 1 e 106º, nº 1, do CIRE, que o administrador da insolvência apenas fica adstrito ao dever de celebrar o contrato prometido (não o podendo recusar) se o contrato promessa tiver eficácia real, existindo ainda tradição da coisa a favor do promitente comprador.

No caso de o contrato promessa revestir eficácia meramente obrigacional, como sucede na situação sub judice, assistirá ao administrador da insolvência da promitente vendedora o direito a recusar a celebração do contrato definitivo.

Este é o regime geral consignado no âmbito do processo insolvencial, e que se compreende na medida em que a função principal atribuída ao administrador da insolvência (não descurando a sua qualidade de servidor da justiça e do direito, devendo mostrar-se digno da honra e das responsabilidades que lhe são inerentes em conformidade com o disposto no artigo 12º, nº 1, do Estatuto do Administrador Judicial, aprovado pela Lei nº 22/2013, de 26 de Fevereiro), é do satisfação máxima dos direitos dos credores da insolvente, conforme se estabelece no artigo 1º, nº 1, do CIRE.

Enfatiza, a este propósito, Maria do Rosário Epifânio in “Manual de Direito da Insolvência”, Almedina 2020, 7ª edição, a páginas 208 a 209:

“Se o negócio jurídico preencher os requisitos enunciados, fica o seu cumprimento suspenso até que o administrador da insolvência tome uma decisão, que pode ter dois sentidos: opção pela execução do cumprimento ou opção pela recusa do cumprimento (artigo 102º, nº 1). O administrador da insolvência deverá optar pela solução que mais convier à satisfação dos interesses dos credores (…)”.

Quanto a este ponto, vide igualmente Alexandre Soveral Martins, in “Um Curso de Direito da Insolvência”, Almedina 2022, 4ª edição, a página 247, onde se refere que “se a contraparte já cumpriu na totalidade a prestação a que se obrigara, então a mesma deverá reclamar o seu crédito face ao insolvente, ficando o devedor impedido de satisfaz este crédito. (…) se uma das partes já cumpriu integralmente, há que ver se alguma coisa há a receber ou a entregar pela outra e verificar qual é o regime aplicável”.

(Sobre esta temática, vide, entre muitos outros:

- o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 17 de Abril de 2018 (relatora Ana Paula Boularot) proferido no processo nº 1136/13.3TYVNG-E.P1.S2, onde se refere:

“Neste normativo, estão enunciadas de um modo genérico as regras básicas de comportamento funcional do administrador, as quais passam pelo dever de actuar com independência e isenção, estando-lhe vedada a prática de qualquer acto que, para seu beneficio ou de terceiro, possa por em crise, quer a recuperação do devedor, quer a sua liquidação, devendo orientar a sua conduta por forma a maximizar a satisfação dos interesses dos credores, nº2 daquele artigo 12º, impondo-se-lhe, prima facie uma obrigação de providenciar pela recuperação da empresa.

Espera-se, assim, do administrador, uma actuação diligente no exercício das suas funções, pautada por um critério semelhante ao do bonus pater famílias, apanágio do direito obrigacional, mormente em sede de responsabilidade civil, muito embora, no caso, tal conceito nos apareça reforçado, atentas as específicas funções cometidas àquele, porque em sentido normativo a diligência que lhe é imposta equivale ao grau de esforço exigível, não ao homem médio, mas ao gestor médio (criterioso e ordenado), para determinar e executar a conduta que integra o cumprimento de um dever.

Integrando o escolho, entre o cumprimento e o não cumprimento de um contrato promessa celebrado pela Insolvente, o cumprimento de um dever pelo AI pautando-se a sua actuação por princípios de maximização da massa, tendo em atenção a satisfação dos interesses dos credores, a faculdade que lhe concedida pela norma não poderá configurar um direito potestativo, pois este caracteriza-se por o seu titular o exercer por sua vontade exclusiva, desencadeando efeitos na esfera jurídica de outrem independentemente da vontade deste, traduzindo um poder de alterar, unilateralmente, através de uma manifestação de vontade, a ordem jurídica, nela fazendo produzir efeitos jurídicos, cfr Ana Prata, Dicionário Jurídico, Vol. I, 5.ª edição; Menezes Cordeiro, Tratado de Direito Civil Português, Vol. I, Tomo I, 3.ª edição.

Ora, a exercitação por parte do AI, da opção de cumprimento ou não cumprimento dos contratos que lhe confere o artigo 102º, nº1 do CIRE não está dependente da sua vontade exclusiva, mas antes se encontra vinculada aos superiores interesses da massa insolvente, os quais deverão ser ponderados antes da tomada de qualquer decisão, veja-se em abono desta asserção o que dispõe o nº4 daquele mesmo normativo ao penalizar aquele considerando que «A opção pela execução é abusiva se o cumprimento pontual das obrigações contratuais pela massa insolvente for manifestamente improvável.», de onde se poder extrair que se estará, igualmente, perante um comportamento abusivo quando a recusa de cumprimento acarretar para a massa insolvente um prejuízo considerável.

Podemos assim concluir que o cumprimento ou não cumprimento de um contrato por banda do AI, em sede de negócios em curso, configurará o exercício de um poder/dever enquadrado no âmbito das respectivas atribuições”.

- o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 15 de Dezembro de 2020 (relator José Rainho), proferido no processo nº 811/10.9TYVNG-O.P1.S1, não publicado, onde se refere:

“Mas mesmo que se entendesse que os AA. tinham cumprido na totalidade a prestação a que se obrigaram, tal não implica a conclusão de que o administrador da insolvência ficou obrigado a cumprir o contrato e que os AA. gozam do direito à execução específica. Pelo contrário, numa situação destas não se aplica o artigo 102º do CIRE – o direito que lhes assiste seria o de reclamarem o seu crédito no processo de insolvência”;

- o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 9 de Abril de 2019 (relatora Graça Amaral), proferido no processo nº 872/10.0TYVNG-8.P1.S1, publicado in www.dgsi.pt, onde se enfatizou que:

“Mantendo-se o contrato-promessa em vigor à data da declaração da insolvência, os direitos do credor promitente-comprador perante a recusa (lícita) por parte da Administradora da Insolvência em não cumprir o contrato não podem ser encontrados por aplicação do regime do n.º 2 do artigo 442.º do Código Civil, mas no âmbito do CIRE, nos termos das disposições conjugadas dos artigos 106.º, n.º 2, 104.º, n.º 5 e 102.º, n.º 3, alínea c) (…)

O incumprimento do contrato promessa determinado por opção do administrador da insolvência radica num direito ope legis (opção potestativa) que é independente da actuação/conduta do insolvente, carecendo de sentido fazer apelo à aplicação a regime legal que tem subjacente o dever de cumprimento”;

o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 11 de Setembro de 2012 (relator Salazar Casanova), proferido no processo nº 3374/07.9TBGMR-I.G2.S1, publicado in www.dgsi.pt, onde se pode ler:

Tem sido esta a orientação deste Supremo Tribunal, salientando-se no Ac. de 9-2-2012 in www.dgsi.pt (Fonseca Ramos), revista n.º 1008/08.3TBOLH-L.E1.S1 - 6.ª Secção que " cumprir ou não cumprir o contrato radica num poder potestativo conferido pela lei insolvencial ao administrador da insolvência, não se podendo considerar que não cumprido age com culpa e, sequer, que age com culpa presumida (art. 799.º, n.º 1, do CC), optando por não cumprir". Assim, não se provando os requisitos especialmente previstos no artigo 106.º do C.I.R.E., é aplicável o disposto no artigo 102.º do C.I.R.E. Se a recusa é legítima, tem de improceder o pedido de execução específica ( ver ainda Ac. do S.T.J. de 12-5-2011 - Maria dos Prazeres Beleza - 5151/06.TBAVR.C1.S1)”).

A questão está, portanto, em saber se, perante o especial circunstancialismo de facto revelado nos autos, e tendo administrador de insolvência recusado a celebração do contrato prometido ao abrigo das disposições legais supra transcritas, deverá afinal afirmar-se que o mesmo exerceu esse direito manifestamente contra os limites impostos pela boa fé, bons costumes ou contra a sua finalidade sócio-económica, nos termos gerais consignados no artigo 334º do Código Civil, e daí eventualmente retirar as inerentes consequências.

Tal aferição far-se-á forçosamente tendo por referência o momento temporal concreto em que o administrador da insolvência, confrontado com a existência do contrato promessa celebrado pela insolvente e com o registo da propriedade da fracção prometida transmitir em seu nome, sobre ele teve de pronunciar-se, optando por cumprir o contrato prometido ou recusar fazê-lo.

No caso concreto, a resposta à questão suscitada será, a nosso ver, perante os contornos singulares da situação em análise, forçosamente negativa.

Vejamos:

Desde logo, não foi o administrador da insolvência confrontado, em termos perfeitamente seguros, com a demonstração do integral pagamento pelos promitentes compradores do preço da coisa prometida vender.

Conforme consta da cláusula terceira do dito contrato promessa “o preço de venda (…) será pago por acerto de contas correntes e dação em pagamento, pelos serviços prestados pelo segundo (promitente compradora) ao abrigo do contrato promessa, cuja cópia é anexa…”.

É assim insofismável o sentimento de incerteza e dúvida quanto à realização efectiva de tal pagamento, na perspectiva de um terceiro alheio às vicissitudes do negócio e, nessa mesma medida, dele desconhecedor.

Trata-se de um pagamento previsto concretizar através do invulgar e atípico expediente de encontro de contas entre duas empresas comerciais, conexo com o cumprimento de um determinado contrato de empreitada, de características não evidentes quanto aos efeitos produzidos e nem imediatamente apreensíveis quanto à realidade que lhe subjaz, não tendo normalmente o administrador acesso à contabilidade daquelas (não revelando sequer os autos quais os valores ou parcelas que foram concretamente imputados em favor da promitente vendedora em função do cumprimento do dito contrato de empreitada, de que forma e em que momento específico).

Por outro lado, sempre a cessão da posição contratual da promitente compradora (em particular quanto à falecida DD, mãe dos AA.) obrigaria, nos termos da cláusula quarta do contrato promessa, à celebração de novo contrato promessa com a promitente vendedora, o que nunca aconteceu.

Mesmo em relação à tradição da coisa, a cláusula sexta obrigava à realização prévia de “um auto de recepção provisório assinado pela promitente compradora”, o que nunca aconteceu.

Tudo formalidades contratualmente previstas e que foram evidentemente estabelecidas no interesse e em favor da promitente vendedora, introduzindo clareza, segurança e transparência na relação negocial, as quais nunca foram – como deveriam ter sido – respeitadas e concretizadas.

Por outro lado, trata-se de um contrato promessa celebrado entre duas sociedades comerciais, com o preço previsto para a transmissão do imóvel em causa a ser satisfeito por encontro de contas entre elas, o que afastaria, à partida, a conclusão de que o imóvel em apreço – e ora apreendido - se destinasse inicialmente à habitação da promitente compradora (uma empresa), sendo certo que se veio a provar nos autos que a falecida DD, gerente da promitente compradora e cessionária relativamente à sua posição contratual, acabou por nunca residir de facto na fracção autónoma em causa (que foi arrendada a terceiros até ao ano de 2017, ou seja, até data posterior à declaração de insolvência da promitente vendedora, que ocorreu em Outubro de 2016).

Ora, perante estes elementos factuais, objectivos e inequívocos, não é possível fundadamente concluir que a recusa de celebração pelo administrador da insolvência tenha de algum modo constituído um acto antijurídico, intoleravelmente desproporcional e ofensivo dos interesses em equação, configurando uma manifesta violação do princípio da boa fé, dos bons costumes ou o fim sócio-económico desse mesmo direito, em conformidade com o exigido na previsão do artigo 334º do Código Civil.

De resto, os promitentes compradores tiveram à sua inteira disposição a possibilidade de reclamar os seus créditos, provavelmente tutelados por direito de retenção nos termos do artigo 755º, alínea f), do Código Civil, com preferência sobre os créditos hipotecários com ele concorrentes, não o tendo feito por responsabilidade exclusivamente sua, sendo certo que a própria acção de verificação ulterior de créditos, instaurada ao abrigo do artigo 146º do CIRE, foi apresentada fora do prazo legalmente destinado a esse efeito, o que foi decidido em 1ª instância com trânsito em julgado.

Ou seja, o feixe variado de pedidos formulados, a título principal, na presente acção – mormente a qualidade de proprietários do imóvel adquirida por usucapião; o reconhecimento do seu direito de crédito; a protecção devida pelo reconhecimento do direito de retenção, com prevalência sobre os créditos hipotecários, ainda que registados anteriormente; a dita “restituição dos valores entregues” – soçobraram por ausência do indispensável fundamento legal, independentemente do máximo respeito que possam merecem as circunstâncias que terão propiciado a conduta negligente que subjaz à sua intempestiva invocação (ou à ausência do exercício do direito a reclamar os seus créditos no processo de insolvência).

Não se vê, portanto, que o administrador da insolvência, ao praticar o acto lícito em causa (que é absolutamente independente da eventual ilicitude da conduta da promitente vendedora), houvesse de algum modo, perante as circunstâncias que na altura percepcionou, incorrido em qualquer tipo de abuso do direito e que devesse assim ser condenado à celebração do contrato prometido, o que os AA. nem sequer, e em rigor, pediram nestes autos.

Pelo que, concordando-se inteiramente com o decidido pelas instâncias, nega-se a revista.

IV – DECISÃO

Pelo exposto, acordam os juízes do Supremo Tribunal de Justiça (6ª Secção - Cível) em negar a revista, confirmando-se o acórdão recorrido.

Custas pelos recorrentes.

Lisboa, 25 de Junho de 2024.

Luís Espírito Santo (Relator)

Rosário Gonçalves

Ricardo Costa

V – Sumário elaborado pelo relator nos termos do artigo 663º, nº 7, do Código de Processo Civil.