Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
01S1810
Nº Convencional: JSTJ000
Relator: MÁRIO TORRES
Descritores: ACIDENTE DE TRABALHO
CASO JULGADO
LEGITIMIDADE PARA RECORRER
Nº do Documento: SJ200204300018104
Data do Acordão: 04/30/2002
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: T REL LISBOA
Processo no Tribunal Recurso: 7222/00
Data: 01/17/2001
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA.
Decisão: CONCEDIDA A REVISTA.
Área Temática: DIR TRAB - ACID TRAB.
Legislação Nacional: CPT81 ARTIGO 146 ARTIGO 156 N1 N2.
CPC95 ARTIGO 671 N1 ARTIGO 873 ARTIGO 680 ARTIGO 684-A.
L 2127 DE 1963/08/03 BXIX N1 E.
Sumário : I - Se, em acção intentada por ascendente de vítima mortal de acidente de trabalho, em que a ré entidade patronal impugnara a caracterização do acidente como de trabalho e a ré seguradora alegara a existência de culpa da entidade patronal na eclosão do acidente, a sentença que, após caracterizar o acidente como de trabalho e reconhecer a existência de culpa da entidade patronal, acaba por julgar a acção improcedente, absolvendo as rés do pedido, por a autora não haver provado que a vítima contribuía regularmente para o seu sustento nem que ela carecia desse auxílio económico, apenas constitui caso julgado sobre esta última decisão, e já não quanto às pronúncias interlocutórias sobre a caracterização do acidente como de trabalho e a existência de culpa da entidade patronal.
II - Assim, em posterior acção intentada pelo Centro Nacional de Protecção contra os Riscos Profissionais contra as mesmas rés, em que é pedida a condenação destas no pagamento da importância prevista no n. 5 da Base XIX da Lei n. 2127, por a vítima do acidente ter falecido sem deixar familiares com direito a pensão por morte, não se impõe o acatamento, por pretensamente dotado de força de caso julgado, do decidido na primeira acção quanto à caracterização do acidente e quanto à culpa da entidade patronal, sendo lícito às rés controverter de novo estas questões.
Decisão Texto Integral: Acordam na Secção Social do Supremo Tribunal de Justiça,

1. Relatório
O Centro Nacional de Protecção contra os Riscos Profissionais intentou, em 5 de Janeiro de 1999, no Tribunal do Trabalho de Almada, acção com processo especial emergente de acidente de trabalho contra a Companhia de Seguros ..., SA, e A e mulher B, pedindo que: (i) se declare o acidente sofrido por C como de trabalho; (ii) se condene a 1.ª ré a pagar ao autor a quantia de 2651460$00, salvo se fizer prova de que o acidente se ficou a dever a culpa da entidade patronal do sinistrado, situação em que a sua responsabilidade é meramente subsidiária e a do 2.º réu principal, devendo assim nesse caso ser também o 2.º réu condenado no pagamento daquela quantia; e (iii) se condenem os réus a pagar juros de mora, à taxa legal, sobre o montante em dívida, desde a morte do sinistrado até integral pagamento. Aduziu, para tanto, em suma, que o referido sinistrado foi vítima de acidente de trabalho, tendo falecido em consequência de tal acidente sem deixar familiares com direito a pensões por morte, pelo que o autor tem direito a uma importância igual ao triplo da retribuição anual da vítima, em conformidade com o n.º 5 da Base XIX da Lei n. 2127, de 3 de Agosto de 1965 (cfr. petição de fls. 46 a 49).
A ré seguradora - que entretanto alterara a sua denominação para ... - Companhia de Seguros, SA - contestou (fls. 69 a 73), excepcionando a caducidade do direito accionado e impugnando a sua responsabilidade por o acidente ter ocorrido por culpa da entidade patronal.
Comprovado o falecimento do 2.º réu, foram habilitados como seus herdeiros a co-ré viúva B e os únicos filhos do casal D e E (cfr. sentença de fls. 49 do processo apenso), que apresentaram a contestação de fls. 107 a 110 destes autos, na qual sustentam que o acidente em causa não é caracterizável como acidente de trabalho e, mesmo que o fosse, não teria sido originado por culpa da entidade patronal. Mais referem que o facto de, em anterior acção pelo mesmo acidente (processo n.º 226/94 do 1.º Juízo do Tribunal do Trabalho de Almada), terem inicialmente reconhecido, na tentativa de conciliação (cfr. fotocópias de fls. 13 a 16), tratar-se de acidente de trabalho se deveu a erro, por só posteriormente terem chegado ao seu conhecimento factos que descaracterizavam o acidente (por o mesmo ter ocorrido já após o termo da prestação de trabalho pelo sinistrado), como invocaram na respectiva contestação. A irrelevância da pretensa confissão baseada na posição assumida na tentativa de conciliação foi reconhecida pelo tribunal ao incluir no questionário os facto alegados na contestação e destinados a provar a descaracterização. Por isso, enfermou de violação de caso julgado a sentença de 14 de Fevereiro de 1997 proferida nesse processo n.º 226/94 (cfr. fotocópias de fls. 17 a 22), que considerou definitivamente assente, face ao acordo registado na tentativa de conciliação, a caracterização do acidente como de trabalho. No entanto, a mesma sentença acabou por absolver os réus do pedido por a então autora, mãe do sinistrado, não ter feito prova da regularidade da contribuição deste para o seu sustento, nem da necessidade, por parte dela, dessa contribuição. Não tendo ficado vencidos, não puderam os réus impugnar as decisões dessa sentença quanto à caracterização do acidente como de trabalho nem quanto ao reconhecimento de culpa da entidade patronal na eclosão do acidente, pelo que nada impede a suscitação dessas questões neste segundo processo.
Após resposta do autor quanto à excepção da caducidade (fls. 117 e 118), foi proferido o despacho saneador-sentença de fls. 125 a 128, que, considerando só dever ser conhecida essa excepção após resolução da questão da caracterização do acidente como de trabalho (afirmada pelo autor e pela ré seguradora e impugnada pelos restantes réus), mas entendendo que os autos continham já todos os elementos para o conhecimento do mérito da causa, e após elencar os factos tidos por assentes, apreciou e decidiu tal questão nos termos seguintes:

"A primeira questão que urge apreciar tem a ver com a invocada descaracterização do acidente alegada pelos 2.ºs réus.
Defendem os 2.ºs réus que o acidente dos autos não pode ser considerado acidente de trabalho.
O facto de a anterior decisão ter afirmado estarmos perante acidente de trabalho não pode ser tida em consideração nos presentes autos uma vez que aos réus foi impedido suscitar a questão em sede de recurso porquanto não sucumbiram na demanda e, não tendo a autora recorrido, ficaram também impendidos de interpor recurso subordinado.
A questão levantada pelos réus parece-nos pertinente à luz de princípios de puro processo civil, em que a decisão anterior só faz caso julgado nos limites fixados pelos artigos 497.º e seguintes (artigo 671.º, n.º 1, do Código de Processo Civil).
Contudo, o presente processo, embora tramitado, erradamente segundo a nossa opinião, segundo os termos do processo de acidente de trabalho, não é mais do que um processo onde se pretende a efectivação de direito de terceiros - os direitos do autor - conexos com o acidente de trabalho.
Não está em causa já o acidente e o responsável, uma vez que tudo isso já se mostra solucionado, com trânsito em julgado, no processo emergente de acidente de trabalho com o n.º 226/94.
E afirmamos que essas questões estão decididas com trânsito em julgado por força do n.º 2 do artigo 156.º do Código de Processo do Trabalho, ao estabelecer que «as decisões transitadas em julgado que tenham por objecto a qualificação do sinistro ... como acidente do trabalho ... ou a determinação da entidade responsável têm valor de caso julgado para estes processos».
Assim sendo, não se pode voltar a discutir nos presentes autos se estamos perante um acidente de trabalho e quem será o responsável, uma vez que essas questões já foram decididas no processo n.º 226/94 e não foi interposto recurso nesses autos.
E nem podem os réus agora invocar que foram impedidos de recorrer tanto mais que, nesse processo, se conformaram com a decisão, não esboçando tentar recorrer, quando as consequências dessa decisão estão bem explícitas no n.º 5 da Base XIX da Lei n.º 2127 - consequências directas para a entidade considerada responsável pelo acidente.
Daí que tenhamos de concluir que o acidente relatado nos autos é um acidente de trabalho, sendo responsável pelas suas consequências os réus B, D e E."

Seguidamente, esse despacho saneador-sentença entrou na apreciação da excepção da caducidade, julgando-a procedente, pelo que absolveu os réus do pedido.
Contra este despacho interpuseram recursos de apelação o autor (fls. 134 a 137), impugnando o juízo de procedência da excepção da caducidade, e, subordinadamente, os 2.ºs réus (fls. 144 a 151), impugnando a caracterização do acidente como de trabalho e a sua imputação a culpa da entidade patronal.
Por acórdão de 17 de Janeiro de 2001 (fls. 180 a 190), o Tribunal da Relação de Lisboa concedeu provimento ao recurso do autor e negou-o ao recurso subordinado dos 2.ºs réus, julgando improcedente a excepção da caducidade e ordenando o prosseguimento dos autos. A improcedência do recurso subordinado foi assim fundamentada:

"Quanto ao recurso subordinado:
A questão que neste recurso se coloca é a de saber se a sentença proferida no processo de acidente de trabalho n. 226/94., e na qual se decidiu que o acidente em apreço é de trabalho e que resultou de culpa da entidade patronal da vítima transitou ou não em julgado e, em caso afirmativo, se o teor de tal decisão tem ou não que ser aceite nos presentes autos.
Conforme resulta dos autos, correu termos, no Tribunal do Trabalho de Almada, um processo de acidente mortal, em que foi vítima o trabalhador C.
Em sede de tentativa de conciliação, efectuada naquele referido processo, a entidade patronal aceitou então que o acidente respectivo era de trabalho.
Oportunamente, e após julgamento, foi proferida sentença no referido processo n. 226/94, sendo que então se decidiu que o acidente que vitimou o sinistrado C era de trabalho, e que o mesmo resultou de culpa da sua entidade patronal.
Todavia, a mesma sentença veio a julgar improcedente a acção, e a absolver os réus do pedido (patronal e seguradora), porquanto a autora (mãe do sinistrado) não fizera prova de que a vítima contribuía regularmente para o seu sustento.
Tal decisão não foi alvo de qualquer recurso, no prazo para tal estabelecido, razão pela qual veio a transitar em julgado.
Estabelece o n. 1 do artigo 671 do Código de Processo Civil que, uma vez transitada em julgado a sentença, a decisão sobre a relação material controvertida fica tendo força obrigatória dentro e fora do processo.
Igualmente estatui a primeira parte do artigo 673.º do Código de Processo Civil que a sentença constitui caso julgado nos precisos limites em que julga.
Por força do caso julgado (material), a decisão respectiva vincula e obriga não só dentro mas também fora do processo em que foi proferida, impedindo uma nova e diversa apreciação da relação ou situação jurídica concreta sobre que versou.
E sendo assim, é evidente que nos presentes autos se terá que dar como assente que o acidente que vitimou o trabalhador C é de trabalho, e que o mesmo resultou de culpa da entidade patronal.
Bem andou, pois, o Sr. Juiz recorrido ao decidir que não poderia voltar a discutir-se nestes autos se estamos ou não perante um acidente de trabalho e quem será o responsável, uma vez que tais questões já foram resolvidas no processo n.º 226/94, por sentença transitada em julgado."

Contra este acórdão interpuseram os 2.ºs réus, para este Supremo Tribunal de Justiça, recurso de revista, com fundamento em violação de caso julgado, terminando as respectivas alegações (fls. 196 a 205) com a formulação das seguintes conclusões:

"A) Dá-se por reproduzida a sinopse processual que inicia as presentes alegações, donde se destaca que:
1) A sentença da primeira instância nestes autos julgou definitivamente decidido na primeira acção a questão da caracterização do acidente em apreço como de trabalho, nos termos do artigo 156.º, n.º 2, do Código de Processo do Trabalho, e por considerar que os primitivos réus não estavam impedidos de recorrer da sentença inicialmente proferida, atentas as consequências directas previstas no n.º 5 da Base XIX da Lei n.º 2127;
2) O douto acórdão, ora recorrido na parte do recurso subordinado, após em sede de recurso principal, transitado em julgado, ter decidido não se aplicar ao caso o disposto no artigo 156.º, n.º 1, do Código de Processo do Trabalho, confirmou a parte decisória da primeira instância quanto à matéria, mas agora por alegada caso julgado material, nos termos dos artigos 671.º, n.º 1, e 673.º do Código de Processo Civil.
B) Deixou, portanto, por força da douta decisão da Relação do recurso principal de ser oponível aos ora recorrentes o disposto no artigo 156.º, n.º 2, do Código de Processo do Trabalho.
C) Remetidos os recorrentes para a lei processual geral, aceitam que a primitiva sentença do processo de acidente de trabalho constitua caso julgado nos precisos termos em que julga, tendo força obrigatória no processo e fora dele, mas apenas nos limites fixados no artigo 497.º e seguintes do Código de Processo Civil (cfr. artigo 671.º, n.º 1, do Código de Processo Civil).
D) O caso julgado é formado pelo julgamento propriamente dito e não pelos seus fundamentos, visto que só a decisão é recorrível (acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 23 de Fevereiro de 1978, no Boletim do Ministério da Justiça, n.º 274, pág. 191).
E) Mas a sua eficácia torna-se extensível à decisão das questões preliminares que foram antecedente lógico indispensável à emissão da parte dispositiva, desde que quanto a elas se verifiquem cumulativamente os restantes requisitos do caso julgado (acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 9 de Fevereiro de 1990, em Actualidade Jurídica, 6.º, n.º 90, pág. 9).
F) Pelo que, no que respeita às questões preliminares, sem a verificação cumulativa da tríplice identidade de sujeitos, de pedido e de causa de pedir, não ocorre caso julgado (acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 22 de Janeiro de 1998, no Boletim do Ministério da Justiça, n.º 473, pág. 410).
G) No caso dos autos, os réus foram absolvidos na primitiva acção, não em virtude da caracterização do acidente, mas porque não foi provado que a autora dependia com regularidade do sinistrado falecido.
H) Assim, o caso julgado da primitiva sentença não se estende à caracterização do acidente porque esta não está envolvida na decisão da única questão preliminar antecedente lógico da parte dispositiva, ou seja, se a autora dependia regularmente da vítima.
Mas ainda que assim não fosse,
I) Não existe quanto à questão da caracterização do acidente na primitiva sentença e no actual pedido, qualquer identidade na tríplice formulação da lei (artigo 498.º do Código de Processo Civil):
- as partes são distintas (mãe do trabalhador falecido e o Centro);
- os pedidos são diversos (pensão anual nos termos da Base XIX da Lei n. 2127 e importância igual ao triplo da retribuição anual);
- as causas de pedir também são distintas (a vítima contribuir com regularidade para o sustento da primitiva autora e a inexistência de familiares com direito a pensão, para o caso do Centro recorrido).
J) Nestes termos e ao contrário do que dispõe o douto acórdão agora recorrido, a questão da caracterização do acidente no primitivo processo não constitui caso julgado para os presentes autos, atento exactamente o disposto nos artigos 671 e 673 do Código de Processo Civil.
K) Não estão também os recorrentes de acordo com o fundamento da douta sentença da 1.ª instância não considerado na Relação, pelo qual os então réus e ora recorrentes, muito embora vencedores, não estavam impedidos de recorrer da primitiva sentença face à aplicação directa do disposto no n.º 5 da Base XIX da Lei n. 2127.
L) Na verdade, nos termos do artigo 680.º do Código de Processo Civil, perante uma decisão recorrível, só pode dela interpor recurso quem, sendo parte principal, tenha ficado vencido, sem prejuízo de poderem ainda recorrer as pessoas directa e efectivamente prejudicadas pela decisão, ainda que não sejam parte na causa.
M) É que aquele prejuízo, para poder classificar-se de directo e imediato, tem de resultar da própria decisão e ser actual e positivo (acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 7 de Dezembro de 1993, no Boletim do Ministério da Justiça, n.º 432, pág. 298, e acórdãos do Tribunal Constitucional n.º 829/96, de 28 de Junho de 1996, no Diário da República, II Série, de 5 de Março de 1998, e n.º 188/98, de 19 de Janeiro de 1998).
N) Ora, tal prejuízo não resultou para os primitivos réus da sentença que os absolveu do pedido da primitiva autora:
- nesta decisão não ficou provado que, além da primitiva autora não houvesse mais qualquer parente em condições de requerer a pensão por morte do sinistrado C nos termos do n.º 1 da Base XIX da Lei n. 2127, de 8 de Agosto de 1965, facto sem a prova do qual nunca seria actual e positiva a pretensão do Centro;
- nos termos do artigo 144, n. 3, in fine, do Código de Processo do Trabalho aplicável, a pretensão do Centro dependia de ele assim o requerer, facto ainda controvertido, de que a questão da excepção de caducidade do exercício da sua acção, mal ou bem decidida pelas instâncias, é prova evidente.
O) Do exposto resulta que, considerando o facto de a primitiva autora não ter interposto recurso da primitiva sentença, estavam os então réus impedidos de dela recorrer, por forma principal ou subsidiária, atento o disposto no artigo 680.º do Código de Processo Civil.
P) Em qualquer caso, trata-se de uma questão moral facultar aos ora recorrentes a possibilidade de discutir nestes autos a caracterização do acidente, mais que não seja porque a primitiva sentença decidiu contra caso julgado formal do processo e contra a jurisprudência dominante, que aceita aquela discussão em fase contenciosa do processo e que a mesma possa resultar dos factos tidos por provados pela Relação, ainda que essa caracterização tenha sido aceite por qualquer das partes (trabalhador, entidade patronal e seguradora) em sede de conciliação.
Nestes termos e nos mais de direito, deve a presente revista ser julgada procedente e, por via dela, serem revogadas a douta sentença da primeira instância e o douto acórdão da Relação, na parte em que consideraram definitivamente caracterizado o acidente dos autos como de trabalho, em respeito às normas do caso julgado, por violação do disposto no artigo 659.º, n.º 2, do Código de Processo Civil, e ser proferida decisão de mérito, pela qual se reconheça expressamente aos recorrentes o direito a, nestes autos, contraditar agora aquela caracterização, com todas as legais consequências."

Não foram apresentadas contra-alegações.
Neste Supremo Tribunal de Justiça, o representante do Ministério Público emitiu o parecer de fls. 214 a 216, no sentido da negação da revista, que, notificado às partes, suscitou a resposta dos recorrentes de fls. 224.
Colhidos os vistos dos Juízes Adjuntos, cumpre apreciar e decidir.

2. Matéria de facto
As instâncias deram como apurados os seguintes factos, com interesse para a decisão da causa:
1) C trabalhava sob as ordens, direcção e fiscalização dos réus A e B, com sede na Quinta Morgadinha, ... , r/c, Lazarim, 2825 Charneca de Caparica;
2) Desempenhando as funções inerentes à categoria profissional de oficial de 2.ª;
3) Mediante a remuneração de 63130$00 x 14 meses;
4) A responsabilidade infortunística laboral estava transferida para a 1.ª ré, Companhia de Seguros ..., SA - actualmente denominada ..., Companhia de Seguros, SA - através do contrato de seguro titulado pela apólice n.º 1339482;
5) No dia 9 de Maio de 1994, pelas 17h30m, depois de ter concluído o seu trabalho diário, C deslocou-se ao 2.º andar do prédio onde estava a trabalhar e, ao abeirar-se da abertura por onde entrava o carro da massa içado pelo guincho, caiu para a rua, vindo a embater com a cabeça na cobertura em madeira colada em redor da betoneira que se encontrava no exterior e daí tombou para o solo;
6) Tal evento provocou-lhe fractura do crânio, com laceração do encéfalo, que lhe causaram directa e necessariamente a sua morte;
7) Em decisão proferida no processo emergente de acidente de trabalho que correu neste Tribunal sob o n.º 226/94, transitada em julgado, foi decidido que o acidente dos autos é um acidente de trabalho;
8) Essa mesma decisão concluiu que o acidente resultou de culpa da entidade patronal da vítima;
9) Nessa decisão os réus foram absolvidos porque não se provou que a vítima contribuísse com regularidade para o sustento da autora nem a necessidade por parte desta da contribuição do sinistrado;
10) Desta decisão, proferida em 14 de Fevereiro de 1997, não foi interposto recurso por qualquer das partes;
11) A vítima não deixou familiares com direito a pensões por morte;
12) Os presentes autos deram entrada em Tribunal no dia 10 de Abril de 1997;
13) Em 8 de Maio de 1997 foi efectuada a tentativa de conciliação, que se frustrou;
14) Com data de 4 de Junho de 1997 foi proferido despacho suspendendo a instância ao abrigo do artigo 122.º, n.º 4, do Código de Processo do Trabalho;
15) Em 22 de Junho de 1998 foi proferido despacho declarando interrompida a instância ao abrigo do artigo 285.º do Código de Processo Civil;
16) A petição deu entrada no Tribunal em 5 de Janeiro de 1999;
17) A faleceu no dia 6 de Agosto de 1998;
18) Como seus sucessores foram habilitados B, D e E.

3. Fundamentação:
Como resulta do precedente relatório, a questão central colocada no presente recurso prende-se com a formação, ou não, de caso julgado sobre as decisões, contidas na sentença de 14 de Fevereiro de 1997, proferida no processo n.º 226/94 do Tribunal do Trabalho de Almada (acção intentada pela mãe do sinistrado), de caracterizar o acidente em causa como acidente de trabalho e de considerar que o mesmo ocorreu por culpa da entidade patronal, embora de seguida a acção tivesse sido julgado improcedente e os réus absolvidos do pedido por não se haver provado que o sinistrado contribuía regularmente para o sustento da autora nem que esta carecesse do auxílio económico da vítima.
Interessará começar por realçar que não se mostram decisivas, para o êxito do presente recurso, as considerações tecidas nas decisões das instâncias quanto a eventual erro do autor da presente acção na escolha do meio processual que utilizou.
Na verdade, a sentença da 1.ª instância considerou que não se justificava a instauração da presente acção (autónoma) emergente de acidente de trabalho, pois, estando em causa "a efectivação de direitos de terceiros conexos com acidente de trabalho", como seria o direito do Centro Nacional de Protecção contra os Riscos Profissionais ao percebimento da importância peticionada, deveria ter-se seguido o processamento por apenso ao primeiro processo, previsto no artigo 156.º, n.º 1, do Código de Processo do Trabalho, e que a circunstância de tal não ter sido seguido não impedia a aplicação do disposto no n.º 2 desse artigo 156.º, segundo o qual "as decisões transitadas em julgado que tenham por objecto a qualificação do sinistro (...) como acidente de trabalho (...) ou a determinação da entidade responsável têm valor de caso julgado para estes processos" (de efectivação de direitos de terceiros conexos com acidente de trabalho). Diversamente, o acórdão ora recorrido entendeu que o direito accionado não era qualificável como "direito de terceiro" (como o são, por exemplo, os créditos dos prestadores de serviços de enfermagem, de assistência médica e medicamentosa, de próteses, etc., ao sinistrado), pois o Centro é titular ou beneficiário de um direito decorrente do próprio acidente de trabalho (e não porque tenha efectuado qualquer prestação ou serviço em benefício do sinistrado e de que pretenda agora ser indemnizado); mas, apesar disso, considerou que o pedido deveria ter sido formulado no próprio processo de acidente n.º 226/94, por razões de economia processual e por aplicação analógica do disposto no artigo 146.º do Código de Processo do Trabalho, e não mediante a criação de um novo processo.
No entanto, fosse qual fosse o meio processual mais adequado (acção separada, formulação do pedido nos autos da primeira acção ou por apenso a esta acção), sempre haverá que apurar (mesmo que se considerasse aplicável a regra do n.º 2 do citado artigo 156.º) se as decisões que tiveram por objecto, na primeira acção, a qualificação do sinistro como acidente de trabalho e a determinação da entidade responsável transitaram, ou não, em julgado.
Dispõem os artigos 671.º, n.º 1, e 673.º do Código de Processo Civil, que, "transitada em julgado a sentença, a decisão sobre a relação material controvertida fica tendo força obrigatória dentro do processo e fora dele nos limites fixados pelos artigos 497.º e seguintes" - isto é, existindo identidade de sujeitos ("quando as partes são as mesmas sob o ponto de vista da sua qualidade jurídica"), de pedido ("quando numa e noutra causa se pretenda obter o mesmo efeito jurídico") e de causa de pedir ("quando a pretensão deduzida nas duas acções procede do mesmo facto jurídico") - e que "a sentença constitui caso julgado nos precisos limites e termos em que julga".
Na primeira acção, a relação material controvertida respeitava ao direito da mãe da vítima de acidente de trabalho ao percebimento da pensão prevista na Base XIX, n. 1, alínea e), da Lei n. 2127, pelo que o caso julgado que se formou por não ter sido impugnada a sentença, nessa acção proferida, que não reconheceu esse direito cingiu-se, em primeira linha, a essa decisão.
Acontece, porém, que, na estrutura lógica da sentença, o respectivo autor entendeu que só faria sentido discutir a existência de direito à pensão se, primeiro, se constatasse ter-se tratado de acidente de trabalho e, apurado isso, se determinasse a entidade responsável. E, por isso, antes de decidir pela inexistência do direito peticionado, decidiu que o acidente em causa era qualificável como de trabalho (por nisso ter havido acordo na tentativa de conciliação, considerando irrelevante a alegação dos então réus patronais, de que haviam laborado em erro, só posteriormente detectado) e que ocorrera por culpa da entidade patronal. Ora, tem sido jurisprudencial e doutrinalmente sustentado que o caso julgado não abrange apenas a decisão contida na parte conclusiva da sentença, mas também as decisões alcançadas na respectiva fundamentação que sejam precedente lógico necessário daquela decisão final. Mas, aqui, importa não confundir a precedência lógica no tratamento das questões do condicionamento lógico necessário da decisão final por uma decisão intercalar. No presente caso, não faria sentido apreciar a questão da existência do direito da mãe do sinistrado a uma pensão por acidente de trabalho sem previamente apreciar a questão da caracterização do acidente como de trabalho, mas a resposta afirmativa a esta questão não determinava inexoravelmente a resposta a dar àquela. O tratamento da questão da caracterização do acidente devia preceder logicamente a questão do reconhecimento do direito peticionado pela então autora, mas só se tivesse resposta negativa é que condicionava, desde logo, a decisão final, que não poderia ser outra senão a improcedência do pedido. Mas se fosse positiva (reconhecendo-se o acidente como de trabalho), tudo ficava em aberto, dependendo a procedência do pedido da prova da regularidade da contribuição do sinistrado para o sustento da autora e da carência desta do auxílio económico do seu filho. Isto é: o reconhecimento do acidente como de trabalho tinha precedência lógica sobre o reconhecimento do direito da autora mas não condicionava inexoravelmente este reconhecimento.
Nestas condições, não se pode considerar abrangida pelo caso julgado a pronúncia constante da fundamentação da sentença da primeira acção no sentido da caracterização do acidente como de trabalho, ao que se liga a inadmissibilidade de eventual recurso interposto pelos réus patronais contra aquela sentença, por ilegitimidade e/ou falta de interesse em agir dos recorrentes.
Resulta do artigo 680.º do Código de Processo Civil que os recursos só podem ser interpostos por quem, sendo parte principal na causa, tenha ficado vencido e por quem, não sendo parte principal (partes acessórias e terceiros) tenha sido directa e efectivamente prejudicado pela decisão, sendo, assim, pressuposto necessário à legitimidade para recorrer "o gravame ou prejuízo real sofrido", como refere Fernando Amâncio Ferreira (Manual dos Recursos em Processo Civil, 3.ª edição, Coimbra, 2002, págs. 122 e 123), que, após citar Manuel de Andrade ("Diz-se vencida a parte que sofreu gravame com a decisão; a quem ela foi desfavorável. Este gravame ou desfavor afere-se por um critério prático. Não por um critério puramente teórico. Assim, o réu não pode recorrer (pelo menos em princípio) se foi absolvido da instância ou do pedido por fundamentos que não alegou, ou só por algum dos fundamentos alegados, com rejeição dos outros"), prossegue: "Só a parte que sucumbiu, por não ter obtido do tribunal a «coisa» objecto da demanda (segundo a formulação do artigo 163.º, n.º 3, do Código de Processo Civil italiano) ou por não ver reconhecidos todos os efeitos jurídicos pretendidos, pode impugnar a decisão. No caso de sucumbência parcial, a parte apenas pode impugnar o segmento da sentença em que decaiu. E tal sucumbência deve apurar-se pelo exame da parte decisória da sentença e não pelos respectivos fundamentos, que podem ser diferentes dos alegados pela parte. Assim, esta pode pedir a anulação do contrato por incapacidade e por dolo e a sentença julgar a acção procedente somente com base na incapacidade, dando por inverificado o dolo ou, então, com base na nulidade do contrato por vício de forma. Tanto num caso como noutro a parte não pode recorrer, embora, como se verá adiante, possa pedir a ampliação do âmbito do recurso a fim de serem conhecidos os fundamentos em que decaiu (artigo 684.º-A)."
No presente caso, era inadmissível (e, logo, inexigível) que os réus patronais interpusessem recurso de uma sentença que os absolvera do pedido, apesar de na respectiva fundamentação não ter sido acolhido uma das linhas da sua defesa (a inexistência de acidente de trabalho). E, não tendo a autora da primeira acção, única parte com legitimidade para o fazer, interposto recurso da sentença nela proferida, nem sequer surgiu para os ora recorrentes a possibilidade de pedirem, na contra-alegação, a ampliação do âmbito do recurso a fim de serem conhecidos os fundamentos em que decaíram, ao abrigo do aludido artigo 684.º-A do Código de Processo Civil.
Nem se diga, como se disse no despacho saneador-sentença proferido nestes autos, que os réus bem sabiam que da sentença proferida na primeira acção resultava para eles a obrigação de pagarem ao ora autor a importância referida no n. 5 da Base XIX da Lei n. 2127, pois tal não se tratava de prejuízo directa e efectivamente derivado daquela decisão, estando dependente de eventual accionamento pelo titular do crédito e da inexistência, ao tempo não apurada, de outros familiares da vítima com direito a pensão, e, como se viu, a legitimidade para recorrer deve aferir-se por um critério prático.
Não deixa, aliás, de ser significativo que, na presente acção, o primeiro pedido formulado pelo autor tenha sido justamente o de que se reconheça o acidente como de trabalho, o que evidencia que, na sua perspectiva, sobre essa questão não era oponível aos réus qualquer caso julgado. E, similarmente, que a ré seguradora, na sua contestação, venha articular factos para demonstrar que o acidente se deveu a culpa da entidade patronal, sem aludir sequer a pretenso caso julgado formado na primeira acção sobre essa questão.
Há, pois, que reconhecer que a razão está do lado dos recorrentes.

4. Decisão:
Em face do exposto, acordam em conceder provimento ao presente recurso, revogando o acórdão recorrido, na parte impugnada, e determinando o prosseguimento dos autos na 1.ª instância também para conhecimento das questões relativas à caracterização do acidente como de trabalho (incluindo a questão do valor do acordo obtido na tentativa de conciliação) e à culpa da entidade patronal na sua verificação.
Sem custas.

Lisboa, 30 de Abril de 2002.
Araújo Torres,
Manuel Pereira,
José Mesquita.