Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça | |||
| Processo: |
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| Nº Convencional: | 7ª SECÇÃO | ||
| Relator: | ARLINDO OLIVEIRA | ||
| Descritores: | RECURSO PARA UNIFORMIZAÇÃO DE JURISPRUDÊNCIA ADMISSIBILIDADE PRESSUPOSTOS OPOSIÇÃO DE ACÓRDÃOS SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA TRIBUNAL DA RELAÇÃO ACORDÃO FUNDAMENTO ACÓRDÃO RECORRIDO ACESSO À JUSTIÇA PRINCÍPIO DA CONFIANÇA PRINCÍPIO DA SEGURANÇA JURÍDICA QUESTÃO FUNDAMENTAL DE DIREITO PRINCÍPIO DA ADESÃO REJEIÇÃO | ||
| Apenso: | | ||
| Data do Acordão: | 10/02/2025 | ||
| Votação: | UNANIMIDADE | ||
| Texto Integral: | S | ||
| Privacidade: | 1 | ||
| Meio Processual: | RECUESO UNIFORMIZAÇÃO DE JURISPRUDÊNCIA (CÍVEL) | ||
| Decisão: | REJEITADO O RECURSO | ||
| Sumário : | I . Não acarreta a inconstitucionalidade, por violação dos princípios da confiança e da segurança jurídica e/ou violação do direito de acesso à justiça e à tutela jurisdicional efectiva, previstos nos artigos 2.º e 20.º, da CRP, a aplicação do artigo 688.º, n.º 1, do CPC, ainda que se trate, como no caso em apreço, de uma situação decorrente de dedução de pedido de indemnização cível no âmbito do processo penal. II. Não obstante os autos terem tido origem em pedido cível deduzido em processo penal e terem sido remetidos às Secções Cíveis do STJ, por serem as competentes, a lei aqui aplicável é a que rege o processo civil, designadamente, o Código de Processo Civil. III. No processo civil, só é admissível a dedução de recurso para uniformização de jurisprudência, quando o Supremo Tribunal de Justiça proferir acórdão que esteja em contradição com outro anteriormente proferido pelo mesmo tribunal, do que decorre que o objecto do recurso para uniformização de jurisprudência tem de ser um acórdão do STJ e não da Relação e a razão de tal recurso é a contradição entre o núcleo essencial do acórdão recorrido e o do outro acórdão do Supremo (acórdão-fundamento). IV. Dado que no caso em apreço é apontada a contradição entre dois acórdãos das Relações, conforme disposto no Artigo 688.º, n.º 1, do CPC, não é admissível o presente recurso para uniformização de jurisprudência, o que acarreta a sua rejeição, cf. artigo 692.º, n.º 1, do CPC. | ||
| Decisão Texto Integral: | Acordam, em conferência, no Supremo Tribunal de Justiça Madureira Ascensão & Rodrigues – Sociedade Hoteleira, Ld.ª, António Miranda & Madureira, Ld.ª e Fernando Jorge Ferraz, Ld.ª – estas duas últimas inicialmente identificadas como «outras» –, demandadas no processo supra epigrafado, vieram interpor recurso de fixação de jurisprudência, relativamente ao acórdão de 18-12-2024 (ref.ª Citius ......77) do Tribunal da Relação do Porto (doravante, também “TRP”), nos termos e para os efeitos do disposto nos artigos 437.º e 438.º, do Código Processo Penal, alegando encontrar-se em oposição com o acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Guimarães (doravante, também “TRG”), de 13-01-2022, proferido no Processo n.º 5/21.8T8VPA.G1, estando em causa a mesma questão de direito, formulando as seguintes conclusões: «1 - A questão que se pretende ver apreciada por este Tribunal Superior e que é de enorme relevância jurídica, quer pelo impacto que tem na vida das empresas, quer pelas várias decisões judiciais contraditórias e é a seguinte: num procedimento de consumo fraudulento de energia elétrica e para a determinação dos consumos que terão existido pode a entidade fornecedora efectuar desde logo o apuramento desses consumos por estimativa, sem ter de comunicar às demandadas a possibilidade de requererem uma contra vistoria à Direcção Geral de Energia ? 2 - No caso em concreto o Tribunal da 1ª Instância decidiu que “ No que diz respeito à contabilização da energia consumida e não paga, e demais prejuízos sofridos pela E-Redes, atendeu-se à documentação junta aos autos, confirmada pelos dois técnicos que procederam aos respetivos cálculos e sua validação, cálculos esses que obedeceram às regras para a determinação de consumo associado a procedimento fraudulento (Guia de Medição, Leitura e Disponibilização de Dados, aprovado pela ERSE, de Janeiro de 2016) e restante legislação em vigor, nomeadamente, a que estabelece os valores de consumo anual e desvios padrão a considerar nos procedimentos fraudulentos (Diretiva ERSE n.o 11/2016), pelo que os valores indicados não nos suscitam quaisquer dúvidas. É certo que o valor da energia consumida e não paga foi apurado por estimativa, o que não poderia deixar de ser, pois a adulteração do equipamento visou, exatamente, a não contabilização da energia consumida.” 3 - E o acórdão recorrido decidiu que : “As objeções que contra o decidido pela 1ª instância são suscitadas pelas recorrentes mostram-se inteiramente improcedentes: não só a falta da notificação que alegam não lhes ter sido feita só seria (rectius: poderia eventualmente ser) relevante se a demandante tivesse optado pelo cancelamento do fornecimento de energia elétrica, o que não se verificou (ou, pelo menos, não vem demonstrado que se tenha verificado; cf., a propósito, a inequívoca redação do artigo 4º, n.º 1, do Decreto-Lei nº 328/90, de 22 de outubro, diploma que, à data dos factos, regulava a matéria)... “ 4 - Ora, é assim manifesto que o acórdão recorrido entra em contradição com o acórdão do Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 13/01/2021 no Processo 5/21.8T8VPA.G1 que entendeu que:“ I – O nº 2 do art. 1º do Dec.-Lei no 328/90 de 22 de Outubro prevê uma presunção juris tantum nos termos da qual qualquer procedimento fraudulento detectado no recinto ou local exclusivamente servido por uma instalação de utilização de energia eléctrica presume-se, salvo prova em contrário, imputável ao respectivo consumidor, sendo que não se trata propriamente de uma presunção de autoria do procedimento fraudulento, mas uma presunção de responsabilidade perante o distribuidor. II - No caso de indícios ou suspeita de procedimento fraudulento tem o distribuidor os seguintes deveres: a) dar notícia, em auto suficientemente descritivo, dos elementos que no entender do fornecedor constituem a prática manipuladora, deturpadora e viciante da medição da energia eléctrica (art. 2.º, n.º 2); b) entregar e deixar cópia do auto de ocorrência (art. 2.º, n.º 3); c)) fornecer os “elementos de prova eventualmente recolhidos” (art. 2.º, n.º 3); d) impedir que se processe uma interrupção do fornecimento de energia sem que o consumido r tenha sido notificado, por escrito, do valor presumido do consumo regularmente feito (art. 4.º, n.º 1); e e) informar o consumidor dos seus direitos, designadamente o de poder requerer à Direcção-Geral de Energia a vistoria prevista no artigo 5º nº 2.III – Num caso de procedimento fraudulento, além desta alegação e prova, incumbe à distribuidora igualmente o ónus de alegação e prova do cumprimento do dever de informação ao consumidor do seu direito de requer à Direcção Geral de Energia uma “contra-vistoria”. 5 - Sucede que o acórdão recorrido não poderia ter condenado as aqui Demandadas no pedido de indemnização civil, desde logo, porque recaia sobre a lesada/demandante a obrigação de informar as Demandadas dos seus direitos, designadamente o de poder requerer à Direção-Geral de Energia a vistoria prevista no artigo 5.º, n.º 2 do Decreto-Lei n.o 328/90, de 22 de outubro. 6 – E resulta dos autos (pois não consta da matéria dada como provada) que nunca a Autora comunicou à Ré a obrigação referida no artigo 4º no 1 do Decreto Lei 328/90. 7 - E ao contrário do que refere o acórdão recorrido este dever de informar as demandadas não existe apenas no caso de uma situação de corte do fornecimento de energia elétrica. 8 - Na verdade e como refere e bem o acórdão fundamento: “Nos termos desta legislação, no caso de indícios ou suspeita de procedimento fraudulento, os deveres do distribuidor são os seguintes, segundo se lê no Ac. do S.T.J. de 10/05/2016 (Gabriel Catarino):“(i) dar notícia, em auto suficientemente descritivo, dos elementos que no entender do fornecedor constituem a prática manipuladora, deturpadora e viciante da medição da energia eléctrica (art. 2.º, n.º 2); (ii) entregar e deixar cópia do auto de ocorrência (art. 2.º, n.º 3); (iii) fornecer os “elementos de prova eventualmente recolhidos” (art. 2.º, n.º 3); (iv) impedir que se processe uma interrupção do fornecimento de energia sem que o consumidor tenha sido notificado, por escrito, do valor presumido do consumo regularmente feito (art. 4.º, n.º 1); e (V) informar (com carácter de obrigatoriedade) o consumidor dos seus direitos, “nomeadamente o de poder requerer à direcção-geral de energia a vistoria prevista no artigo seguinte”. 9 – Na esteira do acórdão fundamento: “Segundo uns, o direito do consumidor de ser informado de que pode requerer à Direcção Geral de Energia uma vistoria (ou melhor, uma “contra-vistoria”) apenas se justifica no caso de interrupção da energia eléctrica. Neste sentido vide Ac. do S.T.J. de 14/10/2003 (Camilo Moreira) e Ac. da R.C. de 03/11/2020 (Carlos Moreira). Outros defendem que tal direito justifica-se, quer no caso de interrupção da energia electrica ab initio, como quando o distribuidor opte primeiro por exigir o pagamento do consumo, referindo que o disposto no art. 4º nº 1 está interligado com o art. 5o. Neste sentido vide Ac. do S.T.J. de 10/05/2016 (Gabriel Catarino) e Ac. desta Relação de 21/11/2019 (António Sobrinho). Subscrevemos esta tese que, quanto a nós, resulta do art. 5º, nº 2. Acresce que, sendo o consumidor o contraente mais débil na relação com a distribuidora por via da presunção de culpa, é fundamental o referido dever de informação consagrado igualmente no art.3º d) do Dec.-Lei no 24/96 de 31/07 que aprovou a Lei de Defesa do Consumidor. “ 10 - Ou seja, entendemos que de facto e ao contrário do que refere o acórdão recorrido, numa situação de consumo fraudulento e menos que não exista o corte do fornecimento de energia elétrica, a E Redes deveria ter informado as demandadas do direito de requerer à Direcção Geral de Energia uma contra vistoria! 11- Violou assim o acórdão recorrido o vertido nos artigos 4º, 5º e 6º do Decreto-Lei 328/90, de 22 de Outubro. 12 - E assim sendo entendemos que deve ser proferido acórdão uniformizador de jurisprudência no seguinte sentido: “ I – O n.º 2 do art. 1º do Dec.-Lei no 328/90 de 22 de Outubro prevê uma presunção juris tantum nos termos da qual qualquer procedimento fraudulento detectado no recinto ou local exclusivamente servido por uma instalação de utilização de energia electrica presume-se, salvo prova em contrário, imputável ao respectivo consumidor, sendo que não se trata propriamente de uma presunção de autoria do procedimento fraudulento, mas uma presunção de responsabilidade perante o distribuidor. II - No caso de indícios ou suspeita de procedimento fraudulento tem o distribuidor os seguintes deveres: a) dar notícia, em auto suficientemente descritivo, dos elementos que no entender do fornecedor constituem a prática manipuladora, deturpadora e viciante da medição da energia eléctrica (art. 2.º, n.º 2); b) entregar e deixar cópia do auto de ocorrência (art. 2.º, n.º 3); c)) fornecer os “elementos de prova eventualmente recolhidos” (art. 2.º, n.º 3); d) impedir que se processe uma interrupção do fornecimento de energia sem que o consumidor tenha sido notificado, por escrito, do valor presumido do consumo regularmente feito (art. 4.º, n.º 1); e e) informar o consumidor dos seus direitos, designadamente o de poder requerer à Direcção-Geral de Energia a vistoria prevista no artigo 5º n.º 2. III – Num caso de procedimento fraudulento, além desta alegação e prova, incumbe à distribuidora igualmente o ónus de alegação e prova do cumprimento do dever de informação ao consumidor do seu direito de requer à Direcção Geral de Energia uma “contra-vistoria”. TERMOS em que deve revogar-se o acórdão recorrido por tal ser de JUSTIÇA e ser fixada a jurisprudência uniforme solicitada na conclusão do presente recurso» Por despacho de 10-04-2025 (Ref.ª Citius ......22), do Senhor Desembargador relator no TRP, foi admitido o recurso, a subir imediatamente, em separado, e “com efeito meramente devolutivo (cfr. o preceituado nos artigos 437.º, n.ºs 2 e 5, 438.º, n.ºs 1 e 3, e 439.º, n.º 2, todos do Código de Processo Penal)”, ordenando-se a oportuna remessa a este Supremo Tribunal de Justiça (doravante, também “STJ”). O Senhor magistrado do Ministério Público junto deste Supremo Tribunal de Justiça pronunciou-se em 29-04-2025 (Ref.ª Citius ......70), nos termos do art. 440.º, n.º 1, do CPP, emitindo douto parecer, no sentido de que se deveria declarar «(…) nos termos do artigo 32.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, a incompetência das Secções Criminais para o exame preliminar com vista a fixar jurisprudência na situação em apreço, promovendo-se ainda que, nos termos do artigo 33, n.º 1, do Código de Processo Penal, o processo seja remetido à distribuição pelas Secções Cíveis do Supremo Tribunal de Justiça, por serem as competentes.» De tal parecer foi dado conhecimento à demandante para que, igualmente, identificasse cabalmente as «outras», bem como para comprovar o trânsito em julgado dos acórdãos, recorrido e fundamento, o que foi observado, tendo sido identificadas como «outras» as duas últimas sociedades comerciais referidas em 1. Nos termos do disposto no art. 440.º, n.º 1 do CPP, foi realizado o exame preliminar. Colhidos os vistos, foram os autos presentes à conferência, nos termos do disposto no art. 440.º, n.º 4, do CPP. No seguimento do que foi decidido o seguinte: “Pelo exposto, acordam os juízes Conselheiros que constituem este coletivo da 5.ª Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça, em julgar verificada a incompetência, em razão da matéria, das secções criminais do STJ para apreciar o presente recurso extraordinário de fixação de jurisprudência, interposto pelas demandadas Madureira Ascensão & Rodrigues – Sociedade Hoteleira, Ld.ª, António Miranda & Madureira, Ld.ª e Fernando Jorge Ferraz, Ld.ª, ordenando-se a remessa dos autos à distribuição pelas secções cíveis, por serem as materialmente competentes para dele apreciar - artigos 32.º, n.º 1 e 33.º, n.º 1, do CPP.”. Após o que foram os autos remetidos a esta Secção Cível e distribuídos ao ora Relator, o qual, apreciou liminarmente o recurso em causa, nos termos do disposto no artigo 692.º, n.º 1, do CPC, na sequência do que foi o presente recurso de uniformização de jurisprudência rejeitado, por inadmissibilidade, com o fundamento em que, resumidamente, se considerou ser-lhe aplicável o regime legal previsto no CPC, nos termos do qual, contrariamente ao previsto no processo penal, apenas é admissível a interposição de recurso para uniformização de jurisprudência, quando o STJ proferir acórdão que esteja em contradição com outro anteriormente proferido pelo mesmo Tribunal, sendo que in casu, se invoca a contradição entre dois acórdãos de Tribunais da Relação. Inconformadas com tal decisão, vieram as recorrentes, nos termos do disposto no artigo 652.º, n.º 3, do CPC, requerer a conferência, visando a revogação da supra referida decisão singular do Relator e consequente admissão do recurso para uniformização de jurisprudência, nos termos por si requeridos, com base na seguinte fundamentação: - a decisão singular aplica retroactivamente uma regra processual cível mais restritiva, que ignora o anterior processado, frustrando as legítimas expectativas das recorrentes, criadas pelas anteriores decisões que ao abrigo das disposições previstas no CPP, o que configura uma alteração das “regras do jogo” a meio do caminho; - o que implica que se criou um “beco sem saída”, porque nem nas secções criminais nem nas cíveis, se aprecia o mérito da questão, o que acarreta a violação dos princípios constitucionais da confiança e da segurança jurídica, consagrados no artigo 2.º, da CRP; - devendo a secção cível apreciar o recurso à luz do previsto no artigo 437.º, do CPP, tal como admitido e configurado anteriormente, sob pena de violação do direito de acesso à justiça e à tutela jurisdicional efectiva, consagrado no artigo 20.º, da CRP, e, ainda, sob pena de se configurar uma situação de denegação de justiça. Apreciando a argumentação expendida pelas recorrentes e que ora se resumiu, consideramos que a mesma não é de molde a alterar a decisão singular proferida no sentido da inadmissibilidade do recurso de uniformização de jurisprudência, por inadmissibilidade legal, regendo-se o processo civil pelas normas que lhe são próprias e não pelas previstas noutros regimes legais, como se verifica em cada um de tais regimes, salvas as excepções legalmente previstas (sendo de notar que nos termos do disposto no artigo 4.º, do CPP, para efeitos de integração de lacunas, se observam no processo penal as normas do processo civil, inexistindo no CPC, norma de inverso teor), nem se verificando as invocadas inconstitucionalidades, como se passa a explicitar. Efectivamente, nos artigos 2.º e 20.º da CRP, consagra-se, entre outros, o princípio da confiança ínsito no princípio do Estado de Direito democrático. Como referem Gomes Canotilho e Vital Moreira, in CRP Anotada, Vol. I, Coimbra Editora, 2007, a pág. 205, “o princípio do Estado de direito democrático, mais do que constitutivo de preceitos jurídicos, é sobretudo conglobador e integrador de um amplo conjunto de regras e princípios dispersos pelo texto constitucional, que densificam a ideia de sujeição do poder a princípios e regras jurídicas, garantindo aos cidadãos liberdade, igualdade e segurança” e em que cabem o acesso ao direito e à tutela jurisdicional efectiva (consagrado no artigo 20.º), bem como, de um modo mais lato, a protecção dos cidadãos contra a prepotência, o arbítrio e a injustiça. Neste preceito e seguindo os mesmos autores, ob. cit., pág.s 409 e seg.s, está consagrado o princípio de que ninguém pode ser privado de levar a sua causa à apreciação de um tribunal e que o direito de acção ou de agir em juízo terá de efectivar-se através de um juízo equitativo, no sentido de se conformar de forma materialmente adequada a uma tutela judicial efectiva, baseada no direito de defesa e ao contraditório, a prazos razoáveis de acção ou de recurso e direito ao conhecimento dos dados processuais. Ora, no caso em apreço, tais direitos não se mostram violados, apenas ocorrendo que a lei ordinária, como no geral acontece, estabelece as condições em que o recurso de uniformização de jurisprudência no âmbito do processo civil, pode ser interposto/admitido, designadamente, exigindo que a contradição de acórdãos se verifique entre acórdãos proferidos pelo STJ e não entre acórdãos proferidos nas Relações. Por outro lado, dispõe-se no artigo 20.º da CRP, o seguinte: “1. A todos é assegurado o acesso ao direito e aos tribunais para defesa dos seus direitos e interesses legalmente protegidos, não podendo a justiça ser denegada por insuficiência de meios económicos. 4. Todos têm direito a que uma causa em que intervenham seja objecto de decisão em prazo razoável e mediante processo equitativo. 5. Para defesa dos direitos, liberdades e garantias pessoais, a lei assegura aos cidadãos procedimentos judiciais caracterizados pela celeridade e prioridade, de modo a obter tutela efectiva e em tempo útil contra ameaças ou violações desses direitos.”. Salvo o devido respeito, a decisão singular proferida em nada contende com os direitos conferidos no comando constitucional em análise. O que ali se consagra é o direito de acesso aos tribunais e ao direito para defesa dos seus interesses, mediante a prolação de uma decisão em prazo razoável e através de um processo equitativo, o “due process”, consistindo, como o referem Gomes Canotilho e Vital Moreira, in CRP Anotada, Vol. I, Coimbra Editora, 2007, a pág, 414 e seg.s no “ o direito de acção no direito subjectivo de levar determinada pretensão ao conhecimento do órgão judicial, solicitando a abertura de um processo, com o consequente dever (direito ao processo) do mesmo órgão sobre ele se pronunciar mediante decisão fundamentada (direito à decisão) e, consoante o sentido da decisão, exigir, se for o caso disso, a execução da decisão do tribunal proferida no caso.”. Através de um processo equitativo, no sentido de conformado a uma forma materialmente adequada a uma tutela judicial efectiva, em posição de igualdade de armas, na proibição da indefesa, com sujeição a prazos razoáveis de acção ou de recurso, direito à fundamentação das decisões, decisão em tempo razoável, direito ao conhecimento dos dados processuais, direito à prova e um processo orientado à justiça material. Às recorrentes foi reconhecido o direito de acesso aos tribunais e ao direito com vista à defesa/protecção do direito a que se arrogam. Como consabido o direito corporiza-se num conjunto de regras que regula os conflitos de interesses entre os litigantes, tanto do ponto de vista objectivo como adjectivo, de molde ao normal e igualitário tratamento de ambas as partes no decurso de um processo judicial. Tais interesses e fundamentos em nada saem beliscados com o facto de se decidir que, no caso em apreço, por aplicação das regras que regulam o processo civil, as aplicáveis ao caso, é inadmissível recurso de uniformização de jurisprudência. É ao legislador ordinário que incumbe definir os termos em que o direito de acção, tendente à apreciação dos mais variados direitos, deve ser tramitado e conhecido. In casu, através do CPC acham-se definidos os meios e pressupostos aos quais as partes interessadas devem lançar mão para interposição do recurso de uniformização de jurisprudência, que importa não esquecer, é um recurso extraordinário e, por isso, sujeito a mais apertados pressupostos de admissibilidade, visando criar mais um grau de jurisdição (cf. Abrantes Geraldes, Recursos …, 8.ª Edição Atualizada, pág.s 623/5), do que decorre que a sua inadmissibilidade não acarreta a impossibilidade de acesso aos tribunais, dado que a questão já foi apreciada nas instâncias. Mais importa referir que inexiste qualquer mudança das “regras do jogo”. Desde o início que está legalmente determinado que ao caso em apreço eram aplicáveis as regras do processo civil – com o que as recorrentes se conformaram ao aceitar a decisão de declaração de incompetência material por parte das secções criminais do STJ –, que estão delimitados os pressupostos de admissibilidade do recurso em apreço, não se encontrando previsto em qualquer preceito da legislação processual civil, que um recurso tramitado ao abrigo do CPC, o seja ou possa ser, com observância das regras previstas no processo penal (apenas o contrário pode suceder, força do disposto no artigo 4.º do CPP, como acima já referido). A que acresce que o direito ao recurso – o que muito mais se acentua em face da natureza de recurso extraordinário que é conferida ao recurso de uniformização de jurisprudência – não é ilimitado, deixando o legislador constitucional ao legislador ordinário, a regulamentação dos termos em que é admitido o direito ao recurso, bem se compreendendo que a possibilidade de recurso de uniformização de jurisprudência, reitera-se, dada a sua natureza de recurso extraordinário, seja mais reduzida/restrita do que os recursos ditos ordinários, nos termos especialmente previstos em cada uma das legislações adjectivas ora em apreço: civil e penal. Podendo e devendo concluir-se que não se mostra violado nenhum dos direitos e/ou princípios constitucionais invocados pelas recorrentes, pelo que, não padece a decisão singular em apreciação das invocadas inconstitucionalidades, nem consequentemente, ser inconstitucional a aplicação do previsto no artigo 688.º, n.º 1, do CPC, ainda que se trate, como no caso em apreço, de uma situação decorrente de dedução de pedido de indemnização civil no âmbito do processo penal, por violação dos princípios da confiança e da segurança jurídica e/ou violação do direito de acesso à justiça e à tutela jurisdicional efectiva, previstos nos artigos 2.º e 20.º, da CRP. Em face do que se sufragam/confirmam os termos da decisão singular proferida, que se passa a reproduzir: “Não obstante os autos em apreço terem tido origem em pedido cível deduzido em processo penal e terem sido remetidos às Secções Cíveis do STJ, por serem as competentes, a lei aqui aplicável é a que rege o processo civil, designadamente, o Código de Processo Civil. Efectivamente, como resulta do disposto no artigo 400.º, n.os 2 e 3, do CPP, o legislador consagrou a autonomia das regras respeitantes à admissibilidade dos recursos civis face às dos penais. Como se refere, entre outros, no Acórdão do STJ, de 11 de Julho de 2023, Processo n.º 188/11.5TELSB-M.L1.S1, disponível no respectivo sítio do Itij “A recorribilidade da decisão sobre matéria cível desprendeu-se do recurso em matéria penal; isto é, a admissibilidade de recurso da sentença para o STJ, restrito à matéria cível, passou a ser apreciada de acordo com os critérios próprios de recorribilidade do Código de Processo Civil …”. Como resulta dos autos, é apontada, como fundamento do recurso, a contradição entre o Acórdão recorrido, proferido pelo Tribunal da Relação do Porto, em 18 de Dezembro de 2024 e o proferido no Tribunal da Relação de Guimarães, em 13 de Janeiro de 2022, Processo n.º 5/21.8T8VPA.G1, indicado como acórdão fundamento, já ambos transitados em julgado. Dispõe o artigo 688.º, n.º 1, do CPC que: “As partes podem interpor recurso para o pleno das secções cíveis quando o Supremo Tribunal de Justiça proferir acórdão que esteja em contradição com outro anteriormente proferido pelo mesmo tribunal, no domínio da mesma legislação e sobre a mesma questão fundamental de direito”. Ou seja, no processo civil, só é admissível a dedução de recurso para uniformização de jurisprudência, quando o Supremo Tribunal de Justiça proferir acórdão que esteja em contradição com outro anteriormente proferido pelo mesmo tribunal. Do que decorre que o objecto do recurso para uniformização de jurisprudência tem de ser um acórdão do STJ e não da Relação e a razão de tal recurso é a contradição entre o núcleo essencial do acórdão recorrido e o do outro acórdão do Supremo (acórdão-fundamento) – neste sentido, Abrantes Geraldes, Recursos em Processo Civil, 8.ª Edição Atualizada, Almedina, pág. 626 e nota 901, de pág. 629. O mesmo advogam Lebre de Freitas, Armando Ribeiro Mendes e Isabel Alexandre, CPC, Anotado, Vol. 3.º, 3.ª Edição, Almedina, pág. 278, que ali referem: “Diferentemente do que aconteceu no regime que vigorou entre 1961 e 1996 (…), e do que acontece em processo penal (art. 437-2 CPP, que inclui, aliás, na sua previsão também a oposição com um acórdão do STJ), a interposição do recurso para uniformização da jurisprudência não pode fundar-se na oposição entre acórdãos das Relações”. Consequentemente e dado que no caso em apreço é apontada a contradição entre dois acórdãos das Relações, conforme disposto no citado artigo 688.º, n.º 1, não é admissível o presente recurso para uniformização de jurisprudência, o que acarreta a sua rejeição, cf. artigo 692.º, n.º 1, do CPC, o que se declara”. Nestes termos: Confirma-se a decisão singular em causa, rejeitando-se o presente recurso para uniformização de jurisprudência, por inadmissível. Custas, pelas requerentes. Lisboa, 02 de Outubro de 2025 Arlindo Oliveira (Relator) |