Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
29/22.8T8CNF.P1.S1
Nº Convencional: 2.ª SECÇÃO
Relator: ANA PAULA LOBO
Descritores: IMPUGNAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO
PODERES DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA
PROVA TESTEMUNHAL
NULIDADE DE ACÓRDÃO
FALTA DE FUNDAMENTAÇÃO
CONTRATO DE COMPRA E VENDA
COISA DEFEITUOSA
DEFEITOS
DENÚNCIA
REPARAÇÃO
RESOLUÇÃO DO NEGÓCIO
ÓNUS DE ALEGAÇÃO
ÓNUS DA PROVA
ERRO SOBRE O OBJECTO DO NEGÓCIO
ANULABILIDADE
REQUISITOS
Data do Acordão: 07/04/2024
Votação: UNANIMIDADE COM * DEC VOT
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA
Sumário :
A falta de prova de que a máquina vendida, depois de reparada continuou a apresentar defeitos de funcionamento, impede a anulação do negócio jurídico de venda de coisas defeituosas regulada no art.º 913.º, n.º 1 do Código Civil.
Decisão Texto Integral:

I – Relatório

I.1 – relatório

AA apresentou recurso de revista do acórdão do Tribunal da Relação do Porto proferido em 27 de Novembro de 2023 que julgou parcialmente procedente a apelação e revogou, em parte, a sentença, e, nessa conformidade condenou o réu AA a pagar à autora Surridouro Unipessoal, Ld.ª a quantia de € 19 850,00 (dezanove mil oitocentos e cinquenta euro), acrescida de juros à taxa legal, devida para as operações comerciais, a contar da citação até integral pagamento e julgar parcialmente improcedente o pedido reconvencional, com absolvição da autora do pedido de resolução e respectiva indemnização.

O recorrente apresentou alegações que terminam com as seguintes conclusões:

1. Requer a V.as Ex.as a admissibilidade do presente recurso de revista nos termos das alíneas a) e c) do n.º 1 do artigo 674º e alínea b) do n.º 1 do artigo 615º ambos do Código do Processo Civil, porquanto o Tribunal da Relação do Porto entendeu em julgar «…parcialmente procedente a apelação e revogar em parte a sentença e nessa conformidade condenar o réu AA a pagar à autora Surridouro Unipessoal, Lda a quantia de € 19 850,00 (dezanove mil oitocentos e cinquenta euro), acrescida de juros à taxa legal, devida para as operações comerciais, a contar da citação até integral pagamento e julgar parcialmente improcedente o pedido reconvencional, com absolvição da autora do pedido de resolução e respetiva indemnização.»;

2. Sempre com o devido respeito, afigura-se ao Recorrente que a decisão do Tribunal da Relação no sentido de eliminar os pontos 5, 30 e 31 e alterar os pontos 15, 16 e 32 dos factos dados como provados na decisão de 1.ª instância e ainda o não reconhecimento ao recorrente do direito à resolução contratual, nem à indemnização peticionada a título de danos por efeito da resolução, é ilegal e infundada, porquanto,

3. No caso, o confronto dos factos alterados pelo tribunal da Relação com a prova produzida, os juízos formulados na apreciação da prova, constantes da fundamentação da matéria de facto, evidenciam um afrontamento às regras da experiência comum, e a apreciação é manifestamente incorreta, desadequada, fundada em juízos ilógicos ou arbitrários, de todo insustentáveis.

4. O princípio da livre apreciação da prova nunca atribui ao juiz “o poder arbitrário de julgar os factos sem prova ou contra as provas”, ou seja, a livre apreciação da prova não pode confundir-se “com uma qualquer arbitrária análise dos elementos probatórios”, sendo “antes uma conscienciosa ponderação desses elementos e das circunstâncias que os envolvem”.

5. O recorrente apresentou prova documental e testemunhal, suficiente e abrangente, que incidiu sobre todos os factos da sua versão, ao contrário da recorrida que não apresentou prova bastante para provar a sua posição;

Ponto 5 dos factos provados da decisão de Primeira Instância alterado pelo Tribunal da Relação:

6. No que concerne ao pagamento da quantia de € 2.000,00, no dia 22/10/2023, por parte do recorrente à recorrida, o Tribunal da Relação, num total atropelo à prova, diz que apenas duas testemunhas se pronunciaram sobre a matéria em causa…mas os depoimentos prestados, por configurarem indiretos não merecem a credibilidade e relevo…;

7. Contudo, a testemunha BB aquando do carregamento dos acessórios, no dia seguinte ao referido pagamento, testemunhou a entrega da quantia de € 10.000,00, como ainda ouviu as partes falarem da referida entrega da quantia de € 2.000,00:

8. Isto é, a testemunha ouviu as partes em litígio a confirmarem a entrega e o recebimento daquela quantia, logo não estamos perante um testemunho indireto, mas sim o oposto.

9. O depoimento indireto consiste numa comunicação de um facto de que o sujeito teve conhecimento por intermédio de uma terceira pessoa. Quando qualquer uma das pessoas ouvidas na audiência de julgamento descreve o que a parte lhes disse, ou o que ouviu da boca das partes quando falavam entre si, está a descrever eventos da vida real que diretamente presenciou e apreendeu pelos seus próprios sentidos e não está a produzir um depoimento indireto.

10. Em concreto, a desvalorização do depoimento processual daquela testemunha influiu na decisão da causa, contribuindo determinantemente para o resultado probatório;

11. Os princípios relativos à produção da prova testemunhal, são princípios de Direito geral ou comum, aplicáveis em sede de direito processual civil e comuns a todo o Estado de Direito que nos termos do artigo 8.º, n.º 1 da Constituição «fazem parte integrante do direito português.»

12. A interpretação dos princípios da prova livre e da livre apreciação da prova, adoptada nos presentes autos, é inadmissível e ilegal por contrariar precisamente esses princípios de direito geral ou comum, aplicáveis em sede do direito processual;

13. Por conseguinte, o Tribunal da Relação fez uma interpretação errada ao qualificar como depoimento indireto as declarações da testemunha BB, inviabilizando, assim, a constatação de uma realidade fundamental para o apuramento da verdade material e para a boa decisão da causa.

14. Pelo que a decisão do Tribunal de primeira instância não merece qualquer reparo neste ponto, devendo este facto (ponto 5 da sentença) ser dado como provado;

Pontos 15 e 16 dos factos provados da decisão de Primeira Instância alterado pelo Tribunal da Relação:

15. Na Primeira Instância deu-se como provado que o recorrente entregou à recorrida, no início do mês de novembro de 2020, a quantia de € 6.150,00 em cheque, e € 10.000,00 em numerário.

16. Bem como, que a recorrida solicitara ao recorrente que este aceitasse a emissão de um recibo apenas na quantia paga em cheque, tendo sido emitida uma fatura naquele valor.

17. Estes factos, dados como provados, foram substancialmente alterados pelo Tribunal da Relação, fundamentando essa alteração na estranheza do recorrente «…estando preparado para comprar a máquina em 22 de outubro de 2020, pelo preço de € 36.000,00, cerca de quinze dias depois tenha de socorrer-se de terceiros para obter o dinheiro…»;

18. Como também considerar contrário às regras da experiência a entrega de mais dinheiro, por conta do preço, sem o respetivo recibo.

19. Mais, espasme-se, considerou fazer sentido a participação crime, por furto, porque o preço não foi pago e o montante em dívida não seria residual.

20. Ora, refere o Tribunal de 1.ª Instância: «Por fim, não é credível que, perante um acordo de pronto pagamento, a autora tivesse recebido apenas parte e transmitisse de imediato as chaves do bem para a mão do comprador. Da mesma forma que não colhe que continuasse a receber os pagamentos parcelares sem qualquer reserva ou insistência, mesmo perante as avarias da máquina. Note-se que, em momento algum, a autora colocou por escrito que estava em falta uma parte do preço. Nem sequer nas mensagens que antecederam a queixa-crime, onde apenas fala de querer «o problema resolvido» e não o pagamento do remanescente, devido ab initio.»

21. Partindo desta premissa, que a nosso ver é a correta, e ainda pelo facto da queixa-crime ter sido arquivada, do depoimento das testemunhas CC e DD, alcança-se que as mesmas confirmam o empréstimo ao recorrente das quantias de € 3.000,00 e € 7.000,00 respetivamente;

22. Este «empréstimo» é aceite pelo Tribunal da Relação Porto ou pelo menos não o denegou;

23. A testemunha DD, referiu ainda que se dirigiram na parte da manhã a casa do gerente da recorrida e presenciou a entrega da quantia dos € 10.000,00 pelo recorrente à recorrida, facto que o Tribunal da Relação reconhece ter sido corroborado pela testemunha, contudo.

24. O Tribunal da Relação do Porto perante prova clara e evidente, resolve distorcer a verdade e ignorar a prova produzida, chamando à colação a estranheza do negócio, a existência ou não de financiamentos bancários, enfim, factos e juízos de valor que nada têm a ver com o objecto em litígio, para fundamentar a alteração produzida, esquecendo-se de se pronunciar acerca da prova realmente produzida de forma critica e sustentada, por forma a inviabiliza-la e assim proceder à alteração da sentença.

25. Por conseguinte, o Colectivo do Tribunal da Relação não especificou os fundamentos de facto e de direito que o levou a anular e alterar aqueles factos dados como provados e devidamente fundamentados na sentença, incorrendo assim numa nulidade nos termos da alínea b) do n.º 1 do artigo 615º do CPC.

26. Pelo que a decisão do Tribunal de primeira instância não merece qualquer reparo nestes pontos, devendo estes factos (ponto 15 e 16 da sentença) serem dados como provados;

Dos fundamentos para a resolução do contrato:

27. Sem prescindir do acima alegado no que a esta matéria aproveita, e quanto ao «voltfast» promovido pelo Venerando Tribunal da Relação do Porto, no que concerne a esta matéria, cumpre dizer o seguinte:

28. Em primeiro lugar o Venerando Tribunal conclui que todos os vícios da máquina estariam eliminados, os primeiros eliminados pela recorrida e os segundos pelo recorrente.

29. Contudo, tal conclusão não pode decorrer da Douta sentença de 1.ª Instância, que no ponto 34 refere «Entre o dia 19 de novembro de 2020 e o dia 25 do mesmo mês, o réu eliminou, a expensas próprias, as avarias do sistema hidráulico da máquina…»;

30. Pois, da carta que comunicou a resolução contratual, remetida à recorrida pelo recorrente, alcança-se que o recorrente despendeu uma certa quantia para eliminar as deficiências do sistema hidráulico, mas também informou que as avarias persistiam;

31. Acresce ainda que a máquina nunca teve as características que o vendedor lhe atribuiu, isto é, não estava equipada com ar condicionado – Ver ponto 21 dos factos provados.

32. Esta característica é importantíssima para a formação da vontade do comprador, aqui recorrente.

33. Acresce que, a queixa-crime apresentada pela recorrida e da qual resultou na apreensão da máquina em 25/11/2020, é um factor determinante para se declarar o incumprimento contratual da recorrida, nos termos do artigo 801.º do CC;

34. Pois, a dita apreensão judicial obrigou a imobilização da máquina, por um período variável, é certo que o recorrente foi nomeado fiel depositário, mas isso não lhe permitia trabalhar com a máquina;

35. Constitui jurisprudência pacífica do STJ que a perda de interesse do credor que fundamenta a resolução do contrato tem de ser apreciada objectivamente, o que, no caso de um contrato de compra e venda, implica que se tenha tornado inviável o emprego, por parte do comprador, dos bens para o uso especial visado com a sua aquisição (art. 808.º, n.º 1, do CC).

36. Assim, dúvidas não restam que a apreensão da máquina e a impossibilidade de a utilizar, são resultado do comportamento ilegítimo e culposo da recorrida, que com a apresentação da queixa-crime, infundada, impossibilitou a sua utilização, por parte do recorrente, na obra para a qual tinha sido especificamente adquirida.

37. Aliás, se o recorrida, porque entregou a máquina ao recorrente, cumpriu com a sua prestação, como refere o Acórdão em crise, pergunta-se qual o motivo da queixa-crime apresentada contra este?

38. Ora, é nesta parte que o recorrente também discorda e invoca a sua ilegalidade, pois aquela decisão contraria as normas previstas nos artigos 790º e seguintes do Código civil, que legitimam a perda de interesse invocada pelo recorrido;

39. Há, assim, inegavelmente erro na interpretação e aplicação daquelas normas jurídicas (790º e ss. e 808º do código civil), por parte do Acórdão recorrido, que o invalida.

40. Decorrente deste comportamento culposo por parte da recorrida, o recorrente também perdeu a oportunidade de cumprir o contrato de empreitada, que tinha como garantido, com a sociedade F..., Lda, com os danos daí advenientes e dados como provados na 1.ªInstancia.

41. Pelos aduzidos motivos, deve também nesta matéria ser reposta a decisão da sentença proferida em 1.ª Instância, e ser reconhecida e validada a resolução promovida pelo recorrente com as legais consequências.

Termos em que,

deve, sempre com o devido respeito e com o Douto suprimento de V. Exas., ser revogado o acórdão proferido pela Relação do Porto, mantendo a Douta sentença da 1.ª Instância, com o que se fará justiça.

A recorrida apresentou contra-alegações onde entende dever ser integralmente confirmado o acórdão recorrido, que terminam com as seguintes conclusões:

RECURSO DA DECISÃO PROFERIDA SOBRE A MATÉRIA DE FACTO

1. O Recorrente pretende que o Supremo Tribunal de Justiça sindique a decisão do Tribunal da Relação sobre o julgamento da matéria de facto.

2. O Recorrente olvidou a existência das normas constantes do n.º 3 do art.º 674.º e do n.º 2 do art.º 682.º, ambas do CPC, que, em regra, não permitem que o Supremo Tribunal de Justiça faça uma reapreciação da prova e coloque em causa um julgamento já feito, a esse propósito, pelo Tribunal da Relação.

3. O Recorrente, quer nas alegações, quer nas conclusões, não invoca, em momento algum, que a decisão da matéria de facto que quer impugnar violou disposição expressa da lei que exija certa espécie de prova para a demonstração dos respectivos factos ou que fixe a força de determinado meio de prova.

4. Assim sendo, e no que diz respeito à impugnação da decisão da matéria de facto o recurso é inadmissível, uma vez que o Supremo Tribunal de Justiça não pode pronunciar-se sobre tal matéria, conforme determina o n.º 4 do art.º 662.º do CPC.

NULIDADE POR FALTA DE FUNDAMENTAÇÂO DA DECISÃO DA MATÉRIA DE FACTO

5. O Recorrente invocou, ao que se consegue perceber, a nulidade da decisão sobre a matéria de facto por falta de fundamentação.

6. Na decisão recorrida, durante cerca de 15 páginas, os decisores explicaram a sua decisão quanto à matéria de facto, valorando os meios de prova e fazendo uma ajustada análise crítica das provas trazidas a Juízo, concretizando os atinentes elementos probatórios, demonstrando, assim, a convicção que levou à decisão.

7. Nestes autos, a decisão sobre a matéria de facto contém a respectiva fundamentação, sustentada num discurso inteligível, atenta a explicação da razão por que se decidiu da maneira que se decidiu, sendo perceptível que os fundamentos invocados pelo Tribunal recorrido, que aqui se dão por integralmente reproduzidos, conduziram, logicamente, à decisão de facto, inexistindo qualquer vício que consubstancie falta de fundamentação ou qualquer outro que pudesse implicar a nulidade da decisão.

DECISÃO SOBRE A ILICITUDE DA RESOLUÇÃO

8. Ao contrário do que é defendido na sentença da primeira instância e é agora reiterado nas alegações do Recorrente, não houve, nos termos do art.º 808.º do CC, perda do interesse por parte do comprador/Réu.

9. Não houve fundamento para a resolução efectuada pelo Réu, uma vez que é manifesto que não houve objectivamente perda do interesse, a obrigação já estava cumprida e o comportamento do Réu é expressivo no sentido que mantinha o interesse na máquina.

10. O facto de a máquina não ter ar condicionado, por si só, não é fundamento para a resolução, até porque o Recorrente não conseguiu provar que o ar condicionado fosse condição essencial para a compra da máquina (Cf. alínea r) dos factos não provados).

11. Aliás, no dia 19/11/2020 o Réu, quando foi buscar a máquina, tomou conhecimento que a mesma não estava equipada com ar condicionado e, posteriormente a isso, mandou reparar o sistema hidráulico, o que demonstra que manteve o interesse na máquina.

12. A queixa crime e a apreensão da máquina nenhuma influência tiveram no cumprimento ou não cumprimento da obrigação, até porque, nesse momento, a obrigação já estava cumprida.

13. Se eventualmente a apreensão da máquina causou algum dano, ele teria que ser peticionado no âmbito da responsabilidade civil pela prática de factos ilícitos, art.º 483.º do CC, e não o foi.

14. O comportamento do Recorrente ao resolver o contrato poucos dias depois de ter ido buscar a máquina e de mandar reparar a avaria no sistema hidráulico é, manifestamente, contraditório.

15. Acresce que o Réu, quando resolveu o contrato, encontrava-se em mora, art.º 804.º do CC, no que diz respeito ao pagamento da parte do preço em dívida.

16. Em conclusão se dirá que a resolução foi ilegítima e infundada e, por isso, ilícita e ineficaz, mantendo-se o contrato de compra e venda na ordem jurídica.

17. Mantendo-se, assim, por cumprir parte da obrigação de pagamento do preço.

18. Portanto, o acórdão do Tribunal da Relação não merece reparos quanto ao decidido sobre a ilicitude da resolução.

Termos em que o recurso deve ser julgado improcedente, mantendo-se a decisão proferida pelo tribunal da relação.


*

I.2 – Questão prévia - admissibilidade do recurso

O recurso de revista é admissível ao abrigo do disposto no art.º 671.º, n.º 1 do Código de Processo Civil.


*

I.3 – O objecto do recurso

Tendo em consideração o teor das conclusões das alegações de recurso e o conteúdo da decisão recorrida, cumpre apreciar a seguinte questão:

1. Impugnação da matéria de facto.

2. Falta de fundamentação do acórdão recorrido quanto à decisão que alterou a matéria de facto provada.

3. Resolução do contrato de compra e venda.


*

I.4 - Os factos

O Tribunal recorrido considerou provados os seguintes factos:

1. A autora dedica-se à construção civil, obras públicas e acabamento, serviços de terraplanagens e reparação de terrenos, e aluguer de máquinas.

2. Em 22 de Outubro de 2020 na sede da autora, sita na Av.ª ..., ..., autora e réu acordaram que aquela vendia a este a máquina da marca Catterpilar, Modelo 315, n.º de série 5SW00832 e respectivos acessórios – 1 riter Caterpillar, 1 balde Caterpillar, 1 balde de 60 Caterpillar –, no estado de usada, e pelo preço global de 36.000,00 (trinta e seis mil euros).

3. A autora informou o réu, no acto da compra, que a máquina se encontrava equipada com ar condicionado.

4. A compra da máquina pelo réu deveu-se a necessidade desta para uma obra que estava a executar para uma outra empresa, F..., Lda, no que tinha urgência, o que era do conhecimento da autora desde a celebração do negócio.

5. Eliminado.

6. No dia seguinte, dia 23 de Outubro de 2020, o réu levou os acessórios da máquina, identificados no facto n.º 2, que se encontravam no estaleiro da autora, sito no Lugar de ..., Freguesia de ..., Concelho de ..., e foi paga a quantia de mais € 10.000,00 (dez mil euros) em numerário, por conta do preço.

7. O réu solicitou à autora o recibo dos pagamentos, mas esta não o emitiu, afirmando que o contabilista não se encontrava disponível, pelo que emitiria o mesmo mais tarde.

8. Tendo o réu a intenção de proceder ao levantamento da máquina, deslocou-se ao terreno da autora, com a anuência desta, onde a máquina estava estacionada – ..., Concelho de ... – para efectuar o carregamento desta, munindo-se, para o efeito, de um camião com reboque.

9. O réu tinha acesso à propriedade onde a máquina se encontrava aparcada e à chave da mesma.

10. Chegado ao local, a máquina não pegava, tendo o réu comunicando à autora que deveria providenciar pela sua reparação.

11. No mesmo dia, a autora deslocou-se ao local com um funcionário seu, que não a conseguiu reparar, pelo que o réu não pôde levar a máquina, deixando aí também o reboque que levara.

12. A autora comprometeu-se a reparar a máquina, que se encontrava dentro da garantia da última revisão.

13. Como a máquina não estava reparada, no dia 26 de Outubro de 2020, o réu foi a ... para aferir pessoalmente dos progressos, tendo verificado que a avaria persistia.

14. O réu falou com o proprietário de uma oficina de mecânica próxima dali, o Sr. EE, que se prontificou a ver a máquina no dia seguinte, tendo detectado avarias no sistema de arranque do motor da máquina e reportou as mesmas à autora, que se comprometeu a eliminá-las com a maior brevidade possível.

15. Em data não concretamente apurada do início do mês de Novembro de 2020, o réu entregou à autora a quantia de € 6.150,00 em cheque.

16. A autora emitiu um recibo da quantia paga em cheque, tendo sido emitida uma factura naquele valor.

17. A máquina foi reparada pelos responsáveis pela manutenção da máquina, da empresa PaulosAuto.

18. No dia 17 de Novembro de 2020, a autora comunicou ao réu as diligências que fez e que o réu podia levantar a máquina a partir do dia seguinte.

19. No dia 19 de Novembro de 2020, o réu deslocou-se ao local onde estava a máquina, tendo verificado que esta apresentava outros vícios de funcionamento, desta feita relacionados com o sistema hidráulico, avaria que só foi possível verificar após o conserto da anterior, por depender do funcionamento do motor para manobramento da máquina.

20. O réu decidiu transportar a máquina para o seu estaleiro, sito em ... e, aí, apurar o real estado mecânico da mesma, tendo informado a autora dessa sua intenção.

21. Nessa altura, o réu tomou conhecimento de que a máquina não estava equipada com sistema de ar condicionado.

22. O réu não pagou mais nenhuma quantia à autora.

23. Várias foram as chamadas e SMS da autora para o telemóvel do réu ao que este não deu qualquer resposta.

24. A autora apresentou uma queixa-crime contra o réu, denunciando o furto da máquina, a qual correu os seus termos no Ministério Público junto do Juízo de Competência Genérica de ... sob o n.º Proc. 220/20.1..., e que veio a ser arquivado.

25. Em 25 de Novembro de 2020, o réu foi constituído arguido no âmbito daquele processo e a máquina foi apreendida cautelarmente.

26. Em 02 de Dezembro de 2020 o réu enviou à Autora a carta com aviso de recepção junta como documento nº 2 na contestação, com o seguinte teor:

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27. A carta foi recepcionada pela autora no dia 03 de Dezembro de 2020.

28. Quando foi comunicada a denúncia do contrato, o Réu tinha perfeito conhecimento de estar em falta com o pagamento do remanescente do preço.

29. A autora não devolveu o dinheiro pago ao réu, nem levantou a máquina.

30. Eliminado.

31. Eliminado.

32. Com data de 01 de Janeiro de 2021 a sociedade F..., Lda enviou uma carta ao réu na qual manifestou a intenção de demandar o réu em sede própria, com o intuito de se ver ressarcida dos prejuízos sofridos, pelas penalizações de não entrega em data de € 18 500,00, estando disponível para alcançar uma solução extrajudicial.

33. O réu deslocou-se ainda 2 vezes a ..., de camião, percorrendo um total de 560 kms (ida e volta), despendendo, assim, para o combustível, pelo menos € 200,00, e para as portagens, pelo menos, € 42,60.

34. Entre o dia 19 de Novembro de 2020 e o dia 25 do mesmo mês, o réu eliminou, a expensas próprias, as avarias do sistema hidráulico da máquina, despendendo com isso a quantia de € 1.477,80.

35. O réu tinha alguns conhecimentos sobre a máquina.

36. Com a queixa-crime apresentada pela autora, o réu sentiu-se vexado e humilhado.

Factos não provados

a. Ao preço da máquina indicado em 1. acrescia o IVA à taxa legal em vigor.

b. Ficou previamente definido entre autora e réu que o remanescente do preço seria pago quando o Réu procedesse ao levantamento da máquina que se encontrava em ..., Concelho de ....

c. Foi o réu quem pediu a emissão de uma factura no valor de 5.000,00 + IVA.

d. Aquando da entrega do cheque e factura/recibo, foi novamente relembrado ao Réu, que impreterivelmente, o remanescente do valor em divida do negócio, teria de ser pago no acto de carregamento da máquina, como definido entre as partes.

e. Aquando da comunicação do dia para levantamento após reparação, foi expressamente indicado o dia para pagamento do remanescente do preço.

f. A autora protelou a reparação da máquina.

g. O representante da autora deslocou-se a ... para acompanhar a reparação, entregar a máquina e receber o preço e o réu não compareceu, nem se fez representar.

h. No dia 19 de Novembro de 2020, chegado ao terreno, o legal representante da autora constata, que o réu, sem contacto prévio e autorização, carregou e levou a máquina das instalações da autora.

i. A avaria no sistema hidráulico era do conhecimento da autora, que ocultou do réu.

j. O réu tinha um conhecimento específico sobre o que pretendia e estava a adquirir.

k. O réu conhecia plenamente a máquina e as suas características técnicas.

l. Era notório e imediatamente perceptível se a máquina estava ou não equipada com sistema de ar condicionado.

m. A autora tentou substituir a ré na qualidade de fiel depositária da máquina.

n. Após várias tentativas de contacto para tentar perceber o ocorrido, o réu acordou com a autora reunirem-se na sua sede no dia 20 de Novembro para resolver o ocorrido, não tendo este comparecido.

o. O réu não comunicou a avaria hidráulica à autora, sendo que só em 25 ou 26 de Novembro 2020, a autora teve conhecimento onde se encontrava a máquina em virtude da sua apreensão e em consequência da queixa apresentada.

p. O réu despendeu, além da quantia indicada em 34., ainda, € 861,53 com a reparação da máquina devido às avarias que trazia.

q. As avarias no sistema hidráulico estavam cobertas pela garantia das reparações e revisões que a autora havia feito à máquina.

r. O ar condicionado era condição essencial para a compra da máquina.

s. O réu ficcionou avarias, defeitos, reparações, indemnizações e danos não patrimoniais.

t. Nesse mesmo dia, o réu entregou à autora a quantia de € 2.000,00 em numerário, como princípio de pagamento.

u. No início de Novembro de 2020 o réu entregou à autora em numerário € 10 000,00.

v. O réu não conseguiu cumprir com o acordo que tinha com a F..., Lda, devido ao facto de não ter conseguido a máquina operacional, nas características anunciadas pela autora e em tempo, o que motivou a cessação desse acordo por aquela empresa.

w. O réu deixou de auferir pelo menos € 9.000,00 pelos trabalhos que deixou de realizar para a F..., Lda..


***

II – Fundamentação

1. Impugnação da matéria de facto

Insurge-se o réu contra a alteração da matéria de facto empreendida pelo Tribunal recorrido por ter efectuado, em seu entender, um mau uso do princípio da livre apreciação da prova.

Todas as alterações efectuadas pelo Tribunal recorrido decorreram de diversa valoração sobre a prova testemunhal relativamente à operada pelo Tribunal de 1.ª instância, sendo certo que neste recurso apenas se enuncia que a conclusão do Tribunal recorrido não coincide com a valoração que a parte retira dos indicados depoimentos.

Em regra, o Supremo Tribunal de Justiça só conhece de direito fixando definitivamente o regime jurídico que julgue adequado aos factos materiais fixados pelo tribunal recorrido – art.º 682.º, n.º 1 do Código de Processo Civil -.

Por força do mesmo preceito legal, o Supremo Tribunal de Justiça só pode introduzir alterações quando se verifique ofensa de uma disposição expressa de lei que exija certa espécie de prova para a existência do facto ou que fixe a força de determinado meio de prova.

Nas situações indicadas pelo recorrente não se verifica nenhuma das situações indicadas havendo o Tribunal recorrido procedido à fixação da matéria de facto provada segundo o princípio da livre apreciação da prova cujo uso é insindicável pelo Supremo Tribunal de Justiça.

Pelas indicadas razões, improcede o recurso com o referido fundamento.

2. Nulidade por falta de fundamentação da decisão que alterou a matéria de facto provada.

Vem arguida a nulidade do acórdão recorrido com fundamento no art.º 615.º, n.º 1, b) do Código de Processo Civil por entender o recorrente que :” O Tribunal da Relação do Porto perante prova clara e evidente, resolve distorcer a verdade e ignorar a prova produzida, chamando à colação a estranheza do negócio, a existência ou não de financiamentos bancários, enfim, factos e juízos de valor que nada têm a ver com o objecto em litígio, para fundamentar a alteração produzida, esquecendo-se de se pronunciar acerca da prova realmente produzida de forma critica e sustentada, por forma a inviabiliza-la e assim proceder à alteração da sentença.

25. Por conseguinte, o Colectivo do Tribunal da Relação não especificou os fundamentos de facto e de direito que o levou a anular e alterar aqueles factos dados como provados e devidamente fundamentados na sentença, incorrendo assim numa nulidade nos termos da alínea b) do n.º 1 do artigo 615º do CPC.”.

Sob a veste de nulidade por falta de fundamentação, invoca o recorrente, uma vez mais, a errada avaliação da prova produzida que, como analisamos antes, não é passível, no caso concreto, de ser sindicada pelo Supremo Tribunal de Justiça, sendo certo que a fundamentação das alterações introduzidas à decisão sobre a matéria de facto se encontram abundante e coerentemente expressas a fls. 20 a 52.

Pelas indicadas razões, improcede o recurso com o referido fundamento.

3. Resolução do contrato de compra e venda

A A., aqui recorrida, intentou acção declarativa de condenação contra o recorrente AA pedindo a condenação deste a pagar-lhe um valor monetário corresponde a parte do preço ainda não satisfeita pelo R. pela venda de uma máquina.

Na contestação o recorrente aceita ter celebrado com a autora um contrato verbal de compra e venda, tendo por objecto a máquina de marca Catterpilar, modelo 315, n.º de série 5sw00832 e acessórios, pelo preço global acordado de € 36.000,00, com o IVA incluído, do qual já pagou os montantes parcelares de 2 000,00€, 10 000,00€, 10 000,00€, e, 6 150,00€, factos que vieram a lograr prova.

A máquina objecto do contrato de compra e venda apresentou diversos defeitos que impediam o seu funcionamento e não se mostrava dotada de sistema de ar condicionado.

Seguindo a matéria de facto provada, sabemos que a autora reparou alguns dos defeitos e o réu outros.

Após a reparação levada a cabo pela autora a máquina cujo motor passou a funcionar, apresentava ainda ume deficiência no sistema hidráulico e o réu levou-a para as suas instalações onde a reparou.

A autora continuando a insistir junto do réu pelo pagamento do preço em falta, sem sucesso, apresentou uma queixa crime contra o réu por furto da máquina que levou à apreensão da mesma nas instalações deste e, por carta de 3 de Dezembro de 2020 o réu, comunicou à autora que havia reparado a máquina, mas que ele continuava sem funcionar, pelo que resolvia o contrato de compra e venda, solicitando a devolução do monte que havia pago e devendo a autora ir buscar a máquina às suas instalações. A autora não aceitou a resolução do contrato, não devolveu os montantes recebidos, nem procedeu ao levantamento da máquina que permanece na disponibilidade do réu.

O Tribunal de 1.ª instância considerou válida e operante a resolução do contrato levada a cabo por declaração do réu, sendo que o Tribunal recorrido revogou tal decisão considerando ilícita tal resolução.

Estamos perante um contrato de compra e venda de uma máquina industrial que o réu adquiriu para utilizar na execução de obras de construção a que se dedica. A máquina apresentava diversos defeitos, que só se foram revelando com o decurso do tempo, e, a desconformidade, pelo menos com as expectativas do réu, de não ser dotada de ar condicionado.

O réu ao adquirir a máquina pretendia naturalmente uma máquina em bom estado de funcionamento e apta a executar os trabalhos para que era adequada. Mesmo que a não destinasse a realizar qualquer obra, era seu direito obter uma máquina em bom estado de funcionamento dado não se ter provado que adquiriu a máquina com o fim de a desmantelar e utilizar as suas componentes ou materiais constitutivos noutro fim que não a realização de trabalhos para os quais foi concebida.

Deste modo, existe da parte da autora um cumprimento defeituoso da prestação a que se obrigou - obrigação de entrega da coisa, art.º 879.º, b) do Código Civil -, pois, tendo entregue a máquina, ela apresentava defeitos. Embora a autora haja reparado os primeiros defeitos de funcionamento detectados, logo outros defeitos se tornaram aparentes que o réu reparou. Isto é, a coisa vendida sofria de vício que a desvalorizava ou, pelo menos impedia a realização do fim a que era destinada, e que o réu pretendia, como era do conhecimento da autora.

Sobre a questão do ar condicionado, diz a matéria de facto que a máquina não era dotada desse sistema, contrariamente ao que havia sido assegurado pelo vendedor – ponto 3 da matéria de facto. Em causa está uma ausência de qualidade do bem, só detectada pelo comprador em momento muito posterior à entrega da máquina, que eventualmente este valorizava, o que integra uma faceta de cumprimento defeituoso da prestação a cargo do vendedor - qualidade do bem vendido que o vendedor tinha assegurado a mesma possuir – art.º 913.º do Código Civil-.

Perante os defeitos que a máquina apresentava o comprador, que oportunamente os denunciou ao vendedor – art.º 916.º do Código Civil - tinha direito de exigir, como exigiu, a sua reparação – art.º 914.º do Código Civil -.

À venda de coisas defeituosas é aplicável, com as necessárias adaptações o regime jurídico previsto para a venda de bens onerados, por força do disposto no art.º 913.º, n.º 1 do Código Civil, onde se localiza a identificação dos legítimos meios de reacção de que dispunha o réu contra este cumprimento defeituoso do contrato de compra e venda da máquina. Dentre esses meios ressalta a possibilidade de obter a redução do preço, eventualmente acompanhada de indemnização pelos danos que toda a situação de cumprimento defeituoso da prestação lhe haja causado, e a anulação do negócio. Trata-se de um regime jurídico especial para a venda de coisas defeituosas. Contrariamente ao que ocorre com a venda de bens de consumo – art.º 15.º, n,º 1, c) do Decreto-Lei n.º 84/2021 de 18 de Outubro que regula os direitos do consumidor na compra e venda de bens, conteúdos e serviços digitais, transpondo as Directivas (UE) 2019/771 e (UE) 2019/770 - , o direito à resolução do contrato de compra e venda de coisa defeituosa não está expressamente previsto nos art.ºs 913.º e ss. do Código Civil, nem na secção precedente, relativa à venda de coisas oneradas.

O réu apresentou à autora declaração extrajudicial de resolução do contrato em 2 de Dezembro de 2020, com fundamento em perda de interesse na realização do negócio após ter procedido a expensas suas à reparação do sistema hidráulico, por as avarias persistirem. Em concreto o comprador considera que após diversas tentativas de reparação, mantendo-se a máquina sem capacidade de desempenhar as funções que lhe são próprias e que foram determinantes da sua vontade de contratar, perdeu o interesse no cumprimento do contrato, pelo que pretende a sua resolução.

Tendo em conta que os efeitos jurídicos da resolução são equiparáveis aos da anulação do negócio jurídico evidenciando-se dos articulados e matéria provada, que o comprador, manifestamente pretendia a máquina para a usar para os fins para os quais foi concebida, e tolerando algumas reparações, se dispunha apenas a colocar a máquina em funcionamento e não já a adquirir uma máquina inoperacional, seria possível a convolação do pedido de resolução do contrato em pedido de anulação do contrato, no uso do art.º 3.º, n.º 3 e sem violação do disposto no art.º 609.º, n.º 1 do Código de Processo Civil.

Todavia, ainda assim, importa anotar que o que consta da carta de resolução não foi totalmente transposto para a matéria de facto provada, particularmente quanto à questão de as reparações efectuadas pela vendedora e pelo comprador não terem surtido o efeito desejado de colocar a máquina em funcionamento. Não havendo dúvidas sobre a existência de defeitos no motor inicialmente e no sistema hidráulico depois, o certo é que o réu não logrou provar que a máquina, como declarou na carta de resolução, se mantém avariada e que tal se deve a defeito de que era portadora desde a venda. O réu não exigiu que a vendedora procedesse à reparação do sistema hidráulico, decidiu proceder ele a essa reparação, não tendo dado conta, desde então e até ao envio da carta de resolução, da existência de qualquer avaria ou deficiência de funcionamento da máquina, deixando que se possa conjecturar que a máquina passou a funcionar e foi, ou, podia ter sido utilizada para o fim a que se destinava.

O art.º 913.º do Código Civil, aplica o mesmo regime jurídico às situações de vício da coisa vendida quer dele decorra a sua desvalorização, quer impeça a realização do fim a se destina e à falta das qualidades que hajam sido asseguradas pelo vendedor, o que manifesta a relevância da utilidade que o comprador espera da coisa que adquiriu. No regime jurídico da venda de coisas defeituosas compete ao comprador a prova da existência do defeito, a inaptidão da coisa para o fim a que é destinada ou a desvalorização resultante do defeito e a essencialidade e a cognoscibilidade dessa essencialidade do erro para o declaratário, nos termos do disposto no nº 1 do art. 342º Código Civil, dado que se trata de factos constitutivos do seu direito.

Sendo certo que existe prova de a máquina ter apresentado vários defeitos e não possuir ar condicionado, houve reparações, não há prova de os defeitos persistirem nem a essencialidade para o comprador de existência de ar condicionado.

Deparamo-nos com a ausência de prova de que a máquina depois da última reparação, efectuada pelo comprador, que mantém a máquina na sua disponibilidade, pese embora tenha declarado que a vendedora a pode ir buscar quando entender, continua avariada. Não estando provado que a máquina, depois de reparada permanece avariada e imprópria para o uso normal a que se destina, também não é possível configurar a existência de erro – ter o réu querido comprar aquela máquina apenas porque supunha que ela estava dotada de condições técnicas necessárias à realização do tipo de obra que indicou, vindo a verificar-se ser imprestável para tal fim – necessário à fundamentação da anulabilidade do contrato.

Do mesmo modo a circunstância de a sociedade F..., Lda ter enviado uma carta ao réu na qual manifestou a intenção de o demandar em sede própria, com o intuito de se ver ressarcida dos prejuízos sofridos, pelas penalizações de € 18 500,00 por não entrega atempada da obra, não basta para concluir que tal atraso, a ter-se verificado, é passível de tal penalização e foi devido exclusivamente ás avarias da máquina, por se desconhecer que obra era essa, em que medida nela tinha participação imprescindível a máquina, a que são devidos os atrasos na entrega da dita obra.

O comprador não pagou o preço integral acordado pela aquisição da máquina nem invocou assistir-lhe o direito de recusar a sua prestação enquanto o vendedor não reparasse a máquina, muito menos exigiu qualquer redução do preço fundada nas deficientes qualidades de funcionamento da máquina.

Concluímos, deste modo, não estarem reunidos os pressupostos legais que possibilitariam a declaração de anulação deste negócio jurídico, com base nesses defeitos e desconformidades.

A mesma conclusão de improcedência do recurso seria alcançada no caso de se entender aplicável o regime da resolução do contrato.

Assim, ainda que assente em diversa fundamentação jurídica, atingimos a mesma decisão do acórdão recorrido de improcedência do pedido reconvencional.


***

III – Deliberação

Pelo exposto acorda-se em negar a revista e confirmar o acórdão recorrido.

Custas pelo recorrente, atento o seu decaimento.


*

Lisboa, 04 de Julho de 2024

Ana Paula Lobo (relatora)

Emídio Francisco Santos

Afonso Henrique Ferreira

Declaração de voto

Concordo com a decisão de julgar improcedente o recurso.

Porém, apreciaria a pretensão do recorrente à luz da resolução e pelas razões enunciadas no acórdão concluiria que o recorrente não está em condições de opor a resolução do contrato à autora, recorrida.

Emídio Francisco Santos