Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
73/17.7TRGMR.S1
Nº Convencional: 3ª SECÇÃO (CRIMINAL)
Relator: RAUL BORGES
Descritores: RECURSO
DECISÃO INSTRUTÓRIA
INDÍCIOS SUFICIENTES
MATÉRIA DE FACTO
MATÉRIA DE DIREITO
DUPLO GRAU DE RECURSO
CONCLUSÕES
DENEGAÇÃO DE JUSTIÇA
PREVARICAÇÃO
FUNCIONÁRIO
MINISTÉRIO PÚBLICO
Data do Acordão: 02/05/2020
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: NEGADO PROVIMENTO
Indicações Eventuais: TRANSITADO EM JULGADO
Sumário : I – A recorrente prescindiu de apresentar conclusões, apresentando como tal, algo que nada tem a ver com as proposições sintéticas em que se deve procurar dar a conhecer as razões de discordância com o decidido.

II – A recorrente, de forma óbvia, sem qualquer relevante esforço de síntese, transpõe para as apelidadas “conclusões”, praticamente tudo o que estava na motivação, optando por colocar nas conclusões o que na motivação foi apresentado.

III – As conclusões visam habilitar o tribunal a conhecer quais as questões postas e quais os fundamentos invocados.

IV – As conclusões consistem na enunciação em forma abreviada, dos fundamentos ou razões jurídicas com que se pretende obter o provimento do recurso. (…) destinam - se a resumir, para o tribunal ad quem, o âmbito do recurso e seus fundamentos pela elaboração de um quadro sintético das questões a decidir e das razões porque devem ser decididas em determinado sentido.

V – O âmbito do recurso é dado pelas conclusões extraídas pelo recorrente da respectiva motivação. Nas conclusões da motivação o recorrente tem de indicar concretamente os vícios da decisão impugnada e essa indicação delimita o âmbito do recurso. São só as questões suscitadas pelo recorrente e sumariadas nas conclusões que o tribunal tem de apreciar.  

VI – As conclusões destinam-se a habilitar o tribunal superior a conhecer das pessoais razões de discordância do recorrente em relação à decisão recorrida e devem conter, por isso, um resumo claro e preciso das razões do pedido, sendo estas que delimitam o âmbito do recurso.

VII – As conclusões servem para resumir as razões do pedido, pelo que têm de reflectir a matéria tratada no texto da motivação, não podendo, de forma alguma, servir para alargar o objecto do recurso a matérias estranhas àquele texto.

VIII – As conclusões deverão conter apenas a enunciação concisa e clara dos fundamentos de facto e de direito das teses perfilhadas na motivação.

IX – Como resulta dos arts. 403.º-1 e 412.º-1, do CPP e é jurisprudência pacífica do STJ, é à luz das conclusões da motivação do recurso que este terá de apreciar-se, ou seja, o cerne e o limite de todas as questões a apreciar e decidir no recurso estão contidos nas conclusões.

X – Lidas a motivação e as conclusões é patente que as ditas “conclusões” mais não são do que praticamente a repetição quase integral da motivação. Esforço de síntese inexiste. 

XI – Concluindo. Apesar de as conclusões de recurso apresentadas pela recorrente reproduzirem praticamente de forma integral o texto da motivação, prescindiu-se de formular convite a apresentação de novas e verdadeiras concisas conclusões, atento o facto de a questão colocada ser de fácil detecção, improcedendo assim a questão prévia suscitada pelo Ministério Público.

XII – A instrução constitui uma fase processual autónoma, de carácter facultativo, que visa exclusivamente a comprovação judicial da decisão de acusar ou de arquivar tomada no final do inquérito.

 XIII – A comprovação consiste no controlo jurisdicional sobre a acusação do Ministério Público, acusação do assistente ou despacho de arquivamento do Ministério Público por parte de um juiz diverso do juiz de julgamento.

XIV – Quando incide sobre o despacho de arquivamento, a instrução constitui um instrumento colocado nas mãos do assistente para tutela do seu interesse no prosseguimento do processo, com vista à submissão do arguido a julgamento, interesse que radica, afinal, na garantia constitucional de acesso ao direito e à justiça (art. 20.º, n.º 1, da Constituição). 

XV – A instrução visa discutir a decisão de arquivamento apenas no que respeita ao juízo do MP de inexistência de indícios suficientes e discutir a decisão de acusação apenas no que respeita ao juízo do MP de existência de indícios suficientes. (realces do texto).

XVI – O requerimento para abertura da instrução constitui o elemento fundamental de definição e determinação do âmbito e dos limites da intervenção do juiz na instrução: investigação autónoma, mas delimitada pelo tema factual que lhe é proposto através do requerimento de abertura da instrução.

XVII – Os indícios probatórios - que não a mera discordância legal, doutrinal ou jurisprudencial - são suficientes sempre que dos mesmos resultar uma probabilidade razoável de ao arguido vir a ser aplicada, por força deles, em julgamento, uma pena ou medida de segurança – arts. 283.º, n.ºs 1 e 2, e 308.º, n.ºs 1 e 2, do CPP.

XVIII – Indícios suficientes são os elementos que, relacionados e conjugados, persuadem da culpabilidade do agente, fazendo nascer a convicção de que virá a ser condenado; são vestígios, suspeitas, presunções, sinais, indicações, suficientes e bastantes para convencer de que há crime e de que alguém determinado é o responsável, de forma que, logicamente relacionados e conjugados formem um todo persuasivo da culpabilidade, enfim, os indícios suficientes consistem nos elementos de facto reunidos no inquérito (e na instrução), os quais, livremente analisados e apreciados, criam a convicção de que, mantendo-se em julgamento, terão sérias probabilidades de conduzir a uma condenação do arguido pelo crime que lhe é imputado.

XIX – Tanto a doutrina como a jurisprudência têm realçado que a “possibilidade razoável” de condenação é uma possibilidade mais positiva que negativa: “o juiz só deve pronunciar o arguido quando pelos elementos de prova recolhidos nos autos, forma a sua convicção no sentido de que é mais provável que o arguido tenha cometido o crime do que o não tenha cometido” ou, noutras palavras, os indícios são suficientes quando existe “uma alta probabilidade de futura condenação do arguido, ou, pelo menos, uma probabilidade mais forte de condenação do que de absolvição.

XX – Constitui jurisprudência constante do S.T.J, a orientação de que a suficiência ou insuficiência da prova indiciária para a pronúncia, e portanto, também para acusação, é matéria de facto, da exclusiva competência dos tribunais de instância, não podendo constituir objecto de recurso para o S.T.J., nos casos em que este tribunal funciona como tribunal de revista. Rara é a sessão do Supremo em que não é reafirmada esta orientação.

XXI – Esta solução só é válida para os casos de prova não vinculada. Sempre que, na apreciação da prova, houver violação de preceito legal, já o Supremo poderá conhecer do recurso, se não houver outro obstáculo. Assim é que, considerando as instâncias que é bastante a prova indiciária fundada exclusivamente na confissão, poderá o Supremo conhecer do recurso, por violação do comando formulado no art. 174.º. Nos processos penais que conhece em única instância, compete-lhe apreciar a prova indiciária”.

XXII – Ao Supremo, como tribunal de revista, fica, em regra, tão somente a competência para exercer censura sobre o tratamento jurídico que deve ser dado aos factos que os tribunais de instância considerarem indiciariamente apurados.  

XXIII – O conceito de funcionário previsto para efeitos de lei penal é integrável apenas nos casos em que o agente activo do crime seja funcionário.

XXIV – O crime de denegação de justiça e de prevaricação é crime específico próprio, sendo a qualidade de funcionário (juiz, magistrado do MP, funcionário judicial, jurado) comunicável aos comparticipantes que não a possuam.

XXV – As condutas proibidas todas têm em comum o agir contra direito; qualquer delas representa uma torção do direito.

XXVI – O crime de denegação de justiça e prevaricação não se funda na mera violação dos deveres funcionais do julgador, antes na lesão do bem jurídico da supremacia da ordem jurídica, o mesmo é dizer, na aplicação imparcial e justa do direito. O bem jurídico é violado por uma decisão objetivamente contrária ao direito e à lei.

XXVII – No crime de denegação de justiça, ao lado do interesse público do Estado na administração da justiça, protege-se também o interesse do participante contra o prejuízo que lhe advém da recusa da sua realização, pelo que se deve admitir a constituição como assistente do participante ofendido.

XXVIII – O bem jurídico objecto imediato de tutela no crime de denegação de justiça é a recta administração da justiça, a defesa dos direitos dos cidadãos e a garantia da pessoa humana, sendo titular imediato de tais interesses o Estado.

XXIX – Este ilícito pressupõe uma especial qualidade do agente e a violação de poderes funcionais inerentes ao cargo desempenhado, configurando um crime específico, que mais não é do que um comportamento, activo ou omissivo, de funcionário contra direito. Agir contra direito significa, essencialmente, a contradição da decisão (aqui incluindo, claro está, o comportamento passivo) com o prescrito pelas normas jurídicas pertinentes.

XXX – O n.º 1 do art. 369.º do CP satisfaz-se com o dolo genérico, o qual terá de revestir a modalidade de dolo directo, desinteressando-se aqui a lei dos fins ou motivos do agente.  XXXI – Assim, o crime de denegação de justiça demanda para o seu preenchimento um desvio voluntário e intencional dos deveres funcionais, de forma a poder afirmar-se uma “negação da justiça”.

XXXII – O puro atraso processual, desgarrado de outros elementos, podendo acarretar responsabilidade disciplinar, não reveste dignidade penal, sendo insuficiente, só por si, para tipificar o crime de denegação de justiça.

XXXIII – Nem todo o acto desconforme às regras processuais pode ser visto como contra direito, na acepção pretendida pelo n.º 1 do art. 369.º do CP, pois então qualquer nulidade processual seria tipificada como crime.

XXXIV – O crime de denegação de justiça e prevaricação, p. e p. pelo art. 369.º, n.º 1, do Código Penal, encontra-se sistematicamente integrado no âmbito dos crimes contra o Estado, mais especificamente no capítulo dos crimes contra a realização da justiça, o que aponta para que o bem jurídico tutelado pela norma se situa na equitativa administração da justiça.

XXXV – Pretende-se assegurar o domínio ou a supremacia do direito objectivo na sua aplicação pelos órgãos de administração da justiça, maxime os judiciais, o que permite assinalar que se pressupõe uma específica qualidade do agente, a de funcionário, ficando caracterizado como um crime específico.

XXXVI – O preenchimento do tipo objectivo convoca uma actuação ou omissão de funcionário contra direito, lesando deveres funcionais ínsitos ao cargo desempenhado; relativamente ao tipo subjectivo, o mesmo satisfaz-se com o dolo genérico, desinteressando-se a lei dos fins ou motivos do agente.

XXXVIII – Não são as meras impressões, juízos de valor conclusivos ou convicções íntimas, não corporizados em factos visíveis ou reais, que podem alicerçar a acusação de que quem decidiu o fez conscientemente – dolo genérico – contra direito, e muito menos com o propósito – dolo específico – de lesar alguém.

XXXIX – Por outro lado, também não é a prática de um qualquer acto que infringe regras processuais que se pode, sem mais, reconduzir a um comportamento contra direito, com o alcance definido no n.º 1 deste dispositivo; é preciso que esse desvio voluntário dos poderes funcionais afronte a administração da justiça, de forma tal que se afirme uma negação de justiça.

XL – Também não será a adopção de uma orientação jurisprudencial não maioritária, ou a circunstância de a decisão poder vir a ser revogada por Tribunal Superior, que legitimam a conclusão de que a decisão é, para aquele efeito, proferida contra direito.

XLI – Uma resolução é lavrada contra direito quando contradiz o ordenamento jurídico, ou porque comporta uma interpretação interessada das normas vigentes, ou porque se fundamenta numa disposição ilegal ou inconstitucional; em suma, deve traduzir um ataque à legalidade.

XLII – Num Estado de Direito democrático, a divergência no plano jurídico – seja ela quanto ao iter processual ou no tocante ao direito substantivo –, na solução do caso, colhe acolhimento pela via do recurso e não pela via gravosa da imputação deste crime.

XLIII – Quando o que se apura, sem margem para dúvidas, é apenas uma clara diferença de entendimento dos fundamentos da decisão, por parte do recorrente, já que almejava outra decisão, o tribunal não omitiu o dever de julgar, decidiu foi de forma que não era a por aquele pretendida: há uma decisão judicial que expressa uma solução de direito, com indicação das razões pelas quais se assumiu essa posição – discutível, repete-se, por via recursiva –, permitida pelo complexo jurídico-normativo em vigor, não se mostrando, como tal, proferida “contra direito”, com a acepção e o alcance ínsitos ao art. 369.º, n.º 1, do CP.

XLIV – No descortinar da actuação prevaricadora do juiz ou de denegação de justiça deve-se usar de um crivo exigente, até porque, a ser diferente, ou seja, de todas as vezes que o destinatário da decisão dela discorde, seja porque não se aplicou a lei, se seguiu interpretação errónea na sua aplicação, se praticou um acto ou deixou de praticar, os Magistrados Judiciais ou do MP incorressem num crime de prevaricação, estava descoberto o processo expedito de paralisar o desempenho do poder judicial, a bel prazer do interessado, pelos factores inibitórios que criaria aos magistrados, a todo o momento temerosos de sobre eles incidir a espada da lei, paralisando-se a administração da justiça, com gravíssimas, intoleráveis e perigosas consequências individuais e comunitárias, não se dispensando, por isso mesmo, a presença de um grave desvio funcional por parte do Magistrado pondo em causa a imagem da justiça e os interesses de terceiro. 

XLV – A actuação contra direito é uma forma de acção gravosa e ostensiva contra as normas de ordem jurídica positiva, independentemente das fontes (estadual ou não estadual) e da natureza pública ou privada, substantiva ou processual, incluindo os princípios vertidos em normas positivas designadamente na DUDH, PIDCP e CEUD. 

XLVI – A actuação contra o direito não abrange apenas a interpretação objectivamente errada, mas também a incorrecta apreciação e subsunção dos factos à norma; a aplicação da norma é contra o direito se, reconhecendo-se uma certa discricionariedade, o aplicador se desvia do fim para que foi criada a discricionariedade, incorrendo, então, na prática do crime. 

XLVII – O crime de denegação de justiça e prevaricação, p. e p. pelo art. 369.º, n.º 1, do CP, encontra-se sistematicamente inserido no âmbito dos crimes contra o Estado, mais especificamente no capítulo dos crimes contra a realização da justiça. O bem jurídico tutelado é a realização da justiça em geral, visando a lei assegurar o domínio ou a supremacia do direito objectivo na sua aplicação pelos órgãos de administração da justiça, maxime judiciais.

XLVIII – Tem por elementos constitutivos a ocorrência de comportamento contra o direito, no âmbito de inquérito processual, processo jurisdicional, por contra-ordenação ou disciplinar, por parte de funcionário, conscientemente assumido, havendo lugar à agravação no caso de o agente agir com intenção de prejudicar ou beneficiar alguém. 

XLIX – Face à exigência típica decorrente da expressão “conscientemente”, só o dolo directo e o necessário são relevantes, como é jurisprudência uniforme deste Supremo Tribunal. (acórdãos de 8-02-2007, 21-05-2008, 8-10-2008 e de 12-07-2012, proferidos nos processos n.ºs 4816/06-5.ª Secção, CJSTJ 2007, tomo 1, págs. 186/7, n.º 3230/07-3.ª Secção, versando atraso processual de juíza, n.º 31/07-3.ª Secção, e n.º 4/11.8TRLSB.S1, da 3.ª Secção, publicado na CJSTJ 2012, tomo 2, págs. 236/8, versando intervenção de juiz em processo de inventário).

Decisão Texto Integral:

     Nos autos de inquérito com o NUIPC 73/17.7TRGMR, que correu termos na Secção de Processos dos Serviços do Ministério Público no Tribunal da Relação de Guimarães, respeitantes à queixa apresentada em 24 de Novembro de 2017 por AA contra BB, casada, nascida em ..-..-1973, natural de …., Procuradora Adjunta em exercício de funções na Procuradoria da República da Comarca de …, foi proferido, em 6 de Setembro de 2018, pela Exma. Procuradora-Geral Adjunta no Tribunal da Relação de Guimarães, despacho de arquivamento, de fls. 150 a 157, considerando que “mesmo sendo embora susceptíveis de apreciação e de censura do ponto de vista disciplinar, como foi a actuação da magistrada denunciada, os elementos acima discriminados e analisados, não constituem indícios suficientes para integrar a prática do crime de denegação de justiça, previsto e punido nos termos do n.º 1 do artigo 369.º do Código Penal, o qual pressupõe, além do mais, que tais factos sejam praticados conscientemente e contra direito”.


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     Por requerimento de fls. 175 a 189, recebido nos Serviços da Secção de Processos da Procuradoria-Geral Distrital, Tribunal da Relação de Guimarães, em 12-10-2018, conforme carimbo que consta do mesmo, a fls. 175, veio a assistente AA requerer a abertura de instrução, insurgindo-se contra o despacho de arquivamento e defendendo dever ser proferido despacho de pronúncia.

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      A fls. 190, pelos Serviços do Ministério Público junto do Tribunal da Relação de Guimarães, foi determinada a remessa dos autos à distribuição, tendo então sido proferido o despacho de fls. 196, que admitiu o requerimento de abertura de instrução apresentado pela assistente, declarou aberta a instrução requerida, designou data para realização do debate instrutório, mais declarando ainda a denunciada constituída arguida.

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      Realizadas as necessárias notificações, teve lugar o debate instrutório, documentado na acta de fls. 210 e 211.

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      Em 28-01-2019 foi proferida decisão instrutória, constante de fls. 216 a 242, que decidiu não pronunciar a arguida pela prática do crime de denegação de justiça, previsto e punido nos termos do n.º 1 do artigo 369.º do Código Penal.

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     Inconformada com a decisão de não pronúncia da arguida BB, a assistente AA interpôs recurso para este Supremo Tribunal, por requerimento entrado em juízo em 14-02-2019, conforme carimbo no mesmo aposto, a fls. 250, apresentando a motivação que consta de fls. 250 a 269, que remata com as seguintes conclusões (transcrição integral, incluindo realces):

“1o - Vem o presente recurso interposto da douta decisão instrutória que decidiu não pronunciar a arguida BB - Procuradora Adjunta,

2o - por ali se ter concluído que: ...em face do exposto, os factos acima descritos e analisados, não constituem indícios suficientes para integrar a prática pela arguida do crime de denegação de justiça, previsto e punido nos termos do art° 369° n.° 1 do Cód. Penal, o qual pressupõe , além do mais, que tais actos tenham que ser praticados, conscientemente e contra direito, como se referiu.

Como tal não sendo categoricamente previsível a condenação da arguida por este crime -p. e p. pelo art° 369° n.° 1 do CP- em face do exposto não deve a mesma ser pronunciada.

3o - Conforme consta da douta decisão instrutória, a factualidade apurada nestes autos é a seguinte:

I - Os presentes autos respeitam à queixa apresentada, em 24.11.2017, por AA, devidamente id. nos autos, contra BB, Procuradora-Adjunta junto do Juízo Local Criminal de Guimarães, por alegada prisão ilegal/abuso de poder, nos termos constantes de fls. 2 e 3.

Como prova juntou os documentos de fls. 4 e 5, 6 e 7, autos de notícia respeitantes a sua alegada detenção ilegal.

II - No decurso do inquérito, tendo em conta todos os elementos informatórios juntos e diligências realizadas tidas como pertinentes e necessárias, apuraram-se, no essencial, os seguintes factos :

- No dia 20 de Abril de 2016, pelas 12.15 horas, a Sra. Juiz que presidia ao julgamento no processo de Inventário n. ° 163/13…., na Instância Local Cível, Jl, da Comarca de …, ordenou a detenção da AA, que estava a ser ouvida como testemunha, por alegado crime contra a realização do Estado de Direito e desrespeito à autoridade - autos de fls. 4 a 7 elaborados pela PSP e juntos pela denunciante.

- Mais ordenou aquela magistrada judicial, após ter chamado a autoridade policial, que a AA fosse conduzida “sob detenção” à Esquadra da PSP até ser presente a tribunal para julgamento.

- Consta ainda dos autos de notícia juntos, que a PSP foi chamada para se deslocar ao tribunal e tomar "conta" da ocorrência, às 12.20 horas do referido dia 20.04.2016, bem como que, a ordem de detenção já havia sido dada pela Mma. Juiz, que elaborará auto de notícia pelos factos de a arguida ter cometido o crime de perturbação do funcionamento de Órgão Constitucional e que "O auto de Notícia, redigido pela Ma Juiz, será por esta Autoridade Judicial, enviado directamente ao MP, desta Comarca."

- Quando contactada pela PSP, no período da tarde, a Procuradora-Adjunta BB ordenou que procedessem à constituição da detida como arguida e fosse sujeita a TIR, aguardando nessa situação a sua apresentação, pelas 10.00 horas do dia seguinte, 21 de Abril de 2016 - auto de notícia por detenção de fls. 6 e 7.

- O marido da queixosa, CC, no próprio dia 20.04.2016, durante a tarde, apresentara um requerimento nos Serviços do Ministério Público a pedir a libertação da mulher, alegando que esta sofre do coração e que não parava de chorar, com a condição de se apresentar no dia seguinte, ou que o deixasse ficar com ela na Esquadra da PSP, o qual foi indeferido - fls. 8.

- Segundo informação prestada nos autos de inquérito 1098/16…., pela Procuradoria da Republica da Comarca de … por consulta do respectivo expediente, o auto de noticia elaborado pela Sra. Juiz que procedeu à detenção foi recebido na Secção Central, às 16,42 horas do dia 20.04.2016 e na Procuradoria às 16,53 h - fls. 232.

- Assim, só às 16,53 horas do supra-referido dia 20 é que foi  recebido na Procuradoria da Instância Local, Secção de Inquéritos, o “Auto de Noticia” elaborado pela Sra. Juiz (fls. 27), relativo à detenção da denunciante, juntamente com certidão da acta da diligência de inquirição no processo cível, após o que ainda nesse dia foi feito constar no respetivo expediente pela ora denunciada, enquanto Procuradora-Adjunta no exercício de funções de turno, o seguinte despacho : “R.A. como processo de Inquérito, Perturbação de órgão Constitucional, requerimento do mari­do da arguida: indefere-se o requerido por falta de fundamento legal, Conclua... “, além de “Expediente presente às 16.42 horas e Recebi às 16.53 h “- fls. 2 e ss do inquérito n. ° 624/16… ..

      - Sendo-lhe o respectivo inquérito sido concluso no dia seguinte, 21.04.2016, proferiu despacho a solicitar a indicação de defensor oficioso, e CRC, bem como a determinar o interrogatório da arguida de imediato na sua presença.

      - Tal expediente deu origem, ao dito inquérito n.° 642/16…, no qual a final foi proferido despacho de arquivamento datado de 13.02.2017, por não se mostrarem preenchidos os elementos objectivos do crime que a AA era imputado, de perturbação de funcionamento de órgão constitucional do art° 334° a) do CP.

- Sobre os factos, a ora denunciada, inquirida no âmbito do inquérito 1098/16…., declarou que porque se encontrava em serviço de turno, no dia em questão, a meio da tarde, foi-lhe comunicada pela PSP a ocorrência de uma detenção no Tribunal Cível, ordenada pela Sra. Juiz e informando que não tinham o expediente relacionado com a detenção, o qual estava a ser elaborado por quem a ela procedeu e foi complementado com o auto de notícia, elaborado pela PSP. Disse-lhes que se aguardasse a chegada do expediente da Sra. Juiz, o qual lhe foi presente às 16,53 horas, após o que nele exarou o despacho supra-referido e foi encaminhado para a secção respectiva, sendo-lhe concluso no dia seguinte. Não recebeu qualquer comunicação prévia do Tribunal Cível sobre a referida detenção - fls. 390 e 391.

- Então, pelas 11,35h do dia 21.04.2016, procedeu a interrogatório não judicial de arguido detido (a denunciante), após ter ouvido o CD contendo a gravação da audiência em que teve lugar a detenção, o que fez juntamente com a Sra. Juiz de turno para interrogatório de arguidos detidos, dado o melindre da situação; proferiu despacho a validar a detenção por efectuada nos termos dos art.s 255°, n.° 1 e 256° do CPP e ordenou a sua imediata libertação (art°261°, n.° 1, do CPP), ficando sujeita apenas a TIR, por ser primária e estar social e familiarmente integrada, não obstante ter considerado que o ilícito de perturbação de órgão constitucional é de “elevada gravidade”- fls. 19.

- Em Agosto de 2016 a queixosa participou criminalmente contra DD, Juiz que ordenou a sua detenção, participação que deu origem ao referido inquérito n.° 1098/16…, no qual esta veio a ser indiciada como autora material de um crime de denegação de justiça e prevaricação, p.p. pelo art° 369°, n°s 4 e 5 do CP e foi decidida a suspensão provisória do processo nos termos do despacho aí proferido - fls. 489 a 495 do Anexo-B.

- Apenas em Novembro de 2017 foi apresentada a queixa que deu origem a estes autos contra a denunciada BB, após despachos finais proferidos nestes dois inquéritos n.° 642/16… e n.° 1098/16… e conhecimento pela queixosa AA da decisão proferida, em 30.05.2017, no processo disciplinar visando aquela denunciada, em que foi punida na pena de 10 dias de multa, suspensa na sua execução pelo período de 10 meses, nos termos dos art.s 168°, 181°, 185° do EMP e art.s 185° e 192°do LGTFP - fls. 98 a 115.

4° - Fixada esta matéria importa, agora, analisar o comportamento da magistrada arguida por forma a apurar-se se é o mesmo subsumí­vel no tipo legal do crime de denegação de justiça e prevaricação, p. e p. pelo art° 369° do CP.

5o - Estipula o citado normativo:

“1- O funcionário que, no âmbito de inquérito processual, processo jurisdicional, por contraordenação ou disciplinar, conscientemente e contra direito, promover ou não promover, concluir, decidir ou não decidir, ou praticar acto no exercício de poderes decorrentes de cargo que exerce, é punido com pena de prisão até dois anos ou com pena de multa até 120 dias.”

6o - Este tipo de crime é essencialmente doloso, ficando preen­chido com a actuação com dolo directo, como se retira da palavra “cons­cientemente” no descritivo típico.

7o - A Doutrina dominante encontra na realização da justiça, o específico bem jurídico protegido pelo tipo legal do crime agora em análise.

8o - Conforme escreveu A. Medina Seiça no Comentário Conimbricense ao Código Penal, Tomo III, Coimbra Editora, Edição 2001, págs. 605 a 627: o ataque ao bem jurídico dá-se de dentro i.e., por parte dos órgãos deputados pela comunidade estadual justamente para a tarefa da correcta realização da justiça. É ... a transformação do direito em injusto por parte de quem é chamado a servir de garante institucional apropria Ordem Jurídica que convoca a particular censura da norma incriminadora.

- De uma forma simples, podemos então afirmar que o delito em causa é a resposta penal aos abusos da função judicial.

10° - Quanto ao sentido do elemento “direito” do tipo do crime, é pacifica a aceitação pela Doutrina e Jurisprudência que o mesmo abrange o conjunto das normas vigentes na ordem jurídica positiva, independentemente da sua origem,

11° - pelo que o núcleo típico deste crime surge quando o agente realiza ou omite um comportamento contra direito, independentemente da sua fonte.

12° - Agir contra direito terá, assim, de significar a contradição da decisão ou omissão com o prescrito pelas normas jurídicas pertinentes,

13° - podendo afirmar-se que uma decisão, ainda que se mostre defensável no plano abstacto-normativo, é contra direito sempre que, em concreto, teve na base considerações estranhas à objectividade que qualquer caso exige.

14° - O elemento subjectivo do tipo do crime prende-se com o conteúdo do dolo, mais concretamente, com o tipo de conhecimento que há-de exigir-se no agente para se poder afirmar que a conduta foi dolosa.

15° - Conforme se escreveu também no Acórdão desse Tribunal de 12/07/2012: o dolo, enquanto vontade de realizar o tipo com conhecimento da ilicitude (consciência), há-de apreender-se através de factos (acções ou omissões) materiais e exteriores, suficientemente reveladoras daquela vontade, de onde se possa extrair uma opção consciente de agir desconforme à norma jurídica. É necessário que o desvio voluntário dos poderes funcionais afronte a administração da justiça deforma tal que se afirme uma negação da justiça.

É preciso, por isso, que quem decidiu de uma determinada forma, tenha consciência de que, desviando-se dos seus deveres funcionais, violou o ordenamento jurídico pondo em causa a administração da justiça.

16° - Voltando ao caso agora sob sindicância, temos então que o expediente relacionado com a detenção foi recebido pela Procuradora Adjunta arguida às 16,53h do dia 20-04-2016,

17° - Magistrada que se encontrava, no referido dia 20, em serviço de turno,

18° - competindo-lhe, por isso, assegurar e realizar o serviço urgente relacionado com os arguidos detidos,

19° - já que as situações de privação da liberdade se revestem de uma acrescida danosidade.

20° - Estando a referida Magistrada de turno e não resultando, de toda a factualidade assente nestes autos, a existência de um qualquer outro serviço nesse dia com arguidos detidos que a mantivessem impedida,

21° - então sempre lhe era legalmente imposto e no exercício de um poder/dever, realizar de imediato as diligências necessárias por forma a não prolongar a detenção da arguida/assistente,

22° - uma vez que a privação da liberdade é a última ratio do nosso direito penal,

23° - procedimento que não adoptou, podendo e devendo fazê-lo.

24° - Ao proceder daquele modo, marcando para o dia seguinte à detenção o interrogatório, era manifesto que a continuação da detenção da arguida/assistente sempre seria desnecessária, pelo que se justificaria, então, que tivesse procedido à sua imediata libertação, tal como preceitua o art° 261° do CPP, o que também não fez.

25° - Por outro lado, era facilmente perceptível que, in casu, não se verificava o perigo de fuga ou a continuação da actividade criminosa, nem a libertação da assistente causaria perturbação pública.

26° - A Magistrada do MP não deu, por isso, cumprimento às exigências legais e às regras que em casos semelhantes são prática comum e habitual.

27° - O bem jurídico objecto imediato de tutela no crime de denegação de justiça, é a correcta administração da justiça, a defesa dos direitos dos cidadãos e a garantia da pessoa humana, sendo também titular de tais interesses o Estado.

28° - A actuação da Magistrada arguida foi, por isso, desconforme e contra o direito, traduzindo-se num claro e frontal prejuízo dos direitos da arguida/assistente, concretamente, a privação da sua liberdade por tempo muito superior ao necessário,

29° - Direito com consagração na nossa lei fundamental - art° 27° da CRP e na Declaração dos Direitos do Homem — arts. 9o a 11°.

30° - Em Acórdão desse Venerando Tribunal de 16/06/2005, Proc. 05P1938, escreveu-se e entre o mais: ... no juízo de quem acusa, como no de quem pronuncia, deverá estar sempre presente a necessidade de protecção contra intromissões abusivas na sua esfera de direitos, mormente os salvaguardados na Declaração Universal dos Direitos do Homem e que entre nós se revestem de dignidade constitucional, como é o caso da liberdade.

31° - A arguida é Magistrada de profissão, já com alguns anos de experiência e preparação técnica, com conhecimento do direito e das leis muito superior ao homem médio.

32° - Não podia ignorar que a sua conduta omissiva era violadora do direito e da lei, sendo a prisão a última ratio no nosso direito penal,

33° - razões pelas quais podia e devia ter actuado de forma diferente e conforme o direito, o que não quis, bem conhecendo as consequências dessa sua opção.

34° - E é precisamente nesta vontade consciente e expressa, que é preenchido o elemento subjectivo do tipo: o dolo.

35° - E, pois, inaceitável a conclusão a que se chegou na douta decisão instrutória, quando se refere que no caso em concreto não se encontra preenchido o elemento subjectivo do crime.

36° - Violou, assim, a Mma. Juiz Desembargadora Instrutora, por erro de interpretação e/ou aplicação, o disposto no art° 369° do CP,

37° - já que se impunha a prolação de decisão instrutória no sentido de pronunciar a referida Magistrada do MP pela prática, como autora material, do crime de denegação de justiça e prevaricação, p.e p. pelo art° 369° do CP.

  Termina pedindo que a douta decisão recorrida seja revogada e substituída por outra que pronuncie a arguida pela prática do crime p. e p. pelo artigo 369.° do Código Penal, assim se fazendo, como habitualmente JUSTIÇA.


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    Por despacho de fls. 270 foi admitido o recurso interposto pela assistente para este Supremo Tribunal de Justiça, a subir imediatamente, nos próprios autos e com efeito suspensivo.

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     A Exma. Procuradora-Geral Adjunta no Tribunal da Relação de Guimarães apresentou a resposta ao recurso apresentado, constante de fls. 273 a 278, suscitando a questão prévia consistente em o recurso não apresentar verdadeiras conclusões ao copiar no texto apresentado como conclusões o que alegou no corpo da motivação, tendo a recorrente desrespeitado o ónus constante da parte final do n.º 1 do artigo 412.º, n.º 1, do CPP, o que equivale à não apresentação de conclusões, entendendo que de harmonia com o disposto no artigo 417.º, n.º 3, do CPP, deveria a recorrente ser notificada para apresentar conclusões nos termos do artigo 412.º, n.º 1, sob pena de rejeição do recurso, concluindo:

I - O presente recurso é interposto pela assistente, AA, inconformada com o despacho de não pronúncia da arguida BB pelo crime de denegação de justiça p.p. pelo art. 369º, nº 1 CP, que lhe imputa.

II - A questão que se coloca é saber se existem indícios suficientes da prática pela arguida desse crime.

III - O despacho de não pronúncia é claro na respectiva fundamentação, nomeadamente pela indicação dos factos indiciados, insusceptíveis, porém, de indiciarem suficientemente a verificação dos elementos constitutivos do crime, e desde logo, do seu elemento subjectivo, não obstante demonstrar também a não indiciação de que a arguida agiu contra direito.

IV - Atento o disposto nos art.s 308.º, nº 1 e 283.°, n.° 2, do CPP, o prosseguimento do processo criminal para julgamento só se aceita nos casos que ofereçam uma garantia fundada de procedência da acusação.

V - No caso, os factos apurados não permitem afirmar um juízo de indiciação da prática do crime imputado à arguida, pelas razões e fundamentos constantes do douto despacho recorrido, para as quais nos remetemos.

Por tudo o exposto, o recurso interposto, deverá ser julgado improcedente.

Vossas Excelências, porém, decidirão como for de Justiça!

      


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    A Exma. Procuradora-Geral Adjunta neste Supremo Tribunal emitiu douto parecer, constante de fls. 285 a 288, ora transcrito de modo integral:

“1. Por decisão instrutória proferida em 28.01.2019, no Tribunal da Relação de Guimarães, foi decidido “não pronunciar a arguida BB, Procuradora-Ajunta, pela prática do crime de denegação de justiça, p. e p. nos termos do n.° 1 do artigo 369° do C. Penal, que lhe imputa o assistente no R.  A.  I.  determinando, após trânsito, o arquivamento dos autos.”.

2. De tal decisão interpõe recurso a assistente AA, em 14.02.2018, com as conclusões de fls. 260/269, as quais se dão por reproduzidas.

Pugna a recorrente pela prolação de decisão que pronuncie a arguida pela prática do crime p. e p. pelo art. 369º do CP.

3. A tal recurso respondeu fundadamente a magistrada do MºPº junto do TRG, pugnando pela improcedência do recurso.

4. Nada obstando ao conhecimento do mesmo, afigura-se que o recurso deverá ser apreciado em sede de conferência.

5. Do parecer

     Da materialidade fática apurada, descrita a fls. 232/236 da decisão de pronúncia, afigura-se ser de salientar que:

      “(…) só às 16, 53 horas do supra-referido dia 20 é que foi recebido na Procuradoria da Instância Local, Secção de Inquéritos, o "Auto de Noticia" elaborado pela Sra Juiz (fls. 27), relativo à detenção da denunciante, juntamente com certidão da acta da diligência de inquirição no processo cível (…)”

     À magistrada do MºPº em funções de turno foi entregue o auto de Notícia elaborado pela Srª Juiz de direito em exercício de funções na Instância Local Cível do Tribunal de …, auto de notícia transcrito a fls. 73 dos presentes autos.

       Foi-lhe igualmente apresentado o Auto de Notícia por Detenção do qual consta, designadamente, que “a magistrada judicial ordenou aos agentes da PSP que de imediato tomassem conta da aqui suspeita, fosse conduzida às instalações policiais, sob detenção, para que recolhesse às salas de detenção, desta Polícia, até ser presente a tribunal para julgamento” (fls. 6 e 7 dos autos).

     E foi igualmente apresentado à magistrada do MºPº em funções de turno o CD contendo a gravação da audiência em que teve lugar a detenção da ora recorrente.

     Em face de tais elementos, a magistrada/Procuradora-adjunta a exercer funções de turno tinha necessariamente de se inteirar do conteúdo do referido CD para aferir, com a precisão exigível, sobre a extensão dos exatos comportamentos da pessoa detida, por forma a subsumir a conduta  da pessoa detida ao tipo legal de crime correspondente, estando abstractamente em causa o disposto nos art. 334º nº1  por referência ao art. 333º do CP.

     E tal como se fundamenta na decisão instrutória sob recurso, a fls. 238/239, “face aos elementos indiciários apurados e constantes dos autos, não se revela, com a segurança e certeza legalmente exigíveis, qualquer comportamento susceptível de integrar a prática do crime de denegação de justiça ou qualquer outro, nem se vislumbra que a realização de quaisquer outras diligências possa vir a alterar tal juízo.

     Mesmo quando a lei no art. 254.°, n.° 1. b), sob o título Finalidades da detenção, se refere a "de imediato", daí não resulta que os procedimentos policiais e/ou judiciários sejam ou tenham que ser automáticos.

     Assim, em caso de detenção, sempre o Ministério Público terá de proceder necessariamente à análise técnico-jurídica da situação em face do auto de detenção e do expediente que lhe é apresentado (v. Fernando Gama Lobo, Código de Processo Penal, 2015/ 754).

      No caso concreto, o auto de detenção e de notícia só foi apresentado ao MP de turno pelas 16/53h e juntamente com ele foi ainda este confrontado com um requerimento do marido da arguida. Mandou autuar e registar os autos como inquérito uma vez que estava em causa um crime contra o Estado, mais exactamente de perturbação de funcionamento de órgão constitucional p.p. pelo art. 334°.a) do CP/ sendo o seu eventual julgamento da competência do tribunal colectivo.

     A hora tardia em que o auto foi apresentado conjugada com a necessidade de análise do expediente e do requerimento apresentado pelo marido da arguida implicou ou explica que a denunciada não pudesse ou tivesse admitido não poder naquele mesmo dia proceder a interrogatório da arguida e libertá-la, se assim o entendesse, como logo veio a suceder na manhã seguinte.

      Não foi ultrapassado o prazo de 48 horas.

     Não foi determinada a apresentação ao juiz de instrução pela simples razão de que não tinha que ser já que a denunciada, depois de interrogar a arguida, entendeu suficiente a sujeição a TIR (art. 143°, n°3 CPP).

       A denunciada não agiu contra o Direito.

     Mesmo que a arguida entendesse que deveria aplicar-se uma outra medida de coacção, caso em que a detida deveria ter sido apresentada para interrogatório judicial, acompanhada da respectiva promoção do Ministério Público, nada permitia concluir que esse interrogatório fosse concluído ainda no dia da detenção.

       Por outro lado, a lei exige que o funcionário actue conscientemente, o que exclui o dolo eventual.

      Assim, mesmo que se entendesse de forma diversa, nunca se poderia dizer que em face das circunstâncias concretas que envolveram a situação, o atraso no interrogatório e na subsequente libertação da arguida se tenha ficado a dever uma actuação deliberada da PGA de negar a administração da justiça (Miguez Garcia e Castela Rio, Código Penal, 2a ed., 2015/ 1287/ nota 5).

      Está assim afastada a incriminação constante do n° 1 do art. 369° do CP. E, não havendo intenção de prejudicar ou beneficiar alguém, a actuação da denunciada nunca poderá também integrar os n°s 2 e 3 do mesmo preceito legal.        

     Os n°s 4 e 5 são igualmente de afastar uma vez que o MP não ordenou nem executou medida privativa da liberdade de forma ilegal, nem omitiu ordená-la ou executá-la.

      De toda a forma, em processo penal apenas será deduzida acusação, após o inquérito, se neste tiverem sido recolhidos indícios suficientes de se ter verificado crime e de quem foram os seus agentes - art. 283° CPP.”

    (sublinhados nossos)

      Pelo exposto, acompanhando na íntegra os fundamentos aduzidos na decisão instrutória recorrida, pronunciamo-nos igualmente pela improcedência do recurso interposto pela assistente, e subsequentemente pela manutenção da decisão de não pronúncia proferida”.


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     Foi cumprido o disposto no artigo 417.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, tendo silenciado, quer a assistente, quer a arguida.



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      Colhidos os vistos, realizou-se a conferência, cumprindo apreciar e decidir.


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       Questão proposta a reapreciação e decisão

           

   O âmbito do recurso é delimitado pelas conclusões, onde a recorrente (assistente) resume as razões de divergência com o decidido na decisão instrutória recorrida.

      Assim, a única questão a decidir traduz-se em saber se, em vez de decisão de não pronúncia da arguida pela prática do crime de denegação de justiça, previsto e punido pelo artigo 369.º, n.º 1, do Código Penal, deveria a mesma ter sido pronunciada pela prática de tal crime.

      Antes porém, cabe apreciar a questão prévia colocada pelo Ministério Público na Relação de Guimarães, consistente em saber se deve ser ordenado convite a melhoria de conclusões.


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       Questão Prévia – Falta de conclusões tout court

      Como se referiu, a Exma. Procuradora-Geral Adjunta no Tribunal da Relação de Guimarães na resposta apresentada, suscitou questão prévia consistente em o recurso não apresentar verdadeiras conclusões ao copiar no texto apresentando como conclusões o que alegou no corpo da motivação, tendo a recorrente desrespeitado o ónus constante da parte final do n.º 1 do artigo 412.º, n.º 1, do CPP, o que equivale à não apresentação de conclusões, entendendo que de harmonia com o disposto no artigo 417.º, n.º 3, do CPP, deveria a recorrente ser notificada para apresentar conclusões nos termos do artigo 412.º, n.º 1, do mesmo Código, sob pena de rejeição do recurso.

       Apreciando.

     A recorrente afirma a sua discordância com o decidido no despacho de não pronúncia, conforme resulta do exposto na motivação e levado em repetição quase integral às supostas “conclusões”, que deveriam traduzir, de forma sintética, as razões de divergência com o decidido.

     A recorrente prescindiu de apresentar conclusões, apresentando como tal, algo que nada tem a ver com as proposições sintéticas em que se deve procurar dar a conhecer as razões de discordância com o decidido.

     A recorrente, de forma óbvia, sem qualquer relevante esforço de síntese, transpõe para as apelidadas “conclusões”, praticamente tudo o que estava na motivação, optando por colocar nas conclusões o que na motivação foi apresentado.

      Como ensinava José Alberto dos Reis, Código de Processo Civil Anotado, IV volume, pág. 359, as conclusões visam habilitar o tribunal a conhecer quais as questões postas e quais os fundamentos invocados.

       Jacinto Rodrigues Bastos, Notas ao Código de Processo Civil, pág. 229, 3.ª edição, Lisboa, 2001, volume III, pág. 239, dizia: «as conclusões consistem: a) na indicação da norma jurídica violada; b) na exposição do sentido em que as normas jurídicas que servem de fundamento à decisão deviam ter sido interpretadas e aplicadas; e, quando se invocar erro na norma aplicável, c) a indicação da norma jurídica que devia ter sido aplicada»; 

«as conclusões consistem na enunciação em forma abreviada, dos fundamentos ou razões jurídicas com que se pretende obter o provimento do recurso. (…) destinam - se a resumir, para o tribunal ad quem, o âmbito do recurso e seus fundamentos pela elaboração de um quadro sintético das questões a decidir e das razões porque devem ser decididas em determinado sentido…».

       Como refere Germano Marques da Silva, in Curso de Processo Penal, III, Editorial Verbo, 1994, págs. 320/1 (e edição de 2000, a págs. 335), o âmbito do recurso é dado pelas conclusões extraídas pelo recorrente da respectiva motivação. Nas conclusões da motivação o recorrente tem de indicar concretamente os vícios da decisão impugnada e essa indicação delimita o âmbito do recurso. São só as questões suscitadas pelo recorrente e sumariadas nas conclusões que o tribunal tem de apreciar.  

      As conclusões devem ser «um resumo explícito e claro das questões levantadas pelo recorrente (…). O tribunal superior, como vem entendendo o STJ, só conhece das questões resumidas nas conclusões, por aplicação do disposto no artº. 684.º, n.º 3, do CPC». Assim, Simas Santos e Leal Henriques, Código de Processo Penal Anotado, volume II, 2.ª edição, pág. 801.

      Pereira Madeira, Código de Processo Penal Comentado, Almedina, 2016, 2.ª edição revista, em anotação ao artigo 412.º, diz, a págs. 1299, ponto 3: “As conclusões, como súmula da fundamentação, encerram, por assim dizer, a delimitação do objecto do recurso. Daí a sua importância. Não se estranha pois que se exija que devam ser pertinentes, reportadas e assentes na fundamentação antecedente, concisas, precisas e claras. Não faz sentido algum e só prejudica a clareza exigível da posição do requerente, a enumeração a esmo de conclusões que nada têm a ver com as exigências deste preceito, como acontece por exemplo quando são erigidas em conclusão do recurso as declarações desta ou daquela testemunha, o conteúdo deste ou daquele documento, a passagens transcritas de certos manuais de direito…”.

     No acórdão do Supremo Tribunal Administrativo, de 17-07-1996, invocando o artigo 690.º, n.º 1, do CPC (na redacção anterior à que lhe foi conferida pelo Decreto-Lei n.º 329-A/95, de 12 de Dezembro – O recorrente deve apresentar a sua alegação, na qual concluirá pela indicação dos fundamentos por que pede a alteração ou anulação da decisão), verificando-se falta de concisão após convite à recorrente a apresentar uma versão resumida dos fundamentos do recurso – na verdade mera reprodução do texto da alegação já apresentado, subordinada ao título “conclusões” – foi decidido não conhecer do recurso, conforme o disposto no artigo 690.º, n.º 3, do CPC, com a seguinte fundamentação:

      “As conclusões constituem assim um elemento integrante mas autonomizável da apelação, como resulta, inclusivamente, do n.º 3 do mesmo artigo, que impõe ao juiz o dever de convidar o recorrente a apresentá-las, completá-las ou esclarecê-las, sob pena de não se conhecer do recurso, quando elas faltem, sejam deficientes ou obscuras ou não indiquem a norma jurídica violada.   

      A razão desta exigência legal é explicada por J. A. Reis, Código de Processo Penal Anotado, V, Coimbra, 1952, p. 359:

      “A palavra conclusões é expressiva. No contexto da alegação, o recorrente procura demonstrar esta tese: que o despacho ou sentença deve ser revogado, no todo ou em parte. É claro que a demonstração desta tese implica a produção de razões ou fundamentos. Pois bem: essas razões ou fundamentos são primeiro expostos, explicados e desenvolvidos no caso da alegação: hão-de ser depois enunciados e resumidos, sob a forma de conclusões, no final da minuta.

       É claro que, para serem legítimas e razoáveis, as conclusões devem emergir logicamente do arrazoado feito na alegação. As conclusões são as proposições sintéticas que emanam naturalmente do que se expôs e considerou ao longo da alegação”.

       Interposto recurso desta decisão foi a mesma apreciada no acórdão do Tribunal Constitucional n.º 40/2000, de 6 de Janeiro de 2000, processo n.º 13/97, da 2.ª Secção, Diário da República, II Série, n.º 243, de 20 de Outubro de 2010, que por as conclusões apresentadas não cumprirem integralmente os requisitos de completude, clareza e concisão exigidos pelo n.º 3 do artigo 690.º do CPC, decidiu negar provimento ao recurso.

      Segundo o acórdão deste Supremo Tribunal de 04-02-1993, proferido no processo n.º 83.281, in CJSTJ 1993, tomo 1, pág. 140, em sede de acção cível (caso de responsabilidade contratual por defeituoso cumprimento de um contrato de compra e venda de veículo com reserva de propriedade), mas com pleno cabimento aqui, em que foi aplicada a cominação do então n.º 3 do artigo 690.º do CPC, “as conclusões são proposições sintéticas que emanam do que se expôs e considerou ao longo das alegações; sem a indicação concisa e clara dos fundamentos explanados e desenvolvidos nas alegações não há conclusões, o que é motivo para não receber o recurso”.

      Depois de citar o acórdão de 2-08-1988, publicado na AJ, n.º 28.23, segundo o qual «as conclusões de recurso devem conter de forma reduzida e clara a enunciação dos fundamentos do recurso e a indicação das disposições legais violadas», afirma: “A razão de ser da lei é, por um lado, apelar para o dever de colaboração das partes e dos seus representantes (art. 265.º) a fim de tornar mais fácil, mais pronta e mais segura a tarefa de administrar a justiça; e, por outro lado, fixar a delimitação objectiva do recurso, indicando concreta e precisamente as questões a decidir (artigo 684.º)”.

      Como assinalava o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 19 de Junho de 1996, proferido no processo n.º 118/96, in BMJ n.º 458, pág. 98, as conclusões destinam-se a habilitar o tribunal superior a conhecer das pessoais razões de discordância do recorrente em relação à decisão recorrida e devem conter, por isso, um resumo claro e preciso das razões do pedido, sendo estas que delimitam o âmbito do recurso.

      Segundo os acórdãos de 5-06-1997, processo n.º 1388/96, de 23-10-1997, processo n.º 912/97, de 4-12-1997, processo n.º 1076/97 e de 19-03-1998, processo n.º 124/98, as conclusões servem para resumir as razões do pedido, pelo que têm de reflectir a matéria tratada no texto da motivação, não podendo, de forma alguma, servir para alargar o objecto do recurso a matérias estranhas àquele texto.

      As conclusões deverão conter apenas a enunciação concisa e clara dos fundamentos de facto e de direito das teses perfilhadas na motivação (assim, acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 25 de Março de 1998, proferido no processo n.º 53/98-3.ª Secção, in BMJ n.º 475, pág. 502).

      E como referia o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 11 de Março de 1998, proferido no processo n.º 1.444/97, da 3.ª Secção, publicado in BMJ n.º 475, págs. 480/8, o âmbito do recurso define-se pelas conclusões extraídas pelo recorrente da motivação apresentada, sem prejuízo de se pronunciar sobre questões de conhecimento oficioso; as conclusões servem para resumir a matéria tratada no texto da motivação.

      Como então se escreveu no acórdão do Tribunal da Relação de Évora, de 10-02-1998, por nós relatado no processo n.º 630/96: “Como resulta dos arts. 403.º-1 e 412.º-1, do CPP e é jurisprudência pacífica do STJ, é à luz das conclusões da motivação do recurso que este terá de apreciar-se, ou seja, o cerne e o limite de todas as questões a apreciar e decidir no recurso estão contidos nas conclusões”.

      Adquirido está que as conclusões servem para resumir as razões do pedido, para condensar a matéria tratada no texto da motivação – cfr. acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça, por nós relatados datados de 15-07-2009, processo n.º 103/09-3.ª Secção (versando burla qualificada e conclusões em sede de impugnação de matéria de facto), de 5-12-2012, processo n.º 250/10.1JALR.E1.S1-3.ª Secção (homicídio qualificado), de 24-09-2014, no processo n.º 994/12.3PBAMD.L1.S1 (triplo homicídio qualificado praticado em elevador trancado com incêndio por fogo chegado a álcool), de 24-01-2018, processo n.º 5007/14.8TDLSB.L1.S1 (abuso de confiança contra a Segurança Social), de 21-03-2018, processo n.º 49/16.1T9FNC.L1.S1 (crime de violação), de 9-05-2019, processo n.º 10/16.6PGPDL.S1 (convolação de burla para furto).

      Como consta do primeiro acórdão referido: “Como está assente, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso, é à luz das conclusões da motivação de recurso que este terá de apreciar-se, ou seja, o âmbito do recurso define-se pelas conclusões formuladas, extraídas pelos recorrentes das respectivas motivações – acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 13-03-1991, processo n.º 41694-3.ª; de 31-01-1996, BMJ 453, 338; de 19-06-1996, BMJ 458, 98; de 20-11-1997, processo n.º 1142/97-3.ª e de 17-12-1997, nos processos n.ºs 1186/97 e 969/97-3.ª Secção, in Sumários do Supremo Tribunal de Justiça, n.ºs 15/16, págs. 178 e 214; de 17-09-1997, acórdão n.º 504/97, relatado por Martins Ramires, CJSTJ 1997, tomo 3, págs. 173 a 176, versando a falta de relatório social e o regime especial para jovens delinquentes, constando do sumário “O poder de cognição do tribunal de recurso é determinado pelas questões suscitadas pelo recorrente e sumariadas nas conclusões da motivação, podendo contudo conhecer, para além dessas questões, de nulidades de conhecimento oficioso”; de 11-03-1998, BMJ n.º 475, pág. 480; de 13-05-1998, processo n.º 30/98, BMJ n.º 477, pág. 263 (A delimitação do âmbito do recurso é feita pelas conclusões da motivação do recorrente, não podendo o tribunal de recurso conhecer de matérias nelas não inseridas, salvo se o seu conhecimento for oficioso); de 25-06-1998, processo n.º 1463/97, BMJ n.º 478, pág. 242; de 29-04-1998, CJSTJ 1998, tomo 2, pág. 191; de 02-12-1998, CJSTJ 1998, tomo 3, pág. 229; de 03-02-1999, processo n.º 1353/98, BMJ 484, 271”.

     Lidas a motivação e as conclusões é patente que as ditas “conclusões” mais não são do que praticamente a repetição quase integral da motivação. Esforço de síntese inexiste. 

     A repetição da motivação só não é total, completa e integral, porque para as “conclusões” não foram transpostos os textos de três parágrafos da motivação, a saber: §§ 6.º, 7.º e 8.º de fls. 258, com continuação para fls. 259, incluindo referência a acórdão deste Supremo Tribunal de 21-05-2008, processo 07P3230.

      As diferenças entre motivação e conclusões são de pormenores, como na conclusão 3.ª que ocupa fls. 261 a 264 repetindo a factualidade apurada na decisão instrutória que consta na motivação de fls. 251 a 255, com uma única ressalva: a de que na conclusão não figura o negrito usado na motivação em vários passos.

      As repetições continuam nas conclusões 7.ª, 9.ª, 11.ª,14.ª, 16.ª, 17.ª, 18.ª, 24.ª, 26.ª, 27.ª, 28.ª, 31.ª, 32.ª e 33.ª, com a diferença única de que nestas não há negritos.

      Na conclusão 4.ª “assente” foi substituído por “fixada” e na 5.ª “Dispõe” foi substituído por “Estipula”.

     Diferente é apenas o que é apresentado ex novo nas conclusões 20.ª, 21ª, 22.ª (esta de certo modo presente na parte final da conclusão 32.ª) e 37.ª, cujo texto está ausente na motivação.

      Concluindo. Apesar de as conclusões de recurso apresentadas pela recorrente reproduzirem praticamente de forma integral o texto da motivação, prescindiu-se de formular convite a apresentação de novas e verdadeiras concisas conclusões, atento o facto de a questão colocada ser de fácil detecção, improcedendo assim a questão prévia suscitada.  

       Apreciando.

      O Ministério Público - Exma. Procuradora-Geral Adjunta no Tribunal da Relação de Guimarães - proferiu despacho de arquivamento do inquérito.

      A assistente requereu abertura de instrução.

      O Tribunal da Relação de Guimarães não pronunciou a arguida.

       Com o presente recurso pretende a recorrente seja revogada a decisão de não pronúncia, sendo a mesma substituída por despacho de pronúncia.

       Vejamos.

     Entendendo resultar suficientemente indiciada a prática do crime de denegação de justiça e prevaricação, p. e p. pelo artigo 369.° do Código Penal, veio a assistente requerer ao abrigo do disposto no artigo 287.º do CPP a abertura de instrução.

     O requerimento de abertura de instrução foi o que se segue (fls. 175 a 179):

1- Por douto despacho de 06/09/2018 a Ilustre Procura dora Geral Adjunta titular do inquérito determinou o arquivamento dos presentes autos,

2. considerando e em conclusão:

…..

Entendemos, pois, que, mesmo sendo embora susceptíveis de apreciação e de censura do ponto de vista disciplinar, como foi a actuação da magistrada denunciada, os elementos acima discriminados e analisados, não constituem indícios suficientes para integrar a prática do crime de denegação de justiça, previsto e punido nos termos do n.º1 do artigo 369° do CPenal, o qual pressupõe, além do mais, que tais actos sejam praticados conscientemente e contra direito.

3. Apesar de assim se ter decidido, a verdade é que no decurso do inquérito e como consta daquele mesmo despacho de arquivamento, apuraram-se os seguintes factos:

- No dia 20 de Abril de 2016 pelas 12,15 horas, a Sra. Juiz que presidia ao julgamento no processo de Inventário n.º 163 13…………, na Instância Local Cível, JI, da Comarca de ………….., ordenou a detenção da AA, que estava a ser ouvida como testemunha, por alegado crime contra a realização do Estado de Direito e desrespeito à autoridade — autos de fls 4 a 7 elaborados pela PSP e juntos pela denunciante.

- Mais ordenou aquela magistrada judicial, após ter chamado a autoridade policial, que a AA fosse conduzida “sob detenção” à Esquadra da PSP até ser presente a tribunal para julgamento.

- Consta ainda dos autos de noticia juntos, que a PSP foi chamada para se deslocar ao tribunal e tomar “conta” da ocorrência, às 12,20 horas do referido dia 20.04.2016, bem como que, “a ordem de detenção já havia sido dada pela Mma Juíz, que elaborará auto de noticia pelos factos de a arguida ter cometido o crime de perturbação do funcionamento de Órgão Constitucional” e que “O auto de notícia, redigido pela Mª Juiz, será por esta Autoridade Judicial, enviado directamente ao MP, desta Comarca.”

- Quando contactada pela PSP, no período da tarde, a Procuradora-Adjunta BB ordenou que procedessem à constituição da detida como arguida e fosse sujeita a TIR, aguardando nessa situação a sua apresentação, pelas 10,00horas do dia seguinte, 21 de Abril de 2016 - auto de notícia por detenção de fls. 6 e 7.

- O marido da queixosa, CC, no próprio dia 20.04.2016, durante a tarde, apresentara um requerimento nos Serviços do Ministério Público a pedir a libertação da mulher, alegando que esta sofre do coração e que não parava de chorar, com a condição de se apresentar no dia seguinte, ou que o deixasse ficar com ela na esquadra da PSP, o qual foi indeferido - fls. 8

- Segundo informação prestada nos autos de inquérito 1098/16…, pela Procuradoria da República da Comarca de … por consulta do respectivo expediente, o auto de notícia elaborado pela Sra. Juiz que procedeu à detenção foi recebido na Secção Central, às 16,42 horas do dia 20.04.2016 e na Procuradoria às 16,53h - fls. 232.

- Assim, só às 16,53 horas do supra referido dia 20 é que foi recebido na Procuradoria da instância Local, Secção de Inquéritos, o “Auto de Noticia” elaborado pela Sra. Juiz (fls. 27), relativo à detenção da denunciante, juntam ente com certidão da acta da diligência de inquirição no processo cível, após o que ainda nesse dia foi feito constar no respectivo expediente pela agora denunciada, enquanto Procuradora Adjunta no exercício de funções de turno, o seguinte despacho : “R.A. como processo de Inquérito, Perturbação de órgão Constitucional, Requerimento do marido da arguida: indefere-se o requerido por falta de fundamento legal, Conclua... “, além de “Expediente presente às 16.42 horas e Recebi às / 16.53h” —fls 2 e ss do inquérito n.° 642/16….

- Sendo-lhe o respectivo inquérito sido concluso no dia seguinte, 21.04.2016, proferiu despacho a solicitar a indicação de defensor oficioso, e CRC, bem como a determinar o interrogatório da arguida de imediato na sua presença.

- Tal expediente deu origem ao dito inquérito n.º 642/16…, no qual a final foi proferido despacho de arquivamento, datado de 13.02.2017, por não se mostrarem preenchidos os elementos objectivos do crime que à AA era imputado, de perturbação de funcionamento de órgão constitucional do art. 334º a) do CP.

- Sobre os factos, a ora denunciada, inquirida no âmbito do inquérito 109616…, declarou que porque se encontrava em serviço de turno, no dia em questão, a meio da tarde, foi-lhe comunicada pela PSP a ocorrência de uma detenção no Tribunal Cível, ordenada pela Sra. Juiz e informando que não tinham o expediente relacionado com a detenção, o qual estava a ser elaborado por quem a ela procedeu e foi complementado com o auto de noticia elaborado pela PSP. Disse-lhes que se aguardasse a chegada do expediente da Sra. Juiz, o qual lhe foi presente às 16,53 horas, após o que nele exarou o despacho supra- referido e foi encaminhado para a secção respectiva, sendo-lhe concluso no dia seguinte.

Não recebeu qualquer comunicação prévia do Tribunal Cível sobre a referida detenção -fls. 390 e 391.

- Então, pelas 11,35h do dia 21.04.2016, procedeu a interrogatório não judicial de arguido detido (a denunciante), após ter ouvido o CD contendo a gravação da audiência em que teve lugar a detenção, o que fez juntamente com a Sra. Juiz de turno para interrogatório de arguidos detidos, dado o melindre da situação; proferiu despacho a validar a detenção por efectuada nos termos dos art.s 255°, n.°1 e 256° do CPP e ordenou a sua imediata libertação (art. 261°, n.º 1, do CPP,), ficando sujeita apenas a TIR, por ser primária e estar social e familiarmente integrada, não obstante ter considerado que o ilícito de perturbação de órgão constitucional é de “elevada gravidade” —fls. 19 -

- Em Agosto de 2016 a queixosa participou criminalmente contra DD, Juiz que ordenou a sua detenção, participação que deu origem ao referido inquérito n°1098/16…, no qual esta veio a ser indiciada como autora material de um crime de denegação de justiça e prevaricação, p.p. pelo art. 369º n.ºs 4 e 5 CP e foi decidida a suspensão provisória do processo nos termos do despacho aí proferido —fls.489 a 495 do Anexo-B.

- Apenas em Novembro de 2017 foi apresentada a queixa que deu origem a estes autos contra a denunciada BB, após despachos finais proferidos nestes dois inquéritos n° 642/16… e n°1098/J6…. e conhecimento pela queixosa AA da decisão proferida, em 30.05.2017, no processo disciplinar visando aquela denunciada, em que foi punida na pena de 10 dias de multa, suspensa na sua execução pelo período de 10 meses, nos termos dos art. s 168°, 181°, 185°do EMP e arts 185°e 192°da LGTFP-fls. 98 a 115.

CHEGADOS AQUI,

4 - Salvo o devido respeito e consideração que é muito, não pode a assistente concordar que apurada a matéria acabada de se transcrever, a Senhora Procuradora Geral Adjunta, titular do inquérito, tenha proferido despacho de arquivamento,

5 - Impondo-se, outrossim e como infra se irá demonstrar, a dedução da acusação com a sujeição da denunciada a julgamento, pela prática e como autora material, de um crime de denegação de justiça e prevaricação p.p. pelo art° 369° n.º 1 do CP.

6 - Com efeito, dispõe o referido preceito legal que:

1 — O funcionário que, no âmbito de inquérito processual, processo jurisdicional por contraordenação ou disciplinar, conscientemente e contra direito, promover ou não promover, conduzir, decidir ou não decidir, ou praticar acto no exercício de poderes decorrentes de cargo que exerce, é punido com pena de prisão até dois anos ou com pena de multa até 120 dias.

7 - O crime de denegação de justiça e prevaricação é essencialmente doloso, O tipo subjectivo de ilícito fica preenchido com a actuação com dolo directo, como resulta do uso da palavra “conscientemente” no descritivo típico.

8 - Tem este crime, como elemento constitutivo, a ocorrência de um comportamento (activo ou omissivo) contra direito no âmbito de inquérito processual, processo jurisdicional, por contraordenação ou disciplinar, por parte de funcionário conscientemente assumido.

9 - A Doutrina dominante encontra na realização da justiça o específico bem jurídico protegido pelo tipo legal do crime agora em análise. Este tipo de crime pretende assegurar o domínio ou supremacia do direito objectivo na sua aplicação pelos órgãos da administração da justiça, máxime, judiciais.

10 - Conforme refere A. Medina de Seiça in Comentário Conimbricense do Código Penal, Tomo III, Coimbra Editora, Edição de 2001. pags. 605 a 627, o ataque ao bem jurídico dá-se de dentro, i. e. por parte dos órgãos deputados pela comunidade estadual justamente para a tarefa da correcta realização da justiça. É.... a transformação do direito em injusto por parte de quem é chamado a servir de garante institucional à própria Ordem Jurídica que convoca a particular censura da norma incriminadora.

11 - O delito em causa é a resposta penal aos abusos da função judicial.

12 - A concretização do tipo do crime, exige que se determine qual o sentido do elemento “direito”.

13 - É pacífica a aceitação pela nossa Doutrina e Jurisprudência que o conceito de direito abrange, em primeiro lugar, o conjunto das normas vigentes na ordem jurídica positiva, independentemente da sua origem ou modo de revelação (fonte).

14 - Assim, o núcleo típico deste crime verifica-se quando o agente realiza ou omite um comportamento contra direito (independentemente da sua fonte).

15 - Pode, assim, a conduta assumir diversa formas, concretamente, implicar uma incorrecta aplicação das normas jurídicas, quer de direito substantivo quer processual, ou um falso ou erróneo estabelecimento da base factual que é pressuposto da aplicação normativa ou, ainda, a violação da esfera de discricionariedade que, eventualmente, a norma comporte.

16 - Para o nosso Ordenamento Jurídico agir contra direito terá de significar, essencialmente, a contradição da decisão (ou omissão) com o prescrito pelas normas jurídicas pertinentes.

17 - Por isso, pode-se afirmar que uma decisão, ainda que se mostre defensável no plano abstracto-normativo, é contra direito sempre que, em concreto, teve na base considerações estranhas à objectividade que qualquer caso exige.

18 - O elemento subjectivo deste tipo é o dolo, ou “conscientemente”, como é referido no próprio preceito.

19 - Assim, o tipo subjectivo prende-se com o conteúdo do dolo, mais concretamente, com o tipo de conhecimento que há-de exigir-se no agente para se poder afirmar que a conduta é dolosa.

20 - No Acórdão do STJ de 12/07/2012, disponível em www.dgsi.pt escreveu-se e entre o mais que: o dolo, enquanto vontade de realizar o tipo com conhecimento da ilicitude (consciência,), há-de apreender-se através de factos (acções ou omissões) materiais e exteriores, suficientemente reveladoras daquela vontade, de onde se possa extrair uma opção consciente de agir desconforme à norma jurídica.

É necessário que o desvio voluntário dos poderes funcionais afronte a administração da justiça, deforma tal que se afirme uma negação de justiça.

21 - É preciso, por isso, que quem decidiu de uma determinada forma, tenha consciência de que, desviando-se dos seus deveres funcionais, violou o ordenamento jurídico pondo em causa a administração da justiça.

22 - Ora e voltando ao caso em análise, tendo sido recebido o expediente às 16.53h, impunha-se de imediato à Magistrada de turno no DIAP do Tribunal de … (a denunciada), diligenciar pela realização do interrogatório da arguida detida, uma vez que as situações de privação da liberdade revestem-se de uma acrescida danosidade.

23 - Na verdade, não só a percepção do auto de noticia, que nenhuma dificuldade apresentava, como o teor da exposição apresentada pelo marido da AA (ali arguida), seriam razões suficientes para não ter sido protelado para o dia seguinte o interrogatório (conforme se deixou escrito no Acórdão da Secção Disciplinar do Conselho Superior do Ministério Público- fls. 38 e ss)

24 - Nem se diga que a necessidade de ouvir a gravação (CD) justificaria o adiamento daquela diligência, pois a sua audição demoraria poucos minutos, mais concretamente 15 minutos (confrt. auto de fls 19 e 20 no Proc. 642/16.2T9VRL).

25 - Ao não realizar o interrogatório no dia 20.04, ou seja, após a detenção, era manifesto que a continuação da detenção da arguida (ora assistente) sempre se mostraria desnecessária justificando-se, por isso mesmo, que aquela fosse de imediato libertada, de acordo com o estipulado no art° 261° do CPP, o que não aconteceu.

26 - Era, igualmente, perceptivel que não se verificava in casu qualquer perigo de fuga ou continuação da actividade criminosa, nem a libertação da arguida causaria perturbação pública.

27 - É evidente, por isso, que a denunciada, Drª BB, não deu cumprimento às exigências legais e às regras que em casos semelhantes são prática comum e habitual.

28 - O procedimento adoptado pela denunciada foi desconforme e contra direito, traduzindo-se num claro prejuízo dos direitos de AA concretamente, a privação da sua liberdade por tempo superior ao necessário,

29 - direito com consagração na lei fundamental (art°s 27° e 28° da CRP), na Declaração Universal dos Direitos Humanos — DUDH ( art°s 9° e 11° ) e no art° 9° do Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos- PIDCP.

30 - Mas ainda que a Digna Magistrada do MP — Dra. BB - tivesse optado por proceder ao interrogatório no dia seguinte ao da detenção, então impunha-se a libertação da arguida logo naquele dia 20/04, depois de notificada para comparecer no dia seguinte, já que não se verificavam nenhum dos pressupostos que, legalmente, suportariam a manutenção da sua detenção.

31- A Senhora Procuradora Adjunta — Drª BB - tinha obrigação de saber, como efectivamente sabia, que a decisão de privar ou manter a privação da liberdade é a última ratio, desconsiderando, deste modo, não só este princípio do nosso direito penal, como o direito de qualquer cidadão à sua liberdade, consagrado e protegido pela Constituição da Republica Portuguesa.

32 - Em suma, o comportamento da Senhora Procuradora Adjunta traduziu-se no incumprimento e desrespeito pelas normas legais aplicáveis, concretamente os art°s 143° e 261.° do CPP (não procedeu de imediato à audição da detida, nem diligenciou pela sua imediata libertação, face à manifesta desnecessidade da sua manutenção), normas estas que bem conhecia.

33 - É, pois, notório que a referida Magistrada podia e devia ter actuado de forma diferente, de acordo com o direito imposto, o que não quis.

34 - Estamos, assim, perante um comportamento ilícito e doloso, pelo que se impõe a sua pronúncia.

     Por todo o exposto, deve ser proferido despacho de pronúncia contra:

      BB, casada, Procuradora Adjunta em serviço no Tribunal de …., filha de EE e de FF, nascida a ......1973, no concelho de …, com domicilio profissional na Procuradoria da República da Comarca de …, Palácio da Justiça, Praça …, 0000-000……..,

Porquanto




A Senhora Procuradora Adjunta BB era a magistrada de turno no DIAP do Tribunal de …. no dia 20 de Abril de 2016,



competindo-lhe, para além do mais, realizar o serviço urgente relacionado com os arguidos detidos.



No referido dia 20.04.2016, pelas 12.15h a Senhora Juíza que presidia ao julgamento no processo de inventário n.°163/13…. na Instância Local Cível-J1 da Comarca de … ordenou a detenção de AA, que estava a ser ouvida como testemunha, por alegada prática do crime contra a Realização do Estado de Direito e Desrespeito à Autoridade — autos de fls 4 a 7 elaborado pela PSP.



Mais ordenou a Magistrada judicial e após ter chamado a autoridade policial, que AA fosse conduzida sob detenção à esquadra da PSP até ser presente a tribunal para julgamento.



Quando a PSP foi chamada ao tribunal para tomar conta da ocorrência pelas 12.20H do referido dia 20/04/20 16, foi informada que a ordem de detenção já havia sido dada pela referida Magistrada Judicial,



e que esta iria elaborar o auto de notícia,



enviando-o directamente ao MP daquela comarca.



O auto de notícia elaborado pela Magistrada Judicial que procedeu à detenção, foi recebido na Secção Central do Tribunal de … às 16,42H do mesmo dia 20/04,



e na Procuradoria da República do Tribunal de … às 16.53H.

10°


 A Magistrada do MP - Dra BB – no exercício de funções de turno despachou o mesmo auto, fazendo dele constar o seguinte: R.A. como processo de inquérito, Perturbação de Órgão Constitucional, Requerimento do marido da arguida: indefere-se o requerido por falta de fundamento legal, Conclua.., e Expediente presente às 16.42H, Recebi às 16.53H.

11°


 Contactada pela PSP nessa mesma tarde, a hora não concretamente apurada, a senhora Procuradora Adjunta ordenou que procedessem à constituição da detida como arguida e sujeita a TER, aguardando nas salas de detenção a sua apresentação no Tribunal pelas 10 H do dia seguinte — 21/04 (auto de noticia por detenção elaborado pela PSP — Agente GG, fls...).

12°


 Sendo conclusos aqueles autos à referida Procuradora Adjunta – DD — no dia seguinte, 21/04/2016, a mesma proferiu despacho a solicitar a indicação de defensor oficioso, CRC, bem como a determinar o interrogatório da arguida de imediato e na sua presença.

13º


 Pelas 11.35 H deu-se início ao interrogatório não judicial da arguida detida AA, e

14º


ouvido o CD da gravação da audiência, aquela senhora Procuradora Adjunta proferiu despacho a validar a detenção e ordenando a imediata libertação da arguida.

15º


 Esta diligência terminou pelas 11.55h do mesmo dia (confrt. auto de interrogatório da arguida — fls 19).

16°


 A Senhora Procuradora Adjunta BB ao não proceder à audição da detida de imediato e no mencionado dia 20 de Abril, e ainda

17º


 ao não diligenciar pela sua imediata libertação, face à desnecessidade da manutenção da sua detenção, tudo como lhe era imposto pelos 143° e 261º do CPP,

18°


 provocando, com aquela sua conduta, a manutenção da privação da liberdade da detida AA por tempo superior ao necessário,

19º


 agiu intencionalmente e contra o direito, concretamente os artigos 143° e 261° do CPP,

20º


 conhecimento que tinha, atendendo às suas qualidades muito superiores à do comum cidadão, com vários anos de experiência e preparação técnica enquanto magistrada do MP, com vasto conhecimento do direito e das leis.

21º


A senhora Procuradora Adjunta BB agiu, assim, de forma voluntária, livre e consciente, bem sabendo que aquela sua conduta era proibida pela lei.

22º


Incorreu, deste modo, como autora material e na forma consumada na prática de um crime p.p. pelo art° 369° n.º 1 do CP, Denegação de Justiça e Prevaricação.

      Nestes termos e nos melhores de Direito, REQUER a V. EX se digne declarar aberta a instrução, designando-se dia para a realização do debate instrutório.

      PROVA

A já constante dos autos, concretamente:

- Auto de Notícia de 20/04/2016 elaborado pela Magistrada Judicial Drª DD;

- Auto de Notícia por Detenção de 21/04/2016 elaborado pelo Subcomissário GG;

- Auto de Notícia do dia 20/04/2016 à hora 13.12, elaborado pelo Agente HH;

- Despacho da Senhora Procuradora Adjunta exarado no próprio auto de notícia, fls. 2 e ss do Inquérito n.º 642/16………;

- Auto de Interrogatório de Arguido (AA) do dia 21/04/2016, pelas 11.35H — 1º Interrogatório não judicial de arguido detido

— art° 143° CPPenal) no processo n.º 642/16…;

- Informação da Procuradoria da República do Juízo Local Criminal de … — Sec. Inquéritos e remetida ao Tribunal da Relação de Guimarães (Serv° M°P°) do dia 08/03/2017;

- Informação da PSP — Comando Distrital de …, elaborada pelo Subcomissário

GG e datada de 20/03/2017;

- Auto de diligência de videoconferência — Inquirição de Testemunha- no proc. l098/16… de 15/05/2017, pelas 10.30H (Procuradora Adjunta Drª BB);

- Auto de Inquirição da Drª BB, no proc. 73/17.7TRGMR do dia 16/03/2018, fls 34 e 35;

- Acórdão da Secção Disciplinar do Conselho Superior do Ministério Público de 30/05/2017, junto a estes autos pela assistente no dia 20/03/2018 (fls. 37 a 47);

- Despacho de Arquivamento de 13/02/2017 no processo n.º 642/16….


***  


       Da finalidade da instrução


      Como decorre do disposto no artigo 286.º (Finalidade e âmbito da instrução) do Código de Processo Penal, a instrução visa a comprovação judicial da decisão de deduzir acusação ou de arquivar o inquérito em ordem a submeter ou não a causa a julgamento.

     Comentando o preceito, diz Eduardo Maia Costa no Código de Processo Penal Comentado, Almedina, 2016, 2.ª edição revista, págs. 957/8:

      “A instrução constitui uma fase processual autónoma, de carácter facultativo, que visa exclusivamente a comprovação judicial da decisão de acusar ou de arquivar tomada no final do inquérito.

      A instrução visa, pois, a comprovação das seguintes decisões:

       a) da acusação do Ministério Público, a requerimento do arguido;

       b) da acusação do assistente, em procedimento por crime particular, a requerimento do arguido;

   c) do despacho de arquivamento do Ministério Público, nos procedimentos por crime público ou semipúblico, a requerimento do assistente.

      A comprovação consiste no controlo jurisdicional sobre qualquer dessas decisões por parte de um juiz diverso do juiz de julgamento.

      No último caso (despacho de arquivamento) a instrução não se destina a repetir ou a completar o inquérito, nem a realizar um inquérito complementar, abrangendo novos factos ou novos suspeitos ou arguidos; destina-se a fiscalizar a decisão que pôs termo ao inquérito. Se o assistente considera que o inquérito insuficiente em termos de investigação e recolha de prova, deverá reclamar hierarquicamente, nos termos do art. 278.º, n.º 2, e não requerer a abertura de instrução

      É esta a conceção que respeita e se coaduna com a natureza acusatória do processo penal.

   2. Quando incide sobre o despacho de arquivamento, a instrução constitui um instrumento colocado nas mãos do assistente para tutela do seu interesse no prosseguimento do processo, com vista à submissão do arguido a julgamento, interesse que radica, afinal, na garantia constitucional de acesso ao direito e à justiça (art. 20.º, n.º 1, da Constituição). 

      Mas também constitui, nos processos por crimes em que subjazem interesses supra-individuais, um meio de controlo “popular” da decisão através do direito à “acção popular penal”, nos termos do art. 68.º, n.º 1, e), da decisão de abstenção do Ministério Público.”

      Segundo Paulo Pinto Albuquerque, Comentário do Código de Processo Penal, UCE, 4.ª edição actualizada, Abril de 2011, pág. 777, “A instrução consiste na fase de discussão da decisão de arquivamento ou de acusação tomada pelo MP no final do inquérito. Mas o âmbito desta discussão é limitado pela lei, ou melhor, pelo objectivo que a lei estabelece para aquela discussão. Nela pretende-se apurar a existência de indícios suficientes de se terem verificado os pressupostos de que depende a aplicação de uma pena ou medida de segurança (artigo 308.º, n.º 1). Portanto, a instrução visa discutir a decisão de arquivamento apenas no que respeita ao juízo do MP de inexistência de indícios suficientes e discutir a decisão de acusação apenas no que respeita ao juízo do MP de existência de indícios suficientes. (realces do texto).

      No que toca ao requerimento para abertura de instrução, nos termos do artigo 287.º, n.º 2, do CPP, não está sujeito a formalidades especiais, mas deve conter, em súmula, as razões de facto e de direito de discordância relativamente à acusação ou não acusação, bem como, sempre que disso for caso, a indicação dos actos de instrução que o requerente pretende que o juiz leve a cabo, dos meios de prova que não tenham sido considerados no inquérito e dos factos que, através de uns e outros, se espera provar, sendo ainda aplicável ao requerimento do assistente o disposto nas alíneas b) e c) do n.º 3 do artigo 283.º, não podendo ser indicadas mais de 20 testemunhas.

      No que respeita à direcção e natureza da instrução, o artigo 288.º, n.º 4, do Código de Processo Penal, dispõe que o juiz de instrução – a quem compete a direcção da instrução –, investiga autonomamente o caso submetido a instrução, tendo em conta a indicação, constante do requerimento da abertura de instrução, a que se refere o n.º 2 do artigo anterior.

     Por outro lado, determina o artigo 307.º, n.º 1, do Código de Processo Penal que, encerrado o debate instrutório, o juiz profere despacho de pronúncia ou de não pronúncia, podendo fundamentar por remissão para as razões de facto e de direito enunciadas na acusação ou no requerimento de abertura de instrução; acrescenta o artigo 308.º, n.º 1, do mesmo diploma que se, até ao encerramento da instrução, tiverem sido recolhidos indícios suficientes de se terem verificado os pressupostos de que depende a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, o juiz, por despacho, pronuncia o arguido pelos factos respectivos; caso contrário, profere despacho de não pronúncia.

      Da análise deste regime extrai-se que, visando a instrução, no caso de ter sido deduzida acusação, a comprovação judicial da acusação, o requerimento para abertura da instrução apresentado pelo arguido deve conter as razões de facto e de direito que fundamentam a sua discordância relativamente à acusação deduzida.

      O requerimento de abertura de instrução procurará infirmar a acusação, substanciando uma contestação àquela, devendo contribuir para a determinação do objecto da instrução, delimitando e definindo o âmbito e os limites da investigação a cargo do juiz de instrução, bem como a final da decisão instrutória de pronúncia ou de não pronúncia; o texto do requerimento constitui o horizonte e o limite da correcção possível.

      A este propósito, Germano Marques da Silva, in Curso de Processo Penal, III, Editorial Verbo, 1994, a págs. 130/131, afirma: «formulada a acusação pelo MP (art. 283.º) ou pelo assistente quando o procedimento depender de acusação particular (art. 285.º), o arguido pode (…) requerer a abertura da fase da instrução, fundamentando o requerimento com as razões de facto e de direito que, na sua perspectiva, deverão conduzir à rejeição total ou parcial da acusação (…)».

      Acrescenta este Autor (loc. cit.) que «(…) a instrução pode ser requerida pelo arguido com o fim de ilidir ou enfraquecer a prova judiciária da acusação, mas também por razões puramente de direito material ou adjectivo, que a tornem inadmissível. Já não parece que possa ter lugar a requerimento do arguido quando apenas pretenda ilidir ou enfraquecer a prova indiciária ou preparar a defesa sem pretender, porém, a neutralização da acusação, pela sua rejeição na decisão instrutória».

       Conclui que a instrução a requerimento do arguido «visa o controlo negativo da acusação».

       Explica Paulo Pinto de Albuquerque, in Comentário do Código de Processo Penal, Universidade Católica Editora, Lisboa, 2007, pág. 741 (e pág. 781, na 4.ª edição actualizada, 2011), em anotação ao artigo 287.º do citado Código, que o requerimento de abertura da instrução apresentado pelo assistente é constituído pelas seguintes partes:

a) a narração dos factos que fundamentam a aplicação de uma pena ou medida de segurança, sendo aplicável o disposto no artigo 283.º, n.º 3, al. b); esta narração deve ter o formato de uma verdadeira acusação (acórdão do TC n.º 358/2004, acórdão do TRC de 24.11.1993, in CJ, XVIII, 5, 61, acórdão do TRE, de 14.4.1995, in CJ, XX, 2, 280, acórdão do TRL, de 20.5.1997, in CJ, XXII, 3, 143), e acórdão do TRL, de 11.5.2004, in CJ, XXIX, 3, 130); por exemplo, referindo uma versão factual do acidente diversa da que consta do despacho de arquivamento (acórdão do TRG, de 24.11.2003, in CJ, XXVIII, 5, 311);

b) as disposições legais violadas pelo arguido e as razões de direito de discordância relativamente ao arquivamento pelo MP;

c) a indicação dos actos de instrução que o requerente pretende que o juiz leve a cabo;

d) os meios de prova que não tenham sido considerados no inquérito.

     No acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 7 de Março de 2007, proferido no processo n.º 4688/06, da 3.ª Secção, refere-se: “A estrutura acusatória do processo determina que o thema da decisão seja apresentado ao juiz, e que a decisão deste se deva situar dentro da formulação que lhe é proposta no requerimento para abertura de instrução.

      O requerimento para abertura de instrução não está sujeito a formalidades especiais – artigo 287.º, n.º 2, do CPP – mas há-de definir o thema a submeter à comprovação judicial sobre a decisão de acusação ou de não acusação.

      O objecto da instrução deve ser suficientemente delimitado, com a indicação («mesmo em súmula», diz a lei – artigo 287.º, n.º 2, do CPP) das razões de facto e de direito de discordância relativamente à acusação ou não acusação ou arquivamento, bem como a indicação dos actos de instrução que o requerente pretende que o juiz leve a cabo, dos meios de prova que não tenham sido considerados no inquérito e dos factos que, através de uns e outros, se espera provar.

      (…) O requerimento para abertura da instrução constitui, pois, o elemento fundamental de definição e determinação do âmbito e dos limites da intervenção do juiz na instrução: investigação autónoma, mas delimitada pelo tema factual que lhe é proposto através do requerimento de abertura da instrução”.

       A suficiência dos indícios

   A dedução de acusação pressupõe a presença de “indícios suficientes” ou “prova bastante” de prática de crime e da sua imputação ao acusado.

      Estabelece o artigo 283.º, n.º 2, do CPP: “Consideram-se suficientes os indícios sempre que deles resultar uma possibilidade razoável de ao arguido vir a ser aplicada, por força deles, em julgamento, uma pena ou uma medida de segurança”.

      A definição acolheu a orientação da doutrina e da jurisprudência seguida na vigência do Código de Processo Penal de 1929.  

      Comentando o artigo 349.º do CPP de 1929, no ponto 2. Indícios suficientes da existência do facto punível, no Código de Processo Penal, 4.ª edição, Almedina Coimbra, 1980, págs. 452/3, dizia Maia Gonçalves:

      “A lei não define, nem o poderia fazer com rigor, o que são indícios suficientes. Trata-se, certamente, de um conjunto de elementos convincentes de que o arguido praticou os factos incrimináveis que lhe são imputados. No julgamento, terão os julgadores que ser mais exigentes; então exige-se certeza, cimentada através de uma sã apreciação crítica da prova, quando esta não é vinculada, enquanto que na fase da acusação se exige somente aquela convicção. Mas, como se vê escrito na S.J., X, n.º 51. 125 «a frequentes naufrágios se arriscaria a justiça, se a lei fizesse depender da prova plena o acto provisório da pronúncia».

      Trata-se, portanto, de uma questão que a lei deixa em grande parte ao prudente critério dos magistrados judiciais e do M.P. e que em cada caso deve ser resolvida muito ponderadamente.

      Frequentemente, os tribunais superiores atentam na definição do que se entende por indícios suficientes, para o efeito de acusação e pronúncia, sem que, no entanto, adiantem outros elementos aos que já foram apontados”, dando exemplos de acórdãos das Relações e  do acórdão do STJ de 1 de Março de 1961, BMJ 105, 439, que disse: “Constituem indícios suficientes para a pronúncia aqueles elementos que, relacionados e conjugados, persuadem da culpabilidade do agente, fazendo nascer a convicção de que virá a ser condenado”.

      Para o acórdão da Relação de Coimbra, de 17-11-1967, J.R., 5, 595 e Sum. Jur. XIV, 305 as expressões indícios suficientes, dos arts. 349.º, 354.º, § 1.º e 368.º e indícios bastantes de culpabilidade, do art. 362.º, todos do C.P.P., e prova indiciária, do art. 26.º do Dec.-Lei n.º 35007, significam o conjunto de elementos que, relacionados e conjugados, persuadem da culpabilidade do agente, fazendo nascer a convicção de que virá a ser condenado pelo crime que lhe imputam”.

      De seguida é colocada uma questão nodal, com tanto de interessante como de incontornavelmente relevante, e sobretudo pertinente, sobremaneira, quando se estiver num plano de segunda jurisdição de recurso, como é o caso presente, em que é reapreciado um acórdão de um Tribunal da Relação, e consistente precisamente em saber “3. Se a existência de indícios suficientes para a pronúncia constitui matéria de facto ou de direito”.

   Ora bem.

    No conspecto disse o Autor, a págs. 453/4:

     “Constitui jurisprudência constante do S.T.J, a orientação de que a suficiência ou insuficiência da prova indiciária para a pronúncia, e portanto, também para acusação, é matéria de facto, da exclusiva competência dos tribunais de instância, não podendo constituir objecto de recurso para o S.T.J., nos casos em que este tribunal funciona como tribunal de revista. Rara é a sessão do Supremo em que não é reafirmada esta orientação.

      Consideramos exacta a solução. Esclareça-se, no entanto, que só é válida para os casos de prova não vinculada, Sempre que, na apreciação da prova, houver violação de preceito legal, já o Supremo poderá conhecer do recurso, se não houver outro obstáculo. Assim é que, considerando as instâncias que é bastante a prova indiciária fundada exclusivamente na confissão, poderá o Supremo conhecer do recurso, por violação do comando formulado no art.  174.º. Nos processos penais que conhece em única instância, compete-lhe apreciar a prova indiciária”.

       Ao Supremo, como tribunal de revista, fica, em regra, tão somente a competência para exercer censura sobre o tratamento jurídico que deve ser dado aos factos que os tribunais de instância considerarem indiciariamente apurados”.  

      Figueiredo Dias, Direito Processual Penal, primeiro volume, Coimbra Editora, 1981, págs. 132/3, pondera que o Ministério Público tem de considerar que já a simples dedução da acusação representa um ataque ao bom nome e reputação do acusado, o que leva a defender que os indícios só serão suficientes e a prova bastante quando, já em face deles, seja de considerar altamente provável a futura condenação do acusado, ou quando esta seja mais provável do que a absolvição.

      De seguida, cita Castanheira Neves, que ensina que na suficiência dos indícios está contida «a mesma exigência de “verdade” requerida pelo julgamento final - só que a instrução preparatória (e até a contraditória) – assim era ao tempo – não mobiliza os mesmos elementos probatórios e de esclarecimento, e portanto de convicção, que estarão ao dispor do juiz na fase de julgamento, e por isso, mas só por isso, o que seria insuficiente para a sentença pode ser bastante ou suficiente para a acusação”.

      Acrescenta que a alta probabilidade, contida nos indícios recolhidos, de futura condenação tem de aferir-se no plano fáctico e não no plano jurídico.

      Comentando o artigo 283.º, diz Eduardo Maia Costa no Código de Processo Penal Comentado, Almedina, 2014, pág. 992, nota 4: “No n.º 2 define-se a suficiência de indícios, em termos coincidentes com a doutrina há muito estabilizada (ver Figueiredo Dias, Direito Processual Penal, p. 133). Em síntese, poderá dizer-se que são suficientes os indícios que ultrapassem o teste da “dúvida razoável”, na perspectiva da produção da prova na audiência de julgamento. Por isso se entende que o juízo sobre a suficiência da indiciação deve ter o mesmo grau de exigência que o do julgamento (P. Dá Mesquita, Direcção do Inquérito Penal e Garantia Judiciária, p. 92; e Carlos Adérito Teixeira, “Indícios suficientes: parâmetro de racionalidade e instância de legitimação concreta do poder-dever de acusar”, Revista do CEJ, 2.º Semestre de 2004, n.º 1, p. 189).

     Na 2.ª edição revista, de 2016, na nota 4 de págs. 949, é aditado a seguir a 189 “; Jorge Noronha e Silveira, “O conceito de indícios suficientes no processo penal português”, Jornadas de direito processual penal e direitos fundamentais, pp. 180-181).

       O já citado Carlos Adérito Teixeira, pág. 161, refere: “o conceito de “indícios suficientes” torna-se a questão central do sentido da decisão (de acusação), a qual não reveste apenas natureza instrumental que faz despoletar o procedimento, antes se assume como verdadeira decisão de mérito pela qual se “fixa” uma factualidade e respectiva qualificação jurídica e, por essa via, se define o objecto do processo”.

     Para o mesmo Autor apenas o critério da possibilidade particularmente qualificada ou de probabilidade elevada de condenação, a integrar o segmento legal da “possibilidade razoável”, responde convenientemente às exigências do processo equitativo, da estrutura acusatória, da legalidade processual e do Estado de Direito Democrático, e é o melhor que se compatibiliza com a tutela da confiança do arguido, com a presunção de inocência de que ele beneficia e com o in dubio pro reo. Acrescenta que, por esta via, afirma-se a necessidade de se verificar - na linha, agora refinada, da concepção que presidia ao ensinamento doutrinal e jurisprudencial ao tempo do Código de Processo Penal de 1929 - uma convicção de “alta probabilidade” de condenação, ainda decalcada no termo “razoável”, atenta a maleabilidade do mesmo (logo, não determinante do estabelecimento de uma precisa linha de fronteira).

      Esta interpretação (necessidade de uma possibilidade particularmente forte de futura condenação) defende que os indícios são suficientes quando a possibilidade de futura condenação do arguido em julgamento for mais provável do que a possibilidade da sua absolvição. É a chamada teoria da probabilidade predominante.

       Não basta uma probabilidade aleatória, uma mera possibilidade, que há-de conduzir à acusação ou à pronúncia, sendo de repudiar a solução que consigna a mera possibilidade de condenação, ainda que diminuta ou ínfima, por violar o princípio da presunção de inocência do arguido. 


      Na jurisprudência deste Supremo Tribunal:

      Extrai-se do acórdão de 21-05-2008, proferido no processo n.º 3230/07-3.ª Secção – Para a pronúncia, como para a acusação, a lei não exige a prova, no sentido da certeza moral da infracção, bastando-se com indícios da sua prática, de onde se possa formar a convicção de que existe uma probabilidade razoável de ter sido cometido um crime pelo arguido.

      Assim sendo, os indícios probatórios – que não a mera discordância legal, doutrinal ou jurisprudencial – são suficientes sempre que dos mesmos resultar uma probabilidade razoável de ao arguido vir a ser aplicada, por força deles, em julgamento, uma pena ou medida de segurança – arts. 283.º, n.ºs 1 e 2, e 308.º, n.ºs 1 e 2, do CPP.

     Tanto a doutrina como a jurisprudência têm realçado que a “possibilidade razoável” de condenação é uma possibilidade mais positiva que negativa: “o juiz só deve pronunciar o arguido quando pelos elementos de prova recolhidos nos autos, forma a sua convicção no sentido de que é mais provável que o arguido tenha cometido o crime do que o não tenha cometido” ou, noutras palavras, os indícios são suficientes quando existe “uma alta probabilidade de futura condenação do arguido, ou, pelo menos, uma probabilidade mais forte de condenação do que de absolvição”.

      Retira-se do acórdão de 8-10-2008, proferido no processo n.º 31/07- 3.ª Secção, pelo mesmo Relator do anterior:

      De harmonia com a própria letra da lei, a instrução é uma fase facultativa, jurisdicional, em que o requerimento do assistente com vista à comprovação judicial da decisão de arquivar o inquérito consubstancia materialmente uma acusação que, nos mesmos termos de uma acusação formalmente deduzida, traça o objecto do processo, condiciona substancialmente os poderes de cognição do juiz, nomeadamente a liberdade de investigação, delimita a extensão do princípio do contraditório e a subsequente decisão instrutória (arts. 286.º, n.ºs 1 e 2, 287.º, n.º 1, al. b), 283.º, n.º 3, als. b) e c), ex vi n.º 2 do art. 287.º, 288.º, n.ºs 1 e 4, e 307.º, n.º 1, in fine, todos do CPP).

      Acaso divirja da decisão do MP e acolha as razões enunciadas pelo assistente, o juiz de instrução não lhe devolve os autos, mas pronuncia o arguido pela acusação implícita no requerimento por aquele formulado, assim se respeitando, sob o prisma formal e material, o princípio da acusação imposto pela estrutura acusatória definida constitucionalmente na 1.ª parte do n.º 5 do art. 32.º.

      Segundo as disposições combinadas dos arts. 298.º e 308.º, n.º 1, ambos daquele Código, se, até ao encerramento da instrução, forem apurados indícios de facto e elementos de direito suficientes para justificar a submissão do arguido a julgamento, verificando-se os pressupostos de que depende a aplicação de uma pena ou medida de segurança, deve ser proferido despacho de pronúncia pelos factos respectivos; na inversa, despacho de não pronúncia.

      A propósito da acusação, mas com inteiro cabimento nesta sede em virtude da norma do art. 308.º, n.º 2, adianta o art. 283.º, n.º 2, do CPP que se consideram suficientes os indícios sempre que deles resultar uma possibilidade razoável de ao arguido vir a ser aplicada, por força deles, em julgamento, uma pena ou medida de segurança.

       No juízo de quem acusa, como no de quem pronuncia, não se exige a prova, entendida esta como sinónimo da demonstração da existência do crime, bastam indícios da ocorrência de um crime, donde se possa formar a convicção de que existe uma possibilidade razoável de que foi cometido o crime pelo arguido.

      Possibilidade razoável essa que se baseia num juízo de probabilidade, uma probabilidade mais positiva do que negativa, de que o arguido tenha cometido o crime do que o não tenha.

     Pretende-se com isto acentuar que, no termo da instrução, compete ao juiz aferir, num juízo de indiciação, é certo, mas ainda assim, e desde logo, objectivado e filtrado pela valoração crítica dos dados probatórios até então recolhidos, se se justifica que o arguido seja submetido a julgamento.

     Concluindo em sentido negativo, profere decisão instrutória de não pronúncia; esta, porque não incide sobre o mérito da causa, configura uma decisão estritamente processual ou adjectiva, no sentido que declara não estarem reunidos os pressupostos para prosseguir para a fase seguinte, a do julgamento.

     Segundo o acórdão de 24-11-2016, processo n.º 13/15.8YGLSB.S2 - 5.ª Secção – O art. 308.º, n.º 2, do CPP torna aplicável à pronúncia o grau de convicção da acusação, previsto no art. 283.º, n.º 2, do CPP, no sentido de que para ambas as fases processuais se consideram suficientes os indícios sempre que deles resultar uma possibilidade razoável de ao arguido vir a ser aplicada, por força deles, em julgamento, uma pena.

      Como consta do acórdão de 06-04-2017, proferido no processo n.º 29/15.4TRLSB – 5.ª Secção, “A noção de indícios suficientes - expressão que consta, também, do n.º 1 do art. 283.º do CPP, relativamente à acusação - é dada pela própria lei, no n.º 2 do art. 283.º do CPP, reputando-se suficientes os indícios sempre que deles resultar uma possibilidade razoável de ao arguido vir a ser aplicada, por força deles, em julgamento, uma pena ou uma medida de segurança”.

      Extrai-se do acórdão de 27-06-2018, proferido no processo n.º 19/16.0YGLSB-D.S1 - 3.ª Secção: “Indícios suficientes são os elementos que, relacionados e conjugados, persuadem da culpabilidade do agente, fazendo nascer a convicção de que virá a ser condenado; são vestígios, suspeitas, presunções, sinais, indicações, suficientes e bastantes para convencer de que há crime e de que alguém determinado é o responsável, de forma que, logicamente relacionados e conjugados formem um todo persuasivo da culpabilidade, enfim, os indícios suficientes consistem nos elementos de facto reunidos no inquérito (e na instrução), os quais, livremente analisados e apreciados, criam a convicção de que, mantendo-se em julgamento, terão sérias probabilidades de conduzir a uma condenação do arguido pelo crime que lhe é imputado”.

     Aborda as cambiantes de fortes indícios e indícios suficientes o acórdão de 28-08-2018, proferido no processo n.º 142/17.3JBLSB-A.S1 - 5.ª Secção, constando do sumário:

I - A perspectiva do requerente é esta: há prisão ilegal motivada por facto que a lei não permite porque o art. 202.º CPP apenas prevê a imposição da medida de coacção de prisão preventiva se houver fortes indícios da prática dos crimes elencados nas als. a) a e) do seu nº 1 e o despacho que aplicou essa medida de coacção apenas se refere a indícios suficientes ou a factos suficientemente indiciados.

II - Quando na fase de inquérito, para a fixação da medida de coacção da prisão preventiva, se alude, como no art. 202.º, n.º 1, als. a) a e) a fortes indícios o que se pretende é inculcar a ideia de que o legislador não permite que se decrete a medida com base em meras suspeitas mas exige que haja já sobre a prática de determinado crime uma «base de sustentação segura» quanto aos factos e aos seus autores que permita inferir que o arguido poderá por eles vir a ser condenado e que, por conseguinte, essa base de sustentação deverá ser constituída por «provas sérias», provas que deixem uma impressão já nítida da responsabilidade do arguido objectivadas a partir dos elementos recolhidos.

III - Sendo diferente o contexto probatório em relação ao (primeiro) momento da aplicação da medida de coacção e ao momento da acusação, poderá então afirmar-se que de certo modo se equivalem o conceito de «fortes indícios» usado no art. 202.º e o de «indícios suficientes» explicitado no art. 283.º, n.º 2 CPP: aqueles como estes pressupõem a possibilidade de ao arguido vir a ser aplicada em julgamento uma pena, devendo ter idoneidade bastante para tal.

IV - Mas aferida essa idoneidade pela circunstância de serem usados perante realidades processuais distintas. “Fortes indícios” tendo em conta que a medida de coacção é fixada ainda numa fase de aquisição da prova configurando-se esse conceito como uma exigência de que ela não se apoie numa débil consistência probatória mas antes em elementos probatórios já de solidez suficiente embora porventura não bastantes ainda para deduzir uma acusação. “Indícios suficientes” no sentido em que, finda essa fase de investigação e aquisição da prova eles terão então de possuir, força necessária e solidez vincada, para deles resultar uma possibilidade razoável de em julgamento ser aplicada uma pena ao arguido.

V - Esta é, crê-se, a interpretação que confere ao sistema a integridade e coerência adequadas pois, como ensinou Antunes Varela a lei não deve «rebaixar-se à categoria de simples artigo pronto a ser digerido segundo as várias necessidades fisiológicas do organismo social».


     No caso presente a indagação de indícios suficientes atenderá ao que foi dado por indiciado ou não indiciado no acórdão recorrido.  

     

      Enquadramento da questão


     No dia ... de Abril de 2016, pelas 11 horas, AA foi ouvida como testemunha nos autos de inventário/partilha de bens em casos especiais n.º 163/13…, em que litigavam filho seu e a ex-nora, correndo termos no Juízo Local Cível de …., sendo a diligência presidida pela juíza DD, que porque entendeu que aquela causou distúrbios na audiência, ordenou a sua detenção.

      Foi elaborado pela PSP de …auto de notícia no dia 20-04-2016, indicando-se como hora da ocorrência 12:15 h, como hora da comunicação 12:16 h e como hora da diligência as 13:12 h, conforme fls. 4/5, dando conta da detenção da testemunha pela juíza por ter desrespeitado a autoridade judicial ali presente.    

     Foi elaborado outro auto de notícia, datado de 21-04-2016, com hora de impressão 09:14 h, explicado pela necessidade de fazer constar a incriminação “Crime de perturbação do funcionamento de órgão constitucional” – fls. 6/7.


      Entretanto, no processo n.º 642/16…, que correu termos na Procuradoria do Juízo Local Criminal de …, Secção Inquéritos, iniciado com o auto de notícia elaborado pela Juíza de direito em funções na Instância Local Cível de …, DD, sendo arguida a dita testemunha AA, sendo a esta imputada a prática de crime de perturbação do funcionamento de órgão constitucional, p. e p. pelo artigo 334.º, alínea a), do Código Penal, foi proferido em 13 de Fevereiro de 2017, despacho de arquivamento dos autos, conforme fls. 73 a 78 e repetido pela certidão de fls. 79 a 85.


     Por outro lado, no inquérito n.º 1098/16…. instaurado com base em exposição feita em 1 de Agosto de 2016 na Secção de Inquéritos pela referida AA contra a juíza DD, por a ter detido, como consta do documento junto pela assistente de fls. 117 a 130, correndo termos no Tribunal da Relação de Guimarães (fls. 118 a 130), foi entendido resultar suficientemente indiciada a prática pela arguida como autora material e na forma consumada, de um crime de denegação de justiça e prevaricação, p. e p. pelo artigo 369.º, n.ºs 4 e 5, do Código Penal.

     Porque a queixosa e arguida juíza concordaram com a aplicação do instituto da suspensão provisória do processo, nos termos do artigo 281.º do CPP, foi determinada a suspensão provisória do inquérito por 12 meses, sujeita à condição de a arguida entregar à assistente, no prazo de dez dias, a contar do despacho determinativo da suspensão a quantia de € 6.000,00 e fazer publicação no jornal “……………..”, a expensas suas, no prazo de 30 dias a contar da notificação do despacho, do seguinte texto:


“Declaração


DD, Juiz de Direito declara publicamente que no exercício das suas funções no Juízo Local Cível da Comarca de …, errou quando proferiu a ordem de detenção, em 20 de abril de 2016, da senhora AA, porquanto não estavam preenchidos os pressupostos legais para a decisão. A declarante expressamente confirma que a senhora AA não cometeu qualquer ilícito de natureza penal. Pelos motivos acima expostos, publicamente apresenta a declarante o devido pedido de desculpas”.


      A suspensão provisória do processo mereceu a concordância do Juiz Desembargador em despacho de 10 de Outubro de 2017 - fls. 296.

      Pelos factos ocorridos no dia 20-04-2016, foi instaurado processo disciplinar à ora arguida – processo n.º 4…. –, tendo sido sancionada por acórdão da Secção Disciplinar do Conselho Superior do Ministério Público, de 30-05-2017, como autora da infracção prevista na alínea e) do n.º 2 e no n.º 7 do artigo 73.º da LGTFP, aplicável ao Ministério Público por força do disposto nos artigos 108.º e 216.º do EMP e 42.º, n.º 3, da Lei n.º 35/2014, de 20-06, com a pena de 10 dias de multa, suspensa na sua execução pelo período de 10 meses, conforme documento de fls. 39 a 47 verso, junto aos autos pela assistente no dia 20-03-2018, como se vê de fls. 37, sendo repetido de fls. 98 a 126.

       Apresentada reclamação, por acórdão do Plenário do Conselho Superior do Ministério Público de 23-07-2018, com um voto contra, não foi a mesma atendida, mantendo-se o acórdão de 30 de Maio de 2017 – cfr. fls. 139 a 143 e fls. 144 a 148.

     Consta do texto do acórdão que de acordo com o artigo 181.º do EMP, a pena de multa é aplicável a caso de negligência ou desinteresse pelo cumprimento dos deveres do cargo.

      Extrai-se do mesmo acórdão proferido no processo disciplinar:

      “Estamos assim perante um comportamento ilícito, ainda que negligente, por parte da Srª Procuradora Adjunta BB.

       No que concerne à gravidade dos factos, há que considerar que não obstante se tivesse tratado de uma situação isolada, estes repercutiram-se na situação de uma arguida privada de liberdade. Contudo, a culpa é diminuta já que o atraso na remessa do expediente se ficou a dever à remessa tardia do auto de detenção por parte da Senhora Magistrada Judicial”.


      Decorridos um ano, sete meses e três dias sobre a data da detenção, que teve lugar em ... de Abril de 2016, e decorridos um ano, três meses e vinte e dois dias após a data da queixa contra a juíza DD, o que aconteceu em 1 de Agosto de 2016, e já depois de ter sido proferido despacho de concordância judicial quanto à suspensão provisória do inquérito movida à juíza, em 23 de Novembro de 2017, AA apresentou queixa contra a Procuradora Adjunta BB.  

      

      Analisando.


    Caracterização do crime de denegação de justiça/prevaricação.


    Vejamos a evolução da caracterização deste crime

     

 O enquadramento no Código Penal de 1852/1886

   

     Código Penal de 1852

      Aprovado pelo Decreto de 10 de Dezembro de 1852 “confirmado pela lei de 1 de Junho de 1853 (D. do G. n.º 128), que lhe deu, do mesmo modo que a outros decretos da dictadura, chamada da regeneração, a indispensável força de lei”.

       (Assim no Codigo Penal Portuguez Annotado por Antonio Luiz de Sousa Henriques Secco, Lente de Prima, Decano e Director da Faculdade de Direito, 6.ª edição, Coimbra, Imprensa da Universidade, 1881, pág. 7 nota 1).


     Inserto no Livro Segundo – Dos crimes em especial – Título III – Dos crimes contra a ordem a tranquilidade pública – Capítulo XIII – Dos crimes dos empregados públicos no exercício de sua funções – Secção I (Prevaricação), abrangendo os artigos 284.º a 290.º, sem epígrafe, mas sendo o crime de prevaricação previsto no artigo 284.º e o crime de denegação de justiça no artigo 286.º,

      Estabelecia o


Artigo 284.º


Todo o juiz, que, julgando o fundo e substancia da causa, proferir sentença definitiva manifestamente injusta, por favor, ou por odio, será condemnado na pena da perda dos direitos políticos.

§ 1.º - Se esta sentença for condemnatoria em causa criminal, e por effeito d´ella se executar pena mais grave, será esta imposta ao juiz.

§ 2.º - Em todos os outros casos o juiz que proferir a sentença ou despacho, por favor ou por odio, com manifesta injustiça, será demittido.

§ 3.º - O que aconselhar uma das partes sobre o litígio, que pender perante elle, será suspenso de um a tres annos.

§ 4.º - As disposições d este artigo e do seu § 2.º são applicaveis a todas as auctoridades publicas que, em virtude de suas funcções, decidirem ou julgarem qualquer negocio contencioso, submettido ao seu conhecimento.

§ 5.º - Havendo condemnação, nos termos das disposições antecedentes, poderá ter logar a ação de nullidade.



Artigo 286.º                                                     


Todos os juízes ou auctoridades administrativas que se negarem a administrar a justiça que devem ás partes, depois de se lhes ter requerido, e depois da advertencia ou mandado de seus superiores, serão condemnados em suspensão.

     (Fonte: Código Penal Approvado por Decreto de 10 de Dezembro de 1852, Edição Official, Lisboa, Imprensa Nacional, 1853, págs. 83 e 84, Código Penal, Quarta Edição Official, Lisboa, Imprensa Nacional, 1867, págs. 81 e 82 e Código Penal, Oitava Edição Official, Lisboa, Imprensa Nacional, 1882, págs. 81 e 82 e Codigo Penal Portuguez Annotado por Antonio Luiz de Sousa Henriques Secco, Lente de Prima, Decano e Director da Faculdade de Direito, 6.ª edição, Coimbra, Imprensa da Universidade, 1881).

 

  Nova Reforma Penal

     A Nova Reforma Penal foi aprovada por Decreto de 14 de Junho de 1884 e publicada por Carta de Lei da mesma data.

   Diploma constituído por 91 artigos, os primeiros noventa estabeleceram novos princípios relativamente a toda a matéria do Livro I do Código, tendo o artigo 91.º dado diferente redacção a 123 artigos (incluído o artigo 284.º e parágrafos) do Livro II, o qual, como vimos, tinha a epígrafe “Dos crimes em especial”.

       Estabelecia o artigo 5.º da Nova Reforma Penal:

       “É auctorisado o governo a fazer uma nova publicação official do codigo penal, na qual deverão inserir-se as disposições da presente lei”.


    Código Penal de 1886 

      Pelo Decreto de 16 de Setembro de 1886, usando da autorização concedida ao Governo pelo artigo 5.º da Carta de Lei de 14 de Junho de 1884 (Nova Reforma Penal), foi aprovada a nova publicação oficial do Código Penal, inserindo as disposições da mesma Lei, ou seja, as da Nova Reforma.

   Continuaram os crimes de prevaricação e de denegação de justiça nos artigos 284.º - este com diversa redacção - e 286.º, e o conceito de funcionário continuou plasmado no artigo 327.º.


     Os crimes em equação encontravam-se insertos no Livro Segundo – Dos Crimes em Especial – Título III – Dos crimes contra a ordem e tranquilidade pública – Capítulo XIII – Dos crimes dos empregados públicos no exercício de suas funções –, abrangendo os artigos 284.º a 327.º, definindo este o “Conceito de empregado público” – na Secção I, sob a epígrafe “Prevaricação”, contendo os artigos 284.º a 290.º, assim indicados:   

Artigo 284.º - Prevaricação;

Artigo 285.º - Consulta ou informação falsa;

Artigo 286.º - Denegação de justiça;

Artigo 287.º - Falta de promoção de procedimento criminal;

Artigo 288.º - Promoção dolosa do Ministério Público;

Artigo 289.º - Prevaricação dos advogados, procuradores judiciais e Ministério Público;

Artigo 290.º - Violação de segredo profissional.


     Os crimes de prisão ilegal e de prisão formalmente irregular previstos nos artigos 291.º e 292.º integravam já a Secção II – “Abuso de autoridade”.  


    Estabelecia o artigo 284.º introduzido pela Nova Reforma Penal:


Artigo 284.º

(Prevaricação)



Todo o juiz que proferir sentença definitiva manifestamente injusta, por favor ou por ódio, será condenado na pena fixa de suspensão dos direitos políticos por quinze anos.

§ 1.º - Se esta sentença for condenatória em causa criminal, a pena designada no artigo será acumulada com a de prisão maior de dois a oito anos.

§ 2.º - Se a sentença definitiva for proferida em causa não criminal, a pena do artigo será acumulada com a de multa maior.

§ 3.º - Se a sentença não for definitiva, a pena será a de suspensão temporária de todos os direitos políticos.

§ 4.º - A mesma pena será imposta àquele que aconselhar uma das partes sobre o litígio que pender perante ele.

§ 5.º - As disposições deste artigo e seus §§ 2.º, 3.º e 4.º são aplicáveis a todas as autoridades públicas que, em virtude das suas funções, decidirem ou julgarem qualquer negócio contencioso submetido ao seu conhecimento.       


Artigo 286.º

(Denegação de justiça)



Todos os juízes, ou auctoridades administrativas, que se negarem a administrar a justiça, que devem às partes, depois de se lhes ter requerido, e depois da advertencia ou mandado de seus superiores, serão condemnados em suspensão.

     (O preceito manteve a redacção anterior).


     Em Notas ao Código Penal Português, 2.ª edição, volume II, Coimbra Editora, Limitada, 1923, Luís Osório da Gama e Castro de Oliveira Baptista, pág. 578, comentando o artigo 284.º, dizia:

    “Êste artigo protege o interesse administrativo do Estado à reta administração da justiça e resolução de assuntos contenciosos, contra as autoridades públicas que profiram decisões manifestamente injustas e contra os juízes que aconselharem uma das partes em litígio que penda perante eles”.

      A págs. 580, dizia: “A manifesta injustiça pode ter por causa uma falta de inteligência ou uma falta de vontade.

       A lei não quis punir as faltas de inteligência, mas só as da vontade e por isso exige que a sentença seja proferida por favor ou ódio”.

      E a págs. 581:

Sujeito ativo – Só o pode ser o juiz ou a autoridade pública a quem compete dar a sentença ou a decisão, ou perante quem corre o litígio.

Elemento moral – A vontade de proferir a decisão e o conhecimento de que ela é manifestamente injusta”.               

      O mesmo Autor, comentando o artigo 286.º, a págs. 583/4, dizia:

       “Êste artigo protege o interesse do Estado referente à administração da justiça contra os juízes e autoridades administrativas que se negarem a administrar justiça depois da advertência ou mandado dos eus superiores”. O objecto específico de tutela penal é o interesse público de assegurar o cumprimento regular e eficaz das funções públicas, excluídas as legislativas, contra a inércia dolosa dos empregados públicos em relação a um determinado ato de ofício – Manzini 5.º 187”.

Elemento material – Negar-se a administrar a justiça devida às partes quando se verifiquem cumulativamente os seguintes requisitos:

1.º Ter sido requerida aquela justiça ao agente;

2.º Ter havido advertência ou mandado do superior do agente.

Sujeito ativo – O juiz ou a autoridade administrativa que devam às partes aquela justiça.

Elemento moral – A vontade de não administrar a devida justiça e o conhecimento da existência daquelas duas condições”.


   A redacção fundamental do Código Penal vigente até 31 de Dezembro de 1982 (artigos 2.º e 6.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 400/82, de 23 de Setembro, que aprovou o Código Penal de 1982) é assim a do Código de 1852 com a nova publicação oficial de 1886, em que foram introduzidos os princípios da Nova Reforma Penal de 1884 (a que se juntaram reformas parciais posteriores, como a de 1931 – Decreto-Lei n.º 20 146, de 1 de Agosto – e a de 1954 – Decreto-Lei n.º 39 688, de 5 de Junho).


         Código Penal de 1982

     Aprovado pelo Decreto-Lei n.º 400/82, de 23 de Setembro, que entrou em vigor em 1 de Janeiro de 1983.

      Integrados no Livro II – Parte especial – Título V – Dos crimes contra o Estado – Capítulo III – Dos crimes contra a realização da justiça – abrangendo os artigos 401.º a 419.º

Artigo 401.º – Falso depoimento de parte;

Artigo 402.º – Falso testemunho, falsas declarações, perícia, interpretação ou tradução;

Artigo 403.º – Atenuação e isenção de pena;

Artigo 404.º – Retractação;

Artigo 405.º – Perda da instrumentalização;

Artigo 406.º – Suborno;

Artigo 407.º – Agravação;

Artigo 408.º – Denúncia caluniosa;

Artigo 409.º – Simulação de crime ou dos seus agentes;

Artigo 410.º – Favorecimento pessoal;

Artigo 411.º – Favorecimento pessoal praticado por funcionário;

Artigo 412.º – Extorsão de depoimento;

Artigo 413.º – Promoção dolosa;

Artigo 414.º – Não promoção;

Artigo 415.º – Prevaricação;

Artigo 416.º – Denegação de justiça;

Artigo 417.º – Prisão ilegal;

Artigo 418.º – Prevaricação de advogado ou solicitador;

Artigo 419.º – Revelação de segredo de justiça.


      Estabelecia o


Artigo 415.º

(Prevaricação)



 O funcionário que, conscientemente, conduzir ou decidir contra direito um processo em que, por virtude da sua competência, intervém, com a intenção de, por essa forma, prejudicar ou beneficiar alguém, será punido com prisão de 1 a 5 anos.


     Então comentava Maia Gonçalves, Código Penal Português Anotado, 3.ª edição, revista e actualizada, 1986, Almedina, pág. 552, e 6.ª edição, 1992, pág. 785:

      “O crime de prevaricação encontrava-se previsto e punido no art.º 284.º do Código anterior, e os seus elementos típicos sofreram profunda remodelação.

      Continua a ser exigível dolo directo e ainda um dolo específico, mas este consiste agora tão só na intenção de prejudicar ou beneficiar alguém.

      Deixaram de ser feitas quaisquer distinções entre sentenças penais ou cíveis; condenatórias ou absolutórias; definitivas ou não definitivas.

     A pena cominada no aludido 284.º era irrisória, pelo que foi estabelecida sanção adequada”.

       Estabelecia o


Artigo 416.º

Denegação de justiça



O funcionário que se negar a administrar a justiça ou a aplicar o direito que, nos termos da sua competência, lhe cabe e lhe foram requeridos, será punido com prisão até 1 ano ou multa até 30 dias.


     O mesmo Autor, na 3.ª edição, revista e actualizada, 1986, págs. 552/3 e na 6.ª edição, 1992, pág. 786, anotou:

     “Este artigo insere-se na nossa tradição jurídica, que houve a intenção de respeitar, tanto mais que se trata de norma da máxima necessidade e utilidade, segundo se expressou no seio da Comissão Revisora o autor do Projecto, Prof. Eduardo Correia.

      Estão abrangidos na previsão deste artigo a demora e o retardamento voluntários na administração da justiça ou na aplicação do direito. Foi proposta, na Comissão Revisora, uma norma neste sentido, a qual foi considerada dispensável porque o descrito comportamento cai nas malhas do tipo de crime aqui previsto”.


      Código Penal de 1995                                                   

     Aprovado pelo Decreto-Lei n.º 48/95, de 15 de Março de 1995, rectificado pela Declaração de rectificação n.º 73-A/95, Diário da República, I Série-A, n.º 136, de 14 de Junho de 1995, que procedeu à terceira alteração ao Código Penal, entrado em vigor em 1 de Outubro de 1995 (artigo 13.º).


       Inserto no Livro II – Parte especial – Título V – Dos crimes contra o Estado – Capítulo III – Dos crimes contra a realização da justiça, abrangendo os artigos 359.º a 371.º

Artigo 359.º – Falsidade de depoimento ou declaração;

Artigo 360.º – Falsidade de testemunho, perícia, interpretação ou tradução;

Artigo 361.º – Agravação;

Artigo 362.º – Retractação;

Artigo 363.º – Suborno;

Artigo 364.º – Atenuação especial e dispensa da pena;

Artigo 365.º – Denúncia caluniosa;

Artigo 366.º – Simulação de crime;

Artigo 367.º – Favorecimento pessoal;

Artigo 368.º – Favorecimento pessoal praticado por funcionário;

Artigo 369.º – Denegação de justiça e prevaricação;

Artigo 370.º – Prevaricação de advogado ou de solicitador;

Artigo 371.º – Violação de segredo de justiça.

      Inserto no Título V – Dos crimes contra o Estado – Capítulo III – Dos crimes contra a realização da justiça, estabelece o      


Artigo 369.º

(Denegação de justiça e prevaricação)



1 – O funcionário que, no âmbito de inquérito processual, processo jurisdicional, por contraordenação ou disciplinar, conscientemente e contra direito, promover ou não promover, conduzir, decidir ou não decidir, ou praticar acto no exercício de poderes decorrentes do cargo que exerce, é punido com pena de prisão até dois anos ou com pena de multa até 120 dias.

2 – Se o facto for praticado com intenção de prejudicar ou beneficiar alguém, o funcionário é punido com pena de prisão até cinco anos.

3 – Se, no caso do n.º 2, resultar privação de liberdade de uma pessoa, o agente é punido com pena de prisão de um a oito anos.

4 – Na pena prevista no número anterior incorre o funcionário que, sendo para tal competente, ordenar ou executar medida privativa da liberdade de forma ilegal, ou omitir ordená-la ou executá-la nos termos da lei.

 5 – No caso referido no número anterior, se o facto for praticado com negligência grosseira, o agente é punido com pena de prisão até dois anos ou com pena de multa.


   Maia Gonçalves, Código Penal Português, Anotado e Comentado, 18.ª edição, Almedina, 2007, pág. 1088, anota: “O dispositivo do n.º 1 corresponde, grosso modo, ao art. 415.º da versão originária. Como no domínio dessa versão, e mesmo no do CP de 1886 (art. 284.º), além dos elementos gerais do dolo, continua a ser exigível um dolo específico, consistente na intenção de prejudicar ou beneficiar alguém, mas agora só no caso do n.º 2. No caso do n.º 1 basta o dolo genérico, que terá de revestir a modalidade de dolo directo, não sendo admissível o dolo eventual, como bem se deduz da exigência de o agente proceder conscientemente e contra direito.


***



     Conceito de funcionário – A evolução legislativa

     Vejamos o específico conceito de sujeito activo deste tipo criminal, que começou por ser o “empregado público”, com definição desde logo rigorosa, que depois evoluiu para o conceito de “funcionário”, este com estrutura cada vez mais alargada, abrangente, expansiva, e sobretudo, compreensiva, intrometendo-se ligeiras notas nas formulações mais antigas.

     Depois, serão as mesmas figuras objecto de consideração separada.


     Código Penal de 1852

     Aprovado pelo Decreto de 10 de Dezembro de 1852 “confirmado pela lei de 1 de Junho de 1853 (D. do G. n.º 128), que lhe deu, do mesmo modo que a outros decretos da dictadura, chamada da regeneração, a indispensável força de lei”.

      (Assim no Codigo Penal Portuguez Annotado por Antonio Luiz de Sousa Henriques Secco, Lente de Prima, Decano e Director da Faculdade de Direito, 6.ª edição, Coimbra, Imprensa da Universidade, 1881, pág. 7 nota 1).

    Integrada no referido Capítulo XIII, relativo a “Dos crimes dos empregados públicos no exercício de suas funcções”, na Secção 8.ª, tendo por epígrafe “Disposições Geraes”, albergando os artigos 324.º a 327.º, rematava com este, estabelecendo o

 


Artigo 327.º 


       Para os effeitos do disposto neste capitulo, considera-se empregado publico todo aquelle que, ou auctorisado immediatamente pela disposição da Lei, ou nomeado por eleição popular, ou pelo Rei, ou por auctoridade competente, exerce, ou participa no exercicio de funcções publicas civis de qualquer natureza.


       (Texto extraído do Código Penal Approvado por Decreto de 10 de Dezembro de 1852, Edição Official, Lisboa, Imprensa Nacional, 1853, pág. 99, Quarta Edição Official, Lisboa, Imprensa Nacional, 1867, pág. 95, Oitava Edição Official, Lisboa, Imprensa Nacional, 1882, págs. 95, e em Código Penal Portuguez Annotado por Antonio Luiz de Sousa Henriques Secco, Lente de Prima, Decano e Director da Faculdade de Direito, 6.ª edição, Coimbra, Imprensa da Universidade, 1881, pág. 180).


       Nova Reforma Penal

      A Nova Reforma Penal foi aprovada por Decreto de 14 de Junho de 1884 e publicada por Carta de Lei da mesma data.

   Diploma constituído por 91 artigos, os primeiros noventa estabeleceram novos princípios relativamente a toda a matéria do Livro I do Código, tendo o artigo 91.º dado diferente redacção a 123 artigos (incluído o artigo 284.º e parágrafos) do Livro II, o qual, como vimos, tinha a epígrafe “Dos crimes em especial”. 

   O conceito de empregado público continuou sediado no mesmo preceito.                        

     O artigo 327.º é o preceito do Código Penal de 1852, não tendo sido alterado pela Nova Reforma Penal, apenas sendo introduzidos ligeiríssimos retoques, ficando com a redacção que segue:



Artigo 327.º


    Para os effeitos do disposto neste capitulo, considera-se empregado público todo aquelle que, ou auctorisado immediatamente pela disposição da Lei, ou nomeado por eleição popular ou pelo Rei, ou por auctoridade competente, exerce ou participa no exercicio de funcções publicas civis de qualquer natureza.


    (Texto extraído do Código Penal Approvado por Decreto de 10 de Dezembro de 1852, Edição Official, Lisboa, Imprensa Nacional, 1853, pág. 99, e da Oitava Edição Official, 1882, pág. 95, e presente em texto actualizado na obra Notas ao Código Penal Português, por Luís Osório da Gama e Castro de Oliveira Baptista, então Juiz de Direito, 2.ª edição, Volume Segundo, Coimbra Editora, Limitada, 1923, pág. 715).


    Código Penal de 1886

    Pelo Decreto de 16 de Setembro de 1886, usando da autorização concedida ao Governo pelo artigo 5.º da Carta de Lei de 14 de Junho de 1884 (Nova Reforma Penal), foi aprovada a nova publicação oficial do Código Penal, inserindo as disposições da mesma Lei, ou seja, as da Nova Reforma, continuando os crimes de prevaricação e denegação de justiça previstos nos artigos 284.º e 286.º e o conceito de funcionário continuando plasmado no artigo 327.º

   

   Vejamos agora o conceito de “empregado público”, expressão presente no Código Penal de 1886.


   Inserto na Secção VIII do Capítulo XIII – “Dos crimes dos empregados públicos no exercício das suas funções”, com a epígrafe “Disposições gerais”, estabelecia o   


Artigo 327.º


    «Para os effeitos do disposto n`este capitulo, considera-se empregado publico todo aquelle que, ou auctorisado immediatamente pela disposição da lei, ou nomeado por eleição popular ou pelo Rei, ou por auctoridade competente, exerce ou participa no exercicio de funcções publicas civis de qualquer natureza».


    (Texto extraído do Código Penal Approvado por Decreto de 16 de Setembro de 1886, Edição Official, Lisboa, Imprensa Nacional, 1886, pág. 89).

    (Corresponde, sem grandes alterações ao artigo 327.º do Código Penal de 1852).

    As disposições dos artigos 313.º a 327.º eram aplicáveis aos funcionários dos Serviços de Fiscalização da Inspecção Geral das Actividades Económicas, conforme estabeleciam o artigo 19.º, § 3.º, do Decreto-Lei n.º 35.809, de 16-08-1946 e artigo 54.º do Decreto-Lei n.º 41.204, de 27-07-1957. 


     Maia Gonçalves, comentando este preceito no Código Penal Português, 4.ª edição, Livraria Almedina, Coimbra, 1979, referia:

“1. As expressões funcionário público e empregado público têm o mesmo conteúdo, e é indiferente o emprego de uma ou outra (parecer da P.G.R. de 24 de Março de 1959, D.G., de 11 de Julho do mesmo ano).

2. O conceito de empregado público dado neste art. é mais amplo do que o fornecido pela ordem administrativa. Este aspecto, da diversidade entre a ordem penal e a administrativa, foi focado nos pareceres da P.G.R. 60/57 e 98/58, publicados no BMJ 88, págs. 169 e seguintes e 91, págs. 388 e seguintes e no parecer emitido no processo n.º 30.787, publicado no BMJ n.º 112, págs. 375 e seguintes.  

      Convocando o texto do parecer n.º 389, por si dado no citado processo, na qualidade de agente do Ministério Público na Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça:

       «...Para delimitação do conceito de funcionário público, é mister que se não abstraia do sector da ordem pública em que tal conceito se integra. É que a noção varia consoante o ramo de direito que se aplica, e dentre de cada ramo ainda pode variar de sector para sector. Este aspecto de diversidade foi muito bem analisado nos pareceres da Procuradoria-Geral da República, nºs 60/57 e 98/58, publicados no Boletim do Ministério da Justiça, respectivamente, nºs 88, págs. 169 e seguintes, e 91, págs. 388 e seguintes, para cujas linhas remetemos, dadas as naturais limitações do presente parecer.

      Não por interpretação analógica, ou mesmo extensiva, mas por mera interpretação declarativa, decorrente do art.º 327.º do Código Penal, o conceito mais amplo de funcionário público é o conceito penal.

      Conforme bem se acentua no citado parecer n.° 98, de todos os exemplos que poderiam apresentar-se, o mais frisante é o do artigo 327.º do Coligo Penal, onde foi perfilhado um conceito de empregado público bastante amplo que, segundo a mais recente e autorizada jurisprudência, não corresponde ao autorizado pela doutrina administrativa. Os fins específicos da tutela penal não se compadeceriam com uma fórmula restrita que excluísse designadamente aqueles a quem são cometidas funções cm serviços públicos sem permanência bastante para que, em direito administrativo, possam qualificar-se como funcionários públicos. E, daí, terem sido, com frequência, considerados funcionários públicos para efeitos penais certos indivíduos desempenhando aquelas funções, não obstante poderem ser livremente nomeados ou exonerados.

       “Independentemente do formalismo de investimento de que cura o direito administrativo, é funcionário público para efeitos penais, segundo o próprio dizer do comando legal, todo aquele que exerce ou participa no exercício de funções públicas civis de qualquer natureza. É, fundamentalmente, a natureza das funções exercidas que dita e empresta a qualidade de funcionário a quem as exerce, isto segundo o critério da lei penal. A mens legis está na necessidade de evitar subterfúgios na defesa penal da coisa pública.

      O critério tem, é certo, dado lugar a incertezas e a hesitações. Assim, já se tem discutido, com sorte vária, se os funcionários corporativos são funcionários públicos para efeitos penais.

      Noutros casos, porém, como nos funcionários municipais e dos organismos de coordenação económica, não têm surgido dúvidas de relevo, quer na doutrina, quer na jurisprudência. Quanto aos organismos de coordenação económica… é bem sabido que se trata de organismos estaduais, por intermédio dos quais o Estado estabelece ligação com os organismos corporativos. Desempenham uma primacial função pública, a função de coordenação económica, que, por preceito constitucional, pertence ao Estado…»

      Na 6.ª edição, 1992, págs. 806/7, e na 10.ª edição, 1996, agora em relação ao artigo 386.º, págs. 949/950, convoca a anotação ao art. 327.º do Código Penal de 1886, onde também se dava uma definição ampla de funcionário, para efeitos penais, dizendo:

      “Os fins específicos da tutela penal não se compadeceriam com uma fórmula restrita, que excluísse designadamente aqueles a quem são cometidas funções em serviços públicos sem permanência bastante para que, em Direito Administrativo, possam considerar-se funcionários públicos. E daí terem sido, com frequência, considerados funcionários públicos, para efeitos penais, certos indivíduos desempenhando aquelas funções, não obstante poderem ser livremente nomeados ou exonerados” repetindo o § que começa em “Independentemente do formalismo”. 


       Código Penal de 1982

    Neste novo Código, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 400/82, de 23 de Setembro, entrado em vigor em 1 de Janeiro de 1983 (artigo 2.º), como se viu, os crimes de prevaricação e denegação de justiça estavam previstos nos artigos 415.º e 416.º.

       O conceito de “funcionário” no novo Código Penal de 1982

    Como se colhe das Actas das Sessões da Comissão Revisora do Projecto da Parte Especial do Código Penal, concretamente, na Acta da 24.ª relativa à sessão de 24-06-1966, in BMJ n.º 290, págs. 96/97, estando em discussão o artigo 466.º, com a epígrafe “Conceito de funcionário”, disse o Autor do Anteprojecto curar-se no artigo de dar um conceito de funcionário público. Em vez de a respeito de cada tipo de crime se acrescentar uma definição conceitual de funcionário público, achou-se melhor técnica legislativa estabelecer num artigo final tal conceito. Assinalou que “Como base deve admitir-se que o conceito válido para o Código Penal não tem de decalcar ou sequer assentar noutros conceitos estabelecidos para outros domínios de direito. A Comissão terá sobretudo de precaver-se contra a existência de eventuais lacunas”.

      Após intervenção do Prof. Afonso Queiró, por sugestão do Autor do Anteprojecto, por se levantar a questão de saber se o n.º 1 abrangia os membros dos organismos corporativos e das actividades económicas, foi proposta nova redacção para a alínea c), sendo aprovada por unanimidade a seguinte:

  c) Quem, mesmo provisória ou temporariamente, mediante remuneração ou a título gratuito, voluntário ou obrigatoriamente, tenha sido chamado a desempenhar ou a participar no desempenho de uma actividade compreendida na função pública administrativa ou jurisdicional, ou, nas mesmas circunstâncias, desempenhe funções em organismos corporativos ou instituições de previdência ou nelas participe.


   Na Secção VI, relativa a “Disposições gerais”, o conceito de funcionário é delineado no único artigo 437.º, inspirado no artigo 327.º do Código Penal de 1886, o qual, sob a epígrafe (Conceito de funcionário), dando uma definição ampla de funcionário para efeitos penais, estabelecia:


Artigo 437.º                                             


    1. Para efeitos da lei penal, a expressão funcionário abrange:

    a) O funcionário civil;

    b) O agente administrativo;

  c) Quem, mesmo provisória ou temporariamente, mediante remuneração ou a título gratuito, voluntária ou obrigatoriamente, tenha sido chamado a desempenhar ou a participar no desempenho de uma actividade compreendida na função pública administrativa ou jurisdicional, ou, nas mesmas circunstâncias, desempenhe funções em organismos de utilidade pública ou nelas participe.

    2. A equiparação a funcionário, para efeitos da lei penal, de quem desempenhe funções políticas, governativas ou legislativas, será regulada por lei especial.


    O Código Penal de 1982, como se viu, entrou em vigor em 1 de Janeiro de 1983, mas face a críticas tecidas relativamente à incriminação e à punição dos actos de corrupção, o legislador procurou alterar algumas disposições e colmatar algumas lacunas.

       Assim, pela Lei n.º 12/83, de 24 de Agosto (Diário da República, I Série, n.º 194, de 24 de Agosto), foi conferida ao Governo autorização para alterar os regimes em vigor em quatro áreas, de que ora importa destacar a da alínea b) do artigo 1.º que dizia:

       “Em matéria de delitos de corrupção, tráfico de influências e outras fraudes que ponham em causa a moralidade da Administração Pública”

      e a da alínea d) do mesmo artigo 1.º, que dizia:

      “Em matéria de responsabilidade dos membros dos órgãos do Estado, dos agentes da administração central, regional e local e dos órgãos das empresas do sector empresarial do Estado”.

      O sentido da autorização nestes dois planos era dado em bloco no artigo 4.º, que na alínea b) dizia:

       b) Quanto aos delitos de corrupção, tráfico de influências e outras fraudes que ponham em causa a moralidade da Administração Pública, bem como a efectivação da responsabilidade dos agentes públicos, combater em geral a fraude e moralizar os comportamentos, efectivando a responsabilidade penal e civil dos agentes administrativos em adequação ao grau da sua responsabilidade funcional”.


       Emergindo desta autorização legislativa, o Decreto-Lei n.º 371/83, de 6 de Outubro, “na linha de uma política de pragmático combate à corrupção e outras fraudes e de moralização dos comportamentos administrativos” alargou o conceito estrito de funcionário dado pelo Código Penal a funções cujo paralelismo, do ponto de vista da política criminal, o legislador entendeu ser de todo o ponto evidente.    

     Depois de no n.º 1 do artigo 4.º estabelecer que “Para efeitos do presente diploma, a expressão funcionário tem o alcance fixado pelo n.º 1 do artigo 437.º do Código Penal”, o n.º 2 dispõe:

       “Para os mesmos efeitos, e ainda para os efeitos dos artigos 420.º a 423.º do Código Penal, são equiparados a funcionários, os titulares dos órgãos e os funcionários da administração autárquica regional e local ou de institutos públicos e os gestores, titulares dos órgãos de fiscalização e trabalhadores de empresas públicas nacionalizadas, de capitais públicos ou com participação maioritária de capital público, e ainda de empresas concessionárias de serviços públicos”.


      O Tribunal Constitucional veio a pronunciar-se pela inconstitucionalidade do diploma pelo Acórdão n.º 864/96, de 27 de Junho de 1996, proferido no processo n.º 439/94, da 2.ª Secção, publicado no Diário da República, II Série, n.º 260, de 9 de Novembro de 1996 e BMJ n.º 458, pág. 74, decidindo: “Julgar inconstitucional a norma constante dos artigos 4.º, n.º 1 e 2, e 5.º, alínea e), do Decreto-Lei n.º 371/83, de 6 de Outubro, por violação do artigo 168.º, n.º 1, alínea c), da Constituição”.

    Foi considerado não estar o Governo legitimado a abranger nas novas normas incriminadoras os trabalhadores das empresas públicas, como era então a Caixa Geral de Depósitos (a equiparação feita no diploma a funcionário público não estava abrangida pela autorização administrativa).

       Este acórdão do Tribunal Constitucional é convocado no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 12 de Fevereiro de 1998, publicado na CJSTJ 1998, tomo 1, pág. 206.

     Já antes, nos acórdãos de 9 de Abril de 1997, proferido no processo n.º 161/96-3.ª Secção, in BMJ n.º 466, pág. 380, e de 16 de Outubro de 1997, proferido no processo n.º 365/97-3.ª Secção, in CJSTJ 1997, tomo 3, pág. 206, não fora aplicado o diploma face à declarada inconstitucionalidade orgânica.

      Este diploma de 1983 veio a constituir a fonte do n.º 2 do artigo 386.º no Código Penal revisto de 1995. 


    Código Penal de 1995

      Aprovado pelo Decreto-Lei n.º 48/95, de 15 de Março, rectificado pela Declaração de rectificação n.º 73-A/95, Diário da República, I Série-A, n.º 136, de 14 de Junho de 1995, que no concreto e no que ora interessa, que procedeu à terceira alteração ao Código Penal, entrado em vigor em 1 de Outubro de 1995 (artigo 13.º).

      Integrado no Livro II – Parte especial, Título V – Dos crimes contra o Estado, Capítulo IV – Dos crimes cometidos no exercício de funções públicas – Secção VI – Disposição geral – ficou apenas o conceito de funcionário no artigo 386.º.

    Estabelece o


Artigo 386.º

Conceito de funcionário



    1 – Para efeito da lei penal a expressão funcionário abrange:

    a) O funcionário civil;

    b) O agente administrativo; e

  c) Quem, mesmo provisória ou temporariamente, mediante remuneração ou a título gratuito, voluntária ou obrigatoriamente, tiver sido chamado a desempenhar ou a participar no desempenho de uma actividade compreendida na função pública administrativa ou jurisdicional, ou, nas mesmas circunstâncias, desempenhar funções em organismos de utilidade pública ou nelas participar.

    2 – Ao funcionário são equiparados os gestores, titulares dos órgãos de fiscalização e trabalhadores de empresas públicas, nacionalizadas, de capitais públicos ou com participação maioritária de capital público e ainda de empresas concessionárias de serviços públicos.

    3 – A equiparação a funcionário, para efeito da lei penal, de quem desempenhe funções políticas é regulada por lei especial.


    (O preceito foi entretanto alterado por quatro vezes, em 2001, 2007, 2010 e 2015).

       A inovação consistiu na introdução do n.º 2.

       A sua fonte, como já referido, foi o artigo 4.º, n.º 2, do Decreto-Lei n.º 371/83, de 6 de Outubro (concretamente, segunda parte do preceito, a partir de “gestores (…) serviços públicos”), o qual, ao tempo da publicação do Decreto-Lei n.º 48/95, em 15 de Março de 1995, ainda não fora declarado inconstitucional, o que se verificou, como vimos, em 27 de Junho de 1996, mas certo é que subsistiu e ainda se mantém na redacção actual.

       O sucessivo alargamento da expressão “funcionário”.

   O artigo 386.º do Código Penal (originário de 1995) foi alterado por quatro vezes, sempre numa lógica de acrescentamento, alargamento, de adição, extensão das noções precedentes.


Primeira alteração – 2001 

    O artigo 386.º do Código Penal (originário de 1995) foi alterado por quatro vezes, sempre numa lógica de acrescentamento, alargamento, de adição, extensão das noções precedentes.

    A primeira alteração foi introduzida pela Lei n.º 108/2001, de 28 de Novembro (publicada no Diário da República, I Série – A, n.º 276, de 28 de Novembro de 2001), entrada em vigor em 1 de Janeiro de 2002 (11.ª alteração ao Código Penal, alterando os artigos 335.º, 372.º, 373.º e 386.º e ainda primeira alteração ao Decreto-Lei n.º 34/87, de 16 de Julho e sétima alteração ao Decreto-Lei n.º 28/84, de 20 de Janeiro, aqui introduzindo no regime das infracções anti-económicas a previsão de corrupção no sector privado – artigos 41.º-B (passiva) e 41.º-C (activa), entretanto revogados pelo artigo 11.º da Lei n.º 20/2008, de 21 de Abril).

      Esta Lei surgiu na sequência da Acção Comum 98/742/JAI, de 22 de Dezembro de 1998, adoptada pelo Conselho com base no artigo K.3 do TUE, relativa à corrupção no sector privado, tendo em conta o protocolo à Convenção relativa à Protecção dos Interesses Financeiros das Comunidades Europeias, de 27 de Setembro de 1996, do segundo protocolo à mesma Convenção de 19 de Junho de 1997 e a Convenção relativa à Luta contra a Corrupção de Funcionários das Comunidades ou dos Estados-membros da União Europeia, adoptada pelo Conselho em 26 de Maio de 1997, que definiu a corrupção passiva – artigo 2.º - e activa – artigo 3.º - no sector privado e da ratificação da Convenção Penal sobre a Corrupção, do Conselho da Europa, feita em Estrasburgo em 27 de Janeiro de 1999, e assinada a 30 de Abril de 1999 (aprovada para ratificação pela Resolução da Assembleia da República n.º 68/2001, de 20 de Setembro de 2001, e ratificada pelo Decreto do Presidente da República n.º 56/2001, assinado em 16 de Outubro de 2001 e referendado no dia seguinte, publicados no Diário da República, I – A Série, n.º 249, de 26 de Outubro de 2001), alterando o regime jurídico dos crimes de tráfico de influência e de corrupção.

   (A referida Acção Comum viria a ser revogada pelo artigo 8.º da Decisão-Quadro 2003/568/JAI do Conselho, de 22 de Julho de 2003).

     Como se alcança do relatório da Proposta de Lei n.º 91/VIII (Diário da Assembleia da República, Série II-A, de 18 de Julho de 2001) “Por força do disposto na Convenção Relativa à Luta contra a Corrupção de Funcionários das Comunidades dos Estados Membros, adoptada pelo Conselho em 26 de Maio de 1997, amplia-se o conceito de funcionário de modo que ele passe a abranger os magistrados do Tribunal de Justiça e do Tribunal de Contas, todos os funcionários da União Europeia e, ainda, os funcionários dos outros Estados Membros, quando o crime apresenta alguma conexão com o direito penal português, por ter sido cometido total ou parcialmente no território português”.

       A Lei, entrada em vigor em 1 de Janeiro de 2002, conforme o artigo 4.º, procedeu à décima primeira alteração ao Código Penal – artigos 335.º, 372.º, 373.º e 386.º –, primeira alteração à Lei n.º 34/87, de 16 de Julho – artigos 3.º, 16.º, 17.º, 18.º e 19.º – e ao Decreto-Lei n.º 28/84, de 20 de Janeiro, introduzindo no regime das infracções anti-económicas a previsão de corrupção no sector privado – artigos 41.º - B (passiva) e 41.º - C (activa), entretanto revogados pelo artigo 11.º da Lei n.º 20/2008, de 21 de Abril.


       O preceito passou a estabelecer:


Artigo 386.º


1 – ………..……………………………………………………

2 – ……..……………………………………………………

3 – São ainda equiparados ao funcionário, para efeitos do disposto nos artigos 372.° a 374.º:

  a) Os magistrados, funcionários, agentes e equiparados da União Europeia, independentemente da nacionalidade e residência;

  b) Os funcionários nacionais de outros Estados membros da União Europeia, quando a infracção tiver sido cometida, total ou parcialmente, em território português;

  c) Todos os que exerçam funções idênticas às descritas no n.º 1 no âmbito de qualquer organização internacional de direito público de que Portugal seja membro, quando a infracção tiver sido cometida, total ou parcialmente, em território português;

4 – (Anterior n.º 3).


   Esta nova equiparação, com resulta do texto do corpo do n.º 3, abrange apenas os crimes de corrupção passiva e activa.

     A mesma Lei n.º 108/2001, modificando o Código Penal, alterou a redacção dos artigos 372.º (corrupção passiva para acto ilícito) e 373.º (corrupção passiva para acto lícito), depois alterados em 2010.

                     

A segunda alteração – 2007

     A Lei n.º 59/2007, de 4 de Setembro (23.ª alteração ao Código Penal e republicação), aditou uma nova alínea ao n.º 3alínea d) – passando o preceito a estabelecer:      


Artigo 386.º 


1 – ……………………..……………………………………

2 – …………………………………………………………

3 – São ainda equiparados ao funcionário, para efeitos do disposto nos artigos 372.º a 374.º:

     a) ……………………………………………..………………

     b) ……..……………………………….………………………

     c) …………..………………………………..…………………

     d) Todos os que exerçam funções no âmbito de procedimentos de resolução extrajudicial de conflitos.

4 – …..…..…………………………………………………..


      A reforma de 2007 limitou-se a introduzir a alínea d) do n.º 3, com o consequente alargamento do âmbito da equiparação aí em causa.

     A equiparação atinge igualmente apenas os crimes de corrupção.


A terceira alteração – 2010

    A Lei n.º 32/2010, de 2 de Setembro, Diário da República, 1.ª série, n.º de 2-09-2010 (Procedeu à 25.ª alteração ao Código Penal – alterando os artigos 111.º, 118.º, 372.º, 373.º, 374.º e 386.º e aditando os artigos 278.º-A, 278.º-B, 374.º-A, 374.º- B e 382.º-A do Código Penal e revogando o artigo 9.º-A da Lei n.º 36/94, de 29 de Setembro), entrando em vigor em 1 de Março de 2011, aditou uma nova alínea ao n.º 1, passando a estabelecer:



Artigo 386.º


1 – …………………………..…….…………………………

   a) …………………….……………………………………

   b) ……………………………….…………………………

   c) Os árbitros, jurados e peritos;

   d) [Anterior alínea c)].

2 – ……..…….…………………………………………

3 – ………………………………….…………………

4 – …………………………………      ………………

    

  O intróito do n.º 1 e alíneas a), b) e d) e o n.º 4 actual correspondem ao artigo 437.º do Código Penal de 1982, com ligeiras alterações introduzidas em 1995.

   O n.º 2 foi introduzido em 1995, tendo por fonte o aludido Decreto-Lei n.º 371/83.

       O n.º 3 e alíneas a), b) e c) foram introduzidas em 2001.

       A alínea d) do n.º 3 foi aditada em 2007.

       E a alínea c) do n.º 1 foi aditada em 2010.

     

    De anotar a nova redacção dada aos artigos 372.º (Recebimento indevido de vantagem), 373.º (Corrupção passiva) e 374.º (Corrupção activa) e o aditamento dos artigos 374.º-A (Agravação) e 374.º B (Dispensa ou atenuação de pena) introduzidas pela Lei n.º 32/2010, de 2 de Setembro.


A quarta alteração – 2015

    A Lei n.º 30/2015, de 22 de Abril, Diário da República, 1.ª série, n.º 78, de 22-04-2015, introduz a trigésima quinta alteração ao Código Penal, sexta alteração à Lei n.º 34/87, de 16 de Julho, primeira alteração à Lei n.º 20/2008, de 21 de Abril, primeira alteração à Lei n.º 50/2007, de 31 de Agosto, e primeira alteração à Lei n.º 19/2008, de 21 de Abril, no sentido de dar cumprimento às recomendações dirigidas a Portugal em matéria de corrupção pelo Grupo de Estados do Conselho da Europa contra a Corrupção, pelas Nações Unidas e pela Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Económico.

       No Código Penal altera os artigos 11.º, 118.º, 335.º, 374.º, 374.º - B, 375.º, 376.º e 386.º, passando este a dizer


Artigo 386.º


Conceito de funcionário

1 – …………………………………………………………

2 – …………………………………………………………

3 – São ainda equiparados ao funcionário, para efeitos do disposto nos artigos 335.º e 372.° a 374.º:

a) Os magistrados, funcionários, agentes e equiparados de organizações de direito internacional público, independentemente da nacionalidade e residência;

b) Os funcionários nacionais de outros Estados, quando a infracção tiver sido cometida, total ou parcialmente, em território português;

c)…………………………………………………………

d) Os magistrados e funcionários de tribunais internacionais, desde que Portugal tenha declarado aceitar a competência desses tribunais;

e) Todos os que exerçam funções no âmbito de procedimentos de resolução extrajudicial de conflitos, independentemente da nacionalidade e residência, quando a infracção tiver sido cometida, total ou parcialmente, em território português;

f) Os jurados e árbitros nacionais de outros Estados, quando a infracção tiver sido cometida, total ou parcialmente, em território português.

4 – ………………………………………………………


      No corpo do n.º 3 à equiparação é aditado o artigo 335.º (Tráfico de influência).

      Na alínea a) do n.º 3 substitui “União Europeia” por “organizações de direito internacional público”.

      E altera alíneas b) e d) e inova nas alíneas e) e f).


       Na composição actual estabelece o  


Artigo 386.º

Conceito de funcionário



1 – Para efeito da lei penal a expressão funcionário abrange:

a) O funcionário civil; (1982)

b) O agente administrativo; (1982)

c) Os árbitros, jurados e peritos; e (2010)

d) Quem, mesmo provisória ou temporariamente, mediante remuneração ou a título gratuito, voluntária ou obrigatoriamente, tiver sido chamado a desempenhar ou a participar no desempenho de uma actividade compreendida na função pública administrativa ou jurisdicional, ou, nas mesmas circunstâncias, desempenhar funções em organismos de utilidade pública ou nelas participar. (1982)

2 – Ao funcionário são equiparados os gestores, titulares dos órgãos de fiscalização e trabalhadores de empresas públicas, nacionalizadas, de capitais públicos ou com participação maioritária de capital público e ainda de empresas concessionárias de serviços públicos. (1995)

3 – São ainda equiparados ao funcionário, para efeitos do disposto nos artigos 335.º e (2015) 372.° a 374.º: (2001)

a) Os magistrados, funcionários, agentes e equiparados de organizações de direito internacional público, independentemente da nacionalidade e residência;

b) Os funcionários nacionais de outros Estados, quando a infracção tiver sido cometida, total ou parcialmente, em território português; (2015)

c) Todos os que exerçam funções idênticas às descritas no n.º 1 no âmbito de qualquer organização internacional de direito público de que Portugal seja membro, quando a infracção tiver sido cometida, total ou parcialmente, em território português; (2001)

d) Os magistrados e funcionários de tribunais internacionais, desde que Portugal tenha declarado aceitar a competência desses tribunais; (2015)

e) Todos os que exerçam funções no âmbito de procedimentos de resolução extrajudicial de conflitos (2007), independentemente da nacionalidade e residência, quando a infracção tiver sido cometida, total ou parcialmente, em território português; (2015)

f) Os jurados e árbitros nacionais de outros Estados, quando a infracção tiver sido cometida, total ou parcialmente, em território português. (2015)

4 – A equiparação a funcionário, para efeito da lei penal, de quem desempenhe funções políticas é regulada por lei especial. (1982/1995)


    Damião da Cunha no Comentário Conimbricense do Código Penal, Parte Especial, Tomo III, Coimbra Editora, 2001, em comentário ao artigo 386.º afirma, a págs. 811: (…) o conceito de funcionário apenas tem aplicação nos casos e incriminação por força da qualidade de agente activo. Tal solução alicerça-se no facto de a discussão sobre a amplitude do preceito estar sempre associada à finalidade de não se verificarem lacunas de punibilidade (cf. Actas 1979 495), da inserção sistemática do preceito, e por fim, de o próprio CP prescindir, nos casos em que a expressão de funcionário está associada à qualidade da vítima (cf., exemplificativamente, o preceito fundamental do art 132.º-2-h), do recurso àquele conceito. Esta solução, de resto, justifica-se, porque para afirmação do dolo em crimes que tenham por vítima um funcionário, supõe-se, em regra, uma avaliação paralela na esfera do leigo quanto à qualidade de funcionário (o que poderia ser difícil face ao conceito previsto no art. 386.º do CP). Disto resulta, pois, que o conceito de funcionário previsto para efeitos de lei penal é integrável apenas nos casos em que o agente activo do crime seja funcionário. (realce do texto).


       Vista a evolução legislativa respeitante à definição dos conceitos de prevaricação e denegação de justiça, vejamos a

       Legislação avulsa onde estão previstos tais crimes.

   A Lei n.º 34/87, de 16 de Julho, definiu os crimes de responsabilidade dos titulares de cargos políticos, dando cumprimento ao previsto no n.º 2 do artigo 437.º, na versão originária do Código Penal de 1982.

   Furtado dos Santos, Código Penal (Anotado), Petrony, 1983, perguntava porque não fora feita a equiparação a que aludia o n.º 2 do artigo 437.º, acrescentando: “E quando virá a legislação especial?”.


    Como afirmámos em despacho proferido em 29 de Abril de 2011, no âmbito do processo de única instância n.º 7/10.0YGLSB.S1, em que era denunciado o então Primeiro-Ministro, à data no exercício de funções, e em que se declinou a competência funcional deste Supremo Tribunal de Justiça para conhecimento do objecto de processo movido por uma jornalista de um canal de televisão, por alegado crime de difamação por factos ocorridos em 21 de Abril de 2009, considerando competente para o efeito a primeira instância:

       “O diploma em causa constitui a solução tardia, volvidos onze anos, sobre a imposição legiferante de 1976, contida no n.º 3 do artigo 120.º da CRP, cumprindo-se então a obrigação de elaboração da tutela normativa dos crimes de responsabilidade, evitando a continuação de um problema de inconstitucionalidade por omissão, pelo não cumprimento de um dever concreto jurídico-constitucionalmente imposto.

       A injunção cumpriu-se com a definição de cargos políticos, criação de catálogo de crimes de responsabilidade, definição de sanções que lhes são aplicáveis e os respectivos efeitos, para além de normas adjectivas e definição de responsabilidade civil emergente do novo tipo criminal.

    Mas com a lei em causa resolveu-se uma outra lacuna existente há mais de quatro anos.

       Efectivamente, com a lei deu-se cumprimento a uma necessidade de regulação imposta pelo n.º 2 do artigo 437.º do Código Penal, logo na versão originária de 1982, que cometia a equiparação a funcionário de titulares de funções políticas.

     De acordo com o artigo 437.º (actual artigo 386.º) do Código Penal, define-se o âmbito da expressão funcionário para efeitos da lei penal.

       Especificava o n.º 2 que “A equiparação a funcionário, para efeitos da lei penal, de quem desempenhe funções políticas, governativas ou legislativas, será regulada por lei especial”.

       E estabelece o actual n.º 4 do artigo 386.º que “A equiparação a funcionário, para efeitos da lei penal, de quem desempenhe funções políticas é regulada por lei especial”.

       A remissão que este n.º 4 faz refere-se à citada Lei n.º 34/87, de 16-07”.

  A prevaricação e a denegação de justiça são crimes de responsabilidade dos titulares de cargos políticos.

       

     A Lei n.º 34/87, de 16 de Julho, foi alterada pelas seguintes leis, que deixaram intocada a redacção dos artigos 11.º e 12.º:

- Lei n.º 108/2001, de 28 de Novembro (publicada no Diário da República, I Série – A, n.º 276, de 28 de Novembro de 2001), alterando os artigos 3.º, 16.º, 17.º, 18.º e 19.º; 

- Lei n.º 30/2008, de 10 de Julho, Diário da República, 1.ª série, n.º 132, de 10-07-2008, configurando o Estatuto do Representante da República nas Regiões Autónomas dos Açores e Madeira, estabelecendo o


Artigo 10.º

(Titular de cargo político)



O Representante da República, como titular de cargo político, está sujeito ao respectivo regime jurídico para efeitos de:

c) Crimes de responsabilidade.

       Pelo artigo 24.º foram revogadas entre outras, as disposições da Lei n.º 34/87, de 16 de Julho, na sua redacção em vigor, na parte respeitante aos Ministros da República.

 - Lei n.º 41/2010, de 3 de Setembro de 2010, Diário da República, 1.ª série, n.º 172, de 3 de Setembro de 2010, procede à 3.ª alteração à Lei n.º 34/87, de 16-07, alterando os artigos 1.º, 16.º, 17.º, 18.º e 19.º e aditando o artigo 3.º - A – Altos cargos públicos, 18.º-A – Violação de regras urbanísticas e 19.º-A – Dispensa ou atenuação de pena.

- Lei n.º 4/2011, de 16 de Fevereiro de 2011, Diário da República, 1.ª série, n.º 33, de 16-02-2011, procede à 27.ª alteração ao Código Penal e à quarta alteração à Lei n.º 34/87, altera artigo 374.º-A, n.º 2 daquele e quanto ao diploma o artigo 19.º, n.º 3.

- Lei n.º 4/2013, de 14 de Janeiro, in Diário da República, 1.ª série, n.º 9, de 14-01-2013, procede à quarta (sic) alteração à Lei n.º 34/87, passando a ter a seguinte redacção o

Artigo 17.º

1–……..……………………………………………………

2 – Se o ato ou omissão não forem contrários aos deveres do cargo e vantagem não lhe for devida, o titular de cargo político ou de alto cargo público é punido com pena de prisão de 2 a 5 anos.

- Lei n.º 30/2015, de 22 de Abril, in Diário da República, 1.ª série, n.º 78 – Pelo artigo 2.º, n.º 1, altera os artigos 3.º, 10.º, 19.º-A, 20.º, 21.º, 29.º, 31.º e 35.º e pelo n.º 2, revoga o artigo 38.º.

       O diploma pelo artigo 3.º altera a Lei n.º 20/2008, de 21 de Abril (que cria o novo regime penal de corrupção no comércio internacional e no sector privado, dando cumprimento à Decisão Quadro n.º 2003/568/JAI, do Conselho, de 22 de Julho), definindo na alínea a) do artigo 2.º o “Funcionário estrangeiro”.  

       Estabelece o


Artigo 11.º

Prevaricação



O titular de cargo político que conscientemente conduzir ou decidir contra direito um processo em que intervenha no exercício das suas funções, com a intenção de por essa forma prejudicar ou beneficiar alguém, será punido com prisão de dois a oito anos.

Artigo 12.º

Denegação de justiça



O titular de cargo político que no exercício das suas funções se negar a administrar a justiça ou a aplicar o direito que, nos termos da sua competência, lhe cabem e lhe foram requeridos será punido com prisão até dezoito meses e multa até 50 dias.

       Doutrina sobre denegação de justiça e prevaricação   

     Manuel Leal-Henriques e Manuel Simas Santos, Código Penal Anotado, 2.º volume, Parte Especial, 3.ª edição, Editora Rei dos Livros, 2000, pág. 1583, afirmam que segundo o legislador para assumir relevância criminal é necessária a consciência da conduta e a sua natureza anti ou contra – direito.

      “Isto é: para que o acto de promoção ou não promoção, de condução, de decisão, etc., produzido no âmbito processual referido (inquérito, processo jurisdicional, processo por contra-ordenação ou processo disciplinar), ganhe dignidade penal é necessário, antes de mais, que seja consequência de uma vontade consciente e livre, isto é, de uma acção dolosa, intencional, dirigida a determinado resultado: negar ou falsear a justiça.

       Estamos, pois, abertamente no âmbito do dolo directo.

      Por outro lado, a acção do agente tem que se mostrar contra-direito, o que vale por dizer que tem que ser contrária a disposição expressa da lei”.


      Victor Sá Pereira e Alexandre Lafayette em Código Penal Anotado e Comentado, QUID JURIS, 2008, versando a redacção de 1995, a págs. 897, dizem: “Integram-se neste artigo as incriminações, distintas e autónomas, que se encontravam nos artigos 413.º a 417.º da versão de 1982. E nota-se, apesar da assinalada correspondência, que a versão actual pôs em prática uma significativa descriminalização.

       Continuam: “Segundo o ac. STJ de 12 de junho de 1998, «o crime de prevaricação é um crime contra a realização da justiça» (CJ, Acs. STJ, VI, 2/214). E é este o entendimento comum da jurisprudência. Não falta, ainda assim, quem reporte a tutela em jogo, na sua expressão directa e imediata, a bens jurídicos individuais, sob a alegação de que se cura, aqui e agora, de reagir a certas restrições de direitos dos particulares. Sem se negar a existência desta, acentua-se o facto de a incriminação se reportar à actividade de quem se encontra do lado de dentro dum determinado processo sancionatório, cujo fim último é a realização da justiça. «E é esta perversão ab imo – transformação do direito em injusto por parte de quem é chamado a servir de garante institucional à própria Ordem Jurídica – que convoca a particular censura da norma incriminadora (…)». (A. Medina de Seiça, citando Rudolphi, Comentário Conimbricense, III, 610). Sendo assim, não há razão, pois, para não se adoptar a posição dominante, que coincide com a perfilhada no aresto acima referido”.

    A conduta típica refere-se a diversas modalidades, ao jeito dos tipos mistos alternativos, todas elas filiadas num étimo comum: agir contra direito. Entretanto, promover (ou postular) contra direito é instaurar ou provocar a instauração dum processo e/ou dinamizá-lo, peticionando ou requerendo, em contradição com as pertinentes normas jurídicas; não promover contra direito é omitir a promoção devida; conduzir (ou orientar) contra direito é fenómeno relativo à entidade que dirige o processo (prevaricação), em que no expressivo dizer de Nelson Hungria (citado por Leal-Henriques/Simas Santos), «o agente substitui a vontade da lei pelo seu arbítrio, praticando, não o acto que é seu dever praticar, mas outro contrário à disposição expressa da lei»; decidir (ou julgar) contra direito é comportamento próprio da entidade decisora, munida do poder-dever de, no concreto, dizer o direito, actuando contra as normas que devia observar; e não decidir contra o direito (denegação de justiça) é acto de quem, dispondo daquele poder-dever, «se nega a administrar justiça ou a aplicar o direito que, nos termos da sua competência, lhe cabe e lhe foram requeridos».         

      Na nota 13, pág. 899, afirmam: “Trata-se de crimes dolosos. E o conscientemente do n.º 1 significa que se exige dolo directo, tal como Eduardo Correia expressamente se referiu perante a Comissão Revisora”.


      Segundo Paulo Pinto de Albuquerque, Comentário do Código Penal, Universidade Católica Editora, 3.ª edição actualizada, Novembro de 2015, pág. 1158:

    “2 Os bens jurídicos protegidos pela incriminação são a realização da justiça, na sua vertente da integridade dos órgãos de administração de justiça (tribunais em sentido amplo, incluindo os juízes, os magistrados do MP, os funcionários judicias e os jurados) e dos órgãos de colaboração na administração da justiça (polícias), e, concomitantemente, os interesses individuais do visado pelo ato ilegal do funcionário. A tutela destes bens jurídicos é cumulativa, pelo que basta que um deles seja prejudicado para se verificar o dano típico. Assim, há prevaricação mesmo que o visado pela decisão ilegal nela consinta.

   3. O crime de denegação de justiça e prevaricação é um crime de dano (quanto ao grau de lesão do bem jurídico protegido) e formal (quanto à forma de consumação do ataque ao objeto da ação).

    4. O tipo objetivo consiste nas seguintes condutas: (1) as ações tomadas por funcionário no âmbito de inquérito processual, processo jurisdicional, por contraordenação ou disciplinar, no sentido de promover, conduzir, decidir ou praticar ato no exercício das suas funções contra o direito; (2) as omissões (“não promover” e “não decidir”) de funcionário contra o direito ocorridas no exercício das suas funções no âmbito de inquérito processual, processo jurisdicional, por contraordenação ou disciplinar; e (3) as ações do funcionário competente de ordenar ou executar medida privativa da liberdade de forma ilegal.

   5. Os agentes do crime são os juízes, os magistrados do MP, os funcionários judicias e os jurados, e, na fase de inquérito, também os polícias. Trata-se de um crime específico próprio.

   7. O funcionário atua contra direito, isto é, contra as normas da ordem jurídica positiva, independentemente das fontes (estadual ou não estadual) e da natureza (pública ou privada, substantiva ou processual), incluindo naturalmente os princípios vertidos em normas positivas, designadamente na Declaração Universal dos Direitos do Homem, no Pato Internacional de Direitos Civis e Políticos e na Convenção Europeia dos Direitos do Homem.

   9. O tipo subjetivo só admite o dolo directo, em face da exigência típica resultante da expressão “conscientemente” (tendo este sido o propósito da comissão de revisão do CP de 1966 in Actas CP/Eduardo Correia, 1979:469, e referido acórdão do STJ de 20.6.2012, e Fernanda Palma, 2013 d:131 a 133, mas admitindo o dolo directo e o dolo necessário, acórdão do STJ, de 12.7.2012, in CJ, Acs. do STJ, XX, 2, 236, e na doutrina alemã HK-GS, LEMKE, anotação 8.º ao § 339).

      Medina de Seiça, em Comentário Conimbricense do Código Penal, Coimbra Editora, 2001, tomo III, a págs. 605, dizia: “A versão dada pela Reforma de 1995 ao preceito contribuiu fortemente para a diminuição do número de artigos da Parte Especial. Com efeito, sob a actual designação de denegação de justiça e prevaricação, o legislador reuniu uma série de infracções dispersas por autónomos tipos legais na redacção originária: promoção dolosa (art. 413.º), não promoção (art. 414.º), prevaricação (art. 415.º), denegação de justiça (artigo 416.º), prisão ilegal (art. 417.º). Isto é: onde hoje se conta um único artigo existiam cinco (cf. Actas 1993 425)”.

     Adianta que existem significativas divergências em relação ao texto de 1982 e que se reconduzem, basicamente, a uma sensível diminuição do âmbito da matéria penalmente proibida (descriminalização).

      A págs. 609/610 diz não haver razões para se afastar da doutrina dominante que encontra na realização da justiça o específico bem jurídico protegido pelo tipo legal em análise. Afirma: “Mais concretamente, este tipo de crime pretende assegurar o domínio ou supremacia do direito objectivo na sua aplicação pelos órgãos de administração da justiça, maxime, judiciais. Pode dizer-se que, enquanto noutros tipos de crime incluídos neste capítulo, a lesão do bem jurídico realização da justiça provém de agentes que se situam fora do aparelho estadual da administração da justiça (assim, no falso testemunho, no favorecimento pessoal), na fattispecie em apreço (como também no favorecimento por funcionário: art. 368.º) o ataque ao bem jurídico dá-se de dentro, i. é, por parte dos órgãos deputados pela comunidade estadual justamente para a tarefa da correcta realização da justiça.

      No § 24, pág. 619, afirma que o crime de prevaricação, na sua forma matricial, isto é, na forma descrita no n.º 1 do art. 369.º tem natureza dolosa.

  “ (…) exigindo a lei portuguesa que o funcionário actue “conscientemente”, as situações recondutíveis à dolosidade eventual, isto é, aquelas em que o agente representando a realização do facto como possível conforma-se com a sua realização (cf. art. 14.º, n.º 3) não se encontram abrangidas pela norma incriminadora, o mesmo é dizer, não são puníveis” (Realces do texto).  

      M. Miguez Garcia e J. M. Castela Rio, Código Penal, Parte geral e especial, Almedina 2014, págs. 1121/2, começam por assinalar que o preceito protege a realização da justiça, quanto ao ónus de dizer o Direito, ou seja, a vertente do ajustamento à lei. A realização da justiça deve ser subtraída também aos ataques vindos de dentro.

    O crime de denegação de justiça e de prevaricação é crime específico próprio, sendo a qualidade de funcionário (juiz, magistrado do MP, funcionário judicial, jurado) comunicável aos comparticipantes que não a possuam.

   4. As condutas proibidas todas têm em comum o agir contra direito; qualquer delas representa uma torção do direito.

   “A actuação contra o direito inclui não apenas a interpretação objectivamente errada da norma, mas também a incorrecta apreciação e subsunção dos factos à norma, seja numa decisão interlocutória, seja numa decisão final”, Pinto de Albuquerque, 2010, p. 262. Não será o caso quando a decisão ou o ato sejam objetivamente inconsistentes ou revogáveis em recurso ou contradigam o convencimento de uma das partes, mas só quando o magistrado ou funcionário se afasta da lei de modo grave e a sua promoção, orientação, decisão ou ato, tomado no exercício de poderes decorrentes do cargo que exerce, não se baseiam na lei ou no direito, mas nos seus próprios critérios. O funcionário atua contra o direito quando o faz contra a ordem jurídica positiva. Se a análise e interpretação da situação e das normas em causa, menos que discutível, é hermenêuticamente possível, “ela já não se mostra contra direito, pelo contrário, expressa uma solução de direito” (Medina de Seiça, CCCP III, 2001, p. 617).

  a) O ilícito em questão (crime de denegação de justiça e prevaricação) não se funda na mera violação dos deveres funcionais do julgador, antes na lesão do bem jurídico da supremacia da ordem jurídica, o mesmo é dizer, na aplicação imparcial e justa do direito. O bem jurídico é violado por uma decisão objetivamente contrária ao direito e à lei, S/S-Cramer, 1997, p. 2280”. Na 2.ª edição, de 2015, o tema é versado a págs. 1287, nota 5.


      Jurisprudência 

     Disse o acórdão deste Supremo Tribunal de 15 de Janeiro de 1986, BMJ n.º 353, pág. 226:

I – É elemento do crime de prevaricação do art. 415.º do CP a existência de um processo conduzido ou decidido contra direito. II – Além da qualidade de funcionário e da recusa de administrar a justiça ou de aplicar o direito, são elementos constitutivos do crime do art. 416.º do CP a competência do funcionário e ainda um requerimento feito por quem tenha legitimidade para tal. III – O que a lei sanciona no art 416.º do CP é a inércia, a omissão ou abstenção dolosas (e também o próprio retardamento ou demora, igualmente dolosos) e não o erro de apreciação ou julgamento em que eventualmente haja ocorrido o autor do acto contra o qual a lei, em geral, confere meios adequados de impugnação, que são os recursos e as reclamações.

   O acórdão deste Supremo tribunal de 2-03-1994, proferido no recurso n.º 45.044, CJSTJ 1994, tomo 1, págs. 236 a 243, versa crime de denegação de justiça, responsabilidade civil não conexa com a responsabilidade criminal, incompetência criminal, competência do tribunal civil comum, competência dos tribunais administrativos.

     O acórdão versa o crime de prevaricação, p. e p. pelo artigo 11.º e o crime de denegação de justiça, p. e p. pelo artigo 12.º da Lei n.º 34/87, de 16 de Julho, diploma relativo aos crimes de responsabilidade dos titulares de cargos políticos.

    Consta do Sumário:

     O crime de prevaricação pressupõe, no que ao elemento subjectivo respeita, o dolo específico, verdadeiro dolo directo, por excelência, não bastando como suficiente o dolo, nas modalidades de necessário e eventual.

      Não comete o crime de denegação de justiça do art.º 12.º da Lei n.º 34/87, de 16 de Julho, o presidente de uma câmara que recusa a concessão de um alvará, se essa recusa se fundou numa causa, ainda que discutível.

       Absolvido o arguido do crime de prevaricação, excluída está, desde logo, a ideia de uma indemnização emergente da prática desse crime; e, para o pedido de indemnização por responsabilidade meramente civil, falece competência ao tribunal criminal, a qual cabe ao tribunal comum (tribunal cível) para o cidadão comum, e aos tribunais administrativos, para o Estado, seus órgãos e seus agentes.

       Sobre a ratio do artigo 12.º extrai-se da fundamentação: “O que a lei sanciona neste tipo legal é a inércia, a omissão ou abstenção dolosa (e também o próprio retardamento ou demora, igualmente dolosos) e não o erro de apreciação em que eventualmente haja ocorrido o autor do acto, contra o qual, em geral, a lei confere meios adequados de impugnação que são os recursos e as reclamações”, chamando à colação o acórdão do STJ, de 15 de Janeiro de 1986, in BMJ 353.º, pág. 226.


    Acórdão de 26-10-1995, acórdão n.º 46.826, in CJSTJ 1995, tomo 3, pág. 214, versando crime de denegação de justiça, então p. e p. pelo artigo 416.º do Código Penal de 1982, alegadamente praticado por juiz em acção sumaríssima, em que era réu o denunciante, donde se extrai:

       “No crime de denegação de justiça, ao lado do interesse público do Estado na administração da justiça, protege-se também o interesse do participante contra o prejuízo que lhe advém da recusa da sua realização, pelo que se deve admitir a constituição como assistente do participante ofendido.

      Versando a possibilidade de constituição de ofendido como assistente, refere que não é ofendido, para o efeito do artigo 68.º, n.º 1, al. a), qualquer pessoa prejudicada com a prática do crime, mas tão somente o titular do interesse que constitui objecto jurídico imediato do crime.

     O acórdão distingue entre o objecto jurídico mediato e o objecto imediato da incriminação, dizendo:

       “O objecto jurídico mediato é sempre de natureza pública e consiste em alcançar, na máxima medida possível e no mais curto prazo, as finalidades de realização da Justiça, de preservação dos direitos fundamentais das pessoas e de paz social, tal como se prescreve no art. 2.º, n.º 2, da Lei de autorização legislativa n.º 43/86, de 26/09/86.Enquanto isso, o objecto imediato pode ter por titular um particular.

       O objecto imediato da incriminação pode não ser único, podendo ser complexo, como sucede no roubo, podendo acontecer algo de semelhante no crime de denegação de justiça. A norma incriminadora visa proteger, efectivamente, a realização da justiça, preservando assim os direitos fundamentais das pessoas e a paz social; mas protege, também, outros valores da esfera jurídica do cidadão que recorre ao Tribunal para defesa imediata doas seus interesses particulares, relativos ao seu direito de propriedade, à sua vida, bom nome, honra e consideração, liberdade, integridade física, segurança pessoal e outros.

      É da experiência comum que o cidadão, quando participa em juízo um crime de denegação de justiça, cuida prioritariamente, por via de regra, da defesa dos seus interesses particulares – que podem até, ser de ordem moral, deixando para o Estado a missão de se preocupar com os superiores interesses da realização da justiça.

      Neste contexto se concebe a ideia de que a par do interesse da realização da justiça, o tipo legal delineado no art. 416.º do C. Penal vise também especialmente a defesa de interesses particulares tutelados pelo direito, e sendo assim, preenchido está - nesta parte - o condicionalismo do art. 68.º, n.º 1, al. a), do C.P.Penal, para se admitir o ofendido como assistente nos autos.

     Referindo o crime de denúncia caluniosa, que, em certa medida, se apresenta como o reverso da medalha do crime de denegação de justiça, adianta que o Supremo tem entendido que a respectiva norma incriminadora protege não só o interesse que tem a administração da justiça em que o procedimento criminal contra determinada pessoa seja sinceramente requerido, como o interesse dos acusados contra o prejuízo resultante de acusações maliciosas (Ac. do S.T.J. de 14/12/83, B.M.J. 332-332). 

      Também o art. 416.º do C. Penal protege especialmente, não só o interesse do Estado na administração da justiça, como também o interesse do participante contra o prejuízo que lhe advém da recusa da sua realização.

     Assim sendo, tal como acontece no crime de denúncia caluniosa, também no crime de denegação de justiça se deve admitir a constituição do participante ofendido como assistente nos autos.

      O requerimento de intervenção do ofendido como assistente foi extemporâneo e assim o ofendido não pode ser admitido nessa qualidade. 

       A abertura da instrução apenas pode ser requerida pelo arguido e pelo assistente, e não por quem não seja assistente ainda que possua as condições de vir a sê-lo. E assim foi negado provimento ao recurso. 

      Segundo o acórdão de 18-09-1997, proferido no processo n.º 527/97 – A inserção sistemática dos crimes de prevaricação e de denegação de justiça (actual art. 369.º e anteriores art.ºs 415.º e 416.º do CP de 1982) no capítulo III – Dos crimes contra a realização da justiça – Do Título V – Dos crimes contra o Estado – inculca que com tal incriminação se visa preferencialmente assegurar o interesse do Estado na boa, límpida e equitativa realização da justiça, apontando no sentido de conferir prevalência e preponderância ao interesse público.

       Como consta do acórdão de 11-12-1997, proferido no processo n.º 868/97 – Nos crimes de denegação de justiça e de prevaricação, o bem jurídico objecto imediato de tutela é a administração da justiça e a defesa dos direitos dos cidadãos e a garantia da pessoa humana.

       Para o acórdão de 20-01-1998, proferido no processo n.º 1326/97 – Nos crimes de denegação da justiça, prevaricação (não promoção) o que se visa proteger é o interesse do Estado quanto a uma verdadeira e equitativa administração da justiça.

        Acórdão de 12-06-1998, proferido no recurso n.º 411, da Comarca de Valença, publicado na CJSTJ 1998, tomo 2, págs. 214/5 – No caso concreto a decisão recorrida limitara-se a indeferir a constituição de assistente da recorrente no processo de inquérito de que a mesma foi denunciante por factos tidos por ilícitos e imputados aos Juízes no exercício das suas funções, estando em causa apenas a questão da constituição da requerente como assistente.

       O acórdão aborda o sentido restrito de ofendido, ou seja, somente aquele que é titular do interesse que constitui objecto jurídico imediato do crime e daí que os titulares de interesses mediata ou indirectamente protegidos não possam ser englobados no conceito de ofendido, mas afirmando que o que poderá haver, nestes casos, é uma diminuição na esfera jurídica de ordem patrimonial ou não patrimonial, constituindo-se, assim, em lesado e com direito a pedido de indemnização cível, situação referida no artigo 74.º, n.º 1, do CPP, ou seja, a pessoa que sofreu danos ocasionados pelo crime, ainda que não possa constituir-se assistente, - e citando Figueiredo Dias, Dir. Proc. Penal, vol. 1, 508/9 - alcançando-se, aqui para efeitos de pedido de indemnização, um conceito lato ou extensivo de ofendido que abrangerá todas as pessoas civilmente lesadas pela infracção.

    Com igual sentido de ofendido do artigo 68.º, n.º 1, do CPP, refere-se o artigo 113.º, n.º 1, do Código Penal, para efeito de fixar a titularidade do direito de queixa.

     “Importa, assim, em cada caso, determinar qual o interesse que a norma infringida quis proteger e, depois, “identificar o titular desse interesse - se for um particular individualmente considerado só ele poderá intervir como assistente no processo, se for o Estado enquanto colectividade não há titular de interesse a quem a lei especialmente quis proteger.

      No caso dos autos, os factos denunciados só podem enquadrar-se no crime de prevaricação do artigo 369.º, n.º 1, do CP, sendo o bem jurídico defendido por esta disposição a realização da justiça.

       Ora, este interesse compete directamente ao Estado, pois a ele está exclusivamente atribuída a competência para administrar a justiça, como se vê da CRP nos arts. 27.º, 110.º e 202.º.

      Conforme vem sendo seguido pela doutrina e pela jurisprudência, é pela sistematização da parte especial do Código Penal que se indicia dos interesses especialmente protegidos.

       “Neste sentido e de que não têm legitimidade para se constituírem assistentes os lesados nos crimes contra a realização da justiça, podem ver-se os Acs. do STJ de 23-11-88, em BMJ n.º 381-544; de 18-09-97, no proc. n.º 527/97, em Sumários, n.º 13 do STJ, e de 16-04-98, no processo n.º 147/98.

      E tanto é assim, que o Projecto de Revisão do Código de Processo Penal, aprovado pelo Governo em Dezembro de 1997, teve necessidade de aditar ao art. 68,º, n.º 1, al. c), os casos de denegação de justiça e de prevaricação, por forma a que qualquer pessoa possa vir a constituir-se assistente”.

     Acórdão de 12-11-1998, proferido no processo n.º 383/98, BMJ n.º 481, pág. 325 – No crime previsto e punido pelo n.º 4 do artigo 369.º do Código Penal não se exige o dolo específico, consistente na intenção de prejudicar ou lesar alguém.

       Em causa a prática em Maio de 1996 de crimes na pessoa de um suspeito de furto e outros quatro indivíduos conduzidos sem mandado para as instalações do Posto da GNR de Sacavém. Aos sete arguidos – AS, sargento da GNR, desempenhando funções de comandante do Posto de Sacavém, cinco soldados da GNR no Posto de Sacavém, e um soldado da Brigada Fiscal da GNR, exercendo funções no Posto de Alverca – foi imputada a prática de vários crimes de prevaricação, favorecimento pessoal por funcionário, ocultação de cadáver e de profanação de cadáver e um deles por coacção grave, sob a forma tentada e ao referido comandante do Posto, um crime de homicídio qualificado, p. e p. pelo artigo 132.º, n.ºs 1 e 2, alínea g), do Código Penal.

     Absolvidos na totalidade quatro arguidos, um deles o soldado da Brigada Fiscal da GNR exercendo funções no Posto de Alverca, sendo condenados os outros três.

     Os referidos quatro indivíduos, sob as ordens do chefe, foram conduzidos ao posto a fim de serem identificados, sabendo os guardas que não existia fundamento para reter os indivíduos em causa nas instalações do posto, após a sua identificação, e que, procedendo como procederam, lhes coarctavam a liberdade pessoal de movimento e de acção. Procederam na ausência de despacho da autoridade judicial competente delegando em qualquer órgão de polícia criminal o encargo de proceder a diligências de investigação, sendo certo que nada fizeram para se certificarem se assim seria, procedendo à margem de um inquérito.

     Os indivíduos depois abandonaram as instalações, na sequência de ordem nesse sentido, sem que tivesse sido elaborado qualquer auto ou expediente relativo à condução ao Posto.

     Pelo comandante do Posto foi disparado um tiro na cabeça de CR suspeito de um furto.

     Decidiu depois separar a cabeça do resto do corpo com uma faca de mato, transportado a cabeça da vítima para as instalações do Posto da GNR de Sacavém.

      Abordando o artigo 369.º do Código Penal, após citar o disposto nos n.ºs 4 e 5 do artigo 369.º, refere o acórdão, a págs. 346, que “Estes dispositivos correspondem aos n.º 1 e 3 do artigo 417.º do Código Penal, na versão de 1982 (com a epígrafe «Prisão ilegal»), que puniam o crime de prisão ilegal e nos quais, como agora, não se exigia dolo específico.

      Por seu turno, os n.ºs 1, 2 e 3 do novo artigo 369.º correspondem aos artigos 415.º e 416.º do Código de 1982, relativos aos crimes de prevaricação e de denegação de justiça, exigindo-se quanto ao primeiro a intenção de prejudicar.

      Aquele artigo 369.º do Código actual concretizou assim diversas disposições que se espalhavam pelo Código Penal de 1982, pretendendo «substituir diversos crimes do Código» (cfr. Actas e Projecto da Comissão de Revisão do Código Penal).

       A todos estes tipos criminais foi dado o nome de «denegação de justiça e prevaricação», que corresponde às epígrafes «Prevaricação», «Denegação de justiça» e «Prisão ilegal» do Código de 1982.

      Ora, no crime previsto e punido pelo n.º 4 do artigo 369.º do Código Penal não se exige o dolo específico consistente na intenção de prejudicar ou beneficiar alguém.

      Como também não se exigia no correspondente preceito do artigo 417.º do Código de 1982.

     Tal dolo específico só se exige no caso previsto no n.º 2 do dito artigo 369.º, que, como vimos, corresponde ao artigo 415.º do CP1982 (então subordinado à epígrafe «Prevaricação»).”. (…)

      Em parte alguma se exige que a ordem ou execução de medida privativa de liberdade da forma ilegal (crime previsto e punido pelo citado n.º 4, pelo qual o recorrente foi condenado) seja feito «com intenção de prejudicar alguém».

     Acórdão de 14-11-2002, processo n.º 2696/02 – 5.ª Secção, versando crimes de «prevaricação», «coacção» e «falso testemunho sob a forma de instigação» (artigo 360.º - 1 e 3 do Código Penal) e «abuso de poder», não admite a intervenção dos particulares como assistentes no crime de falso testemunho, indefere por improcedente, o recurso do cidadão que não o admitiu para intervir como assistente,

      Acórdão de 1-06-2005, proferido no processo n.º 1264/05-5.ª Secção, sumariado em SASTJ, n.º 92, pág. 86 – O crime de denegação de justiça do artigo 369.º, n.º 1, do CP, satisfaz-se com o dolo genérico, desinteressando-se aqui a lei dos fins ou motivos do agente.

      Acórdão de 8-02-2007, proferido no processo n.º 4816/06- 5.ª Secção, in CJSTJ 2007, tomo 1, págs.186/7 – Elemento típico do crime de denegação de justiça e prevaricação é, entre outros, a prática, ou omissão, de acto contra o direito e conscientemente. O acto apontado como constituindo a denegação de justiça consiste nos atrasos de condução de inquéritos, que vieram a justificar incidente de aceleração processual, não tendo também sido cumprido o prazo estabelecido nesse incidente. É obviamente insuficiente tal facto objectivo para caracterizar o elemento típico em referência. Nem todo o acto que infringir as regras processuais pode ser considerado “contra direito” no sentido específico do artigo 369.º, n.º 1, do Código Penal, pois então qualquer nulidade processual seria sancionável como crime! Agir (por acção ou omissão) contra direito implica um desvio consciente (voluntário) dos deveres funcionais, em termos de por em risco a própria administração da justiça, de forma a poder afirmar-se uma “denegação da justiça”.

       No acórdão de 5-09-2007, proferido no processo n.º 2080/07, em que interviemos como adjunto, publicado na CJSTJ 2007, tomo 3, págs. 185/8, em causa estava actuação de Delegado do Procurador da República na Comarca B, que dirigindo-se ao Posto da GNR, procurou obstaculizar o prosseguimento de obras em prédio expropriado. O acórdão aborda questões processuais e atenuou especialmente a pena de dois anos de prisão, suspensa na execução, aplicada na Relação de Coimbra por quatro crimes de prevaricação, reduzindo a pena para oito meses de prisão, suspensa na execução.

      Acórdão de 21-05-2008, proferido no processo n.º 3230/07 - 3.ª Secção, versando atraso processual de juíza, donde se extrai:

      “O bem jurídico objecto imediato de tutela no crime de denegação de justiça é a recta administração da justiça, a defesa dos direitos dos cidadãos e a garantia da pessoa humana, sendo titular imediato de tais interesses o Estado.

       Este ilícito pressupõe uma especial qualidade do agente e a violação de poderes funcionais inerentes ao cargo desempenhado, configurando um crime específico, que mais não é do que um comportamento, activo ou omissivo, de funcionário contra direito. Agir contra direito significa, essencialmente, a contradição da decisão (aqui incluindo, claro está, o comportamento passivo) com o prescrito pelas normas jurídicas pertinentes.

       O n.º 1 do art. 369.º do CP satisfaz-se com o dolo genérico, o qual terá de revestir a modalidade de dolo directo, desinteressando-se aqui a lei dos fins ou motivos do agente. É certo que quando a lei exige o cometimento doloso para a verificação do tipo subjectivo significa que quer abranger desde a sua forma mais intensa até à sua modalidade mais fraca.

      Todavia, através de formulação típica – exigindo uma particular forma de conhecimento ou de vontade do agente –, o legislador pode restringir a sua esfera de aplicação. Esse desiderato é conseguido com a introdução de expressões como conscientemente ou intencionalmente, pelas quais se cinge o agir doloso apenas ao dolo directo.

      Assim, o crime de denegação de justiça demanda para o seu preenchimento um desvio voluntário e intencional dos deveres funcionais, de forma a poder afirmar-se uma “negação da justiça”.

      Mas o puro atraso processual, desgarrado de outros elementos, podendo acarretar responsabilidade disciplinar, não reveste dignidade penal, sendo insuficiente, só por si, para tipificar o crime de denegação de justiça.

       Nem todo o acto desconforme às regras processuais pode ser visto como contra direito, na acepção pretendida pelo n.º 1 do art. 369.º do CP, pois então qualquer nulidade processual seria tipificada como crime.

       E, contrariamente ao que parece inculcar o recorrente, não é a mera divergência do decidido que pode fundamentar a imputação de que quem decidiu o fez conscientemente – dolo genérico – contra legem, e muito menos com o propósito – dolo específico – de lesar alguém, ou seja, com animus nocendi. Eventuais discordâncias com o conteúdo das decisões ou com o seu esmero técnico encontram no recurso a sua sede própria.

      Acórdão de 8-10-2008, proferido no processo n.º 31/07- 3.ª Secção, pelo mesmo Relator do anterior, donde se extrai:

      “O crime de denegação de justiça e prevaricação, p. e p. pelo art. 369.º, n.º 1, do Código Penal, encontra-se sistematicamente integrado no âmbito dos crimes contra o Estado, mais especificamente no capítulo dos crimes contra a realização da justiça, o que aponta para que o bem jurídico tutelado pela norma se situa na equitativa administração da justiça.

     Pretende-se assegurar o domínio ou a supremacia do direito objectivo na sua aplicação pelos órgãos de administração da justiça, maxime os judiciais, o que permite assinalar que se pressupõe uma específica qualidade do agente, a de funcionário, ficando caracterizado como um crime específico.

      O preenchimento do tipo objectivo convoca uma actuação ou omissão de funcionário contra direito, lesando deveres funcionais ínsitos ao cargo desempenhado; relativamente ao tipo subjectivo, o mesmo satisfaz-se com o dolo genérico, desinteressando-se a lei dos fins ou motivos do agente.

   Não obstante, ao utilizar-se a fórmula “conscientemente e contra direito”, a lei pretendeu excluir da imputação subjectiva a modalidade menos intensa, a do dolo eventual (n.º 3 do art. 14.º do CP), pelo que o dolo, enquanto vontade de realizar o tipo com conhecimento da ilicitude (consciência), há-de apreender-se através de factos (acções ou omissões) materiais e exteriores, suficientemente reveladores daquela vontade, de onde se possa extrair uma opção consciente de agir desconforme à norma jurídica.

     Não são as meras impressões, juízos de valor conclusivos ou convicções íntimas, não corporizados em factos visíveis ou reais, que podem alicerçar a acusação de que quem decidiu o fez conscientemente – dolo genérico – contra direito, e muito menos com o propósito – dolo específico – de lesar alguém.

      Por outro lado, também não é a prática de um qualquer acto que infringe regras processuais que se pode, sem mais, reconduzir a um comportamento contra direito, com o alcance definido no n.º 1 deste dispositivo; é preciso que esse desvio voluntário dos poderes funcionais afronte a administração da justiça, de forma tal que se afirme uma negação de justiça.

       Também não será a adopção de uma orientação jurisprudencial não maioritária, ou a circunstância de a decisão poder vir a ser revogada por Tribunal Superior, que legitimam a conclusão de que a decisão é, para aquele efeito, proferida contra direito.

     Uma resolução é lavrada contra direito quando contradiz o ordenamento jurídico, ou porque comporta uma interpretação interessada das normas vigentes, ou porque se fundamenta numa disposição ilegal ou inconstitucional; em suma, deve traduzir um ataque à legalidade.

      Num Estado de Direito democrático, a divergência no plano jurídico – seja ela quanto ao iter processual ou no tocante ao direito substantivo –, na solução do caso, colhe acolhimento pela via do recurso e não pela via gravosa da imputação deste crime.

      Quando o que se apura, sem margem para dúvidas, é apenas uma clara diferença de entendimento dos fundamentos da decisão, por parte do recorrente, já que almejava outra decisão, o tribunal não omitiu o dever de julgar, decidiu foi de forma que não era a por aquele pretendida: há uma decisão judicial que expressa uma solução de direito, com indicação das razões pelas quais se assumiu essa posição – discutível, repete-se, por via recursiva –, permitida pelo complexo jurídico-normativo em vigor, não se mostrando, como tal, proferida “contra direito”, com a acepção e o alcance ínsitos ao art. 369.º, n.º 1, do CP.

       Se as hipotéticas conjecturas do recorrente, a leitura e subsequente interpretação que fez desse despacho não encontram arrimo no material probatório objectivo constante dos autos que sustentem a conclusão de que a arguida, na qualidade de magistrada judicial, desrespeitou o encargo que lhe foi confiado – contribuir para a recta administração da justiça – não está preenchida a tipicidade objectiva”.

      Acórdão de 20-06-2012, proferido no processo n.º 36/10.3TREVR.S1- 3.ª Secção, versando actuação de Ministério Público e Juíza em processo de falência, de que se retira:   

  I - No descortinar da actuação prevaricadora do juiz ou de denegação de justiça deve-se usar de um crivo exigente, até porque, a ser diferente, ou seja, de todas as vezes que o destinatário da decisão dela discorde, seja porque não se aplicou a lei, se seguiu interpretação errónea na sua aplicação, se praticou um acto ou deixou de praticar, os Magistrados Judiciais ou do MP incorressem num crime de prevaricação, estava descoberto o processo expedito de paralisar o desempenho do poder judicial, a bel prazer do interessado, pelos factores inibitórios que criaria aos magistrados, a todo o momento temerosos de sobre eles incidir a espada da lei, paralisando-se a administração da justiça, com gravíssimas, intoleráveis e perigosas consequências individuais e comunitárias, não se dispensando, por isso mesmo, a presença de um grave desvio funcional por parte do Magistrado pondo em causa a imagem da justiça e os interesses de terceiro. 

  II - A actuação contra direito é uma forma de acção gravosa e ostensiva contra as normas de ordem jurídica positiva, independentemente das fontes (estadual ou não estadual) e da natureza pública ou privada, substantiva ou processual, incluindo os princípios vertidos em normas positivas designadamente na DUDH, PIDCP e CEUD. 

  III - A actuação contra o direito não abrange apenas a interpretação objectivamente errada, mas também a incorrecta apreciação e subsunção dos factos à norma; a aplicação da norma é contra o direito se, reconhecendo-se uma certa discricionariedade, o aplicador se desvia do fim para que foi criada a discricionariedade, incorrendo, então, na prática do crime. 

   IV - O crime de denegação e prevaricação é doloso, o tipo subjectivo de ilícito fica preenchido com a actuação com dolo (art. 14.º do CP), como resulta do uso “conscientemente” no descritivo típico; o tipo agravado do n.º 2 não prescinde de uma especial intenção criminosa, de prejudicar ou beneficiar alguém, na forma de dolo específico. 

    V - No caso em apreço, no processo de falência Y existia dinheiro depositado mais que suficiente para logo se dar pagamento aos credores reconhecidos, restituindo-se o sobrante ao recorrente, calculado aproximadamente, reservada uma parcela para remuneração ao administrador, mas quanto à reabilitação do falido impunha-se o trânsito em julgado da sentença, para cancelamento definitivo do registo da falência. 

   VI - As arguidas estavam convencidas de que o seu procedimento de se alcançar o trânsito e a liquidação era o legal e, por isso, se aguardou pelo trânsito e liquidação, discordando o recorrente da marcha imprimida ao processo, mas isso não é bastante para se concluir que tenham violado, com essa também razoável opção procedimental, quaisquer deveres funcionais, sobretudo para se concluir que, maliciosamente, o privaram do dinheiro a que tinha direito e receberia depois. 

   VII - A entrega prévia era possível; a homologação e a liquidação, findo o processo, o caminho mais chegado à ritologia da lei; este o duplo cenário viável, mas sem que se possa concluir pela actuação das arguidas com dolo genérico ou específico, em ostensivo, chocante e altamente reprovável violação dos deveres funcionais que sobre si impendiam. 

  Acórdão de 12-07-2012, proferido no processo n.º 4/11.8TRLSB.S1, da 3.ª Secção, publicado na CJSTJ 2012, tomo 2, págs. 236/8, versando intervenção de juiz em processo de inventário, donde consta:

   “O crime de denegação de justiça e prevaricação, p. e p. pelo art. 369.º, n.º 1, do CP, encontra-se sistematicamente inserido no âmbito dos crimes contra o Estado, mais especificamente no capítulo dos crimes contra a realização da justiça. O bem jurídico tutelado é a realização da justiça em geral, visando a lei assegurar o domínio ou a supremacia do direito objectivo na sua aplicação pelos órgãos de administração da justiça, maxime judiciais.

   Tem por elementos constitutivos a ocorrência de comportamento contra o direito, no âmbito de inquérito processual, processo jurisdicional, por contra-ordenação ou disciplinar, por parte de funcionário, conscientemente assumido, havendo lugar à agravação no caso de o agente agir com intenção de prejudicar ou beneficiar alguém. 

     Face à exigência típica decorrente da expressão “conscientemente”, só o dolo directo e o necessário são relevantes, como é jurisprudência uniforme deste Supremo Tribunal. (acórdãos de 8-02-2007, 21-05-2008 e 8-10-2008, proferidos nos processos n.ºs 4816/06, 3230/07 e 31/07).

     Em sentido coincidente se vem pronunciando a doutrina nacional (LH - SS, CPAnotado, 2.ª ed., 1163, Medina Seiça, Comentário Conimbricense do Código Penal, III, 1 ed., 619 e Paulo Albuquerque, Comentário do Código Penal, 2.ª ed., pág. 962, que só admite o dolo directo).

      Citando acórdão do STJ de 8 de Outubro de 2008: O dolo, enquanto vontade de realizar o tipo com conhecimento da ilicitude (consciência), há-de apreender-se através de factos (acções ou omissões) materiais e exteriores, suficientemente reveladores daquela vontade, de onde se possa extrair uma opção consciente de agir desconforme à norma jurídica.

      Não são meras impressões, juízos de valor conclusivos ou convicções íntimas, não corporizados em factos visíveis ou reais, que podem alicerçar a acusação de que quem decidiu o fez conscientemente contra o direito e, muito menos, com o propósito específico de lesar alguém. 

       Por outro lado, como igualmente se refere naquele acórdão, não é a prática de qualquer acto que infringe regras processuais que se pode, sem mais, reconduzir a um comportamento contra o direito, com o alcance definido no n.º 1 do artigo 369.º do Código Penal; é preciso que esse desvio voluntário dos poderes funcionais afronte a administração da justiça, de forma tal que se afirme uma negação de justiça.

       Não basta, pois, que se tenha decidido mal, incorrectamente, contra legem, sendo necessário que quem assim decidiu tenha consciência de que, desviando-se dos seus deveres funcionais, violou o ordenamento jurídico pondo em causa a administração da justiça”. 

      Acórdão de 12-09-2012, processo n.º 28/11.5TRLSB.S1 - 3.ª Secção, onde consta: 

   I - Como o STJ vem defendendo, de forma uniforme, o requerimento de abertura de instrução, quando apresentado pelo assistente na sequência de um despacho de arquivamento pelo MP, deve conter, para além do mais, a narração, ainda que sintética dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança e a indicação das disposições legais aplicáveis, ex vi do n.º 2 do art. 287.º e als. b) e c) do n.º 2 do art. 283.º, ambos do CPP, sob pena de rejeição por inadmissibilidade legal da instrução. 

     II - Analisado o requerimento do assistente verifica-se, ao contrário do decidido no despacho recorrido, que a recorrente nele verteu factos susceptíveis de fundamentarem a aplicação ao arguido de uma pena. Concretamente, no requerimento em questão, a recorrente procedeu à descrição de factos que, a provarem-se, são susceptíveis de integrar a prática pelo magistrado denunciado, em autoria material, do crime de denegação de justiça e prevaricação do n.º 1 do art. 369.º do CP. 

   III - Efectivamente, dos factos constantes do requerimento apresentado pela assistente para abertura da instrução, resulta que o magistrado denunciado, no âmbito de inquérito criminal de que era titular e cujo arquivamento determinou, faltou intencionalmente aos seus deveres funcionais, não levando a cabo qualquer acto de prova, estando ciente da necessidade da produção de diligências investigatórias para indiciação do crime objecto do inquérito e dos respectivos autores. Deste modo, carece de fundamento a decisão impugnada [que rejeitou, por inadmissibilidade legal, a instrução sob o entendimento de que o requerimento apresentado não descrevia, ainda que de forma sintética, os factos concretos que poderiam fundamentar a aplicação ao arguido de uma pena e as circunstâncias de modo, lugar e tempo da sua prática]. 

   Acórdão de 29-05-2013, proferido no processo n.º 28/11.5TRLSB.S2 - 5.ª Secção, donde se extrai:

     I - A questão que constitui o objecto do recurso está em saber se os indícios recolhidos na fase de instrução seriam adequados a sustentar a pronúncia do arguido pelo imputado [no requerimento para abertura da instrução] crime de denegação de justiça do n.º 1 do art. 369.º do Código Penal.

     II - Na tese da assistente, a actuação do arguido, porque violadora dos seus deveres funcionais – enquanto magistrado do MP, incumbindo-lhe a direcção do inquérito (art. 262.º do CPP) –, conformaria a conduta típica de agir contra direito no âmbito de um inquérito criminal. Contudo, ainda que se pudesse admitir que o arguido não praticou os actos e assegurou os meios de prova necessários à realização da finalidade do inquérito (art. 262.º do CPP) ou, dito de outro modo, ainda que se aceitasse que o arguido, com as concretas omissões e opções, alvo de um juízo negativo de apreciação no despacho recorrido, não serviu adequadamente a finalidade do inquérito, sempre essa actuação objectiva não seria suficiente para se considerar indiciada a prática pelo arguido do crime de denegação de justiça.

   III - Desde logo, no plano do preenchimento do tipo objectivo do art. 369.º, n.º 1, do CP, deve atender-se a que a fiscalização da correcção e empenho no cumprimento dos deveres funcionais escapa, em geral, ao direito penal, designadamente, à incriminação deste preceito, acrescendo que essa descrita actuação objectiva não fornece base adequada a que dela se infira o dolo directo.

   IV - O crime de prevaricação, na forma descrita no n.º 1 do art. 369.º tem natureza dolosa; todavia, a vertente subjectiva do tipo exige que o agente actue conscientemente. Ora, esta exigência de que o funcionário actue conscientemente que caracteriza a vertente subjectiva implica que o tipo subjectivo só admita o dolo directo. 

    V - Por isso, ainda que se considerasse que a forma como o arguido conduziu o inquérito é passível de reparos, por as suas opções não se revelarem as mais adequadas à realização, no mais curto prazo, da finalidade do inquérito, daí não se poderia, sem mais, inferir uma actuação consciente contra direito.

   VI - A actuação objectiva do arguido no inquérito não é, por conseguinte, suficiente para a pronúncia do arguido pelo crime de denegação de justiça, do n.º 1 do art. 369.º do CP.

 

   Acórdão de 28-05-2014, proferido no processo n.º 13/13.2YGLSB.S1 - 5.ª Secção:

   I - A decisão recorrida rejeitou o requerimento de abertura de instrução, com fundamento em inadmissibilidade legal da instrução, nos termos do art. 287.º, n.º 3, do CPP. Nesse sentido, argumentou-se: o requerimento de abertura de instrução não descreve os factos que poderiam integrar os crimes de denegação de justiça e prevaricação imputados pelo queixoso aos denunciados. Se, de acordo com o art. 309.º, n.º 1, do CPP, a decisão instrutória é nula na parte em que pronunciar o arguido por factos que constituam uma alteração substancial dos descritos no requerimento para abertura da instrução, a instrução nunca poderia levar a uma decisão de pronúncia, pelo que redundaria num acto inútil.

   II - No requerimento de abertura de instrução, o assistente referiu o crime de denegação de justiça e prevaricação, sem concretizar qual ou quais das disposições do art. 369.º do CP tem em vista. E também não indicou quais as condutas materiais dos denunciados que podem ser subsumidas na previsão de qualquer dessas disposições. Percebe-se que têm a ver com o sentido de três decisões judiciais, uma singular, subscrita pelo primeiro denunciado, e duas colegiais, subscritas por todos, mas acerca daquilo em que se terão traduzido nada se diz de concreto. Pretenderá o recorrente que essas decisões foram proferidas contra direito, e assim convocar, pelo menos, a norma do n.º 1 do art. 369.º. Mas não o diz. E por isso também nada diz acerca da postura mental dos denunciados sobre o sentido das decisões que o recorrente pretenderá terem sido proferidas contra direito: Concretamente, não diz se o foram por errada interpretação das normas jurídicas aplicáveis, eventualmente com negligência, ou com dolo, sabendo-se que só por esta via se preenche o tipo subjectivo.

   III - De facto, o assistente não pretende que a decisão do MP devia ter sido de acusação em vez de arquivamento. O que diz é que o inquérito foi encerrado prematuramente, ou seja, numa altura em que não havia ainda elementos para decidir no sentido da acusação ou do arquivamento, por falta de realização de diligências, que deviam ter tido lugar, diligências que, tendo sido omitidas no inquérito, devem agora ser efectuadas na instrução. Mas não é essa a finalidade da instrução (art. 268.º, n.º 1, do CPP).

    IV - O assistente ou entende que, perante os elementos de prova recolhidos no inquérito, a decisão do MP deve ser de acusação e não de arquivamento ou considera que as diligências realizadas não são suficientes. Só no primeiro caso pode requerer a abertura de instrução. Colocando-se na última posição, como no caso, o assistente só tem um caminho a seguir: o previsto no art. 278.º, n.ºs 1 e 2, requerendo ao superior hierárquico do titular do inquérito que determine o prosseguimento das investigações.

   V - Assim, com a finalidade com que foi requerida, a instrução não é legalmente admissível.

  Acórdão de 17-09-2014, proferido no processo n.º 89/13.2TRPRT.S1-3.ª Secção:

   I - O crime de denegação de justiça e de prevaricação do art. 369.º do CP cobre uma multiplicidade de condutas, que se podem reconduzir a um étimo comum que consiste na actuação contra direito.

   II - Consequentemente, este crime enquadra-se no amplo sector dos crimes de funcionários, em que o factor de união reside na violação dos deveres funcionais decorrentes do cargo desempenhado, pelo que se configura como um típico crime específico (próprio).

   III - O agir contra direito abrange, em primeiro lugar, o conjunto de normas vigentes na ordem jurídica positiva, independentemente da sua origem ou modo de revelação, tenham cunho material ou processual, natureza pública ou privada, de criação estadual ou não, como também princípios jurídicos não directa ou expressamente consignados em normas positivadas, mas que delas decorrem e gozam de força cogente, como o princípio in dubio pro reo ou a proibição do venire contra factum proprium

   IV - Agir contra direito significa a contradição da decisão com o prescrito pelas normas jurídicas pertinentes, mas tal contradição só por si nada mais significa do que a existência dum erro de direito, a justificar a alteração do decidido.

   V - A nota delimitadora deste crime é a consciência de tal contradição de agir contra o direito, ou seja, é o assumir da violação dos deveres profissionais em função de outras razões.

   VI - Se a aplicação de uma norma não se circunscreve à pura subsunção de uma fattispecie unívoca, mas se espalha por diversas vias juridicamente admissíveis de acordo com os cânones da metodologia jurídica, muitas vezes sancionadas pela doutrina e pelas mais altas instâncias judiciais, a escolha de uma delas pelo concreto aplicador conforma, em princípio, uma solução de acordo com o direito.

 

   Acórdão de 29-01-2015, proferido no processo n.º 8/14.9YGLSB.S1 - 5.ª Secção, de que se extrai:

    I - A «reclamação para a conferência» a que alude o art. 417.º, n.º 8, CPP, é apenas um pedido para que o objecto do recurso rejeitado mediante decisão sumária seja reapreciado pela conferência. Não se trata de uma nova fase recursória incidindo sobre a decisão singular pelo que o âmbito do recurso se mantém circunscrito às conclusões formuladas na motivação. São os argumentos ali utilizados e resumidos nas conclusões que fundamentalmente devem ser tema de análise pela conferência sem embargo de o conteúdo da reclamação poder apontar ou sugerir outras vias de abordagem do problema em debate.

    II - No essencial, o conteúdo da motivação do recorrente centra-se na questão da afirmada nulidade absoluta da decisão da OA que o suspendeu do exercício da profissão de Advogado por causa da incompatibilidade dessa actividade com outra que o recorrente exercia, considerando que o princípio da suficiência da acção penal permite que a matéria seja tratada no âmbito do processo penal e que seja declarada a nulidade dessa dita decisão.

    III - Aquele princípio está consagrado no art. 7.º, n.º 1, do CPP, e por força do mesmo devem ser decididas no processo penal todas as questões essenciais para conhecer da existência de um crime sejam elas de natureza penal, civil, laboral, fiscal ou administrativa, mas o limite é precisamente esse, que tais questões sejam de prejudicialidade substantiva, inerente aos elementos substanciais do crime, o que não se verifica no caso em apreço.

    IV - E, de acordo com o art. 338.º, n.º 1, do CPP, o tribunal conhece e decide das nulidades e de quaisquer outras questões prévias ou incidentais susceptíveis de obstar à apreciação do mérito da causa, nela se devendo então incluir a que é a razão de ser do recurso. O assim se impõe é que em certos momentos concretos de desenvolvimento do processo se faça o seu saneamento, isto é, que se simplifique a marcha processual: resolvendo as questões que possam afectar a sua evolução por motivos de forma como a existência de irregularidades que por serem insanáveis ou não hajam sido sanadas invalidem o processo; ou resolvendo as questões de fundo respeitantes à procedência ou improcedência do litígio; ou ainda procedendo à correcção de quaisquer deficiências processuais a fim de evitar que apuradas ou corrigidas só mais tarde se ocasionasse maior devastação processual ou demora no andamento do processo. Mas para isso é preciso, naturalmente, que as questões possam ser resolvidas intraprocessualmente e para tal há limites. 

   V - A questão que o recorrente propõe que se resolva no âmbito do processo penal não é, em rigor, condicionante da verificação de um pressuposto processual em sentido estrito porque se o fosse, então sim seria de ponderar o seu conhecimento. 

   VI - A proposta do recorrente é que no âmbito do processo penal se resolva uma questão de natureza administrativa tão só condicionante da verificação de um requisito ou pressuposto de validade de certos actos do processo mas que é de todo estranha à estrutura deste enquanto meio de obter uma decisão reintegradora do direito, uma decisão de mérito.

   VII - No momento previsto nos arts. 311.º e 338.º do CPP a única atitude que caberia ao juiz tomar seria a de declarar a inexistência de um determinado requisito, pois não está em causa uma questão essencial para a validade do processo no sentido que já se procurou evidenciar. Esse requisito é o previsto no art. 70.º, n.º 1, do CPP: o assistente, estatuto que o queixoso se propõe adquirir no âmbito do processo, é sempre representado por advogado, ou seja, é exigida a representação técnica. Independentemente da questão de saber se a representação pode ser em nome próprio ou não, o requisito é que a intervenção processual do assistente seja assegurada por um advogado. 

  VIII - Uma coisa é a legitimidade do recorrente para se constituir assistente; esse é um pressuposto estrutural, digamos, do procedimento. Outra diferente é a de saber, perante a exigência legal de representação técnica do assistente se a pessoa que se apresenta a assegurar essa representação (no caso pretendendo-se que seja em causa própria) está ou não em condições legais de o fazer, se é ou não advogado.

  IX - Ora, advogado só é, de acordo com o art. 65.º, n.º 1, do EOA, um licenciado em Direito com a inscrição em vigor na OA. Só quem estiver nessas condições pode, praticar em todo o território nacional actos próprios da advocacia. Acontece que o recorrente tem a sua inscrição suspensa por determinação da OA desde 1993 e, portanto, não pode considerar-se advogado para o efeito que aqui pretende obter.

   X - A jurisdição comum só tem competência para apreciar a nulidade do acto administrativo quando este se apresente como questão prejudicial interferente com o direito sobre o qual incide o litígio, que seja atinente com a matéria de direito material em discussão, quando o acto surja como pressuposto ou fundamento da questão a decidir no processo.

  XI - As questões a decidir no processo de onde este recurso é oriundo, mesmo aceitando a competência dos tribunais comuns para a apreciar, são as de saber, se outras não surgirem, em primeiro lugar, se o recorrente tem legitimidade para intervir na acção penal e, depois, se determinados juízes praticaram ou não crimes de denegação de justiça e prevaricação e se o recorrente tem legitimidade para promover a acção penal e, no seu âmbito, se tem interesse em agir. A de saber se o recorrente se encontra nas condições legais de assegurar a representação técnica, isto é, se é advogado, não é interferente com aquelas.

   XII - Acresce que a OA é uma associação pública profissional sujeita a um regime de direito público no desempenho das suas atribuições, não cabendo na competência do STJ apreciar a hipotética nulidade da decisão da OA que suspendeu a inscrição do recorrente.

 

   Acórdão de 19-03-2015, proferido no processo n.º 7/14.0YGLSB.S1 - 5.ª Secção

   I - Em abstracto, pode levantar-se num determinado processo a questão prejudicial da intervenção do TJUE a respeito de qualquer assunto de natureza jurídica que esteja em discussão no âmbito desse mesmo processo, que nele seja matéria controvertida.

   II - O TJUE é competente para decidir a título prejudicial sobre a validade e a interpretação dos actos adoptados pelas instituições, órgãos ou organismos da UE (art. 267.º, al. b), do Tratado sobre o funcionamento da UE) sempre que uma questão desta natureza seja suscitada em processo pendente perante um órgão jurisdicional de um dos Estados-membros.

   III - O reenvio pré-judicial não pode surgir apenas por que nisso manifesta vontade o reclamante. Haveria de ter uma utilidade processual concreta qual fosse a de se inserir num conjunto de diligências destinadas a avaliar se havia indícios da prática do crime de denegação de justiça e prevaricação que o queixoso imputou aos denunciados.

   IV - O despacho que não admitiu a instrução é explícito a este respeito: o requerimento não preenche os requisitos essenciais a respeito da matéria de facto para ser apreciado. E, além disso, sempre a imputação do crime seria de afastar dada a ausência dos elementos objectivos e subjectivo, perante a evidência de que é assunto controverso na doutrina e na jurisprudência a questão de precisar se pode ou não certo arguido defender-se a si próprio.


   Acórdão de 09-07-2015, proferido no processo n.º 106/12.3TREVR.S1 - 5.ª Secção

   I - No tribunal da Relação, a procuradora-adjunta X, mediante pronúncia, foi submetida a julgamento, pela prática de um crime de denegação de justiça e prevaricação, p. e p. pelo art. 369.º, n.º 1, do CP e outro de falsificação de documento, p. e p. pelo art. 256.º, n.ºs 1, al. d), 3 e 4, do Código Penal, tendo, no final, sido proferida decisão de absolvição relativamente a ambos os ilícitos.

   II - O recorrente impugna a decisão proferida sobre matéria de facto, considerando que não foram valoradas, devendo tê-lo sido, as declarações prestadas pela arguida na fase de inquérito e lidas em audiência de julgamento, e que, essas declarações, conjugadas com as regras de experiência comum, com o depoimento da testemunha Y e com a sequência cronológica dos factos, são suficientes para criar a convicção de que os factos que foram dados como não provados se verificaram.

    III - O tribunal recorrido não negou que as declarações prestadas pela arguida na fase de inquérito e lidas em audiência de julgamento pudessem ser valoradas, tendo, ao invés, afirmado que tais declarações só por si e nada mais havendo, não eram suficientes para considerar provados os referidos factos, porque faltou, por um lado, a imediação e a oralidade e, por outro, o contraditório, na medida em que a arguida não prestou declarações na audiência de julgamento sobre os factos imputados.

   IV - Não há que falar em falta de contraditório pelo facto de a arguida na audiência se ter remetido ao silêncio, pois quanto a isso o que importa é que aí tenha tido oportunidade de se pronunciar sobre o conteúdo dessas declarações, podendo esclarecê-las ou corrigi-las, como está subjacente nos arts. 141.º, n.º 4, al. b), 355.º, n.ºs 1 e 2 e 357.º, n.º 1, al. b), do CPP, ao preverem que o exercício do direito ao silêncio na audiência de julgamento por parte do arguido não obsta a que aí sejam valoradas as declarações prestadas anteriormente, desde que estejam verificadas as condições exigidas pela última dessas normas, como no caso estão.

    V - No caso em apreço, as declarações prestadas pela arguida na fase de inquérito e lidas em audiência de julgamento só por si, nada mais existindo, não permite as ilações propostas na motivação de recurso, mormente que o cabo Z, na conversa telefónica que teve com a arguida, a informou de que V fora detido. O que importava conhecer era o conteúdo dessa conversa, porém, ninguém assistiu a ela, não foi gravada e os seus intervenientes na audiência de julgamento, licitamente, usaram do direito ao silêncio, pelo que improcede o alegado pelo recorrente.

   VI - Não se detecta nos factos provados qualquer acção ou omissão da arguida contrária às normas jurídicas aplicáveis, pelo que não pode considerar-se integrado o tipo objectivo do crime do n.º 1 do art. 369.º do CPP, nem o do n.ºs 4 e 5 do art. 369.º do CPP, improcedendo o recurso.


   Acórdão de 14-04-2016, proferido no processo n.º 17/14.8YUSTR.L1-A.S1 – 5.ª Secção 

   I - Se o arguido não arguiu a nulidade do acórdão proferido neste STJ - em sede de incidente de recusa de uma senhora Juíza Desembargadora - por omissão de pronúncia, quanto a considerações tecidas pelo arguido requerente, que este considera configurarem a denúncia de um crime de denegação de justiça, tal significa que o dito acórdão transitou em julgado.

   II - Porque o poder jurisdicional dos três subscritores do acórdão (incluindo o relator) se esgotou (art. 613.º, n.º 1, do CPC ex vi do art. 4.º, do CPP), não há que tomar posição, neste incidente de recusa, sobre a pretendida “promoção da abertura de processo-crime”.

    III - A titularidade do processo na fase de inquérito é do MP (art. 263.º, n.º 1, do CPP). Este pode tomar conhecimento da notícia do crime mediante denúncia (art. 241.º, do CPP), pelo que, o arguido, que se sente vítima de um crime de denegação de justiça, em nada ficará prejudicado nos seus direitos, com a presente decisão, porque sempre poderá e deverá apresentar denúncia-crime directamente ao MP.


   Acórdão de 25-05-2016, proferido no processo n.º 22/14.4YGLSB.S2 - 5.ª Secção

    I - Constituem nulidade por omissão de pronúncia, nos termos do art. 379.º, n.º 1, al. c), do CPP, todos aqueles casos em que o decisor não se tenha pronunciado sobre questões que deva apreciar; porém, houve uma pronúncia quanto ao alegado em sede do requerimento de abertura de instrução, pelo que não existe omissão de pronúncia.

  II - Se a assistente tivesse razão, isto é, se existisse uma nulidade do inquérito, o que teria como consequência uma nulidade do próprio arquivamento, a abertura de instrução deveria logo ser rejeitada por inadmissibilidade legal, dado que se integra nestes casos quer os casos de nulidade da acusação, quer os de arquivamento.

    III - Só após a constituição de arguido é que este pode usufruir dos direitos consagrados no art. 61.º, do CPP, nomeadamente, o seu direito a defesa. Assim sendo, apenas pode invocar a nulidade, decorrente da não constituição como arguido do suspeito, o arguido, pelo que que a assistente não tinha legitimidade para a arguir.

   IV - Sabendo que a norma violada visa proteger o arguido e não o assistente, também não se vislumbra que a assistente tenha, nesta parte, qualquer interesse em agir na interposição de recurso que apresentou.

   V - Foi entendido no despacho que rejeitou a abertura da instrução que, a partir dos factos apresentados pela assistente, não havia tipicidade da conduta, caso em que o procedimento não pode prosseguir por falta de pressupostos do objeto. Ou seja, concluiu-se que faltavam as condições de procedibilidade penal, dado que a descrição dos factos realizados permitiu, por si só, concluir que não integravam a prática de qualquer crime. Ora, faltando elementos necessários a integração, nomeadamente, do tipo de ilícito objetivo dos invocados, necessariamente aquele requerimento terá que ser rejeitado, pelo que também aqui improcede o recurso interposto.

       

   Acórdão de 13-10-2016, proferido no processo n.º 11/15.1YGLSB.S1 - 5.ª Secção

   I - Para que se pudesse imputar ao Exmo.º Sr. Desembargador denunciado o crime de denegação de justiça, p. e p. no art. 369.º, do CP, sempre importaria enunciar factos concretos reveladores de que a decisão de recusar a suspeição era inaceitável, o que não sucede no caso. De acordo com a al. b) do n.º 1 do art. 287.º do CPP o assistente que requer a instrução tem de enunciar de modo claro os factos, em concreto, imputados ao denunciado, pelos quais o MP não deduziu acusação quando o devia ter feito.

  II - Uma vez que, no caso, o assistente não enunciou tais factos, também não há lugar ao convite ao aperfeiçoamento do requerimento da abertura da instrução, porque faltando a narração dos factos no requerimento do assistente, falece a delimitação do âmbito temático da própria instrução, tal como refere o AFJ 7/2005, de 12-05-2007, entendimento que foi sufragado pelo TC em várias decisões que tem proferido.

   III - De acordo com o art. 287.º, n.º 3, do CPP, o requerimento de abertura de instrução só pode ser rejeitado por extemporaneidade, incompetência do juiz ou inadmissibilidade legal da instrução. A doutrina e a jurisprudência têm vindo a dotar o conceito de inadmissibilidade legal de instrução de uma maior flexibilidade, no sentido de que equivalem aos casos de inadmissibilidade legal, assentes em razões de ordem formal, aqueles em que são razões materiais, ou de mérito, a ditar a dita inadmissibilidade, incluindo os casos em que a abertura de instrução se revele, com segurança, um acto inútil, acto que está vedado por força dos arts. 137.º do CPC e 4.º do CPP.


   Acórdão de 05-04-2017, proferido no processo n.º 16/16.5TRLSB.S1 – 3.ª Secção 

  I - É de rejeitar o requerimento de abertura de instrução apresentado pelo assistente sempre que o mesmo não contenha uma narração dos factos que permitam concluir que há indícios suficientes de estarem preenchidos os elementos objectivos e subjectivos de um certo tipo de crime, que não contenha quaisquer factos ou que contenha factos que não sejam integradores de qualquer tipo legal de crime, por inadmissibilidade legal da instrução, nos termos do disposto no art. 287.º, n.º 3 do CPP. 

  II - A prática de qualquer acto que infringe regras processuais não pode, sem mais, reconduzir a um comportamento contra o direito, com o alcance definido no n.º 1 do art. 369.º do CP, sendo, antes, de exigir que esse acto se traduza num desvio voluntário dos poderes funcionais que afronte a administração da justiça, de forma tal que se afirme uma negação de justiça. 

   III - Os meros erros de função, por si só, não relevam para efeitos do crime de abuso de poder previsto no art. 382° do CP., sendo necessário que os mesmos sejam não só cometidos através do abuso de poderes ou da violação de deveres inerentes às funções exercidas pelo agente como adequados a obter para o agente ou para terceiro, beneficio ilegítimo ou causar prejuízo a outra pessoa. 

 IV - Se o requerimento de abertura de instrução apresentado pela assistente, é omisso quanto à descrição de factos (acções ou omissões) materiais e exteriores, suficientemente reveladores destas realidades bem como de uma atitude interna do denunciado que possa traduzir a sua intenção específica de agir, deliberada e conscientemente, contra direito, quer de obter beneficio próprio ou para terceiro ou de causar prejuízo, assentando toda a sua argumentação, em conjeturas, meramente subjectivas e situadas apenas no nível dos processos de intenção, que, não podem valer como fundamento dos crimes imputados ao denunciado, que tem de ser factual, objectivo e de modo a impor-se como id quod para integrar os elementos objectivos e subjectivos dos crimes de denegação de justiça e prevaricação e de abuso de poder nos termos ditos no ponto, forçoso é considerar que bem andou o tribunal recorrido ao considerar que o requerimento de abertura de instrução formulado pela assistente, não cumpria as exigências de conteúdo impostas pelo art. 287.º, n.º 2 do CPP e ao rejeitar o mesmo por inadmissibilidade legal da instrução, nos termos do disposto no n.º 3 deste mesmo artigo. 


   Acórdão de 07-02-2018, proferido no processo n.º 29/16.7TRLSB - 3.ª Secção 

  I - O requerimento de abertura de instrução apresentado pelo assistente, além de não destacar os concretos factos imputados à arguida, vale dizer como acusação, igualmente não descreve todos os factos susceptíveis de preencher os elementos típicos dos crimes que pretende assacar à arguida (denegação de justiça), não concretizando os concretos factos integradores da violação de algum dever que impenderia sobre a arguida. 

  II - O requerimento de abertura de instrução impulsado pelo assistente não cumpre assim os requisitos exigíveis por lei – arts. 287.º, ex vi do art. 283.º, do CPP – para servir como elemento ou vector de partida para abertura de uma fase processual em que o tribunal tem como dever comprovar a existência, ou não, de indícios que o alentem a imputar a alguém uma conduta desvalorativa e antijurídica. 

  III - Desta desconformidade intrínseca e substancial decorre não poder o tribunal deixar de declarar a nulidade do acto inquinado e declarar a sua nulidade, obstando deste modo à prossecução de um encadeado de actos processuais que conteriam o “pecado original” de não concitarem a validade jurídico-objectiva interna ajustada organização sistémica para que o processo tende. O acto que inere o requerimento para abertura de instrução, por se mostrar contrário às prescrições que regem para a formalização deste tipo de prática processual, deve ser taxado de ilegal e, consequentemente, inadmitido, por ilegalidade. 


       Revertendo ao caso concreto.

      Por tudo quanto foi exposto, sendo o crime em causa essencialmente doloso, invocando o dolo directo, só se pode antever que uma submissão da arguida a julgamento não conduziria a condenação.

     O escrutínio a que foi sujeita a conduta da aqui arguida no âmbito do foro disciplinar teve como resultado a imputação de uma infracção disciplinar a nível de culpa, traduzida na violação do dever de zelo, na decorrência do que foi sancionada com pena de multa.

    Sendo certo que a ocorrência se deu de manhã e que o auto de notícia foi elaborado pouco depois das 12 horas, mal se compreende que só tenha chegado à Procuradoria pelas 16:53 horas. Aliás, a perfectibilização do auto só se consumou no dia seguinte, pelas 9 horas do dia 21 de Abril de 2016.

       Acompanhando a decisão recorrida:

    “A hora tardia em que o auto foi apresentado conjugada com a necessidade de análise do expediente e do requerimento apresentado pelo marido da arguida implicou ou explica que a denunciada não pudesse ou tivesse admitido não poder naquele mesmo dia proceder a interrogatório da arguida e libertá-la, se assim o entendesse, como logo veio a suceder na manhã seguinte.

      Não foi ultrapassado o prazo de 48 horas.

      Não foi determinada a apresentação ao juiz de instrução pela simples razão de que não tinha que ser já que a denunciada, depois de interrogar a arguida, entendeu suficiente a sujeição a TIR (art. 143°, n°3 CPP).

      A denunciada não agiu contra o Direito.

      Mesmo que a arguida entendesse que deveria aplicar-se uma outra medida de coacção, caso em que a detida deveria ter sido apresentada para interrogatório judicial, acompanhada da respectiva promoção do Ministério Público, nada permitia concluir que esse interrogatório fosse concluído ainda no dia da detenção.

       Por outro lado, a lei exige que o funcionário actue conscientemente, o que exclui o dolo eventual.

      Assim, mesmo que se entendesse de forma diversa, nunca se poderia dizer que em face das circunstâncias concretas que envolveram a situação, o atraso no interrogatório e na subsequente libertação da arguida se tenha ficado a dever uma actuação deliberada da PGA de negar a administração da justiça (Miguez Garcia e Castela Rio, Código Penal, 2.ª ed., 2015/ 1287/ nota 5).

      Está assim afastada a incriminação constante do n° 1 do art. 369° do CP. E, não havendo intenção de prejudicar ou beneficiar alguém, a actuação da denunciada nunca poderá também integrar os n°s 2 e 3 do mesmo preceito legal”.  

      Não sendo plausível eventual condenação da arguida, a solução é manter a decisão recorrida.


      Decisão 

    Pelo exposto, acordam na 3.ª Secção do Supremo Tribunal de Justiça, em negar provimento ao recurso interposto pela assistente AA, mantendo-se a decisão recorrida de não pronúncia da arguida BB.

      Custas pela recorrente, nos termos do artigo 515.º, n.º 1, alínea b), do Código de Processo Penal, na redacção que lhes foi dada pelo Decreto-Lei n.º 34/2008, de 26 de Fevereiro, in Diário da República, 1.ª série, n.º 40, de 26 de Fevereiro (rectificado pela Declaração de Rectificação n.º 22/2008, de 24 de Abril, in Diário da República, 1.ª série, n.º 81 e com as alterações introduzidas pela Lei n.º 43/2008, de 27 de Agosto, in Diário da República, 1.ª série, n.º 165, pelo Decreto-Lei n.º 181/2008, de 28 de Agosto, pelo artigo 156.º da Lei n.º 64-A/2008, de 31 de Dezembro – Lei do Orçamento do Estado 2009 (Diário da República, 1.ª série, n.º 252, Suplemento), pelo artigo 163.º da Lei n.º 3-B/2010, de 28 de Abril – Orçamento do Estado para 2010, pelo Decreto-Lei n.º 52/2011, de 13 de Abril, Diário da República, 1.ª série, n.º 73, de 13-04-2011, pela Lei n.º 7/2012, de 13 de Fevereiro, in Diário da República, 1.ª série, n.º 31, de 13 de Fevereiro, que procedeu à sexta alteração e republicação do RCP, rectificada com a Declaração de Rectificação n.º 16/2012, de 26 de Março, in Diário da República, 1.ª série, n.º 61, de 26-03-2012, pela Lei n.º 66-B/2012, de 31de Dezembro, pelo Decreto-Lei n.º 126/2013, de 30 de Agosto, in Diário da República, 1.ª série, n.º 167, de 30 de Agosto, pela Lei n.º 72/2014, de 2 de Setembro, pela Lei n.º 49/2018, de 14 de Agosto, in Diário da República, 1.ª série, n.º 156, de 14 de Agosto e pela Lei n.º 27/2019, de 28 de Março, in Diário da República, 1.ª série, n.º 62, de 28 de Março), o qual aprovou – artigo 18.º – o Regulamento das Custas Processuais, publicado no anexo III do mesmo diploma legal, fixando, nos termos do disposto no artigo 8.º, n.º 9 e Tabela III, a taxa de justiça em 5 UC, sem prejuízo da protecção jurídica concedida.

     Mantém-se em vigor o valor da UC (Unidade de conta) vigente em 2018, conforme estabelece o artigo 182.º da Lei n.º 71/2018, de 31 de Dezembro (Orçamento do Estado para 2019), publicada no Diário da República, 1.ª série, n.º 251, de 31-12-2018. Tal valor é de 102,00 €, que se tem mantido inalterado desde 20 de Abril de 2009.   

     Consigna-se que foi observado o disposto no artigo 94.º, n.º 2, do Código de Processo Penal.

Lisboa, Escadinhas de São Crispim, 5 de Fevereiro de 2020

Raul Borges (Relator)

Manuel Augusto de Matos