Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
405/06.3TBMNC-C.G1.S1
Nº Convencional: 2.ª SECÇÃO (CÍVEL)
Relator: CATARINA SERRA
Descritores: ADMISSIBILIDADE DE RECURSO
OFENSA DO CASO JULGADO
CASOS JULGADOS CONTRADITÓRIOS
OBJETO DE RECURSO
CASO JULGADO
TRÂNSITO EM JULGADO
Data do Acordão: 04/23/2020
Votação: UNANIMIDADE
Referência de Publicação:
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA
Sumário :
I. Tendo o recurso sido interposto ao abrigo do fundamento especial previsto no artigo 629.º, n.º 2, al. a), do CPC (a ofensa do caso julgado), o objecto do recurso terá se se circunscrever à questão de saber se ocorre a alegada ofensa do caso julgado.

II. Quando as decisões não são contraditórias não há que convocar a norma do artigo 625.º do CPC nem que dar prevalência à decisão transitada em julgado primeiro lugar.

Decisão Texto Integral:
ACORDAM NO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA



I. RELATÓRIO


1. Por apenso à acção executiva em que são exequentes AA e BB e executados CC e outros, vieram estes deduzir oposição à execução mediante embargos de executado, alegando, em síntese, que o Acórdão que serve de título executivo não tem o alcance pretendido pelos exequentes, porquanto embora os exequentes tivessem logrado obter o reconhecimento do direito de servidão alegado no ponto 2. do requerimento executivo, o exercício de tal direito foi paralisado pela aplicação de instituto do abuso do direito, pelo que os pedidos deduzidos pelos exequentes que configuravam o exercício da servidão da passagem foram declarados improcedentes, ou seja, o título executivo não deixa dúvidas em relação ao exercício do direito de passagem, no sentido de estarem os exequentes impedidos de passarem no prédio dos executados.

Alegam ainda que os exequentes / embargados deduzem uma pretensão cuja falta de fundamento não deviam ignorar, alteram a verdade dos factos, utilizam os meios processuais de forma manifestamente reprovável, com o fim de obterem o exercício de um direito que, bem sabem, não podem exercer, pretendem impedir a descoberta da verdade material, alegando, no seu requerimento executivo, apenas o reconhecimento, pelo título executivo, do seu direito de passagem, mas omitindo, pelo mesmo título executivo, a paralisação de exercer esse direito e concluindo que litigam declarada e ostensivamente de má-fé. Pedem, portanto, a sua condenação a pagar uma indemnização aos embargantes, num montante nunca inferior a € 1.000, para pagamento de honorários ao mandatário dos embargantes e demais despesas com o processo, bem como em multa condigna, nunca inferior a € 1.500.


2. Regularmente notificados para contestar, os exequentes / embargados pugnam pela improcedência, por não provada, da oposição deduzida, alegando, em síntese, que se trata de decisões contraditórias (a que se executa e a que fundamenta esta oposição).

Terminam dizendo que são os executados / embargantes que agem de má fé e que, por isso, devem ser condenados como litigantes de má fé, em multa e indemnização aos executados, no mínimo de € 2.000,00, pelas despesas e honorários ao advogado subscritor, provocadas com a presente oposição (fls. 9 a 15).


3. Os autos prosseguiram e foi proferida sentença na qual se decidiu:

Nestes termos, o tribunal decide:

▪ julgar totalmente procedentes por provados os presentes embargos de executado e, consequentemente, declarar extintos os autos principais de execução de que o presente incidente é apenso;

▪ condenar os exequentes/embargados no pagamento das custas processuais”.


4. Inconformados, os exequentes / embargados interpuseram recurso para o Tribunal da Relação de Guimarães.


5. Em 24.10.2019 este Tribunal proferiu um Acórdão contendo a seguinte decisão:

 “Pelo exposto, acordam os Juízes desta Secção em julgar a apelação improcedente, confirmando a sentença recorrida”.


6. Não se resignando, vêm agora AA e Filhos, ao abrigo do disposto na al. a) do n.º 2 do art. 629.º do CPC, interpor recurso de revista do Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães, pedindo a sua revogação.

Os recorrentes terminam as suas alegações formulando as seguintes conclusões:

A Contrariamente ao afirmado no douto Acórdão recorrido, a decisão que se executa, e que integra a sentença proferida nos autos principais (Proc.º 405/06.3TBMNC) é contrária à decisão absolutória que consta e faz parte da mesma sentença.

B – Nos termos do Art.º 625º do C.P.C., havendo duas decisões contraditórias, cumprir-se-á a que passou em julgado em primeiro lugar.

C – A decisão que se executa transitou em julgado em primeiro lugar, sendo que não houve apelação da mesma e, pelo contrário, existiu apelação da decisão absolutória, até, por que, contrária a executada, arguindo a nulidade, os recorrentes.

D – Admitindo o douto Acórdão recorrido, não existir contraditoriedade entre as decisões, proferidas na sentença sobredita, e que as mesmas transitaram em julgado conjuntamente, estamos perante a ofensa do caso julgado.

E – Tal ofensa do caso julgado de que infra se tratará, é o requisito necessário para a interposição do presente recurso, nos termos, da parte final, da al. a), do n.º 2, do Art.º 629º, do C.P.C..

F – O trânsito em julgado é uma questão de direito sendo facto que o Supremo Tribunal se pode pronunciar.

G – Além disso, constam dos autos principais (Proc.º n.º 405/06.3TBMNC) os documentos de recursos e reclamações, suficientes para o Supremo Tribunal de Justiça se pronunciar sobre o trânsito das decisões que compõem a sentença proferida em tal processo, como infra se exporá.

H – A decisão que se executa e mereceu a oposição por embargos das recorridas, transitou em julgado em 10/04/2015, pois é favorável aos recorrentes e só estes é que apelaram da decisão absolutória e não da decisão que lhes foi favorável, como é evidente.

I – Daí o douto Acórdão do Tribunal da Relação de 21/04/2016 só confirmar a decisão recorrida, ou seja, a desfavorável aos recorrentes, não se podendo interpretar relativamente à totalidade da sentença da primeira instância, o que, pelo que ficou dito, é evidente.

J – Esta decisão apreciada pelo Acórdão de 21/04/2016 só transitou em julgado após esta data, sendo que a que se executa transitou em julgado mais de um ano antes desta decisão, ou seja, em 10/04/2015.

K – Assim, os acórdãos de 21 de abril e de 30 de junho, ambos de 2016, não se pronunciaram sobre o conteúdo da sentença, como se afirma no douto Acórdão recorrido, mas, tão só, sobre parte do conteúdo da sentença, ou seja, sobre a decisão absolutória, da alínea c), da mesma sentença.

L Contrariamente ao que se afirma no douto Acórdão recorrido, há decisões contraditórias na sentença de que se executa: as decisões nela expressas nas alíneas a) e b) que são a declaração do direito de propriedade dos recorrentes sobre o prédio dominante e a declaração e constituição do direito de servidão de passagem, por destinação de pai de família, a favor do prédio dos recorrentes e a onerar o prédio das recorridas, condenando estas a reconhecerem tais direitos, que são contrários à decisão absolutória da alínea c) da sentença, que retira a utilização de tal direito de servidão de passagem, paralisando-o.

M Havendo decisões contraditórias sobre a mesma pretensão, o que sucede, contrariamente ao decidido no Acórdão recorrido, cumpre-se a que passou em julgado em primeiro lugar, de acordo com o disposto no Art.º 625º do C.P.C..

N – Ora, como ficou exposto, as decisões que passaram em julgado em primeiro lugar foram as expressas nas alíneas a) e b) da sentença referida, e que se executou o direito de servidão de passagem aí declarado e constituído.

O – Quer a sentença dos embargos quer o douto Acórdão recorrido fazem uma interpretação ao arrepio do disposto nos Art.os 1543º, e segs. do C. Civil, quanto ao direito da servidão de passagem e ao seu conteúdo, e do Art.o 625º do C.P.C, quanto à execução de decisões contraditórias, violando expressamente tais dispositivos legais.

P – Conforme o sobredito, terão que ser alterados os pontos 4 e 5, da matéria de facto dada como provada no douto Acórdão recorrido, pois tratam de questões de direito e existem documentos nos autos principais, que estes correm por apenso, suficientes pra evidenciarem tal alteração quanto ao trânsito em julgado.

Q – Assim, terão tais pontos que serem corrigidos, para que este Supremo Tribunal tem competência, dando-se como provados:

- 4. A decisão proferida em c) da sentença referida em 2., foi confirmada pelos Acórdãos do Tribunal da Relação de Guimarães de 21-04-2016 e de 30-06-2016;

- 5. As decisões proferidas em a) e b), da sentença referida em 2., transitaram em julgado em 10/04/2015, enquanto que, a decisão da alínea c), da referida sentença, transitou em 11 de setembro de 2017.

R – Na sentença recorrida, como se disse, não se atendeu que na ação principal, onde foi proferida a sentença de que se executava parte decisória, havia duas decisões totalmente contraditórias.

S – Entendeu-se, porém, que a decisão sobre a paralisação do exercício da servidão de passagem, mesmo transitada em julgado posteriormente à decisão que declarava a constituição do direito de servidão de passagem, por destinação de pai de família, cujo exercício era nuclear, sendo um direito real de gozo, aquela é que predomina, em relação a esta que se executa, nos termos do disposto no Art.º 625º, do C.P.C..

T – Como supra já devidamente se explanou, tratava-se de decisões contraditórias, com trânsitos em julgado diferentes, além da ofensa do princípio “ne bis in idem” da sentença de que se executou parte decisória.

U – Além disso, se se aceitasse a sentença da primeira instância e o Acórdão recorrido, verificar-se-ia, mais um fundamento de extinção das servidões – abuso do direito – às taxativamente enunciados no Art.º 1569º, do Código Civil, sendo, por esta via, nula tal decisão, nulidade que deve ser conhecida a todo o tempo.

V – Na execução tem-se por fundamento a parte da sentença que transitou em julgado em primeiro lugar – declaração do direito de servidão -, em prejuízo da parte da decisão que transitou em julgado posteriormente, sendo as mesmas contraditórias.

W – Tratando-se de duas decisões contraditórias e aplicando-se o disposto, no Art.º 625º, do C.P.C., cumpre-se a que passou em julgado, em primeiro lugar.

X – Sendo, esta, a fundamentação da propositura da execução que os recorrentes deduziram, como é expresso, quer no requerimento executivo quer na contestação dos embargos.

Y – Os recorrentes, não omitindo a parte da sentença favorável às apeladas, só executando a parte decisória da sentença transitada em julgado em primeiro lugar e que lhe é contrária, não ignoram o conteúdo da sentença, apenas procederam segundo o modesto entendimento do disposto no Art.º 625º, do C.P.C..

Z – Atuaram os recorrentes, na execução, usando de um direito fundamental que lhes assistia, convencidos da fundamentação jurídica do Art.º 625º, citado, para o fazerem.

AA – Os recorrentes com tal comportamento, tanto em termos materiais, como processuais, jamais litigaram de má fé, nos termos do n.º 2, do Art.º 542º, do C.P.C..

AB – A sentença recorrida infringiu, entre outros, os dispositivos dos Art.os 542º, 615º, n.º 1, al. d), 625º, 729º e 732º, n.º 4, do C.P.C. e Art.os 281º, 286º, 295º e 1543º e seguintes, todos do Código Civil”.


7. Contra-alegaram, por seu turno, DD e EE, em defesa da inadmissibilidade do recurso ou, subsidiariamente, da manutenção do Acórdão recorrido.


8. O recurso foi admitido por decisão singular do Exmo. Desembargador Relator proferida em 17.12.2019.


Sendo o objecto do recurso delimitado pelas conclusões do recorrente (cfr. artigos 635.º, n.º 4, e 639.º, n.º 1, do CPC), sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso (cfr. artigos 608.º, n.º 2, ex vi do artigo 663.º, n.º 2, do CPC), a única questão a decidir, in casu, é a de saber se o Acórdão recorrido violou o caso julgado.


*


II. FUNDAMENTAÇÃO

OS FACTOS

São os seguintes os factos que vêm provados no Acórdão recorrido:


1. Correu termos neste Tribunal acção declarativa com forma de processo sumário n.º 405/06.3TBMNC, onde eram autores AA, BB, CC, FF, GG, e HH, NIF 1…5, na qualidade de herdeiros da herança ilíquida e indivisa aberta por óbito de II, e réus JJ, KK, LL, MM, NN e OO, na qualidade de herdeiros da herança ilíquida e indivisa aberta pelo óbito de PP, todos entretanto substituídos (por meio de incidente de habilitação de cessionário) pelas rés EE e DD, formulando os seguintes pedidos:

- lhes fosse reconhecido o direito de propriedade sobre o prédio melhor identificado no art. 2.º da petição inicial, configurado no esboço do documento n.º 5 junto com aquela peça processual, sendo os réus condenados a retirarem os bens que em tal prédio depositam/colocam, restituindo a parte que indevidamente ocupam, respeitando a linha divisória do mesmo configurada no dito documento;

- fosse reconhecida uma servidão de passagem em favor dos autores sobre uma faixa de terreno com a largura de 2,5 metros e com a extensão de cerca de 15 metros, localizada a poente do prédio pertença da herança representada pelos réus inscrito na matriz sob o art. 114.º, freguesia de …, desimpedindo tal faixa de terreno;

- fossem os réus condenados a absterem-se da prática de quaisquer actos que impeçam ou diminuam a utilização por parte dos autores dos rossios do seu prédio e da faixa de terreno objecto da servidão.

2. No processo referido em 1., por sentença de 07-02-2015, foi proferida a seguinte decisão:

“Termos em que se se decide julgar parcialmente procedente a acção e, consequentemente:

a) declarar que os autores são donos e legítimos possuidores do prédio rústico identificado no ponto A) da factualidade assente;

b) declarar que o prédio identificado em C) da factualidade assente está onerado a favor do prédio identificado no ponto A) da factualidade assente com uma servidão de passagem constituída por destinação de pai de família, passagem esta que tem a extensão melhor enunciada em F) da factualidade assente.;

c) absolver os réus do demais peticionado.”

3. Na fundamentação da sentença referida em 2. diz-se o seguinte que se transcreve: “Em face de tal factualidade, há que concluir que, de facto, resulta demonstrada a constituição da servidão por destinação de pai de família (…) Ora, a acção material do antecessor dos autores não pode deixar de se configurar senão como uma renúncia ao direito de servidão de passagem sobre o prédio das rés. Mas porque tal renúncia não foi formalizada, só poderá ser atendida na sua formulação tácita, não se lhe podendo reconhecer, em consequência, qualquer eficácia real, ou seja, o efeito extintivo do direito real de servidão, mas apenas eficácia meramente obrigacional (…) pelo que o pedido de reconhecimento da existência da servidão terá que proceder nos termos peticionados. Mas já não poderá proceder o pedido que visava a remoção dos estorvos ao exercício da servidão por, nesta parte, ante a apurada renúncia tácita à servidão, haver claro abuso de direito. (…) Tudo o exposto vale para dizer que, se bem que os autores logrem pela acção obter o reconhecimento do direito de servidão de que se arrogam (por da renúncia não formalizada não se poder extrair eficácia real), decide-se paralisar o exercício de tal direito pela aplicação do instituto do abuso de direito, atenta a apurada renúncia tácita da servidão, pelo que os pedidos por si deduzidos que configuram exercício da servidão não merecerão procedência.”;

4. A sentença referida em 2., foi confirmada pelos Acórdãos do Tribunal da Relação de Guimarães de 21-04-2016 e de 30-06-2016;

5. A sentença referida em 2., transitou em julgado em 11 de Setembro de 2017.

Têm ainda interesse para a decisão da causa os dados contidos na passagem do Acórdão recorrido que se reproduz:

“Conforme resulta dos autos, em 21 de Abril de 2016 foi proferido acórdão por esta Relação em que se decidiu e refere o seguinte:

'(…) Assim, por força do instituto do abuso de direito devem ser paralisados os efeitos decorrentes do reconhecimento da servidão de passagem, como se entendeu na decisão recorrida. O abuso de direito não pode converter uma renúncia que não obedeceu à forma legal, numa renúncia válida, como também defendem as apeladas, mas permite a paralisação dos efeitos decorrentes do direito que se pretendeu exercer abusivamente.

Pelo exposto, acordam os juízes deste Tribunal, em julgar improcedentes as apelações e consequentemente em confirmar a decisão recorrida.

Custas pelos apelantes. Guimarães, 21 de Abril de 2016'

Os exequentes/embargados autores na acção vieram invocar a nulidade do acórdão.

Em 30 de Junho de 2016 foi proferido acórdão por esta Relação que desatendeu a alegada nulidade.

Os autores então interpuseram recurso para o STJ que não foi admitido em 11/1/2017.

Reclamaram para o STJ da não admissão do recurso. A reclamação foi indeferida.

Reclamaram para a Conferência do despacho de indeferimento da reclamação da Exmª Conselheira.

A Conferência confirmou o despacho.

Voltaram os autores a insistir para que o Tribunal da Relação apreciasse os fundamentos da reclamação do acórdão proferido em 30 de Junho de 2016.

A Exmª Desembargadora Relatora em 11 de Dezembro de 2017 decidiu que nada havia a conhecer.

Então os autores reclamaram para a Conferência deste despacho e por acórdão de 1 de Março de 2018 foi decidido desatender a reclamação e confirmar o despacho.

Deste modo, temos que concluir que os acórdãos de 21 de Abril e de 30 de Junho, ambos de 2016, pronunciaram-se sobre o conteúdo da sentença, tendo-a confirmado”.


O DIREITO


Da admissibilidade do recurso e das suas consequências na delimitação do objecto do recurso

Está em causa um recurso de revista de decisão proferida no âmbito do processo executivo, que se subordina à disciplina especial dos artigos 852.º e 854.º do CPC.

De acordo com esta disciplina, ressalvados os casos em que o recurso é sempre admissível, apenas cabe revista, nos termos gerais, dos acórdãos da Relação proferidos nos procedimentos de liquidação não dependente de simples cálculo aritmético, de verificação e graduação de créditos e de oposição deduzida contra a execução (cfr. artigo 854.º do CPC).

No caso sub judice está em causa um acórdão proferido em sede de oposição à execução mas verifica-se que, por um lado, existe dupla conformidade decisória e, por outro, o valor da causa (fixado em € 5.000,01) não ultrapassa a alçada dos Tribunais da Relação. A revista seria, assim, inadmissível nos termos gerais (cfr. artigos 629.º, n.º 1, 671.º, n.º 3, e 854.º, todos do CPC, e artigo 44.º, n.º 1, da LOSJ).

Todavia, há que ter ainda em conta os casos de admissibilidade irrestrita do recurso, elencados no artigo 629.º, n.º 2, do CPC e expressamente ressalvados pelo disposto na primeira parte dos artigos 854.º e 671.º, n.º 3, do CPC.

Ora, considerando que, in casu, os recorrentes alicerçam o recurso na ofensa de caso julgado a que alude o artigo 629.º, n.º 2, al. a), do CPC, a revista será, a final, admissível ao abrigo desta norma.

Tendo o recurso sido interposto ao abrigo do fundamento especial previsto no artigo 629.º, n.º 2, al. a), do CPC (a ofensa do caso julgado), o objecto do recurso terá se se circunscrever, como vem sendo reiteradamente afirmado na jurisprudência deste Supremo Tribunal[1], à questão de saber se ocorre a alegada ofensa do caso julgado[2].

Significa isto que, não sendo de conhecimento oficioso, não poderão ser apreciadas as demais questões suscitadas pelos recorrentes nas suas conclusões da revista, designadamente a alteração da matéria de facto e a litigância de má fé.

Quanto à referência à violação do artigo 615.º, n.º 1, al. d), do CPC (cfr. conclusão AB), pouco pode dizer-se. Ainda que se considerasse que esta nulidade é uma questão específica, que tem sempre de ser apreciada, como os recorrentes se limitam a alegar a violação da norma numa conclusão genérica (em que se elencam todas as normas que, no entender dos recorrentes, foram violadas) e não dizem em que é que ela, precisamente, se consubstancia (nem sequer se se trata de vício de omissão de pronúncia ou de vício de excesso de pronúncia), torna-se difícil apreciá-la. Sempre se diz, no entanto, que não se encontram no Acórdão recorrido sinais de violação desta norma.

Dito isto pode passar-se à única questão subsistente: a alegada violação do caso julgado.


Da alegada ofensa de caso julgado

Como ensina Manuel de Andrade, o caso julgado (fórmula abreviada de “caso que foi julgado”) encontra a sua razão de ser na necessidade de salvaguarda do prestígio dos tribunais e da certeza e da segurança jurídicas[3].

Na expressão “caso julgado” cabem, em rigor, a excepção de caso julgado e a autoridade de caso julgado, muitas vezes designadas, respectivamente, como a “vertente negativa” e a “vertente positiva” do caso julgado[4].

A excepção de caso julgado tem por fim evitar que o tribunal seja colocado na alternativa de contradizer uma decisão anterior. Nesta vertente, o caso julgado compreende limites (subjectivos e objectivos): pressupondo o caso julgado uma repetição de causas, a repetição pressupõe, por sua vez, identidade dos sujeitos, identidade do pedido e identidade da causa de pedir (cfr. artigo 581.º do CPC)[5].

Por seu turno, a autoridade de caso julgado tem o efeito de impor uma decisão e por isso constitui a “vertente positiva” do caso julgado. Diversamente da excepção de caso julgado, a autoridade de caso julgado funciona independentemente da verificação daquela tríplice identidade, mas, como se depreende do disposto nos artigos 91.º e 581.º do CPC, abrange a decisão contida na sentença bem como, em certos termos, os seus fundamentos.

Relevantes ainda para a questão em apreço são as normas dos artigos 621.º e 625.º do CPC. Dispõe-se no artigo 621.º do CPC que “[a] sentença constitui caso julgado nos precisos termos em que julga (…)” e no artigo 625.º, n.º 1, do CPC que “[h]avendo duas decisões contraditórias sobre a mesma pretensão, cumpre-se a que passou em julgado em primeiro lugar”.

Os recorrentes invocam a ofensa do caso julgado com base no seguinte raciocínio: a sentença, proferida em prévia acção declarativa de condenação, dada à execução, julgando a acção parcialmente procedente, declarou que se mostra constituída uma servidão de passagem a favor do prédio dos recorrentes e absolveu os então aí réus, aqui recorridos, dos demais pedidos, designadamente do pedido de condenação dos mesmos a desimpedir a faixa de terreno e a abster-se de actos que impeçam ou diminuam o gozo da servidão; porém, como não foi interposto recurso da decisão na parte em que a mesma declarou constituída a servidão (posto que apenas os autores, ora recorrentes, apenas recorreram da parte que lhes era desfavorável, ou seja, da decisão de absolvição dos demais pedidos), aquela primeira decisão – que declarou constituída a servidão – transitou em julgado em primeiro lugar, pelo que, sendo o acórdão que confirmou a parte absolutória da sentença contraditório com aquela parte da sentença, se aplica ao caso o disposto no artigo 625.º do CPC, devendo cumprir-se a decisão que passou em julgado em primeiro lugar.

Por outras palavras, os recorrentes partem da premissa de que a sentença dada à execução contém duas decisões contraditórias entre si e como uma (em que se declarou constituída a servidão) transitou em julgado antes da outra (em que se absolveu os réus dos demais pedidos), não podia esta ser cumprida sob pena de se violar o caso julgado formado por aquela, transitada em primeiro lugar.

Com o devido respeito, não assiste razão aos recorrentes.

Como decorre do relatório que antecede esta fundamentação, o Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães confirmou a decisão do Tribunal de 1.ª instância na conclusão de inexistência de título executivo para a pretensão deduzida pelos recorrentes na execução (a entrega da chave do portão colocado na faixa de terreno por onde se processava a servidão de passagem, assim como uma sanção pecuniária compulsória, por cada dia de atraso na entrega da chave).

Relevou para tanto o facto de se ter entendido que, apesar de ter sido reconhecida, na sentença dada à execução, a constituição de uma servidão de passagem a favor dos prédios dos recorrentes, já não se reconheceu aos então autores, ora recorrentes, o direito de a exercerem, por tal exercício ter sido considerado abusivo e daí a absolvição dos aí réus, aqui recorridos, dos pedidos concernentes ao exercício dessa servidão.

Acompanhe-se mais de perto o discurso, na parte relevante, do Tribunal da Relação de Guimarães:

 “Não há nos autos qualquer decisão contraditória. A sentença foi confirmada na íntegra pelo Tribunal da Relação e o Supremo Tribunal de Justiça apenas se pronunciou sobre a não admissibilidade do recurso, sendo que para a questão a decidir é indiferente se a decisão transitou em julgado na data referida na sentença ou apenas em 15/3/2018, uma vez que a execução foi instaurada em Julho de 2018. O que não está correcto é a data indicada no requerimento executivo pelos exequentes/embargados uma vez que o que estava mesmo em causa no recurso e se pretende com a execução, é o direito dos exequentes em passar e utilizar a faixa de terreno que constitui o caminho de servidão.

Por outro lado, no requerimento executivo pretende-se que seja entregue a chave do portão colocado na faixa de terreno, por onde se processa a servidão de passagem, assim como uma sanção pecuniária compulsória, por cada dia de atraso na entrega da chave.

Toda a execução tem por base um título, pelo qual se determinam o fim e os limites da acção executiva.

O título executivo é, assim, o documento que serve de base à execução: é 'o meio legal de demonstração da existência do direito do exequente – ou que estabelece, de forma ilidível a existência daquele direito – cujo lastro material ou corpóreo é um documento, que constitui, certifica ou prova uma obrigação exequível, que a lei permite que sirva de base à execução'.

'Trata-se de um documento a que, com base na aparência ou probabilidade do direito nele documentado, o ordenamento jurídico assinala um suficiente grau de certeza e de idoneidade para constituir uma condição de exequibilidade extrínseca da pretensão' Ac. do STJ de 27 de Maio de 2014, in www.dgsi.pt.

O título é assim condição necessária da admissibilidade da acção executiva; e será condição suficiente, não havendo desconformidade, formal ou substancial, entre o título e o direito que se pretende executar.

A desconformidade entre o título e a obrigação exequenda pode resultar de vício formal ou substancial da declaração de vontade ou de ciência que lhe constitui o conteúdo ou do acto jurídico a que a declaração de ciência se reporte ou ainda de causa que afecte a ulterior subsistência da obrigação'.

A sentença recorrida é o título dado à execução.

Nela se decidiu que “a) declarar que os autores são donos e legítimos possuidores do prédio rústico identificado no ponto A) da factualidade assente;

b) declarar que o prédio identificado em C) da factualidade assente está onerado a favor do prédio identificado no ponto A) da factualidade assente com uma servidão de passagem constituída por destinação de pai de família, passagem esta que tem a extensão melhor enunciada em F) da factualidade assente.

c) absolver os réus do demais peticionado”

E o que tinha sido peticionado era o seguinte :

- fosse reconhecida uma servidão de passagem em favor dos autores sobre uma faixa de terreno com a largura de 2,5metros e com a extensão de cerca de 15 metros, localizada a poente do prédio pertença da herança representada pelos réus inscrito na matriz sob o art. 114.°, freguesia de …, desimpedindo tal faixa de terreno;

- fossem os réus condenados a absterem-se da prática de quaisquer actos que impeçam ou diminuam a utilização por parte dos autores dos rossios do seu prédio e da faixa de terreno objecto da servidão.

Assim, os réus não foram condenados a desimpedir a faixa de terreno nem a abster-se de actos que impeçam ou diminuam o gozo da servidão, uma vez que se decidiu também que, e passamos a citar 'Tudo o exposto vale para dizer que, se bem que os autores logrem pela acção obter o reconhecimento do direito de servidão de que se arrogam (por da renúncia não formalizada não se poder extrair eficácia real), decide-se paralisar o exercício de tal direito pela aplicação do instituto do abuso de direito, atenta a apurada renúncia tácita da servidão, pelo que os pedidos por si deduzidos que configuram exercício da servidão não merecerão procedência'.

E a referida decisão foi confirmada pelo acórdão desta Relação, conforme já se referiu.

Assim, temos que concluir que o título executivo não concede aos exequentes o pretendido na execução, pois os executados não foram condenados na obrigação pretendida pelos exequentes, o que vale dizer que os exequentes não têm título”.

Decidiu, em síntese, o Tribunal recorrido que o título executivo apresentado pelos recorrentes e materializado na sentença[6], não tinha aptidão para fundar a pretensão executiva dos exequentes, uma vez que esta pretensão era a de que os réus entregassem a chave do portão colocado na faixa de terreno por onde se processava a servidão de passagem e, naquela sentença, os réus não haviam sido condenados a abster-se de actos impeditivos do gozo da servidão[7] (ao invés, haviam sido absolvidos deste pedido).

Ao decidir assim, não incorreu o Tribunal em ofensa do caso julgado pois não contradisse nenhuma decisão anteriormente transitada em julgado.

Na realidade, nunca existiu sequer risco de contradição.

Isto porque os dois segmentos decisórios que integram a sentença não são contraditórios. E não são contraditórios porque num decide-se a questão da titularidade do direito de servidão dos autores, ora recorrentes, e no outro decide-se a questão da condenação dos réus, ora recorridos, a comportamentos impeditivos do exercício do direito de servidão, portanto, ao exercício do direito de servidão, quer dizer: não incidem sobre a mesma pretensão.

As decisões contidas na sentença são, pelo contrário, perfeitamente compatíveis e até coerentes (dizer que o exercício do direito por determinada pessoa está paralisado pelo instituto do abuso do direito pressupõe que essa pessoa seja titular do direito, não obstante não ter a faculdade de o exercer).

Não se confirma, assim, a premissa de que partem os recorrentes – de que a sentença contém duas decisões contraditórias.

Não se confirmando a premissa de que a sentença contém duas decisões contraditórias, não havia que convocar a norma do artigo 625.º do CPC (ela é inaplicável) nem que dar prevalência à decisão transitada em primeiro lugar (o problema de saber se as decisões são autonomizáveis e qual formou caso julgado primeiro nem se põe).

A verdade é que mesmo que a declaração de que o prédio dos réus estava onerado a favor do prédio dos autores com uma servidão de passagem fosse a única decisão constante da sentença, a execução dificilmente procederia nos termos pretendidos pelos recorrentes; continuaria sempre a faltar uma decisão de condenação dos réus a absterem-se de actos impeditivos do gozo da servidão, devendo, da mesma forma, concluir-se que o título executivo dos autores, exequentes / embargados e ora recorrentes, não tem o alcance que eles pretendem.



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III. DECISÃO


Pelo exposto, nega-se provimento à revista e confirma-se o Acórdão recorrido.


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Custas pelos recorrentes.



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LISBOA, 23 de Abril de 2020


Catarina Serra (Relatora)

Bernardo Domingos

João Bernardo

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[1] Cfr., por exemplo, o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 15.02.2017, Proc. 2623/11.3TBSTB.E1.S1, e, em particular, os Acórdãos relatados pela presente Relatora, de 4.07.2019, Proc. 1332/07.2TBMTJ.L2.S1, e de 17.12.2019, Proc. 296/04.9TBPMS-E.C1.S1 (todos disponíveis em http://www.dgsi.pt).

[2] Como diz Abrantes Geraldes [Recursos no Novo Código de Processo Civil, Coimbra, Almedina, 2018 (5.ª edição), p. 50], “nestas situações, a admissibilidade excepcional do recurso não abarca todas as questões que incidam sobre a exceção dilatória de caso julgado, mas apenas aquelas de que alegadamente resulte a 'ofensa' de caso julgado já constituída” (sublinhados do autor). Cfr. ainda a doutrina e a jurisprudência citada na p. 51 (nota 69).

[3] Cfr. Manuel de Andrade, Noções elementares de processo civil, Coimbra, Coimbra Editora, 1979, pp. 306-307.

[4] Além de ser utilizada na doutrina, a distinção é habitual na jurisprudência. Cfr., por todos, Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 30.03.2017, Proc. 1375/06.3TBSTR.E1.S1, e Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça 22.06.2017, Proc. 2226/14.0TBSTB.E1.S1 (ambos disponíveis em http://www.dgsi.pt).

[5] Ao lado da excepção de caso julgado assente sobre a decisão de mérito proferida em processo anterior, existe a excepção de caso julgado baseada em decisão anterior proferida sobre a relação processual. À primeira chama-se “caso julgado material” e está regulada no artigo 619.º do CPC e à segunda chama-se “caso julgado formal” e está regulada no artigo 620.º do CPC.
[6] Como é sabido, nos termos do artigo 10.º, n.º 5, do CPC, toda a execução tem por base um título (“nulla executio sine titulo”). Apenas têm força executiva os títulos (judiciais e extrajudiciais) enumerados taxativamente na lei e, nos termos do artigo 703.º, n.º 1, al. a), do CPC, (apenas) a sentença condenatória pode servir de base à execução.
[7] A apresentação do título executivo é o acto pelo qual o exequente introduz no processo a situação substancial. Os títulos executivos podem definir-se como “(…) os documentos (escritos) constitutivos ou certificativos de obrigações que, mercê da força probatória especial de que estão munidos, tornam dispensável o processo declaratório (ou novo processo declaratório) para certificar a existência do direito do portador” [cfr. Antunes Varela / Miguel J. Bezerra / Sampaio e Nora, Manual de processo civil, Coimbra, Coimbra Editora, 21985 (2.ª edição), pp. 78-79 (itálicos dos autores)].