Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
267/21.0JELSB-AS.S1
Nº Convencional: 3.ª SECÇÃO
Relator: JORGE RAPOSO (RELATOR DE TURNO)
Descritores: HABEAS CORPUS
PRISÃO PREVENTIVA
ERRO GROSSEIRO
Data do Acordão: 12/26/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: HABEAS CORPUS
Decisão: NEGADO PROVIMENTO
Sumário :
I. A normal divergência dos sujeitos processuais quanto à decisão proferida em 1ª instância, designadamente quanto a nulidades arguidas e quanto à existência de fundamentos para a prisão preventiva, deve ser apresentada em recurso ordinário e não em pedido de habeas corpus.

II. Não ocorrendo erro grosseiro, patente e grave na aplicação do direito, não há fundamento para a providência de habeas corpus.

Decisão Texto Integral:

Acordam em audiência no Supremo Tribunal de Justiça:


I. RELATÓRIO

AA, preso preventivamente à ordem dos autos acima identificados veio ”ao abrigo do disposto no artigo 222ºnº1 e nº2 al. b) do Código de Processo Penal, deduzir HABEAS CORPUS”, com os seguintes fundamentos:

«1. No âmbito destes autos o peticionante AA foi primeiramente condenado pelos seguintes crimes:

• 1 crime de tráfico de estupefacientes agravado

• 1 crime de associação criminosa

2. Logo após a leitura do acórdão foi proferido o seguinte despacho: “Em face da matéria de facto apurada, impõe-se, neste momento processual, aferir da necessidade de aplicação de medida de coacção quanto a cada um destes arguidos, mediante elaboração de um juízo de necessidade e adequação, nos termos previstos no artigo 193.º do CPP, segundo o qual “as medidas de coacção e de garantia patrimonial a aplicar em concreto devem ser necessárias e adequadas às exigências cautelares que o caso requerer e proporcionais à gravidade do crime e às sanções que previsivelmente venham a ser aplicadas”, prevendo ainda que “a prisão preventiva e a obrigação de permanência na habitação podem ser aplicadas quando se revelarem inadequadas ou insuficientes as outras medidas de coacção”.

Ora, de acordo com o disposto no artigo 202.º do CPP “1 - Se considerar inadequadas ou insuficientes, no caso, as medidas referidas nos artigos anteriores, o juiz pode impor ao arguido a prisão preventiva quando: a) Houver fortes indícios de prática de crime doloso punível com pena de prisão de máximo superior a 5 anos; b) Houver fortes indícios de prática de crime doloso que corresponda a criminalidade violenta; c) Houver fortes indícios de prática de crime doloso de terrorismo ou que corresponda a criminalidade altamente organizada punível com pena de prisão de máximo superior a 3 anos (…)”, desde que obedecidos os pressupostos exigidos pelo artigo 204.º do CPP.

Este último preceito legal impõe, como condições de aplicação de medidas de coacção, as seguintes circunstâncias, a verificar-se, em concreto, no momento da aplicação da medida: a) Fuga ou perigo de fuga; b) Perigo de perturbação do decurso do inquérito ou da instrução do processo e, nomeadamente, perigo para a aquisição, conservação ou veracidade da prova; ou c) Perigo, em razão da natureza e das circunstâncias do crime ou da personalidade do arguido, de que este continue a actividade criminosa ou perturbe gravemente a ordem e a tranquilidade públicas.

Em primeiro lugar, importa desde já concluir que, neste caso, se encontra preenchido o primeiro dos pressupostos legalmente previstos, ou seja, as exigências previstas no n.º 1 do artigo 202.º, uma vez que, atendendo à criminalidade pela qual os arguidos são condenados, e apesar de o acórdão não se encontrar transitado em julgado, não poderá deixar de considerar-se que, em face do julgamento, resultou demonstrada a prática dos crimes pelos arguidos em questão, mediante um juízo mais aprofundado e criterioso do que o meramente indiciário previsto na citada norma legal.

Por outro lado, atendendo à estrutura organizativa dada como provada em sede de acórdão, à natureza nacional e internacional da rede de contactos dos arguidos, e às avultadas quantias económicas subjacentes à prática dos crimes em questão, bem como à iminência do cumprimento das elevadas penas de prisão ora aplicadas, entende o Tribunal que se verifica um elevado perigo de fuga também por parte de cada um destes arguidos.

Além disso, não pode o Tribunal desconsiderar as concretas circunstâncias dos crimes praticados pelos arguidos, tendo-se verificado a sua inserção numa organização programada, temerária e audaciosa, com vista ao tráfico de uma das substâncias estupefacientes mais lucrativas e rentáveis, sendo certo que daí decorre inevitavelmente aambiçãodesmedidados arguidos, donde resulta, segundo entendemos, a existência de um forte perigo de continuação de actividade criminosa quanto a cada deles.

Não pode, pois, deixar de considerar-se a existência de uma forte necessidade de aplicação da mais gravosa medida de coacção legalmente prevista, com vista a prevenir os aludidos perigos que, em concreto, se verificam, sendo a prisão preventiva a única adequada aos efeitos cautelares pretendidos. Importa ainda referir que a medida de coacção de prisão preventiva é ajustada à elevada gravidade dos crimes praticados e às penas aplicadas, inexistindo qualquer outra medida de coação da qual pudessem surtir os mesmos efeitos, sendo todas as demais manifestamente insuficientes face às fortes necessidades cautelares sentidas.

Saliente-se que mal se compreenderia que não fossem aplicados a todos os arguidos a mesma medida de coacção, em face da similitude dos factos apurados bem como das circunstâncias acima descritas e que também estiveram subjacentes à manutenção da mesma medida aos demais arguidos que vão condenados no âmbito do presente acórdão.

Ademais, cumpre ainda referir que, nesta situação, entende o tribunal que não se mostra ajustada nem suficiente a medida de obrigação de permanência na habitação, em face da rede de contactos ao dispor dos arguidos e da sua inserção numa estrutura com meios organizativos, sendo certo que, em face da criminalidade em questão, o perigo de continuação da actividade criminosa não ficaria acautelado caso se mantivesse os arguidos no seio da sua estrutura residencial, com acesso ao seu meio social e acessível a contactos exteriores, não se podendo descurar que, neste tipo de criminalidade, muitos dos actos se podem praticar, executar, planear e organizar à distância, a partir da própria residência.”.

3. Surpreendido com esta decisão, foi o próprio peticionante quem levantou a mão informando o Tribunal que nunca havia sido acusado e/ou pronunciado por um crime de tráfico de estupefacientes e, portanto, muito o espantou esta inusitada condenação.

4. O Tribunal não menos surpreendido com tal atitude, pessoalizada pelo peticionante, retirou-se da sala a fim de rever a referida condenação.

5. Regressou à sala e admitiu o óbvio, ou seja, que tinha errado na condenação do peticionante por um crime de tráfico de estupefacientes, tendo corrigido a decisão, ou seja, apenas se mantendo a condenação por um crime de associação criminosa.

6. Surpreendidos por esta decisão que decretou a prisão preventiva de todos os condenados que se encontravam em liberdade, um dos coarguidos arguiu a nulidade do despacho por violação do princípio do contraditório.

7. O Tribunal indeferiu tal nulidade, mantendo a decisão que decretou as medidas de coação.

8. Numa primeira abordagem este despacho constitui nulidade insanável conforme al. c) do nº4 do 194º e al. c) do artigo 119º do CPP.

9. É deste modo que se pronuncia o Senhor Conselheiro Maia Costa em anotação a tal norma do nº4 do artigo 194 do CPP: “A aplicação das medidas de coação e de garantia patrimonial (com exceção do TIR e do arresto preventivo, este no caso de se verificar a situação prevista no nº3 do artigo. 192º) é sempre precedida, ressalvados os casos de impossibilidade fundamentada, de audição do arguido. A lei nº 94/2021, de 21-12, veio dispor (ou esclarecer) que essa audição tem a natureza pessoal e presencial. A omissão da audição constitui nulidade insanável: art. 119º, c). Para o arguido poder exercer cabalmente o seu direito de defesa, a lei impõe, no nº4, que lhe seja prestada toda a informação a que se refere o nº4 do art. 141º, nomeadamente sobre os factos concretos que lhe são imputados (sem quaisquer restrições), com indicação do tempo, lugar e modo; e também sobre os elementos de prova que sustentam essa imputação.”1

10. A não audição dos arguidos não pode deixar de se traduzir numa grosseira violação do princípio do contraditório.

11. O peticionante tem noção que tal nulidade pode não ser enquadrável na alínea b) do nº2 do artigo 222º do CPP.

12. Acontece que, os erros da decisão sob escrutínio assumem uma gravidade bem superior aos meros erros grosseiros.

13. Na verdade, a providência de habeas corpus não se destina a apreciar erros de direito e a formular juízos de mérito sobre decisões judiciais determinantes de privação da liberdade, como já bem decidiu o Supremo Tribunal de Justiça “a providência de habeas corpus constitui uma medida expedita perante ofensa à liberdade com abuso de poder, sem lei ou contra a lei (…) Atento o carácter extraordinário da providência, para que se desencadeie exame dasituaçãode detençãoouprisão em sede de habeas corpus, que deparar com abuso de poder, consubstanciador de atentado ilegítimo à liberdade individual grave, grosseiro e rapidamente verificável integrando uma das hipóteses previstas no art. 222.º, n.º 2, do CPP”

14. Porém, in casu, estamos perante uma situação extrema de prisão determinada com abuso de poder/ erro grosseiro, isto é, erro qualificado na aplicação do direito.

15.Com efeito, o despacho de aplicação das medidas de coação é motivado por facto pelo qual a lei a não permite, conforme al. b) do nº2 do artigo 222º do CPP.

16. O arguido vê a sua medida de coação fundamentada num crime pelo qual nem tampouco foi acusado.

17. Não se diga que o peticionante continua condenado por um dos crimes, ou seja, o crime de associação criminosa.

18. Na verdade, o despacho que decretou a prisão preventiva prossupõe todo ele um raciocínio estribado no crime de tráfico de droga e de associação criminosa.

19. Está bom de ver que toda a lógica interna do despacho assenta na conjugação dos dois ilícitos criminais.

20. Já se vê que a subsistência de apenas um dos ilícitos poderia permitir raciocínio completamente diverso.

21. Dizendo de outro modo, a circunstância de apenas subsistir o crime de associação criminosa, impunha uma lógica diferente, desde logo a nível dos perigos invocados pelo despacho.

22. Tudo isto, nos leva a concluir irremediavelmente para que de um ponto de vista substancial inexista despacho a decretar a medida de coação.

23. É verdade que o despacho de um ponto de vista formal mantém-se em vigor, produzindo todos os seus efeitos.

24. Porém, de um ponto de vista material fundamentou-se em elementos (desde logo, a condenação pelo crime de tráfico de estupefacientes) que de si e conjugadamente inexistem.

25. Por outro lado e numa outra perspetiva, sempre se dirá que tendo o Tribunal alterado o acórdão condenatório e o despacho que decretou as medidas de coação estar umbilicalmente a ele ligado, impunha, consequente e logicamente, a sua alteração.

26. Neste sentido, o despacho que decretou as medidas de coação não tem vida uma vez que perdeu todo o seu alimento.

27. De tudo o que vimos de dizer resulta que os erros cometidos pelo Tribunal assumem à luz do Direito, enorme gravidade constituindo flagrantes erros grosseiros e, portanto, subsumíveis à alínea b), do nº2 do art. 222º do CPP.

Face ao exposto, encontra-se o peticionante privado da sua liberdade de forma ilegal, devendo ser restituído à liberdade de imediato.

Foi prestada informação judicial a que alude o art. 223º nº 1 do Código de Processo Penal, nos seguintes termos:

« a) Ao arguido AA foi aplicada a medida de coacção de prisão preventiva em 22 de Novembro de 2024.

b) Por acórdão proferido nesta 1ª instância em 22 de Novembro de 2024, foi o referido arguido condenado na pena de 8 (oito) anos de prisão, pela prática de um crime de associação criminosa para o tráfico p. e p. pelo artigo 28º. Nº 2, da Lei15/93, de 22 de Janeiro.

c) Em momento imediatamente seguido à leitura do acórdão que versou sobre a responsabilidade criminal de 19 (dezanove) arguidos, o tribunal colectivo comunicou que iria proferir despacho a alterar o estatuto coactivo de três arguidos, os quais nomeou, entre eles o arguido AA, tendo perguntado ao Defesas dos arguidos se pretendiam se pronunciar a tal propósito, conforme consta da respectiva gravação.

d) Nessa sequência e não tendo havido manifestação nesse sentido do Ministério Público e das defesas o tribunal proferiu despacho de aplicação da medida de coacção de prisão preventiva a três arguidos entre eles o referido arguido AA, como fundamento nos perigos de fuga e de continuação da actividade criminosa.

e) Após indicação de lapso na condenação do arguido AA o tribunal colectivo conferenciou e, de imediato, corrigiu o lapso na leitura do acórdão, comunicando que o mesmo iria condenado nos termos referidos no ponto b).

f) De seguida a defesa do arguido BB arguiu a nulidade do despacho de aplicação da medida de coacção de prisão preventiva por falta de audição do arguido.

g) O Ministério Público pronunciou-se no sentido do indeferimento da alegada nulidade.

h) Após deliberação, o tribunal colectivo proferiu despacho no sentido do indeferimento da arguida nulidade

i) Ainda assim, em face do alegado perguntou aos arguidos se pretendiam prestar declarações a propósito da alteração do referido estatuto com cocativo, tendo dois dos arguidos prestado declarações entre eles o arguido AA.

j) O terceiro arguido cujo estatuto coactivo foi igualmente alterado não foi ouvido, por não ter comparecido na leitura do acórdão, sendo desconhecido o seu paradeiro até aos dias de hoje.

k) Foi ainda dada a palavra ao Ministério Público e às defesas dos 3 arguidos para que se pronunciarem o que fizeram.

l) Após liberação deliberação o tribunal coletivo preferiu novo despacho onde pugnou pela manutenção das exigências cautelares subjacentes à aplicação da medida de coação de prisão preventiva, pronunciando-se expressamente sobre o crime de associação criminosa imputado ao arguido AA e perigos que fundamentaram a aplicação da medida de coacção de prisão preventiva este arguido conforme consta da respectiva gravação.

O arguido mantém-se em prisão.

Considerando as atualidades exposta, considera o tribunal que foi cumprido o princípio do contraditório, inexistindo qualquer erro, falta de fundamentação ou qualquer outra de nulidade, tendo o tribunal colectivo decidido com base nos factos apurados, no exercício das suas competências e dentro dos limites permitidos pela lei.

O processo encontra-se instruído com a documentação pertinente.

Composto o Tribunal e notificados o Ministério Público e o defensor, realizou-se audiência, em conformidade com o disposto nos nºs 2 e 3 do artigo 223º do Código de Processo Penal.

O Tribunal reuniu para deliberar (artigo 223.º, n.º 3, 2.ª parte, do Código de Processo Penal), fazendo-o nos termos que se seguem.

II. FUNDAMENTAÇÃO

1. Questão a decidir

A questão a decidir é a prisão ilegal do peticionante por erros grosseiros, de enorme gravidade, subsumíveis à al. b) do nº2 do art. 222º do Código de Processo Penal.

2. Factualidade e iter processual

A matéria de facto relevante para a decisão resulta da petição de habeas corpus, da informação prestada, da certidão que acompanha os presentes autos e dos elementos constantes do processo e disponíveis no CITIUS, de que resultam os seguintes elementos de facto:

1. Ao arguido foi aplicada a medida de coacção de prisão preventiva no dia 22 de Novembro de 2024, na sequência da prolação de acórdão nesse dia que o condenou na pena de oito anos de prisão, pela prática de um crime de associação criminosa para o tráfico, p. e p. pelo artigo 28.º, n.º 2, da Lei n.º 15/93, de 22 de Janeiro.

Não há no acórdão referência à prática do crime de tráfico pelo arguido.

2. O despacho proferido em acta, logo após a leitura por súmula do acórdão, é do seguinte teor:

(…)

Mais determinou que os arguidos CC, BB e AA, ficassem sujeitos à medida de coacção de prisão de preventiva, ao abrigo do disposto nos artigos 193.º, 202.º e 204.º, n.º 1, alíneas a) e c) do Código de Processo Penal, porquanto:

Em face da matéria de facto apurada, impõe-se, neste momento processual, aferir da necessidade de aplicação de medida de coacção quanto a cada um destes arguidos, mediante elaboração de um juízo de necessidade e adequação, nos termos previstos no artigo 193.º do CPP, segundo o qual “as medidas de coacção e de garantia patrimonial a aplicar em concreto devem ser necessárias e adequadas às exigências cautelares que o caso requerer e proporcionais à gravidade do crime e às sanções que previsivelmente venham a ser aplicadas”, prevendo ainda que “a prisão preventiva e a obrigação de permanência na habitação podem ser aplicadas quando se revelarem inadequadas ou insuficientes as outras medidas de coacção”.

Ora, de acordo com o disposto no artigo 202.º do CPP “1 - Se considerar inadequadas ou insuficientes, no caso, as medidas referidas nos artigos anteriores, o juiz pode impor ao arguido a prisão preventiva quando: a) Houver fortes indícios de prática de

crime doloso punível com pena de prisão de máximo superior a 5 anos; b) Houver fortes indícios de prática de crime doloso que corresponda a criminalidade violenta; c) Houver fortes indícios de prática de crime doloso de terrorismo ou que corresponda a criminalidade altamente organizada punível com pena de prisão de máximo superior a 3 anos (…)”, desde que obedecidos os pressupostos exigidos pelo artigo 204.º do CPP.

Este último preceito legal impõe, como condições de aplicação de medidas de coacção, as seguintes circunstâncias, a verificar-se, em concreto, no momento da aplicação da medida: a) Fuga ou perigo de fuga; b) Perigo de perturbação do decurso do inquérito ou da instrução do processo e, nomeadamente, perigo para a aquisição, conservação ou veracidade da prova; ou c) Perigo, em razão da natureza e das circunstâncias do crime ou da personalidade do arguido, de que este continue a actividade criminosa ou perturbe gravemente a ordem e a tranquilidade públicas.

Em primeiro lugar, importa desde concluir que, neste caso, se encontra preenchido o primeiro dos pressupostos legalmente previstos, ou seja, as exigências previstas no n.º 1 do artigo 202.º, uma vez que, atendendo à criminalidade pela qual os arguidos são condenados, e apesar de o acórdão não se encontrar transitado em julgado, não poderá deixar de considerar-se que, em face do julgamento, resultou demonstrada a prática dos crimes pelos arguidos em questão, mediante um juízo mais aprofundado e criterioso do que o meramente indiciário previsto na citada norma legal.

Por outro lado, atendendo à estrutura organizativa dada como provada em sede de acórdão, à natureza nacional e internacional da rede de contactos dos arguidos, e às avultadas quantias económicas subjacentes à prática dos crimes em questão, bem como à iminência do cumprimento das elevadas penas de prisão ora aplicadas, entende o Tribunal que se verifica um elevado perigo de fuga também por parte de cada um destes arguidos.

Além disso, não pode o Tribunal desconsiderar as concretas circunstâncias dos crimes praticados pelos arguidos, tendo-se verificado a sua inserção numa organização programada, temerária e audaciosa, com vista ao tráfico de uma das substâncias estupefacientes mais lucrativas e rentáveis, sendo certo que daí decorre inevitavelmente a ambição desmedida dos arguidos, donde resulta, segundo entendemos, a existência de um forte perigo de continuação de actividade criminosa quanto a cada deles.

Não pode, pois, deixar de considerar-se a existência de uma forte necessidade de aplicação da mais gravosa medida de coacção legalmente prevista, com vista a prevenir os aludidos perigos que, em concreto, se verificam, sendo a prisão preventiva a única adequada aos efeitos cautelares pretendidos.

Importa ainda referir que a medida de coacção de prisão preventiva é ajustada à elevada gravidade dos crimes praticados e às penas aplicadas, inexistindo qualquer outra medida de coação da qual pudessem surtir os mesmos efeitos, sendo todas as demais manifestamente insuficientes face às fortes necessidades cautelares sentidas.

Saliente-se que mal se compreenderia que não fossem aplicados a todos os arguidos a mesma medida de coacção, em face da similitude dos factos apurados bem como das circunstâncias acima descritas e que também estiveram subjacentes à manutenção da mesma medida aos demais arguidos que vão condenados no âmbito do presente acórdão.

Ademais, cumpre ainda referir que, nesta situação, entende o tribunal que não se mostra ajustada nem suficiente a medida de obrigação de permanência na habitação, em face da rede de contactos ao dispor dos arguidos e da sua inserção numa estrutura com meios organizativos, sendo certo que, em face da criminalidade em questão, o perigo de continuação da actividade criminosa não ficaria acautelado caso se mantivesse os arguidos no seio da sua estrutura residencial, com acesso ao seu meio social e acessível a contactos exteriores, não se podendo descurar que, neste tipo de criminalidade, muitos dos actos se podem praticar, executar, planear e organizar à distância, a partir da própria residência.”.

3. Conforme consta da acta:

«Seguidamente, o arguido AA solicitou a palavra, e no seu uso referiu que existe um lapso na condenação que a ele se refere pois não tinha sido acusado da prática de crime de tráfico de estupefacientes.


*


Logo, o Tribunal Coletivo interrompeu a sessão para conferenciar e depois de retomar a diligência a Mmª Juíza Presidente referiu que se tratou de lapso derivado da extensão do acórdão e elevado número de intervenientes, o qual corrigiu, de imediato.».

4. Após arguição de nulidade insanável do despacho que decretou a prisão preventiva ao arguido, pela Il. Mandatária do arguido BB, Dra. DD “nos termos do artigo 212.º do C.P.P., em virtude de o Tribunal não ter procedido à audição do arguido nem se encontrem preenchidos os requisitos de aplicação de medida de coação de prisão preventiva”, o tribunal procedeu da seguinte forma:

(…) a Mmª Juíza presidente proferiu o seguinte DESPACHO:

O artigo 202, nº 2 do C.P.P, invocado pela defesa do arguido BB, não tem a cominação com vício de nulidade.

As nulidades encontram-se taxativamente, previstas na lei, sendo as nulidades insanáveis as previstas no artigo 119º do C.P.P, não se vislumbrando que o invocado vício preencha qualquer uma das alíneas do referido artigo.

Por outro lado, o entendimento contrário aos argumentos que foram utilizados pelo Tribunal para fundamentar a aplicação da medida de coação de prisão preventiva ao arguido, é objeto a ser apreciado em sede de recurso e não nesta sede processual.

Como tal, indefere-se a arguição da nulidade.”


*


Não obstante, foi perguntado aos arguidos se pretendiam dizer alguma coisa no que concerne a aplicação de medida de coação de prisão preventiva, tendo o arguido BB dito que nada tem a dizer e o arguido AA dito que pretendia prestar declarações, que lhe foram tomadas, o que se encontra gravado entre 18:05 – 18:06 horas.

*


De seguida, dada a palavra à Digna Procuradora da República, a mesma disse, que, atendendo às declarações do arguido, as mesmas não são de molde a alterar as considerações relativamente a alteração da medida de coação e que se deve manter essa decisão.

*


Dada a palavra à defesa do arguido AA, a mesma disse que considera desproporcional a aplicação da medida de coação de prisão preventiva opondo-se a mesma.

*


Após, o arguido BB disse que também pretendia prestar declarações, o que fez, conforme se encontra gravado entre 18:11 e 18:12 horas.

*


Nesta sequência, a Mmª Juíza Presidente interrompeu a diligência a fim de o Tribunal Coletivo poder deliberar, tendo sido a mesma retomada pelas 18:21 horas.

*


Seguidamente, a Mmª Juíza Presidente referiu que o alegado pelos arguidos já era do conhecimento do Tribunal e tinha sido tido em conta aquando da prolação do despacho de aplicação de medida de coação da prisão preventiva, não diminuindo, igualmente, as exigências cautelares que o Tribunal entendeu que se verificavam aquando da prolação do aludido despacho, considerando ainda que as medidas de coação mostram-se adequadas, proporcionais e necessárias, pelo que mantém o despacho proferido nos seus exatos termos.

5. O arguido mantém-se em prisão preventiva.

3. O Direito

3.1 Habeas corpus

Todos têm direito à liberdade e ninguém pode ser privado dela, total ou parcialmente, a não ser em consequência de sentença judicial condenatória pela prática de acto punido por lei com pena de prisão ou de aplicação judicial de medida de segurança (art. 27º nºs 1 e 2 da Constituição da República Portuguesa), exceptuando a privação da liberdade, no tempo e nas condições que a lei determinar, nos casos previstos no n.º 3 do mesmo preceito constitucional.

O direito à providência de habeas corpus está assegurado constitucionalmente (art. 31º da Constituição da República Portuguesa).

Permite aos cidadãos um mecanismo expedito de reacção contra o abuso de poder, por prisão ou detenção ilegal e constitui não um recurso, mas uma providência extraordinária com natureza de acção autónoma e com fim cautelar, destinada a pôr termo no mais curto espaço de tempo a uma situação ilegal de privação de liberdade2.

Exactamente por causa da sua natureza, a providência de habeas corpus não se destina a apreciar a validade e mérito de decisões judiciais, a apurar se foram ou não observadas as disposições da lei do processo e se ocorreram ou não irregularidades ou nulidades resultantes da sua inobservância. Para a análise e apreciação dessas questões estão previstos meios próprios de intervenção no processo, onde devem ser conhecidas, de acordo com o estabelecido nos art.s 118º a 123º do Código de Processo Penal e por via de recurso para os tribunais superiores (art.s 399º e ss do Código de Processo Penal)3.

A concessão do habeas corpus pressupõe a actualidade da ilegalidade da prisão, reportada ao momento em que a petição é apreciada4, o que afasta a possibilidade do habeas corpus preventivo.

O habeas corpus não exclui o direito ao recurso, nem é subsidiário do recurso, no sentido de apenas poder ser utilizado após se esgotarem outras formas de reacção. Pode “coexistir”, com os demais meios judiciais comuns de reacção, como a arguição de invalidade, reclamação ou com o recurso5. Por isso, não existe relação de litispendência ou de caso julgado entre o recurso e a providência de habeas corpus, como refere o artigo 219º nº 2 do Código de Processo Penal.

O art. 222º do Código de Processo Penal, dando expressão ao art. 31º da Constituição da República Portuguesa, dispõe, sob a epígrafe “Habeas corpus em virtude de prisão ilegal”:

«1 - A qualquer pessoa que se encontrar ilegalmente presa o Supremo Tribunal de Justiça concede, sob petição, a providência de habeas corpus.

2 - A petição é formulada pelo preso ou por qualquer cidadão no gozo dos seus direitos políticos, é dirigida, em duplicado, ao Presidente do Supremo Tribunal de Justiça, apresentada à autoridade à ordem da qual aquele se mantenha preso e deve fundar-se em ilegalidade da prisão proveniente de:

a) Ter sido efetuada ou ordenada por entidade incompetente;

b) Ser motivada por facto pelo qual a lei a não permite; ou

c) Manter-se para além dos prazos fixados pela lei ou por decisão judicial.»

Como se referiu, a jurisprudência deste Supremo Tribunal vai no sentido de que o habeas corpus não se destina a apreciar erros de direito, nem a formular juízos de mérito sobre decisões judiciais determinantes da privação da liberdade: não tem o propósito de proceder à reanálise do caso, mas sim a constatação de forma expedita da ilegalidade, que por isso mesmo tem de ser patente e pressupõe a actualidade da ilegalidade da prisão, reportada ao momento em que é apreciado o pedido.

E, bem assim, os motivos de «ilegalidade da prisão», como fundamento da providência de habeas corpus, têm de reconduzir-se, necessariamente, à previsão das al.s do nº 2 do art. 222º do Código de Processo Penal, de enumeração taxativa.

Assim, o Supremo Tribunal de Justiça apenas tem de verificar, (a) se a prisão resulta de uma decisão judicial exequível, (b) se a privação da liberdade se encontra motivada por facto que a admite e (c) se estão respeitados os respetivos limites de tempo fixados na lei ou em decisão judicial6.

Nos casos de abuso de poder, este há-de ser facilmente perceptível dos elementos constantes do processo, há de tratar-se de um “erro grosseiro, patente e grave, na aplicação do direito”, em todas situações elencadas nas três alíneas do nº 2 do art. 222º do Código de Processo Penal, entendimento que tem sido reiterado pela jurisprudência deste Supremo Tribunal de Justiça7.

3.2 Concretização

Melhor concretizando, o Requerente fundamenta a sua pretensão na ilegalidade da prisão por,

a) por, tendo sido primeiramente condenado pela prática de um crime de tráfico de estupefacientes agravado e de um crime de associação criminosa, ter sido com essa base que lhe foi aplicada a medida de coacção de prisão preventiva. violação dos princípios constitucionais de necessidade, proporcionalidade e subsidiariedade, bem como do disposto nos art.s 193º e seguintes do Código de Processo Penal.

b) por nulidade insanável (“al. c) do nº48 do 194º e al. c) do artigo 119º do CPP”) e não audição prévia dos arguidos;

c) o despacho de aplicação das medidas de coação é motivado por facto pelo qual a lei a não permite, conforme al. b) do nº2 do artigo 222º do CPP, porquanto a medida de coacção está fundamentada num crime pelo qual nem tampouco foi acusado.

É evidente que a pretensão do peticionante não é fundamento para a providência de habeas corpus, porquanto não se trata de um erro grosseiro, patente e grave, na aplicação do direito e facilmente perceptível, como se constata pela análise dos elementos constantes do processo, supra extractados.

Se não vejamos.

Ao contrário do sugerido, o acórdão condenou o arguido, ora peticionante apenas pelo crime de associação criminosa para o tráfico, p. e p. pelo artigo 28.º, n.º 2, da Lei n.º 15/93, de 22 de Janeiro.

Do despacho que determinou a sua prisão preventiva não consta qualquer referência ao crime de tráfico.

Sobre a invocada nulidade pronunciou-se o tribunal, julgando não se verificar a mesma e, ainda assim, “não obstante” foi concedida a palavra aos arguidos, no que concerne a aplicação de medida de coação de prisão preventiva e, ulteriormente, face ao alegado pelos arguidos, mantido o despacho proferido nos seus exactos termos, considerando ainda que as medidas de coação se mostram adequadas, proporcionais e necessárias.

Com este enquadramento, conforme jurisprudência constante deste Tribunal, é manifesta a improcedência do habeas corpus porquanto, a prisão preventiva foi ordenada por Juiz, está fortemente indiciada a prática de crime que admite essa medida de coação e não estão ultrapassados os prazos fixados pela lei, não se verificando qualquer erro grosseiro na determinação da medida de coacção. Não cabe no âmbito da providência de habeas corpus apreciar a validade e justeza de juízos firmados ou as invocadas nulidades9. Não se verifica uma situação de ilegalidade inequívoca, que, pela sua gravidade material, pode ser considerada abuso de poder, requisito que, nos termos do art. 31.º, n.º 1, da CRP, justifica a providência de habeas corpus.10. É uma situação em que a divergência dos sujeitos processuais quanto à decisão proferida em 1ª instância, deve ser apresentada em recurso ordinário e não em pedido de habeas corpus

Em suma, a prisão preventiva em que o peticionante actualmente se encontra, resulta de uma decisão judicial exequível, proferida pelo juiz competente, a privação da liberdade encontra-se motivada por facto pelo qual a lei a admite e estão respeitados os respectivos limites de tempo fixados por lei, pelo que não se verifica qualquer das situações a que se referem as alíneas a), b) e c) do nº 2 do art. 222º do Código de Processo Penal.

De tudo se conclui que a presente providência de habeas corpus carece manifestamente de base factual e legal que a suporte (art. 223º nº 6 do Código de Processo Penal).

III. DECISÃO

Nestes termos, acordam os juízes desta Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça em indeferir a providência de habeas corpus apresentada por AA por falta de fundamento bastante - artigo 223º nº 4 al. a) do Código de Processo Penal.

Condena-se o peticionante nas custas, fixando-se a taxa de justiça em 3 UCs, nos termos do artigo 8.º, n.º 9, e da Tabela III do Regulamento das Custas Processuais e na importância de 8 UC a título de sanção processual (art. 223º nº 6 do Código de Processo Penal).

Lisboa, 26 de Dezembro de 2024

Jorge Raposo (Relator)

Jorge Gonçalves (1.º Adjunto)

Maria de Deus Correia (2.ª Adjunta)

Mário Belo Morgado (Presidente)

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1. Código de Processo Penal Comentado, GASPAR António, CABRAL José, COSTA Eduardo, MENDES António, MADEIRA António, GRAÇA, António, 2022, 4ª edição Revista

2. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 2.6.2021, proc. 156/19.9T9STR-A.S1.

3. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 16.11.2022, proc. 4853/14.7TDPRT-A.S1.

4. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 22.3.2023, proc. 631/19.5PBVLG-MC.S1

5. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 19.11.2020. proc. 7/19.4F9LSB-C.S1

6. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 16.11.2022, proc. 4853/14.7TD PRT-A.S1

7. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 20.11.2019, proc. 185/19.2ZFLSB-A.S1

8. O peticionante querer-se-ia referir ao actual nº 6 al. c) e não á redacção do nº 4 na redacção da Lei 48/2007, de 29/08

9. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 30.1.2013, proc. 11/13.6YFLSB.S1.

10. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 28.8.2018, proc. 137/18.0SHLSB-A.S1.