Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça | |||
Processo: |
| ||
Nº Convencional: | 3.ª SECÇÃO | ||
Relator: | ANA BARATA BRITO | ||
Descritores: | RECURSO PER SALTUM MEDIDA CONCRETA DA PENA PENA ÚNICA PENA DE PRISÃO HOMICÍDIO AGRAVAÇÃO ARMA BRANCA FACA TENTATIVA DETENÇÃO DE ARMA PROIBIDA CONCURSO DE INFRAÇÕES CONCURSO APARENTE NON BIS IDEM SUSPENSÃO DA EXECUÇÃO DA PENA PERDÃO PROCEDÊNCIA PARCIAL | ||
![]() | ![]() | ||
Data do Acordão: | 06/04/2024 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
Privacidade: | 1 | ||
![]() | ![]() | ||
Meio Processual: | RECURSO PENAL | ||
Decisão: | PROVIDO EM PARTE | ||
![]() | ![]() | ||
Sumário : |
I. A condenação do arguido como autor de dois crimes, um crime de homicídio tentado e um crime de detenção de arma proibida, pressupõe que estes se encontrem em concurso efectivo heterogéneo, havendo que apreciar, sempre em concreto, se os dois crimes cometidos se encontram realmente em concurso efectivo ou tão só aparente. II. Constando dos factos provados que o arguido retirou ao assistente a faca que este tinha consigo, que com ela lhe desferiu facadas na cabeça, testa e perna abandonando o local, não constando dos factos provados que tenha levado consigo a faca e a tenha continuado a deter, é apenas possível concluir que usou a arma aquando do cometimento do homicídio tentado, detendo-a apenas nesse momento e para tal efeito. III. Neste contexto factual, por um lado não se vislumbra uma autonomização de comportamento que quebre a possibilidade de uma unidade de sentido do acontecimento global; e pelo outro, tendo o uso da arma constituído já, juridicamente, fundamento para a elevação da moldura abstracta correspondente ao crime de homicídio, punir duplamente nestas circunstâncias afrontaria o ne bis in idem. IV. Olhando a globalidade do acontecido, não pode pois deixar de se considerar que o uso da arma pelo arguido ocorreu num episódio espácio-temporalmente conexo, esgotando-se nele, inequivocamente revelador da unidade de sentido do comportamento ilícito global, retirando-se do comportamento global um sentido de ilicitude dominante, a tratar como concurso aparente. V. Se é certo que na identificação, sempre casuística, das exigências de prevenção especial, releva sobretudo a pessoa do condenado - a sua personalidade, a sua integração social e familiar, o seu comportamento anterior e posterior, a sua posição relativamente ao crime que cometeu – a gravidade dos factos cometidos acaba por se repercutir também na avaliação sobre a personalidade. VI. A acção praticada pelo arguido, o concreto modo de execução, a intensidade e reiteração das facadas, não deixa de ser revelador de uma personalidade com evidentes necessidades de ressocialização. VII. Da acção do arguido resultaram para a vítima, igualmente muito jovem, consequências permanentes gravíssimas, com amputação de parte da perna e outras limitações físicas e psicológicas. E estas e todas as demais circunstâncias, reveladoras de um elevadíssimo grau da ilicitude, evidenciam por seu turno exigências de prevenção geral elevadíssimas, as quais confluem no sentido do afastamento da aplicação de pena de substituição. VIII. No n.º 4 do art. 3.º Lei 38-A/2023, quando se diz que “em caso de condenação em cúmulo jurídico, o perdão incide sobre a pena única”, está-se necessariamente a considerar a pena única correspondente a crimes que beneficiam todos eles de perdão. IX. Com esta disposição pretendeu-se apenas esclarecer que, nos casos de concurso efectivo de crimes – de crimes que beneficiem, todos ele, de perdão, entenda-se -, o perdão se aplica uma única vez, à pena única, e não várias vezes, a cada uma das parcelares que a compõem. Ou seja, em caso de concurso efectivo de crimes que beneficiem todos eles de perdão só concluído o processo de determinação da pena e encontrada e aplicada a pena “final”, então sim, há lugar a aplicação do perdão da Lei n.º 38-A/2023. X. Necessariamente, tem sempre de se compatibilizar o n.º 4 do art. 3.º com o art. 7.º da mesma lei, preceito que determina as excepções ao perdão. XI. Esta compatibilização, na decisão sobre as penas constante do acórdão recorrido, realizar-se-ia aplicando primeiramente o perdão à pena parcelar que deste beneficiava, procedendo-se seguidamente a cúmulo jurídico do remanescente dessa parcelar (caso sobrasse remanescente) com a outra pena parcelar, excluída do perdão - a pena correspondente ao homicídio, crime que está excluído do perdão. | ||
![]() | ![]() | ||
Decisão Texto Integral: | Processo n.º 890/22.6PFAMD.L1.S1 Acordam na 3.ª Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça: 1. Relatório 1.1. No Processo Comum Colectivo n.º 890/22.6PFAMD, do Juízo Central ..., foi proferido acórdão a decidir, ao que ora releva: absolver o arguido AA da prática de um crime de homicídio qualificado tentado, dos arts. 22.º, n.ºs 1 e 2, al. b), 23º, n.º 1, 131.º, 132.º, n.º 2, al. e), do CP; condenar o mesmo arguido pela prática de um crime de homicídio agravado tentado, dos arts. 22.º, n.º 1, al. b), 23.º, 73.º e 131.º do CP, 86º, n.º 3, do Regime Jurídico das Armas e Munições, aprovado pela Lei n.º 5/2006, de 23.02, e 1º e 4º do DL n.º 401/82, de 23.09, na pena de 5 (cinco) anos de prisão; pela prática de 1 (um) crime de detenção de arma proibida do art. 86.º, n.ºs 1, al. d), e 2.º, n.º 1, al. m), da Lei n.º 5/2006, de 23.02, na pena de 1 (um) ano de prisão; e em cúmulo jurídico, condená-lo na pena única de 5 (cinco) anos e 3 (três) meses de prisão. Mais foi decidido declarar perdoado 1 (um) ano de prisão à pena de 5 (cinco) anos e 3 (três) meses de prisão imposta ao arguido, sob a condição resolutiva de não praticar infração dolosa no ano subsequente à entrada em vigor da Lei n.º 38-A/2023, de 02.08. Inconformado com o decidido, interpôs o arguido recurso (para o Tribunal da Relação de ..., onde foi proferida decisão a ordenar a remessa ao Supremo Tribunal de Justiça), concluindo: “1. O recorrente é primário e está devidamente inserido na sociedade; 2. O recorrente confessou os factos, demonstrou sincero arrependimento; 3. À data dos factos o recorrente tinha 16 anos de idade; 4. Estava a frequentar um curso técnico ou profissional; 5. Infelizmente, o arguido cometeu um crime, homicídio agravado, na forma tentada, previsto e punido pelos artigos 22º nº 1, al. b), 23º, 73, e 131 do Código Penal, 86º nº 3 do Regime Jurídico das Armas e respetiva munições, aprovada pela Lei, nº 5/2006, de 23 de fevereiro, 1º e 4º do DL nº 401(82, de 23 de setembro, o que em cúmulo jurídico se traduziu na pena única de 5 (cinco) anos e 3 (três) meses de prisão efetiva. 6. De mencionar ainda que, sob condição resolutiva de não praticar infração dolosa no ano subsequente à entrada em vigor da Lei nº 38-A/2023, de 2 de agosto, declarar perdoado 1 (um) ano de prisão na pena de 5 (cinco) anos e 3 (três) meses de prisão efetiva, imposta ao arguido. 7. Significa isto que a pena efetiva de prisão a que foi condenado seria descontado o 1 um) ano de prisão na pena de 5 (cinco) anos e 3 (três) meses de prisão efetiva, imposta ao arguido, ou seja, estaríamos na presença de 4 (quatro) anos e 3 (três) meses de prisão efetiva. 8. De acordo com o art. 50.º, n.º 1, do CP, o tribunal decretará a suspensão da execução da pena de prisão aplicada em medida não superior a cinco anos, sempre que, atendendo à personalidade do agente, às condições da sua vida, à sua conduta anterior e posterior ao crime, e às circunstâncias deste, concluir que a simples censura do facto e a ameaça da pena realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição. 9. No caso concreto como sobejamente viemos a salientar o arguido é muito jovem, é primário, sem antecedentes criminais, pelo que seria ajustada a aplicação da suspensão da execução da pena de prisão aplicada. 10. E, como é sabido, na base da decisão de suspensão da execução da pena deverá estar uma prognose favorável ao agente, baseada num risco prudencial. 11. A suspensão da pena, dotada de um sentido pedagógico e reeducativo, funciona como um instituto em que se une o juízo de desvalor ético-social, contido na sentença penal com o apelo, fortalecido pela ameaça do executar no futuro a pena, à vontade do condenado em se integrar na sociedade. 12. E aqui uma vez mais se apela a um juízo de prognose positivo, no sentido de reintegração na sociedade, considerando a inexistência de antecedentes criminais, o forte apoio familiar, à sua juventude, e à certeza de que aquele foi um evento único, sem repetições. 13. Aliás o arguido apesar de viver num Bairro, não tem averbado contra si qualquer queixa, seja ela de que natureza for. 14. Não pretendendo o recorrente ser desrazoável na sua demanda, acompanhando os singelos argumentos de facto e direito que acima se expuseram, entende ser de aplicar ao crime de detenção de arma proibida uma pena de multa, a fixar ligeiramente acima do ponto intermédio da respetiva moldura penal, por se afigurar que as circunstâncias de facto dadas como provadas assim o impõem. 15. Mostra-se violado o artigo 70.º e 50.º do C. Penal; 16. Quanto ao crime de homicídio agravado, na forma tentada, e aqui também o arguido espera que V. Exas Meritíssimos Juízes façam a costumada Justiça!” O Ministério Público respondeu ao recurso, concluindo: “1. O Arguido/Recorrente AA foi condenado pela prática de (…) 2. Por força da atenuação especial resultante dos arts.º 1.º e 4.º do DL n.º 401/82, de 23 de setembro, e dos art.ºs 73.º, n.º 1, als. a) e b), 41.º, n.º 1, e 47.º, n.º 1, do Código Penal, o limite máximo da pena de prisão é reduzido de um terço e o limite mínimo da pena (por ser inferior a três anos) é reduzido ao mínimo legal, ou seja 1 (um) mês (cfr. art.º 41º, n.º 1, do Código Penal). 3. Assim: o crime de homicídio agravado, na forma tentada, praticado pelo Recorrente, a ser punido, em abstrato, com pena de 1(um)mês de prisão a 9(nove) anos, 5 (cinco)meses e 6 (seis) dias de prisão; e o crime de detenção de arma proibida com pena de 1(um) mês de prisão a 2 (dois) anos e 8 (oito) meses de prisão ou com pena de multa de 10 (dez) dias a 252 (duzentos e cinquenta e dois) dias. 4. Na determinação da medida da pena há que ter em consideração: o dolo, directo; o grau de ilicitude dos factos que será elevado tendo em consideração a actuação do Recorrente, com indiferença para a vida do Assistente; as consequências que advieram para o Assistente em consequência da actuação do Recorrente; as necessidades de prevenção geral, que são elevadas nos tipos criminais em causa, dada a insegurança que geram na comunidade e a crescente posse e utilização de armas brancas por parte dos jovens, que conduzem à prática deste tipo de crimes, sobretudo nesta Comarca; as necessidades de prevenção especial, que são elevadas, atentos os actos que cometeu e a personalidade que revela quem assim procede; que não regista antecedentes criminais; que confessou os factos, revelou arrependimento e mostrou preocupação com o estado do Assistente; a sua inserção social e familiar. 5. Não se pode, no entanto, de deixar de ter em consideração a contribuição do próprio Assistente para os factos ocorridos, tendo sido ele e o grupo de amigos que decidiram se deslocar à zona geográfica onde se encontrava o outro grupo, alegadamente rival, para confronto físico, para o que se deslocaram munidos de um bastão e de facas. 6. Tudo ponderado, entendeu o tribunal a quo por adequada a aplicação das penas de: 5 (cinco) anos de prisão, pela prática de 1 (um) crime de homicídio agravado, na forma tentada, previsto e punido pelos art.ºs 22.º, 23.º, 73.º e 131.º do Código Penal, 86.º, n.º 3, do Regime Jurídico das Armas e respetivas munições, aprovado pela Lei n.º 5/2006, de 23.02, e 1.º e 4.º do DL n.º 401/82, de 23.09; 1 (um) ano de prisão pela prática de 1 (um) crime de detenção de arma proibida, p. e p. pelo art.º 86º, n.ºs 1, al. d), e 2º, n.º 1, al. m), da Lei n.º 5/2006, de 23.02. 7. E, em cúmulo jurídico destas penas parcelares, entendeu o tribunal a quo condenar o Recorrente na pena única de 5 (cinco) anos e 3 (três) meses de prisão. 8. O art.º 70.º do Código Penal consagra uma preferência de política criminal em relação à pena não detentiva sempre que esta realizar de forma adequada as finalidades da punição assinaladas no art.º 40.º do Código Penal, nomeadamente de prevenção geral - sem perder de vista a reacção necessária contra a prática do crime, a consciencialização do infractor e a necessidade de reafirmação da norma perante comunidade - e especial (vd. Ac. TRE, de 28.03.2023, disponível em dgsi.pt). 9. Ora, no caso em apreço apresentam-se como muito acentuadas as exigências de prevenção geral, em virtude de a sociedade se mostrar receosa perante condutas atentatórias da vida humana e à frequência com que este tipo de condutas ocorre. 10. Razão pela qual o tribunal a quo não optou pela aplicação ao Recorrente de uma pena de multa no que respeita ao crime de detenção de arma proibida. 11. Mostra-se justa e adequada a pena aplicada ao Recorrente. 12. Atenta a pena única aplicada ao Recorrente, não é legalmente admissível a suspensão da execução da pena – art.º 50.º do Código Penal. 13. De facto, e ao contrário do defendido pelo Recorrente, a pena a ter em conta para decidir da suspensão é a pena efectivamente aplicada e não a pena residual resultante da aplicação do perdão. 14. É entendimento pacífico e uniforme da doutrina e da Jurisprudência, designadamente do supremo Tribunal de Justiça, de que o legislador, ao fixar como pressuposto formal da aplicação da suspensão da execução da pena de prisão que a medida desta não seja superior a 5 anos, tem em vista apenas os agentes punidos com penas originárias não superiores a essa medida, sendo indiferente, para esse efeito, que a pena a cumprir fique aquém desse limite por força de qualquer perdão concedido por leis de clemência (vd. Ac. TRG, de 23.01.2024, disponível em dgsi.pt). 15. No mais, não se mostrará violado qualquer preceito legal nem desrespeitado qualquer direito. 16.Nesta conformidade, negando-se provimento ao recurso e mantendo-se o douto acórdão recorrido, será feita justiça.” Neste Tribunal, o Sr. Procurador-Geral Adjunto emitiu desenvolvido parecer, igualmente no sentido da improcedência do recurso. O arguido nada acrescentou, o processo foi aos vistos e teve lugar a conferência. 1.2. O acórdão recorrido, na parte que releva para o recurso, tem o seguinte teor: “3.1. Matéria de facto provada A – Da Acusação: 1) Desde data não concretamente apurado, mas anterior a ..., que BB, CC, DD e EE, de 15 anos de idade, fazem parte de um grupo, denominado ... (Família n.º 1), composta por diversos jovens entre os 14 e 16 anos de idade, residentes em ... e ...; 2) No dia ... de ... de 2022, cerca das 18:30 horas, BB, CC, DD e EE, de 15 anos de idade, decidiram deslocar-se à ..., por saberem que ali se encontravam jovens entre os 14 e os 16 anos, que se identificam como pertencentes aos grupos denominados ... ou ...; 3) Assim, munido BB de uma faca de caraterísticas não concretamente apuradas, com uma lâmina de comprimento superior a 10 cms, e DD de um bastão de basebol, deslocaram-se ao coreto, sito no ... (também designado como “Fórum”), local onde encontraram EE e FF, pertencentes ao grupo ...; 4) Nesse instante, BB, CC, DD e EE travaram-se de razões com os jovens que aí encontraram, molestando-se fisicamente, entre si; 5) Seguidamente, BB, CC, DD e EE, de 15 anos de idade, abandonaram o local, em passo de corrida, descendo a Praça ... e, posteriormente, a ..., sendo seguidos por alguns dos jovens com que se tinham envolvido nas circunstâncias descritas em 3) e 4); 6) Nesse local, apareceu o Arguido AA, onde, enquanto o descrito grupo da ... se envolvia fisicamente com o indicado grupo de ..., o Arguido retirou ao Assistente Romari a faca descrita em 3), de que este estava, então, munido; 7) Após se envolver com um dos outros jovens do grupo de ..., o AA deslocou-se na direção de EE e, munido da faca referida em 6), levantou o braço e, com a lâmina para baixo, desferiu facadas na cabeça, na testa e na perna do Assistente, tendo, posteriormente, abandonado o local; 8) Nesse instante, BB, CC e DD colocaram roupas junto das feridas, pressionando, de modo a evitar o derramamento abundante de sangue, bem como colocaram uma peça de roupa na perna, apertando com força, de modo a evitar maior derramamento de sangue por parte do Assistente, que se encontrava caído no chão; 9) Em virtude das facadas o Assistente EE foi conduzido, de emergência, ao Hospital, com ferida craniana com afundamento da calote sangrante e uma ferida sangrante na coxa direita; 10) Sofreu ainda as seguintes lesões, ainda não consolidadas: - Traumatismo crânio encefálico grave com fratura linear parietal esquerda com fragmento descapotado; - Lesão corto contundente na região frontal; - Lesão contocontundente parieto occipital, com provável envolvimento de veias tributarias do seio venoso longitodinal, submetido a esquirolectomia parietal esquerda, reparação de defeito dural e hemóstase de veias durais sangrantes; - Fratura linear parietal esquerda com extensão anterior até à sutura coronal, com fragmento descoaptado inferiormente para a vertente intracraniana; - Fina lâmina de hemorragia extra-axial na alta convexidade frontal esquerda; - Múltiplos focos de pneumocefalia bi-hemisférica; - Trauma facial: Lesão da asa do nariz -Trauma dos membros inferiores: a) Lesão vascular do membro inferior direito com lesão venosa – veia femoral - e ramos venosos musculares; b) Traumatismo do membro inferior esquerdo com exposição da articulação do joelho por lesão da cápsula articular e rotura parcial do aparelho extensor; 11) O Assistente manteve-se internado em unidade hospitalar, tendo sido, em 19.10., submetido a intervenção cirúrgica, para proceder a amputação infra-genicular do membro inferior direito em resultado dos ferimentos anteriormente descritos, encontrando-se atualmente sob tratamento; 12) O Assistente foi submetido a esquirolectomia parietal esquerda, cranioplastia com osso pareita reconstruído, com progressivo agravamento do quadro neurológico após a cirurgia e RM-CE compatível com hematoma intraparenquimatoso (alterações compatíveis com etiologia vascular pós-traumática), com necessidade de craniectomia descompressiva fronto-temporoparietal esquerda e submetido a cirurgia vascular do membro inferior direito, o qual apresentou diversas complicações e progressiva isquémia do mesmo, tendo sido amputado (transtibial); 13) O Assistente esteve internado até ...de 2022, sendo transferido para o Centro de Reabilitação ..., onde permaneceu internado de ... de ... de 2022 a ... de ... de 2023, não estando as lesões sofridas ainda consolidadas; 14) Perante as lesões provocadas no Assistente e respetivo tratamento, a morte da vítima só não sobreveio devido à rápida assistência por equipa médica que estabilizou hemodinamicamente os múltiplos traumatismos sofridos; 15) Atentas as zonas do corpo do Assistente a que o Arguido direcionou a faca descrita em 3), concretamente a cabeça, testa e coxa direita, onde se alojam órgãos vitais, a natureza do instrumento por si utilizado e a violência empregue, traduzida nas lesões provocadas, agiu o Arguido com a intenção, não concretizada, de provocar a morte do Assistente EE, sendo que a morte do Assistente só não ocorreu por circunstâncias alheias à vontade do Arguido, designadamente por aquele ter sido prontamente assistido pela emergência médica e conduzido ao Hospital, bem como pelo facto de os seus companheiros terem estancado o derramamento abundante de sangue; 16) O Arguido agiu livre, deliberada e conscientemente, bem sabendo que tais condutas eram proibidas e punidas criminalmente; B - Do Pedido de Indemnização Civil deduzido pela ...: 17) Em consequência das lesões sofridas pelo Assistente, nas circunstâncias anteriormente descritas, a ... prestou-lhe cuidados de saúde; 18) Os cuidados de saúde prestados ao Assistente no período compreendido de ... de ... de 2022 a ... de ... de 2023 cifraram-se no valor global de €18.310,50 (dezoito mil trezentos e dez Euros e cinquenta cêntimos); C – Das Condições Pessoais do Arguido: 19) AA, atualmente com dezoito anos de idade, nasceu fruto da relação de seus pais, em ...; 20) Tem quatro irmãos germanos, com idades compreendidas entre os 25 e os 6 anos de idade; 21) O Arguido iniciou o processo de ensino/aprendizagem no país de origem, tendo, ali, completado o primeiro ciclo do ensino básico; 22) Veio para ... com cerca de 11/12 anos, tendo a família fixado residência na ...; 23) Nesta cidade, ingressou numa escola local, para a frequência do 5º ano de escolaridade; 24) Concluiu o segundo ciclo, por via de percurso curricular alternativo (PIEF - Programa Integrado de Educação e Formação), sendo esta uma medida socioeducativa adotada depois de esgotadas todas as outras medidas de integração escolar, que visa favorecer o cumprimento da escolaridade obrigatória e a inclusão social, conferindo uma habilitação escolar de 2º ou de 3º ciclo; 25) O Arguido não beneficiou durante a sua adolescência de supervisão parental eficaz, o que facilitou sua proximidade a pares com estilos de vida desorganizados e condutas desviantes; 26) Os progenitores sempre trabalharam, o pai na jardinagem e a mãe em trabalhos indiferenciados, com baixos rendimentos, facto que, há cerca de dezasseis meses, levou a mãe do Arguido a ..., com o filho mais velho, em busca de melhores condições financeiras e de melhor qualidade de vida para a família; 27) À data dos alegados factos dos autos AA integrava o agregado familiar constituído pelo pai, GG, de 47 anos de idade, e os irmãos HH, II e JJ, de 21, 15 e 5 anos de idade, respetivamente; 28) A mãe do Arguido - KK - encontrava-se a trabalhar em ..., mantendo contacto regular com a família nuclear e apoiando-a, economicamente, com a remessa mensal de cerca de €500,00, para as despesas da família em ...; 29) A dinâmica familiar é positiva, sem situações de conflito ou animosidade, embora o pai do Arguido tenha dificuldade no exercício da autoridade e supervisão parental, desconhecendo, concretamente, a que atividades se dedicava o Arguido em contexto de rua; 30) AA frequentava o Curso de Educação e Formação de Adultos no ano letivo de ...2.../2023, o qual lhe conferiria o grau do 9º ano de escolaridade, no Agrupamento de escolas de ..., onde se encontrava integrado e com aproveitamento escolar; 31) A interrupção da atividade escolar deu-se devido à existência do presente processo judicial, em que foi aplicada a prisão preventiva, posterior alterada para Obrigação de Permanência na Habitação com Vigilância Eletrónica (OPHVE), que se mantém; 32) AA não desenvolvia atividades estruturadas para ocupação dos seus tempos livres, passando-os com os amigos, em vivências de rua, na sua área de residência; 33) O agregado familiar do Arguido está inserido num contexto sociocomunitário de risco, comumente conotado com problemas sociais relevantes e com criminalidade juvenil; 34) Não são assinaláveis problemas de saúde ou consumos problemáticos de álcool ou estupefacientes ao Arguido; 35) O pai do Arguido trabalhava como ..., no ..., auferindo o salário de cerca de €900,00 mensais; 36) Apresentam encargos fixos mensais de cerca de €530,00, sendo €350,00 relativos à renda de casa, a que acrescem despesas mensais com eletricidade, água, gaz e telecomunicações, no valor médio de €180,00; 37) O Arguido manifestou arrependimento pelos factos praticados e consequências destes decorrentes para o Assistente, bem como preocupação pelo estado de saúde deste; 38) O Arguido não tem antecedentes criminais registados. (…) Feito pela forma descrita o enquadramento jurídico-penal da conduta do Arguido, importa agora determinar o tipo de pena a aplicar e a fixação da sua medida concreta. O crime de homicídio é punido com pena de prisão de 8 (oito) a 16 (dezasseis) anos. Sendo tal pena agravada para pena de 10 (dez) anos e 8 (oito) meses de prisão a 21 (vinte e um) anos e 4 (quatro) meses de prisão, por força da agravação (de um terço nos seus limites mínimos e máximos) prevista no art.º 86º, n.º 3, do Regime Jurídico das Armas e respetivas munições, aprovado pela Lei n.º 5/2006, de 23.02. Tendo o referido crime de homicídio sido, no entanto, cometido na forma tentada, o limite máximo da pena de prisão é reduzido de um terço e o limite mínimo da pena é reduzido a um quinto, por força do disposto no art.º 73º, n.º 1, als. a) e b), passando, assim, a ser punido com pena de 2 (dois) anos, 1 (um) mês e 18 (dezoito) dias de prisão a 14 (catorze) anos, 2 (dois) meses e 20 (vinte) dias de prisão. E o crime de detenção de arma proibida, p. e p. pelo art.º 86º, n.º 1, al. d), do Regime Jurídico das Armas e respetivas munições, aprovado pela Lei n.º 5/2006, de 23.02, é punido com pena de prisão de 1 (um) mês até 4 (quatro) anos ou com pena de multa de 10 (dez) até 480 (quatrocentos e oitenta) dias (cfr. ainda art.ºs 41º, n.º 1, e 47º, n.º 1, do Código Penal). Quanto à determinação da medida da pena, a mesma rege-se pelos princípios consagrados no art.º 40.º do Código Penal, nos termos do qual o objetivo primordial da aplicação de uma pena será a proteção de bens jurídicos (prevenção geral) e a reintegração do agente na comunidade (prevenção especial positiva). Haverá que ter em conta, sendo caso disso, o disposto no art.º 70.º, que determina a preferência por penas não detentivas da liberdade, em relação àquelas detentivas, sempre que as primeiras puderem “realizar de forma adequada e suficiente as finalidades da punição”. De acordo como disposto no art.º 71º, n.º 1, do Código Penal, “A determinação da medida da pena, dentro dos limites definidos na lei, é feita em função da culpa do agente e das exigências de prevenção”, não podendo em caso algum a pena ultrapassar a medida da culpa (art.º 40º, n.º 2, do Código Penal). Toda a pena tem de ter como suporte axiológico-normativo a culpa concreta do agente, o que implica, por um lado que não há pena sem culpa, e por outro, que esta decide da medida daquela, afirmando-se como seu limite máximo, havendo que ter presente as razões de prevenção geral (proteção dos bens jurídicos) quanto aos fins das penas (art.º 40º, n.º 1, do Código Penal), e os fins de prevenção especial. Isto é, a determinação da pena concreta fixar-se-á em função: - da culpa do agente, que constituirá o limite máximo, por respeito do princípio politico-criminal da necessidade da pena, e do princípio constitucional da dignidade da pessoa humana (art.ºs 1º e 18º, n.º 2, da Constituição da República Portuguesa); - das exigências de prevenção geral, que constituirão o limite mínimo, sob pena de ser posta em risco a função tutelar do direito e as expectativas comunitárias na validade da norma violada; - e de prevenção especial de socialização, sendo elas que irão fixar o quantum da pena dentro daqueles limites – neste sentido v.g. Figueiredo Dias, in Direito Penal Português, As Consequência Jurídicas do Crime, Editorial Notícias, pág. 213 e ss.. Na determinação concreta da pena o tribunal atende a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, depuserem a favor do agente, ou contra ele, nomeadamente as referidas nas alíneas do n.º 2 do art.º 71º do Código Penal: - a ilicitude do facto; - o modo de execução e suas consequências; - grau de violação dos deveres impostos ao agente; - o grau de intensidade do dolo; - as circunstâncias que rodearam o cometimento do crime, nomeadamente, os fins ou motivos que o determinaram e a sua reiteração no tempo; - condições pessoais do agente e a sua situação económica; - a conduta anterior ao facto e a posterior a este, especialmente quando esta seja destinada a reparar as consequências do crime; - a falta de preparação para manter uma conduta licita, manifestada no facto, quando essa falta deva ser censurada através da aplicação da pena. Considerando que à data da prática dos factos (........2022) o Arguido (nascido em ........2005) tinha 16 anos de idade, cumpre, pois, sopesar, neste momento, a aplicação do regime inserto no DL n.º 401/82, de 23 de setembro, que estabelece o regime penal especial para jovens com idade compreendida entre os 16 e os 21 anos, que tenham praticado um facto qualificado como crime (art.º 1º, n.ºs 1 e 2, in fine, do referido diploma legal). Segundo o art.º 4º desse mesmo diploma legal, se for aplicável pena de prisão, o juiz deve atenuar especialmente a pena nos termos dos art.ºs 73º e 74º do Código Penal, quando tiver sérias razões para crer que da atenuação resultam vantagens para a reinserção social do jovem condenado. Conforme jurisprudência maioritária, a apreciação desta matéria não é uma mera faculdade do juiz, mas antes um poder - dever vinculado, que deve ser sempre apreciado oficiosamente (neste sentido v.g., entre outros, Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 11 de outubro de 2007, 7 e 22 de novembro de 2007, Processos n.ºs 3199/07-5, 07P3214 e 07P1600, respetivamente, disponíveis em www.dgsi.pt). Ou seja, perante a idade entre 16 e 21 anos do arguido, o Tribunal não pode deixar de investigar se se verificam aquelas sérias razões, e se tal suceder não pode deixar de atenuar especialmente a pena. Tal não corresponde, porém, à obrigatoriedade de aplicação de tal regime, pois embora aquela idade seja pressuposto legal necessário para a obrigatoriedade de apreciação, não vincula na sua aplicação efetiva. A sua aplicação dependerá, conforme decorre do disposto no art.º 4º, da existência de sérias razões para crer que da atenuação resultarão vantagens para a reinserção social do jovem condenado, pressupondo, assim, uma avaliação, que tem de ser equacionada perante as circunstâncias concretas do caso e do percurso de vida do arguido. Com efeito, o preâmbulo do DL n.º 401/82, de 23 de setembro (§ 7), fornece algumas indicações quanto aos propósitos do legislador na instituição de um regime penal diferente, expressando o pensamento legislativo segundo o qual “as medidas propostas não afastam a aplicação – como última ratio – da pena de prisão aos imputáveis maiores de 16 anos, quando isso se torne necessário, para uma adequada e firme defesa da sociedade e prevenção da criminalidade, e esse será o caso de a pena aplicada ser a de prisão superior a dois anos”, e ficando claro, logo à partida, o objetivo de que a ressocialização do menor delinquente é prioritária. Estabelece-se, depois, outra orientação básica, no sentido de, tanto quanto possível, se aproximar o direito penal dos jovens imputáveis dos princípios e regras do direito reeducador de menores, sendo princípio geral imanente a todo o diploma, o da “flexibilidade na aplicação das medidas de correção que vem permitir que a um jovem imputável até aos 21 anos possa ser aplicada tão só uma medida corretiva” (§ 4). Do exposto resulta, em nosso entender, não ser de aplicar o regime penal especial para jovens, quando do conjunto dos atos praticados pelo arguido e a sua gravidade desaconselham, em absoluto, a aplicação de tal regime, por não ser possível realizar um juízo de prognose à sua reinserção social. O prognóstico favorável à ressocialização radica na valoração, no caso concreto, da personalidade do jovem, da sua conduta anterior e posterior ao crime, da natureza e modo de execução do mesmo e dos seus motivos determinantes, o que facilmente se compreende, pois a idade, por si só, não determina o desencadear dos benefícios do regime do DL n.º 401/82, de 23 de setembro, até porque tratando-se de uma atenuação especial da pena, a mesma terá de ser concretizada e quantificada em conjugação com os art.ºs 72º e 73º do Código Penal, preceitos que constituem apoio subsidiário do referido regime (neste sentido v.g., entre outros, Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 19 de março de 2009, Processo n.º 09P0164, in www.dgsi.pt). Como se pode ler no citado aresto “não se pode deixar igualmente de ter em conta que a delinquência juvenil, em particular a delinquência de jovens adultos e de jovens na fase de transição para a idade adulta, é um fenómeno muito próprio das sociedades modernas, urbanas, industrializadas e economicamente desenvolvidas, obrigando, desde logo o legislador a procurar respostas e reações que melhor parecem adequar-se à prática por jovens adultos de crimes, que visem um ciclo de vida que corresponde a uma fase de latência social que faz da criminalidade um fenómeno efémero e transitório, procurando evitar que uma reação penal severa, na fase latente da formação da personalidade, possa comprometer definitivamente a ressocialização do jovem (…)”. In casu, para além da respetiva juventude – subjacente à aplicabilidade deste regime -, e da ausência de antecedentes criminais, importa salientar que o Arguido confessou parte dos factos que lhe são imputados, demonstrou arrependimento sincero pela sua prática e pelas consequências destes decorrentes para o Assistente, por quem demonstrou sentida preocupação (procurando esconder as lagrimas que lhe caíam à medida que o Assistente, em audiência de julgamento, descrevia a forma como a sua vida se alterou e as dificuldades que ultrapassa no dia a dia), o que se nos afigura um sinal de interiorização do desvalor da conduta praticada e, consequentemente, de ressocialização, fatores que, todos conjugados, pese embora a gravidade dos factos praticados e das suas consequências, permitem a realização do juízo de prognose favorável à aplicação do regime penal mais favorável, o que se decide. Por força da atenuação especial resultante dos art.ºs 1º e 4º do DL n.º 401/82, de 23 de setembro, e dos art.ºs 73º, n.º 1, als. a) e b), 41º, n.º 1, e 47º, n.º 1, do Código Penal, o limite máximo da pena de prisão é reduzido de um terço e o limite mínimo da pena (por ser inferior a três anos) é reduzido ao mínimo legal, ou seja 1 (um) mês (cfr. art.º 41º, n.º 1, do Código Penal), passando, assim, o crime de homicídio agravado, na forma tentada, praticado pelo Arguido, a ser punido, em abstrato, com pena de 1 (um) mês de prisão a 9 (nove) anos, 5 (cinco) meses e 6 (seis) dias de prisão e o crime de detenção de arma proibida com pena de 1 (um) mês de prisão a 2 (dois) anos e 8 (oito) meses de prisão ou com pena de multa de 10 (dez) dias a 252 (duzentos e cinquenta e dois) dias. A determinação da medida da pena, in concreto, far-se-á de harmonia com o disposto no já referenciado art.º 71º, n.º 1, ou seja, em função da culpa do agente e das exigências de prevenção de futuros crimes, atendendo-se nesta determinação, a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, deponham a favor ou contra o agente, designadamente as enunciadas no art.º 71º, n.º 2. Pela via da culpa, segundo refere o Prof. Figueiredo Dias (in “As Consequências Jurídicas do Crime”, 1993, pág. 239), releva para a medida da pena a consideração do ilícito típico, ou seja, “o grau de ilicitude do facto, o modo de execução deste e a gravidade das suas consequências, bem como o grau de violação dos deveres impostos ao agente”, conforme prevê o art.º 71º, n.º 2, al. a). A culpa, como fundamento último da pena, funcionará como limite máximo inultrapassável da pena a determinar (art.º 40º, n.º 2), fornecendo a prevenção geral positiva (“proteção de bens jurídicos”) o limite mínimo que permita a reposição da confiança comunitária na validade da norma violada. Por fim, é dentro desses limites que devem atuar considerações de prevenção especial, isto é, de ressocialização do agente (cf., neste sentido, Figueiredo Dias, Ob. Cit., págs. 227 e seguintes; Anabela Rodrigues, in R.P.C.C., 2, 1991, pág. 248 e seguintes; e Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 9 de novembro de 1994, in B.M.J. 441º, pág. 145). Relativamente aos elementos elencados no art.º 71º, n.º 2, do Código Penal, há que considerar, in casu: No caso em apreço, o modo de atuação do Arguido é revelador de elevado grau de ilicitude, evidenciando o Arguido indiferença para com a vida do Assistente. A vida humana é o bem maior, supremo e inviolável, conforme resulta do art.º 24º, n.º 1, da Constituição da República, sendo a comunidade abalada de forma muito intensa quando, por ato voluntário, se ofende a vida de um dos seus membros. E nunca é demais enfatizar que, como sublinham Gomes Canotilho e Vital Moreira (in “CRP Anotada”, I), “o direito à vida é um direito prioritário, pois é condição de todos os outros direitos fundamentais, sendo material e valorativamente o bem mais importante do catálogo de direitos fundamentais e da ordem jurídico-constitucional no seu conjunto”. E “O direito à vida constitui o valor supremo na hierarquia dos direitos humanos. A jurisprudência está vinculada a refletir a tutela adequada e eficaz em cada caso de atentado voluntário daquele direito primordial, condição de todos os outros.”. A culpa do Arguido é elevada, atendendo ao facto do Arguido ter atuado com dolo direto. As consequências dos atos praticados pelo Arguido assumiram contornos gravíssimos, tendo alterado e condicionado por completo a vida do Assistente, que viu ser-lhe amputada uma parte da perna e passou a ter de utilizar uma prótese, para além das demais limitações físicas e psicológicas advindas das lesões infligidas pelo Arguido. As exigências de prevenção geral que se fazem sentir neste tipo de crime são prementes, dada a insegurança que geram na comunidade e a crescente posse e utilização de armas brancas por parte dos jovens, que conduzem à prática deste tipo de crimes, sobretudo nesta Comarca. Não podendo deixar, no entanto, de se ter presente que o Assistente e amigos contribuíram em muito para que os factos em apreço nos autos ocorressem, ao deslocarem-se a uma zona geográfica, que não era aquela onde residiam, para confronto com grupo de jovens rivais, que aí residiriam, munidos de armas (bastão e faca), estando, inclusive, uma das facas levadas na posse do Assistente antes de lhe ser subtraída pelo Arguido, num momento de confronto, e de vir a ser contra este utilizada pelo Arguido. As exigências de prevenção especial mostram-se menos elevadas. Com efeito, pese embora o número de facadas desferidas pelo Arguido evidenciem uma personalidade violenta e descontrolada por parte do Arguido à data dos factos, bem como a indiferença pela vida do Assistente, a quem não promoveu auxílio, fugindo do local, a sua posterior conduta demonstra que este interiorizou o desvalor da sua conduta e das consequências dos seus atos. A postura assumida pelo Arguido em sede de audiência de julgamento - em que este não só verbalizou arrependimento, que se nos afigura sincero, pela prática dos factos dos autos, como demonstrou, pela postura corporal assumida ao longo das várias sessões de julgamento (em que chegou a tentar esconder as lagrimas que lhe escorriam pela face quando era descrito o estado físico e emocional em que o Assistente ficou em consequência das lesões causadas pelo Arguido), remorso, tristeza e preocupação pelo estado de saúde e bem estar do Assistente -, leva-nos a acreditar que se o Arguido pudesse voltar atrás não mais praticaria os factos objeto destes autos. Em favor do Arguido não podemos deixar, ainda, de ter presente que este tem suporte familiar, se encontra inserido socialmente e não regista antecedentes criminais. Ora, considerando as circunstâncias e gravidade dos factos, as consequências gravíssimas destes decorrentes para o Assistente, a personalidade do Arguido neles espelhada, e sem esquecer a culpa e as necessidades de prevenção geral e especial que se fazem sentir e o facto da arma do crime ter sido levada para o local pelo próprio Assistente / Vítima, entende o Tribunal como ajustada a aplicação ao Arguido: - da pena de 5 (cinco) anos de prisão, pela prática de 1 (um) crime de homicídio agravado, na forma tentada, previsto e punido pelos art.ºs 22º, 23º, 73º e 131º do Código Penal, 86º, n.º 3, do Regime Jurídico das Armas e respetivas munições, aprovado pela Lei n.º 5/2006, de 23.02, e 1º e 4º do DL n.º 401/82, de 23.09; - da pena de 1 (um) ano de prisão pela prática de 1 (um) crime de detenção de arma proibida, p. e p. pelo art.º 86º, n.ºs 1, al. d), e 2º, n.º 1, al. m), da Lei n.º 5/2006, de 23.02. Sempre se referindo, nesta sede, que uma pena de multa não se mostraria suficiente para acautelar as elevadíssimas exigências de prevenção geral que se fazem sentir no caso em apreço. Tendo-se encontrado as penas parcelares relativas aos ilícitos referidos, cumpre agora proceder à determinação de uma pena única, considerando em conjunto os factos e a personalidade do agente, nos termos do art.º 77º, n.ºs 1 e 2, do Código Penal. Assim, o limite mínimo da pena aplicável corresponde à pena máxima concretamente aplicada, e o limite máximo corresponde à soma das penas parcelares encontradas. Como entende o Supremo Tribunal de Justiça, face ao disposto no art.º 77º do Código Penal (cfr., por todos, Acórdãos de 11 de janeiro de 2001, Processo n.º 3095/00-5, de 4 de março de 2004, Processo n.º 3293/04-5, e de 12 de julho de 2005, todos in www.dgsi.pt), a pena única a estabelecer em cúmulo deve ser encontrada numa moldura penal abstrata, balizada pela maior das penas parcelares abrangidas e a soma destas, e na medida dessa pena são considerados, em conjunto, os factos e a personalidade do agente, com respeito pela pena unitária. Na verdade, o elemento aglutinador da pena aplicável aos vários crimes é, justamente, a personalidade do delinquente, a qual tem, por força das coisas, carácter unitário, mas a personalidade traduzida na condução de vida, em que o juízo de culpabilidade se amplia a toda a personalidade do autor e ao seu desenvolvimento, também manifestada de forma imediata a ação típica, isto é, nos factos. Esse critério, conforme salienta Figueiredo Dias, consiste em apurar se “numa avaliação da personalidade – unitária - do agente”, o seu percurso de delinquência “é reconduzível a uma tendência (ou eventualmente mesmo uma «carreira») criminosa” e não a uma “pluriocasionalidade que não radica na personalidade (…)” (in Direito Penal Português - As Consequências Jurídicas do Crime, Editorial de Notícias, pág. 291). Assim, no caso em apreço, a pena única a aplicar tem como limite máximo 6 (seis) anos de prisão (correspondente à soma das penas concretamente aplicadas aos dois crimes pelos quais o Arguido vai condenado) e como limite mínimo 5 (cinco) anos de prisão. Ora, considerando as circunstâncias e gravidade dos factos, as consequências gravíssimas destes decorrentes para o Assistente, a personalidade do Arguido neles espelhada, e sem esquecer a culpa e as necessidades de prevenção geral (elevadíssimas) e especial (menos elevadas) que se fazem sentir e o facto da arma do crime ter sido levada para o local pelo próprio Assistente / Vítima, entende o Tribunal como ajustada a aplicação ao Arguido da pena única de 5 (cinco) anos e 3 (três) meses de prisão pela prática de 1 (um) crime de homicídio agravado, na forma tentada, p. e p. pelas disposições conjugadas dos art.ºs 131º, 73º, n.º 1, 22º, n.ºs 1 e 2, al. b), e 23º, n.º 1, do Código Penal, e 86º, n.º 3, do Regime Jurídico das Armas e respetivas munições, aprovado pela Lei n.º 5/2006, de 23.02; e de 1 (um) crime de detenção de arma proibida, p. e p. pelo art.º 86º, n.º 1, al. d), da Lei n.º 5/2006, de 23.02, por referência ao art.º 2º, n.º 1, al. m), da mesma Lei. * Atenta a pena aplicada, superior a 5 (cinco) anos de prisão, e o disposto no art.º 50º do Código Penal, mostra-se prejudicada a apreciação de uma eventual suspensão da execução de tal pena de prisão, não podendo, no entanto, deixar de se registar que atenta a gravidade dos factos praticados e das consequências destes decorrentes sempre as elevadíssimas exigências de prevenção geral que se fazem sentir na situação em apreço determinariam a imposição de uma pena de prisão efetiva. * Nos termos das disposições conjugadas dos arts 2º, n.º 1, e 3º, n.ºs 1 e 4, da Lei n.º 38-A/2023, de 02.08 (diploma legal que estabelece um perdão de penas e uma amnistia de infrações por ocasião da realização em Portugal da Jornada Mundial da Juventude – cfr. art.º 1º desse mesmo diploma legal), é perdoado 1 ano de prisão a todas as penas de prisão até 8 anos, relativas aos ilícitos praticados até às 00:00 horas de 19 de junho de 2023, com exceção dos elencados no art.º 7º, por pessoas que tenham entre 16 e 30 anos de idade à data da prática do facto. Sendo que, em caso de condenação em cúmulo jurídico, o perdão incide sobre a pena única (art.º 3º, n.º 4, da Lei n.º 38-A/2023, de 02.08). Considerando a idade do Arguido, nascido em ........2005, à data da prática dos factos (16 anos de idade) os crimes cometidos (in casu, apenas no que respeita ao crime de crime de detenção de arma proibida, p. e p. pelo art.º 86º, n.ºs 1, al. d), por referência ao art.º 2º, n.º 1, al. m), da Lei n.º 5/2006, de 23.02, porquanto o crime de homicídio agravado, na forma tentada, p. e p. pelos art.ºs 131º, 22º, n.º 1 e 2, als. a) e b), 23º, n.ºs 1 e 2, e 73º do Código Penal, e 86º, n.º 3, da Lei n.º 5/2006, de 23.02, mostra-se excluído da aplicabilidade do perdão, nos termos das disposições conjugadas do art.º 7º, n.º 1, al. a), i), da Lei n.º 38-A/2023, de 02.08), e a pena aplicada, em conformidade com as normas legais citadas, sob a condição resolutiva de não praticar infração dolosa no ano subsequente à entrada em vigor da Lei n.º 38º-A/2023, de 02.08 (caso em que à pena aplicada à infração superveniente acresce o cumprimento da pena perdoada - art.º 8º, n.º 1, in fine), declara-se perdoado 1 (um) ano de prisão na pena de 5 (cinco) anos e 3 (três) meses de prisão em que o Arguido vai condenado.” 2. Fundamentação Sendo o âmbito do recurso delimitado pelas respectivas conclusões (art. 412.º, n.º 1, do CPP), as questões submetidas a apreciação circunscrevem-se à pena. Afirma o arguido “nenhuma censura merecer a condenação”, colocando como “única questão” “a de saber se se mostra adequada e proporcional a aplicação de uma pena de cinco anos e três meses de prisão efectiva” (a pena única). Anuncia ser “aqui que radica a discordância do recorrente com o decidido pela instância”, entendendo ainda “ser de aplicar ao crime de detenção de arma proibida uma pena de multa” e ser de suspender a pena de prisão correspondente ao homicídio. O Ministério Público, na 1.ª instância e no Supremo, pronunciou-se pela improcedência do recurso e pela confirmação do acórdão. Como se vê, o recorrente impugnou a pena – a pena parcelar correspondente ao crime de detenção de arma proibida e a pena única - sem nada mais questionar. Assim, não questionou a decisão sobre o enquadramento jurídico dos factos, nem a decisão sobre o concurso efectivo de crimes. No entanto, tal não dispensa o Supremo de conhecer da legalidade das operações jurídicas que precedem a fixação da pena. E a sindicância da pena única pressupõe sempre a possibilidade de conhecimento, pelo tribunal ad quem, dos pressupostos do próprio concurso. 2.1. Do concurso de crimes A decisão sobre o tipo e o número de crimes cometidos é pressuposto e condição de aplicação das penas parcelares, que por sua vez determinam a moldura abstracta da pena única, que cumpre igualmente sindicar. Da observação do acórdão resulta que o enquadramento jurídico dos factos ali efectuado se apresenta correcto no que respeita ao crime de homicídio; igualmente correcta se mostra a referência ao crime de detenção de arma proibida, não oferecendo reparo a decisão na parte da convocação dos dois tipos penais em causa. Já quanto à decisão sobre o concurso de crimes o acórdão merece correcção. O arguido foi condenado como autor de um crime de homicídio agravado tentado dos arts 22.º, n.º 1, al. b), 23.º, 73.º e 131.º do CP, 86.º, n.º 3, do Regime Jurídico das Armas e respetivas munições, aprovado pela Lei n.º 5/2006. Dispondo o n.º 3 do art. 86.º do RJAM, que “as penas aplicáveis a crimes cometidos com arma são agravados de um terço nos seus limites mínimo e máximo”, e tendo sido o crime de homicídio cometido com arma, procedeu-se correctamente à aplicação da norma que agrava a pena correspondente ao homicídio precisamente na decorrência do uso de arma. Mas o arguido foi também condenado, em concurso efectivo, pela prática de um crime de detenção de arma proibida do art. 86.º, n.ºs 1, al. d), e 2.º, n.º 1, al. m), da Lei n.º 5/2006, que pune, entre outras, a detenção ou o uso de arma. E em cúmulo jurídico de penas foi então condenado na pena única de 5 (cinco) anos e 3 (três) meses de prisão. No que respeita ao crime de detenção de arma proibida, justificou-se no acórdão que “a lesão do bem jurídico - o perigo - verifica-se logo no momento da detenção da arma proibida, independente da relação, específica e autónoma, de cada um dos valores individualizados que possam vir a ser concretamente afetados em crime posterior de resultado” e que “tendo ficado demonstrado nos autos que o arguido (…) teve na sua posse uma faca, com uma lâmina de comprimento superior a 10 cms, ciente que o seu uso é suscetível de causar a morte a outrem, dúvidas não temos que, com tal detenção, o Arguido preencheu o tipo objetivo da incriminação”. Sucede que cumpria ponderar então o concurso de crimes, justificando se esse concurso seria efectivo ou aparente, decisão que só pode ser proferida em concreto, tendo por base os factos provados do acórdão. No que respeita à detenção e uso da faca, dos factos provados consta apenas que no momento da prática dos factos o arguido retirou ao assistente a faca que este tinha consigo, que se deslocou na direcção do assistente munido da faca, que levantou o braço e, com a lâmina para baixo, desferiu facadas na cabeça, na testa e na perna do assistente, tendo depois abandonado o local. Nada mais consta dos factos provados, designadamente não consta que o arguido tenha levado consigo a faca e tenha continuado a detê-la. Ou seja, dos factos provados do acórdão apenas é possível concluir que o arguido usou a arma aquando do desferimento das facadas na pessoa do assistente, detendo-a apenas nesse momento e para tal efeito. Para além da utilização da faca no cometimento do crime de homicídio tentado nada mais resultou factualmente comprovado. E o uso da arma, juridicamente, constituiu já fundamento para a elevação da moldura abstracta correspondente ao crime de homicídio. Neste contexto factual, por um lado, não se vislumbra uma autonomização de comportamento que quebre a possibilidade de uma unidade de sentido do acontecimento global; e, pelo outro, punir duplamente nestas circunstâncias afrontaria o ne bis in idem. Na decisão sobre o concurso de crimes, Figueiredo Dias propõe o critério da unidade de sentido do acontecimento ilícito global final, segundo o qual na decisão sobre o concurso se deve atender a uma “tendencial unidade substancial do facto”. Para este Professor, mesmo nos casos de pluralidade de tipos legais violados pelo comportamento global, decisiva deve ser a “unidade do sucesso do acontecimento do ilícito global final”, que permite vislumbrar um sentido de ilícito absolutamente dominante e autónomo, a par de outros dominados ou dependentes” (Jorge de Figueiredo Dias, Direito Penal: Parte Geral I. Questões Fundamentais: a Doutrina Geral do Crime, 3ª ed., Coimbra, 2019, pp 1180/2). A condenação do arguido como autor de dois crimes pressupõe que estes se encontrem em concurso efectivo (heterogéneo), havendo que apreciar, precedentemente e em concreto, se os dois crimes cometidos se encontram em concurso efectivo ou tão só aparente. Na procura do sentido do art. 30.º, n.º 1 do CP (concurso de crimes), Figueiredo Dias propõe o critério da “unidade ou pluralidade de sentidos sociais de ilicitude do comportamento global”. Ocorrendo situações em que vários tipos penais são concretamente aplicáveis, devem distinguir-se os casos em que a esta pluralidade corresponde uma outra pluralidade de sentidos sociais de ilicitude típica (que será o caso do concurso efectivo ou próprio) daqueles em que, apesar de serem vários os tipos preenchidos, retira-se do comportamento global do agente um sentido de ilicitude dominante (a tratar como concurso aparente). O preenchimento em concreto de vários tipos legais pelo comportamento do agente não implica necessariamente o concurso efectivo, assim acontecendo nos casos em que se possa concluir pela existência de um sentido de ilicitude dominante. A punição nos termos do art. 77.º do CP apenas se aplicará aos casos de concurso efectivo. E nos casos de concurso aparente a punição será obtida na moldura penal do tipo legal que integra o sentido de ilícito dominante (no caso, o homicídio agravado pelo uso da arma). Para a “apreensão do conteúdo de ilicitude material do facto” há que recorrer a subcritérios fundamentais, tais como o da unidade de sentido do comportamento ilícito global, o da relação ilícito-meio/ ilícito-fim, o da conexão situacional espácio-temporal e o dos diferentes estádios de realização da actuação global, de acordo com as particularidades de cada caso. Olhando então para a globalidade do acontecido, não pode deixar de se considerar que o uso da arma pelo arguido ocorreu num episódio espácio-temporalmente conexo, esgotando-se nele, inequivocamente revelador da unidade de sentido do comportamento ilícito global. Daí o dever concluir-se que o concurso heterogéneo é aparente, devendo a punição ser obtida, não à luz do art. 77.º do CP, mas na moldura penal do tipo legal que integra o sentido de ilícito dominante, ou seja, do crime de homicídio. Homicídio que se encontra agravado já pela utilização da arma e que consumirá então o crime de detenção de arma proibida. Em sentido idêntico decidiu o acórdão do STJ de 31-03-2011, rel. Manuel Braz, em cujo sumário pode ler-se: ”(…) apesar de o comportamento global do arguido ser subsumível a dois tipos legais – homicídio e uso de arma proibida –, não deve concluir-se por um concurso efectivo de crimes, mas antes aparente. Com efeito, o arguido (…) pegou na espingarda, trouxe-a para o exterior, apontou-a à vítima e disparou sobre ela, matando-a. A conexão existente entre a conduta do arguido em relação à arma e o homicídio, esgotando-se aquela na prática deste, faz aparecer, no comportamento global, o sentido de ilícito do homicídio absolutamente dominante e subsidiário o sentido de ilícito da utilização da arma proibida, havendo desde logo «unidade de sentido social do acontecimento ilícito global», pois o que o recorrente pretendeu foi matar o irmão, não sendo o uso de arma proibida mais que o processo de que se serviu para atingir o resultado almejado – cf. Figueiredo Dias, Direito Penal, Parte Geral, Tomo I, 2.ª Edição, págs. 989, 1015 e 1017”. Em suma, no presente caso, o uso da faca constituiu já, juridicamente, fundamento para a elevação da moldura abstracta correspondente ao crime de homicídio. E resultando dos factos provados que o arguido usou a arma tão só aquando do desferimento das facadas na pessoa do assistente, detendo-a apenas nesse momento e para esse efeito, puni-lo duplamente pelos dois crimes em concurso efectivo heterogéneo traduzir-se-ia numa afronta ao ne bis in idem. Deve, pois, revogar-se o acórdão na parte em que se procedeu à aplicação da pena correspondente ao crime de detenção de arma proibida. 2.2. Da suspensão da execução da pena O arguido não impugnou a medida da pena aplicada pelo crime de homicídio, peticionando apenas a suspensão da sua execução (art. 50.º, n.º 1, do CP). Para tanto, apelou às suas circunstâncias pessoais, referindo ser primário, estar inserido na sociedade, ter confessado e demonstrado arrependimento, ter dezasseis anos de idade à data dos factos, estar a frequentar um curso técnico ou profissional, de tudo se devendo concluir, sempre na sua alegação, que a simples censura do facto e a ameaça da pena realizariam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição. No acórdão não foi ponderada a suspensão da execução da pena dado que a pena única então fixada o fora em 5 anos e 3 meses de prisão. No entanto, não deixou de se dizer que “atenta a pena aplicada, superior a 5 (cinco) anos de prisão, e o disposto no art.º 50.º do Código Penal, mostra-se prejudicada a apreciação de uma eventual suspensão da execução de tal pena de prisão, não podendo, no entanto, deixar de se registar que atenta a gravidade dos factos praticados e das consequências destes decorrentes sempre as elevadíssimas exigências de prevenção geral que se fazem sentir na situação em apreço determinariam a imposição de uma pena de prisão efectiva.” E é de acompanhar o acórdão na conclusão que antecipa. Como se sabe, a determinação da pena é uma actividade judicialmente vinculada, e do art. 50.º, n.º 1 do CP resulta efectivamente que a decisão de não suspensão da execução de prisão aplicada em medida não superior a 5 anos deve merecer uma especial fundamentação. Na jurisprudência do Supremo em que nos revemos, “a suspensão da execução da pena não depende de um qualquer modelo de discricionariedade, mas, antes, do exercício de um poder-dever vinculado, devendo ser decretada, na modalidade que for considerada mais conveniente, sempre que se verifiquem os respectivos pressupostos (acórdão do STJ de 07.11.2007, rel. Henriques Gaspar). A decisão sobre a pena assenta sempre em juízos de prognose, configurando necessariamente “uma estrutura probabilística” e não podendo “senão concretizar-se por aproximações” (assim, Anabela Rodrigues, A Determinação da Medida da Pena Privativa da Liberdade, p. 27). Os juízos de prognose, que não podem resultar de uma mera “intuição” assente na “experiência da profissão”, pressupõem “um trabalho teórico-prático de recolha e valoração de dados e informações acerca da pessoa e dos factos em causa”, o que implica um “alargamento da base da decisão” de modo a incluir os factos relativos ao condenado e aos seus antecedentes criminais (assim, Anabela Rodrigues, loc. cit., p. 28-30). Todos os factos necessários à formulação dessa prognose encontram-se no acórdão. E este incluem não só os que se relacionam com a personalidade do arguido e o seu comportamento anterior e posterior à prática do crime, mas também os que respeitam à culpabilidade. O conjunto de circunstâncias pessoais que o arguido destaca no recurso, resultam efectivamente dos factos provados do acórdão, e depõem a favor dele. E tais circunstâncias mostram-se já amplamente avaliadas no acórdão, tendo até, em momento anterior do iter de determinação da pena, conduzido à aplicação da atenuação especial da pena decorrente da idade. O arguido beneficiou do regime penal previsto para jovens delinquentes. Se é certo que na identificação, sempre casuística, das exigências de prevenção especial, releva sobretudo a pessoa do condenado - a sua personalidade, a sua integração social e familiar, o seu comportamento anterior e posterior, a sua posição relativamente ao crime que cometeu – a gravidade dos factos cometidos acaba por se repercutir também na avaliação sobre a personalidade, mesmo tratando-se de um jovem de dezasseis anos de idade à data dos factos, com a personalidade ainda em formação. A acção praticada pelo arguido, o seu concreto modo de execução, a intensidade e reiteração das facadas, não deixa de ser revelador de uma personalidade com evidentes necessidades de ressocialização. Da acção do arguido resultaram para a vítima, igualmente muito jovem, consequências permanentes gravíssimas, com amputação de parte da perna e outras limitações físicas e psicológicas. E estas e todas as demais circunstâncias, reveladoras de um elevadíssimo grau da ilicitude, evidenciam por seu turno exigências de prevenção geral elevadíssimas, as quais confluem no sentido do afastamento da aplicação de pena de substituição. Como adverte Figueiredo Dias, “apesar da conclusão do tribunal por um prognóstico favorável – à luz, consequentemente, de considerações exclusivas de prevenção especial de socialização – a suspensão da execução da prisão não deverá ser decretada se a ela se opuserem «as necessidades de reprovação e prevenção do crime» (art. 48.º, n.º 2, in fine). (…) estão aqui em questão não quaisquer considerações de culpa, mas exclusivamente considerações de prevenção geral sob a forma de exigências mínimas e irrenunciáveis de defesa do ordenamento jurídico. Só por estas exigências se limita – mas por elas se limita sempre – o valor da socialização em liberdade que ilumina o instituto ora em análise” (Jorge de Figueiredo Dias, Direito Penal Português, As Consequências Jurídicas do Crime, p. 344). Em suma, a suspensão da execução da prisão não garantiria aqui as finalidades da punição, mormente as de prevenção geral, não permitindo assim concluir que o tribunal se deva fidelizar ao poder-dever vinculado de substituição da pena de 5 anos de prisão aplicada no acórdão. Nota final sobre o perdão: O acórdão recorrido enfermava ainda de um erro de direito na aplicação do perdão, a que ali se procedeu. Na verdade, no n.º 4 do art. 3.º Lei 38-A/2023, quando se diz que “em caso de condenação em cúmulo jurídico, o perdão incide sobre a pena única”, está-se necessariamente a considerar a pena única correspondente a crimes que beneficiam todos eles de perdão. E com esta disposição pretendeu-se apenas esclarecer que, nos casos de concurso efectivo de crimes – de crimes que beneficiem, todos ele, de perdão, entenda-se -, o perdão aplica-se uma única vez, à pena única, e não várias vezes, a cada uma das parcelares que a compõem. Ou seja, em caso de concurso efectivo de crimes que beneficiem todos eles de perdão só concluído o processo de determinação da pena e encontrada e aplicada a pena “final”, então sim, há lugar a aplicação do perdão da Lei n.º 38-A/2023. Necessariamente, teria sempre de se compatibilizar o n.º 4 do art. 3.º com o art. 7.º da mesma lei, preceito que determina as excepções ao perdão. Esta compatibilização, na decisão sobre as penas constante do acórdão recorrido, realizar-se-ia aplicando primeiramente o perdão à pena parcelar que deste beneficiava, procedendo-se seguidamente a cúmulo jurídico do remanescente dessa parcelar (caso sobrasse remanescente) com a outra pena parcelar, excluída do perdão - a pena correspondente ao homicídio, crime que está excluído do perdão. Não foi isto que se fez no acórdão, não podendo a decisão proferida estar correcta, desde logo porque um dos crimes se encontra excluído do perdão da Lei n.º 38-A/2023 e a esse crime correspondeu uma pena superior à que resultava então da pena única final (perdoada). Não integrando a matéria do perdão o objecto do presente recurso, nada mais cumpre referir a este propósito. 3. Decisão Face ao exposto, acordam na 3.ª Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça em julgar parcialmente procedente o recurso, embora por outros fundamentos, absolvendo-se o arguido do crime de detenção de arma proibida, e confirmando-se o acórdão na parte referente ao crime de homicídio. Sem custas. Lisboa, 04.06.2024 Ana Barata Brito, relatora Maria Teresa Féria de Almeida, adjunta José Luís Lopes da Mota, adjunto |